INTRODUÇÃO AO
ESTUDO DO POSITIVISMO

— Parte IV —
(Conclusão)

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Música de fundo: La Marseillaise
(Claude-Joseph Rouget de L'Isle)

Fonte:
http://membres.lycos.fr/phpleretour/phpecard/index.php

 

Introdução ao Positivismo (Parte I)

http://paxprofundis.org/livros/positivismo/positivismo.html

Introdução ao Positivismo (Parte II)

http://paxprofundis.org/livros/positivismo1/positivismo.html

Introdução ao Positivismo (Parte III)

http://paxprofundis.org/livros/positivismo2/positivismo.html

 

AUGUSTO COMTE
E A QUESTÃO SOCIAL

 

Iniciando o exame do presente capítulo do livro de Lins, transcrever-se-á abaixo um parágrafo do autor como ponto de partida da análise da questão social, segundo a doutrina positivista.


A ação material do homem sobre o mundo somente pode ser classificada como trabalho social quando os seus frutos não são totalmente utilizados por ele próprio, estendendo-se a outros membros da sociedade de que participa, os quais, realizando operações análogas, concorrem para a sobrevivência e o desenvolvimento da sociedade.

 


O Capital e Suas Leis

 

A sociabilidade do homem, ou em outras palavras, a transformação do egocentrismo humano em altruísmo, de acordo com Comte, decorre de duas leis:

A primeira é subjetiva – refere-se ao próprio sujeito ou agente produtor – e consiste em que cada homem é capaz de produzir mais do que consome.

A segunda é objetiva – concerne ao objeto do trabalho do homem: os materiais obtidos podem conservar-se além do tempo exigido para sua renovação.

Portanto, acumulação e formação do capital decorrem das duas leis acima, onde cada geração ao produzir um excesso (alimentos, roupas, habitações etc.) em relação consumo por ela necessitado, favorece as gerações futuras. As técnicas de conservação de alimentos, a durabilidade dos materiais de construção, de eletrodomésticos etc. exemplificam e atestam a veracidade das leis anteriormente enunciadas. Tal capital acaba, em última instância, em se constituir no fundamento basilar do evolver da raça humana.

Por isso, no Positivismo, a propriedade tem função profundamente social onde cada geração ao bem administrar os capitais, facilita as dificuldades de sua própria existência, bem como diminui as das gerações que lhes seguem. Viver para outrem – segundo Lins – não se resume em um postulado moral; constitui-se em uma fatalidade, onde cada qual, pelo fato de, por um lado, por não ter capacidade de produzir tudo que precisa, e, por outro, porque as necessidades básicas para a sobrevivência impõem a aquisição de bens e materiais, acaba, inexoravelmente, tendo que trabalhar para si e para toda a coletividade. Nesse sentido, Comte acreditava que cada homem, ao cooperar com a sociedade, era, em realidade, um verdadeiro funcionário público.

 

 

 

 

Por isso tudo, Lins entendeu que, a exemplo dos feudos da Idade Média, os proprietários devem se constituir em meros gestores do capital, detendo-o para bem administrá-lo em toda a sua amplitude social, sem jamais possuí-lo. Resumindo: deter sem possuir.

 


Socialização da Propriedade

 

O jus utendi, fruendi et abutendi (o direito de usar, fruir e dispor) a propriedade pelo proprietário é, no conceito positivista, de um lado irreal e, por outro, desprovido de justiça. [Aforismo jurídico: Dominium est jus utendi, fruendi et abutendi re sua quatenus juris ratio patitur. Domínio é o direito de usar, fruir e dispor do que é seu, até o ponto em que o permite a razão do direito.]. No Comtismo, a solução da questão social consiste em se imprimir à gestão do capital o caráter relativo e social que lhe impõe a sua origem. Sobre essa matéria, ouça-se Lins:

Nenhuma propriedade podendo ser criada, nem mesmo transmitida pelo seu possuidor, e carecendo, sempre, de imprescindível e preponderante cooperação pública, sua utilização não deve ter nunca uma finalidade exclusivamente individual.

A captação de impostos, notadamente o de renda, configura a participação do cidadão no evolver da sociedade, estimulando progressivamente, em última instância, a socialização da riqueza. Portanto, repartir a riqueza tem importância tão elevada quanto produzi-la.

Lins, lembrando Condorcet, comenta ainda:

Em qualquer nação bem organizada, (....) o necessário à subsistência do indivíduo deve ficar isento de qualquer imposto. E, por outro lado, toda a parcela deste que não for empregada tendo em vista o bem público, deve ser tida como um roubo.

 

 

A Indústria Moderna e o Salário


A instituição de uma cota mínima, um salário mínimo, para o trabalhador é um dos postulados do Positivismo. Tal cota, obviamente, deve atender às necessidades mínimas do operário e de acordo com os padrões e com o nível de riqueza em cada época. É, por assim dizer, o corolário de um princípio do Positivismo que reconhece os direitos de cada qual como resultantes dos deveres dos outros para com ele. Por isso, Comte pensou que o salário deveria se compor de duas partes: uma fixa, comum a todos os empregados, e, outra, variável, proporcional à produção de cada um.

Deve-se acrescentar ainda que Comte defendia que o trabalho hebdomadário não seria superior a cinco dias, e, em cada dia, as horas de trabalho não excederiam jamais a seis.

O salário-mínimo surgiu no Brasil em meados da década de 30. O Governo Revolucionário (de inspiração castilhista, portanto positivista) de Getúlio Vargas (amado pelo povo e detestado pelas elites) criou o Ministério da Educação e Saúde, entregue a Chico Campos, fundou a Universidade do Brasil e regulamentou o ensino médio em bases que duraram décadas. Criou, simultaneamente, o Ministério do Trabalho, entregue a Lindolfo Collor, que promulgou, nos anos seguintes, a legislação trabalhista de base, unificada depois na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), até hoje vigente. Criou, ainda, o direito de livremente se sindicalizar e de fazer greve, o sindicato único e o imposto sindical que o manteria, as férias pagas, o salário-mínimo, a indenização por tempo de serviço, a estabilidade no emprego, o sábado livre, a jornada de 8 horas, a igualdade de salários para ambos os sexos etc. Darcy Ribeiro recorda: Getúlio obrigou o empresariado urbano de descendentes de senhores de escravos a reconhecer os direitos dos trabalhadores. Os politicões tradicionais, coniventes, senão autores da velha ordem, banidos por ele do cenário político, nunca o perdoaram. A Lei nº 185 de janeiro de 1936 e o Decreto-Lei nº 399 de abril de 1938 regulamentaram a instituição do salário-mínimo, e o Decreto-Lei nº 2162 de 1º de maio de 1940 fixou os valores desse mesmo salário-mínimo, que passou a vigorar a partir do mesmo ano. O País foi dividido em 22 regiões (os 20 coma

existente na época, mais o Território do Acre e o Distrito Federal) e todas as regiões que correspondiam a Estados foram divididas ainda em sub-regiões, num total de 50 sub-regiões. Para cada sub-região foi fixado um valor para o salário-mínimo, num total de 14 valores distintos para todo o Brasil. A relação entre o maior e o menor valor, em 1940, era de 2,67.


Incorporação Social do Proletariado


O pensamento de Comte, resumido por Lins, no que concerne à incorporação social do proletariado, resume-se a três condições essenciais:


I) o direito de desenvolver o operário e a vida de família, assegurando-se-lhe, através de seu próprio trabalho, a subsistência;

II) o direito de receber uma instrução que abranja todos os resultados essenciais da evolução científica, filosófica, literária e estética da Humanidade;

III) a necessidade de se tornar o proletariado, em seu conjunto, capaz de preencher um papel social fiscalizando, em colação com os intelectuais, o exercício do poder e a administração da riqueza.

Finalizando a resenha deste capítulo, pode-se verificar, salvo melhor juízo, que, a todo instante, a tônica básica dos preceitos daquele que foi o fundador da sociologia, é, permanentemente, uma preocupação humanista, ainda que autoritária.

Mondin, resumindo as bases do Positivismo, que se inserem perfeitamente neste momento, diz:

Por um lado, ele [o Positivismo] propõe-se a libertar o homem de todas as alienações ideológicas que o haviam anteriormente agrilhoado à religião e à metafísica; por outro lado, pretende adquirir um conhecimento exato do homem como ser social, valendo-se do método das ciências experimentais: como as ciências são idôneas para formular as leis relativas ao desdobramento dinâmica da realidade natural, assim também devem ser idôneas para formular as leis relativas ao desdobramento dinâmico da realidade natural, assim também devem ser idôneas para formular as leis relativas ao desenvolvimento do mundo social humano.

 


AUGUSTE COMTE
E A DEMOCRACIA

 

A primeira observação a ser feita é que apesar de os homens não serem iguais entre si – segundo Comte – o princípio da igualdade veio concorrer para realçar a dignidade do homem, desprezada pelo poderoso regime feudal prevalecente, derrubando as desigualdades existentes, por nascerem uns, na observação de Voltaire, de celas às costas, enquanto outros, desde o berço, já traziam esporas aos pés.

Por não serem todos os homens iguais nem ao menos equivalentes, não podem, por conseguinte, ter os mesmos direitos. Segundo Lins, cabe ao homem, todavia, livremente desenvolver sua atividade pessoal no sentido de, ao utilizar suas aptidões, colaborar para a existência coletiva e o bem comum. Foi nesse sentido que Comte, após reconhecer no homem, desigualdades físicas, desigualdades intelectuais e desigualdades morais, referiu-se à igualdade como uma mentira imoral.

Não sendo, pois, iguais nem tampouco equivalentes, segundo o Positivismo, os homens – quanto aos aspectos físicos, quanto à moralidade e quanto à intelectualidade – são tão-somente semelhantes, constituídos sobre um tipo parecido, no qual, entretanto, figuram em proporções diferentes as qualidades fundamentais. Por isso, Comte entendeu que o exercício da soberania pelo povo era uma mistificação opressiva, e Flaubert ao se referir ao sufrágio universal, considerou-o a vergonha do espírito humano, porquanto, segundo ele, um sábio poderia ser derrotado por dois imbecis.

No campo científico ou das belas letras, para Comte, a questão é a mesma, e observa:

Se um empreendimento depender de alto valor intelectual, como, por exemplo, uma grande concepção científica ou poética, não haverá reunião de espíritos vulgares, por mais vasta, capaz de lutar, de qualquer forma, com um Descartes ou um Corneille.

Não havendo restrição alguma na escolha dos mandatários da nação, pode resultar que todo bom orador, independente de quaisquer antecedentes, pode, nos regimes democráticos, aspirar ao poder, ficando, assim, as democracias expostas à mediocridade e ao charlatanismo. Sobre tal ponto Comte ponderou: ...poderá sempre o mais absurdo charlatanismo, pela magnificência de suas promessas, obter, junto de uma sociedade sofredora, privada de toda esperança racional, momentâneo sucesso, apesar da evidente inanidade dos diversos ensaios anteriores.

Para Comte não há um governo ideal único. Pode um governo servir para um determinado povo e não servir para outro. Há portanto tantas soluções boas quantos os povos existentes. Assim, a política científica deve, através de observação criteriosa e análise aprofundada, determinar o regime de governo exeqüível para cada sociedade, adaptando-se da melhor forma possível, ao povo a que se destina.

Afirma Lins que não há panacéia política e todo o regime de governo tem de se subordinar aos dados da observação. Devem ser levados em conta, assim, os antecedentes sociais e o estado de civilização do povo. É nesse sentido que um regime que possa ser ótimo para a Rússia ou para a Espanha, poderá não ser (e geralmente não é) bom para o Brasil, para a Argentina ou para os Estados Unidos da América, cujas condições sócio-econômico-culturais não são evidentemente as mesmas. Mas isso não significa que a solução esteja em uma ditadura republicana, qualquer que seja a sua coloração.

Montesquieu, referenciado por Lins, também agasalhou os princípios anteriormente discutidos, enfatizando que só por um acaso mui grande podem as leis de uma nação convir a outra.

Para Comte, recordando a história, a questão social resume-se a reorganizar sem Deus e sem rei. Tal afirmação cabia como uma luva, quer para Voltaire, quer para Rousseau. O primeiro postulou a derrubada do altar conservando o trono, o segundo mantinha a teologia, acabando com a realeza. Comte, no seu entendimento, veria realizado o ideal de Diderot, que imaginou no poema Os Possessos da Liberdade, que o último rei seria enforcado com as tripas do último padre. Enfim, Comte, pretendeu, com suas idéias e sua doutrina, onde o absoluto e a metafísica são impossíveis e nem sequer devem ser apresentados como objetos de estudo, elaborar um sistema social, onde a teologia e a metafísica seriam trocadas pela ciência, a república substituiria a monarquia e a guerra seria extirpada do Planeta, dado lugar ao trabalho industrial organizado.

Sinceramente, eu acho esse negócio todo muito chato e muito autoritário. Até admito que as teologias e as monarquias são retrógradas, mas se acabarem com a Metafísica eu ficarei a pão e água. Imaginem só o mundo, o tempo todo, sem parar, entra êmbolo sai êmbolo, como essa máquina aí embaixo. Se eu ficar olhando para essa animação por quinze segundos, dou um bocejo. Em trinta estarei quase dormindo. Mas se eu insistir em ficar olhando e não adormecer, perderei a consciência, a motricidade voluntária, a sensibilidade... e entrarei em estado letárgico típico do coma cárus, caracterizado pelo desaparecimento de todas as reações motoras e pelo surgimento de problemas oculares e vegetativos, e poderei passar para o lado de lá por anoxia! Isso seria terrificamente boriskarloffiano, mas a culpa seria do Auguste e o Boris Karloff não teria nada com isso. Há umas coisas no Positivismo muito cinzentas. Acabar com a Metafísica é uma delas. O mais curioso é que Comte foi o maior metafísico de todos os positivistas!

 

 

 

 

AUGUSTO COMTE
E A EDUCAÇÃO

 

O Homem

 

Na bela imagem de Comte, o homem é um ser, um monumento que tem por pedestal o corpo e por estátua a alma. Por esse motivo, não pode a educação visar a outro objetivo, que não seja a cultivação integral do ser humano.

Nesse particular, ouça-se Lins:

... cultivo de seu físico, que é o pedestal de sua alma; cultivo de sua alma, subdividido em cultivo do coração ou cultura moral; cultivo da inteligência ou instrução, sob os mais variados aspectos: estética, científica, técnica e filosófica; e, afinal, cultivo do caráter ou capacidade de agir, de modo a se realizar o ideal do poeta romano ao aspirar, para todos os homens, uma alma sã em um corpo são.

O Positivismo dá grande importância à educação na primeira infância, e por via de conseqüência, ao papel da mãe na formação do caráter e dos princípios de moralidade na criança, cuja base, para o resto da vida é insubstituível.

 

A Cultura Estética

 

O estudo das belas-artes far-se-á através da poesia, da música e do desenho. O aprendizado de outras línguas além da própria, facilitará o contato com os mais seletos pensamentos dos mais eruditos filósofos e espíritos do passado. Cultivar a boa música – Mozart, Beethoven, Rossini, Chopin e outros – e apreciar as belas artes – Miguel Ângelo, Portinari, Rembrandt, Da Vinci e outros – só enriquecerá o espírito e suavizará as paixões.

 

A Cultura Científica, a Cultura Intelectual e a Cultura do Caráter

 

Deve o homem esforçar-se para conhecer matemática, astronomia, física, química e por intermédio da sociologia e da biologia, conhecer o próprio homem.

Para Comte, na observação de Lins, todo e qualquer ensinamento científico que não começasse pelo estudo de matemática pecava pela base, e acabava por malograr, caso não fosse completado pela instrução da moral. Nesse sentido, todos os que se entregam à cultura científica devem obrigatoriamente se familiarizar com os preceitos e as discussões teórico-filosóficas de todos os grandes pensados do passado desde Tales, Demócrito, Sócrates, Platão, Aristóteles e Santo Agostinho a Descartes, Kant, Hegel, Lavoisier, Einstein, Galileu, Bacon, Pasteur e tantos outros.

Os benefícios da cultura intelectual – que pode até se constituir em um dos principais lazeres de cada um – consolidam sentimentos generosos e altruísticos, evitando oscilações, eis que, fundada em convicções indestrutíveis, suplanta sentimentos inferiores e paixões de qualquer ordem. Pela cultura o homem aspira e pode alcançar a perfeição, ou, pelo menos, gradualmente, pode se aperfeiçoar ininterruptamente ao longo da vida. A cultura dá ao homem, progressivamente, coragem, prudência e firmeza (confiança). No entender de Cunha Seixas, ao analisar a questão da virtude, explica que esta dá lugar a quatro espécies de virtudes fundamentais: prudência, temperança, fortaleza e justiça. Estas virtudes só são desenvolvidas pela aquisição sistemática da cultura do caráter.

Quanto às ponderações anteriores, deve-se considerar que, assimilar todos os pormenores de uma única ciência, já seria obra gigantesca; que dirá abarcar todo o campo do saber atual. Tal é impossível, além do que, exigiria excepcional memória. Por isso, propõe Lins estudar de cada ciência apenas o indispensável para que se faça a ponte entre todo o saber das ciências, coordenando-as umas em relações a outras e cada qual em relação ao conjunto. Isso não é, a meu juízo, inteiramente correto, pois não é possível, por exemplo, alguém ser engenheiro nuclear sem saber profundamente matemátuca, ou ser um bom psiquiatra sem conhecer, pelo menos, toda a obra de Freud. E também um químico que não tenha uma sólida base de física jamais poderá ser um bom profissional. Et cetera. No âmbito das religiões contemporâneas o que mais se vê são padres e pastores culturalmente 'rasteirizados', e exatamente por isso as besteiras que dizem arrombam os ouvidos de quem tem alguma cultura. Isso sem considerar as barbaridades hipotético-salvíficas que propõem.

Seguindo. Lembra Lins que foi exatamente por falta de cultura do conjunto das ciências, que povos inteiros têm se deixado envolver e empolgar com doutrinas pueris e frágeis, como foi, recentemente, a aceitação do povo alemão da teoria das raças, de que se valeram os próceres nazistas para a expansão dos mais inconfessáveis recalques. Em outras palavras, a aceitação e a admissão de um povo ariano cuja superioridade racial só pôde ter guarida, conforme afirmou-se, dada à completa falta de conhecimento, no mínimo de história e de biologia. Tal teoria, já frisava Alexandre Herculano, é tão perigosa quanto absurda.

Ao encerrar este capítulo, reproduz-se o pensamento conclusivo de Lins:

Em nenhuma outra época se apresentou, portanto, aos intelectuais tarefa e tamanha envergadura e magnitude. Acha-se, hoje, na ordem do dia, o estabelecimento de um sistema de cultura integral do homem, baseado nas conclusões insofismáveis da ciência, de modo a inaugurar-se, afinal, um regime de atividade plenamente pacífica de congraçamento entre os povos.

 

AUGUSTO COMTE
E A RELIGIÃO

 

No Positivismo, a palavra religião seria equivalente a síntese. O regime objetivo é alcançar a unidade, onde todos os atributos da humana existência sentimento, inteligência e atividade – convirjam para um destino comum. Para Diderot, a religião natural é aquela que não existe em certas épocas e países, sendo de todos os tempos e lugares.

Para os positivistas, a religião só pode estar alicerçada na ciência, uma vez que a unificação da sociedade e sua orientação para um destino comum só serão possíveis se estiverem fundamentadas no real conhecimento do homem e do mundo. Concepções sobrenaturais, freqüentemente, só têm trazido cizânia, ódio, discórdia e fatalmente morte. Nos períodos de exaltação e de luta, não é raro vermos a democracia matando em nome da liberdade e a fé religiosa trucidando em nome de Deus. (Discurso do Presidente Getúlio Vargas, na Sessão da Câmara dos Deputados, de 8 de dezembro de 1925, reproduzido nos Documentos Parlamentares, vol. III, páginas 573 e 574).

Comte, no que concerne ao caráter religioso do homem, que progride para o estado de completa unidade, assegura que: ... os homens se tornam progressivamente mais religiosos, e tanto mais quanto mais se projetarem no futuro, de vez que o espetáculo histórico nos demonstra apresentar a espécie humana dia a dia maior convergência de sentimentos, idéias e atos.

Para os positivistas, e para Lins em especial, dia virá em que o planeta Terra tornar-se-á patrimônio universal abrigando uma só Humanidade. Haverá, então, um estado de religiosidade total, no qual a tônica predominante será a harmonia em todos os campos; as divergências substantivas terão desaparecido e o congraçamento alcançará um ponto tão elevado que a tolerância recíproca e o entendimento superarão todo e qualquer entrave ao contínuo progresso da Humanidade. Foi pensando nessa religião do futuro que Comte propôs o mais profundo e singelo lema: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Nesse sentido, mais uma vez pode-se observar com exatidão o que ao longo do presente estudo parece ter ficado patente: o Positivismo assume uma forma eminentemente objetiva e empírica.

 

 

 

Para encerrar este sintético estudo sobre o Positivismo, acrescenta-se, a título de complementação, o pensamento de Soares sobre a Religião da Humanidade, criada por Comte:

Como conseqüência de toda a sua orientação sociológica, proclamando a incompatibilidade do Catolicismo com o estado positivo, conduzindo o espírito de conjunto ao princípio de 'viver para outrem', Comte chegou à criação de uma religião. Religião sem Deus, tendo por único objeto de veneração o Grão Ser, isto é, a Humanidade como conjunto de todos os homens futuros, presentes ou passados, que trabalharam, trabalham ou trabalharão pelo bem comum. A revolução espiritual de Comte, seu 'renascimento moral', que foi o fator predominante na criação da religião, ele próprio atribuiu à influência de Clothilde de Vaux.

 

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A presente recensão, pela forma minuciosa como foi elaborada e dividida em quatro arquivos, talvez dispensasse a apresentação de conclusões. Também estabelecer conclusões sobre a obra de Comte, vindo particularmente da pena de um neófito como eu, constituir-se-ia, certamente, em uma incomparável temeridade, ainda que eu discorde inteiramente de muitas proposições de Comte. Apresentar-se-á, assim, em substituição, algumas considerações finais, recordando os pontos fundamentais alcançados por esta monografia, e também, enriquecendo, ainda, com algumas ponderações.

O Positivismo antimetafísico fundado por Comte estabeleceu o que se pode denominar de relativismo científico. A Metafísica e o Absoluto são impossíveis, como são impossíveis o Misticismo e a Iniciação. Os fenômenos futuros podem ser previstos através da ciência, ou seja, através do pleno conhecimento das leis que regem os fenômenos. Fora dessa linha de ação, nada.

A espinha dorsal do sistema de Comte, segundo Stuart Mill, baseia-se na Lei Três Estados, ou seja, as manifestações intelectuais passam, separadamente e em momentos distintos, pelos estados teológico, metafísico e positivo. Entretanto, a caminhada da sociedade – que é sempre ascendente – não se opera, sempre, de forma constante, oscilando em espaços de tempo variáveis.

 

 

 

Por outro lado, Comte teve a sensibilidade de perceber que os fatos psicológicos estão vinculados ao social, e que para um indivíduo isolado apenas prevalecem as opiniões, não havendo mentira ou verdade. Nesse sentido, a objetividade do conhecimento que a Humanidade adquiriu acha-se valorizada basilarmente no aspecto coletivo, global, vale dizer social. Assim, por exemplo, no Positivismo, o laissez-faire1 constituía-se na maior aberração com que a sociedade poderia ser penalizada. No que aparentemente este exemplo possa não se adequar à questão psicológica, subjacentemente, muito, ou tudo, tem de fundamental no que concerne às expectativas e anseios de uma coletividade oprimida. A época de Comte mostrou isso.

Entretanto, se Comte sempre esteve mais à esquerda no que tange ao social e ao econômico, seu pensamento não pode ser confundido com Socialismo ou com Comunismo, e muito menos com Liberalismo. Sempre preferiu a evolução à revolução (e nisso se assemelhou a Louis-Claude de Saint-Martin), e acreditava que toda e qualquer mudança deve ser acompanhada de reestruturações morais e intelectuais.

No que concerne à Democracia, Comte, no sentido estrito do termo, não foi um democrata. Referiu-se à igualdade como mentira moral e o exercício da soberania pelo povo era, para ele, uma mistificação opressiva. A preocupação de Comte era de que charlatães alcançassem o poder, às expensas de promessas vãs, e piorassem a situação do povo. Por isso, não propôs um sistema único, exclusivo, de governo. Cada povo, de acordo com sua cultura, tradição e momento histórico, deveria escolher a melhor forma para o governo.

No campo educacional, Comte pregou a educação integral do homem, aspirando para toda a Humanidade uma mente sã em um corpo são.

No que toca à religião, criou Comte uma religião sem Deus, na qual o objeto maior de veneração era o Grão Ser, ou seja, a Humanidade. Em um certo sentido, isto está de acordo como Ateísmo Místico que professo e que venho expressando em diversos textos publicados no Website Pax Profundis.

Enfim, talvez não seja usual já nas conclusões buscar opiniões de outros pensadores, mas, fugir às regras pré-estabelecidas, algumas vezes, torna-se proveitoso e elucidativo. De Soares pode-se aduzir algumas informações úteis:

1. O 'pai espiritual' – dito pelo próprio Comte – do filósofo não é Saint-Simon, mas Condorcet, a quem atribui profunda influência em sua formação.

2. Comte assemelha-se a Kant em dois pontos particulares: negação da Metafísica e relatividade do conhecimento.

3. A cisão com Saint-Simon parece estar apoiada em dois fatos: Saint-Simon privilegiava os industriais à frente da sociedade, enquanto Comte reservava tal lugar aos sábios; e, por outro lado, Comte, ateu, combatia toda e qualquer inclinação religiosa de sentido deísta, enquanto Saint-Simon tolerava a religiosidade.

Soares ressalta alguns erros de Comte, que se considera oportuno transcrever:

Comte considerava que as descobertas científicas, alcançando certo grau de generalidade (como, por exemplo, a lei de Mariotte), não devem ser alteradas. Temia que processos de aperfeiçoamento, sem objetivo imediatamente definido e útil, sacrificassem a boa ordem do saber já disciplinado. Era o que ele chamava 'curiosidade sempre vã e perturbadora'.

Concorreram para a atitude do Filósofo sua paixão pela ordem como base do progresso e a preponderância que o sentimento religioso tomava em seu espírito. Depois de haver sistematizado o quadro de seus conhecimentos, Comte aboliu qualquer novo estudo. Não tomou conhecimento da revolução matemática que o século XIX vinha preparando, considerando a matemática disciplina já constituída, que não podia ser modificada. Os protestos que levantou contra os abusos das investigações microscópicas parecem inspirados em Bacon com relação ao telescópio. A crítica de Comte a Fresnel é um aspecto dessa oposição ao aperfeiçoamento dos aparelhos de óptica, oposição responsável também por sua incredulidade à análise química dos astros.

O próprio Comte, que formulou interdição ao mais amplo desenvolvimento da ciência, procurando restringir sua liberdade ('Não é tolerável que qualquer homem, competente ou não, ponha todos os dias em questão as próprias bases da sociedade'), admitia a utilidade da ciência num futuro imprevisível; o marinheiro de hoje, que procede a determinações astronômicas para assegurar o curso da viagem, está aproveitando descobertas matemáticas sobre os cones, descobertas gregas, feitas há mais de dois mil anos. Entretanto, no 'Système', I-510, chega a restringir a astronomia ao sistema solar e desdenhou da descoberta de Leverrier. Há contradição entre o princípio comtiano, que procura limites para as investigações científicas, e a insistência de Comte, 'Cours', VI-471, na necessidade da hipótese, considerando o empirismo absoluto 'não somente inteiramente estéril, como também radicalmente impossível à nossa inteligência'.

Finalizando este trabalho, alude-se à opinião de Mill, esboçada na obra On Liberty sobre o sistema de Política Positiva, obviamente uma flagrante contradição com a opinião agasalhada por Lins sobre o Comtismo e sua doutrina.

Augusto Comte, (...) cujo sistema social, conforme apresentado no 'Système de Politique Positive', tem em vista estabelecer (embora lançado mão de meios morais ao invés de legais) um despotismo da sociedade sobre o indivíduo que ultrapassa tudo quanto pretendia o ideal político do disciplinador mais rígido entre os antigos filósofos.

Para concluir, eu penso que Auguste Comte tenha sido um homem de bem – um Filósofo bem-intencionado – mas que sucumbiu ao seu autoritarismo, que particularmente no século XX (nomeadamente no Brasil) encontrou adeptos das mais variadas inclinações, que nunca retrocederam um milésimo em aniquilar seus oponentes para dar curso às suas idéias políticas. Olga Benario Prestes foi uma mártir da sanha autoritária positivista da ditadura Vargas, e como escreveu Graziela Salomão, é um exemplo de coragem, determinação e convicções políticas. Defendeu seus ideais e mostrou força em um momento histórico fragilizado pelas duas Grandes Guerras Mundiais e pelo Nazismo de Hitler. Getúlio Vargas, como ato de vingança pessoal a Luiz Carlos Prestes – o Cavaleiro da Esperança – e na tentativa de conseguir uma aproximação com o regime nazista, decidiu deportar Olga para a Alemanha, que, na época, estava grávida de Anita Leocádia. Em fevereiro de 1942, Olga foi executada junto com outras 200 prisioneiras na câmara de gás de Bernburg. A notícia de sua morte veio através de um bilhete escondido na barra da saia de uma presa.

Coisas como essas me causam tamanha indignação, que, por uma fração de segundo, eu chego até a considerá-las imperdoáveis. Apesar de estar plenamente consciente de que não tenho o direito de julgar nada nem ninguém, penso que o Doutor Getúlio passou dos limites no caso Olga. Mas, misticamente, tudo faz sentido, tudo acaba sendo bom.

 

Rio de Janeiro, 21 de julho de 2006.

 


 

 

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Nota:

1. O laissez-faire é a atitude que consiste em não intervir, ou seja, é o ato de manter a neutralidade. No âmbito da Economia Política, é a doutrina que preconiza a liberdade absoluta de produção e de comercialização de mercadorias. Foi o lema da fisiocracia francesa do século XVIII, depois defendido radicalmente pela Inglaterra, que lutava por mercados para os seus produtos. O laissez-faire, com o desenvolvimento do Capitalismo, evoluiu para o Liberalismo Econômico.

 

BIBLIOGRAFIA

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Websites consultados:

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http://www.pdt.org.br/diversos/gvperf.htm

http://www.linguaggioglobale.com/filosofia/txt/Positivismo.htm

http://www.gibliestal.ch/~aschaub/+CAD/Inventor/+Inventor.htm