INTRODUÇÃO AO
ESTUDO DO POSITIVISMO

— Parte I —

Rodolfo Domenico Pizzinga

Música de fundo: La Marseillaise
(Claude-Joseph Rouget de L'Isle)

Fonte: http://membres.lycos.fr/phpleretour/phpecard/index.php

 

NOTA PRELIMINAR

 

No último volume do seu Curso de Filosofia Positiva (1842) Auguste Comte publicou o Calendário Positivista proposto para substituir o Gregoriano, com a finalidade de, segundo ele, desenvolver o espírito histórico e o sentimento de continuidade. O Calendário Positivista é dividido em treze meses iguais de 28 dias – com nomes que glorificam figuras importantes da história – e um dia adicional, o último do ano, consagrado aos mortos. A Revolução Francesa e a Queda da Bastilha representaram esse caráter de mudança e de ruptura histórica entre a Idade Média católico-feudal e a modernidade, presumidamente mais positiva e menos teológico-metafísica. A Queda da Bastilha, no dia 14 de julho de 1789, marcou o início do movimento revolucionário pelo qual a burguesia francesa, consciente de seu papel preponderante na vida econômica, tirou do poder a aristocracia e a monarquia absolutista. La Marseillaise e a bandeira francesa (com as três cores gnósticas e seqüenciais da qual é constituída, na qual a cor negra foi substituída pela cor azul) representam essa (tentativa de) mudança. Infelizmente Comte interpretou esse tempo de atrição, smj, em parte, de forma equivocada. Mas esses parciais equívocos produziram seus frutos também equivocados e influenciaram muitas culturas, como, inclusive e por exemplo, a própria música popular brasileira, como é o caso do samba Positivismo de Noel Rosa e Orestes Barbosa, de 1933, que diz: A verdade meu amor mora num poço/É Pilatos lá na bíblia quem nos diz/E também faleceu por ter pescoço/O inventor da guilhotina em Paris/Vai orgulhosa querida/Mas aceita esta lição:/No câmbio incerto da vida/A libra sempre é o coração/O amor vem por princípio/A ordem por base/O progresso é que dever vir por fim./Desprezaste esta lei de Augusto Comte/E foste viver feliz longe de mim./Vai coração que não vibra/Com teu juro exorbitante/Transformar mais esta libra/Em dívida flutuante. Para mim, os dois exemplos mais traumáticos da influência positivista na vida brasileira foram a Proclamação da República e a Revolução de 64.

 

 

 

Queda da Bastilha


INTRODUÇÃO

 

Este ensaio (ligeiramente atualizado nesta oportunidade, incluindo, também, algumas fotografias e animações) foi escrito em fevereiro de 1990 especificamente para um um ciclo de palestras para professores da antiga Escola Técnica Federal de Química do Rio de Janeiro, da qual fui professor de Química por alguns anos – uma adaptação de um trabalho que apresentei na Universidade Gama Filho em uma das disciplinas do Programa de Doutorado em Filosofia. Para poder ser didático na exposição, evitei, naquela oportunidade, apresentar o pensamento de Comte diretamente, preferindo elaborar o texto principalmente com base nas reflexões de alguns comentadores e no meu próprio razoável conhecimento da Doutrina. Para esta divulgação interpus algumas apreciações críticas quando julguei que eram convenientes e indispensáveis. Apesar de este não ser um procedimento rigorosamente científico, pois é preferível e recomendável que se usem sempre fontes primárias para os textos em que elas estejam disponíveis, ainda assim penso que seja interessante e útil divulgar este trabalho neste Website desta forma, porque não são poucas as pessoas que se referem ao Positivismo sem saber exatamente o que esta sedutora Doutrina propõe. E não podemos esquecer (ou não saber) de que a não-gloriosa Revolução de 64 no Brasil, com a sua execrável hereditariedade sociocrática comtista, foi construída em bases eminentemente positivistas que vinham de muito longe, antes mesmo da Proclamação da República (com a quartelada de Deodoro da Fonseca e dos positivistas brasileiros) em nosso País com, por exemplo, os apóstolos da Humanidade Miguel Lemos (1854-1917) fundador da Igreja Positivista do Brasil e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927) autor da Bandeira Nacional Republicana e um incansável verberador contra o 'egoísmo burguesocrático'. Assim, o próprio dístico da bandeira brasileira é positivista: Ordem e Progresso.

E mais: nos tempos em que estamos vivendo em nosso País (julho/agosto/setembro de 2005) há algumas cabeças coroadas com coroa de chumbo (que acabam influindo as cabeças sem coroa e sem raciocínio próprio) que andam sentindo saudades daqueles recentes tempos plúmbico-sociocráticos – que não deixaram nenhuma saudade. Deixaram, sim, marcas difíceis de serem esquecidas. O próprio Presidente Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) era positivista, mas segundo o positivista ortodoxo Rubem Descartes de Garcia Paula, Getúlio renegou, esqueceu-se do que sabia do Positivismo e das ligações que tivera com a obra de Castilhos, sobretudo a partir de 1937, quando assumiu a ditadura fascista-integralista (inverti, sem modificar, a ordem da citação para se adaptar ao texto). E, um pouco mais à frente, é fácil de se compreender, em parte, a queda do Presidente Fernando Collor de Mello – o caçador de marajás pois sua aversão confessada pelo Congesso Nacional também vinha de longe, pois seu avô Lindolfo Collor (1890-1942) primeiro Ministro do Trabalho do Governo Provisório instalado após a Revolução de 1930 que promulgou a legislação trabalhista de base, unificada depois na CLT também era positivista. No sistema presidencialista, presidente que resiste em cortejar o Congresso está frito. E Collor foi politicamente fritado. O fato é que os positivistas (e aqueles que simpatizam com esta Doutrina) simplesmente abominam a Democracia e os poderes da República, do qual o Congesso é um deles. Então? Retroceder? Nunca. Portanto, este texto se justifica por si próprio.

A bibliografia utilizada está apresentada no final do ensaio, e para concluir esta introdução, deixo para reflexão a seguinte pergunta: o que será pior e mais danoso para o povo e para um Estado, uma ditadura (autoritária, totalitária, republicana, religiosa etc.) ou a corrupção? Não esqueçamos de que em regimes de força a imprensa sobrevive (quando sobrevive) amordaçada. E não há nada mais útil e benéfico para a instalação e proliferação da corrupção do que uma imprensa com mordaça. Mas não se pode desqualificar in totum o Positivismo. Há pontos de indiscutível valor que, infelizmente, estão misturados em uma salada sem possibilidade de liga. A Religião da Humanidade, proposta por Comte, é apenas um metafísico exemplo da contradição positivista. E a força armada para conquistar o poder é outro. Os tanques e os canhões! Mas, quando o homem não consegue, a Natureza se incumbe de pôr fim aos impérios, porque, como tudo, eles nascem, mas acabam morrendo! O Império Otomano durou quase seis séculos, mas pode-se admitir que terminou quando o Egito se libertou da condição de protetorado britânico em 1922. O Império Austro-húngaro, que foi estabelecido em 1867, foi dividido em 1918; e o império dos czares eclipsou-se em 1917.

 

 

DADOS HISTÓRICOS E BIOGRÁFICOS

 

Auguste  Comte

 

Isidore Marie Auguste François Xavier Comte nasceu na Cidade de Montpellier, sul da França, em 19 de Janeiro de 1798, e faleceu em Paris em 15 de Setembro de 1857. É considerado o fundador e o pai do Positivismo e da Sociologia. O termo Positivismo foi possivelmente usado pela primeira vez na escola de Claude Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, (1760-1825) – teórico do Socialismo Utópico – e que, segundo Marcuse, na obra L'Uomo a Una Dimensione, de 1969, designa: a) convalidação do pensamento cognitivo por meio da experiência factual; 2) orientação do pensamento cognitivo para as ciências físicas como modelos de certeza e de exatidão; e c) persuasão de que o progresso do conhecimento depende de tal orientação. O pensamento saint-simoniano pode ser sintetizado no lema: A cada um segundo sua capacidade, a cada capacidade segundo seu trabalho.

 

 

Marcuse, na obra supracitada, resume que o Positivismo é uma luta contra todas as metafísicas, contra todos os transcendentalismos e idealismos, considerados modos de pensamento obscurantistas e regressivos. Obviamente a metafísica e o pensamento místicos estão incluídos nessa síntese, o que pessoalmente, me afasta so Sistema Comtiano.

Entre 1818 e 1824, Comte – que recebeu influências de cientistas de renome, como o físico Sadi Carnot (1796-1832), o matemático Lagrange (1736-1813) e o astrônomo Pierre Simon Laplace (1749-1827) – foi secretário e colaborador de Saint-Simon, mas acabou por romper com seu inspirador para ministrar autonomamente seu primeiro curso de Filosofia Positiva. Comte separou-se de Saint-Simon acusando-o de ter furtado e publicado um escrito seu intitulado Planos de Trabalho Científico Necessários à Reorganização da Sociedade. Todavia, por ironia do destino(!), teve que viver os últimos 34 anos de sua vida sob a proteção pecuniária de seus simpatizantes, eis que perdeu seu posto de examinador de admissão na Escola Politécnica e não conseguiu obter uma nomeação oficial para ensinar matemática na mesma Escola. Chegou, inclusive, a tentar o suicídio.

Em outubro de 1844, Comte conheceu e se apaixonou platônica e perdidamente por Clotilde de Vaux. Prometeu transformá-la em uma nova Beatriz – a musa inspiradora de Dante Alighieri (1265-1321). Um ano depois, Clotilde de Vaux morreu, e Comte acabou por se tornar o inspirador de uma nova religião (a Religião da Humanidade), publicando entre 1851 e 1854 a Política Positiva ou Tratado de Sociologia Instituindo a Religião da Humanidade. Em 1852, publicou O Catecismo Positivista ou Exposição Sumária da Religião Universal.

 

 

O Positivismo de Comte não pretendeu imediatamente estabelecer uma nova filosofia nem alicerçar as ciências da época sobre novas bases. Antes, tentou uma reforma da sociedade. Mora entende que o sistema comtiano compreende basicamente três fatores, a saber: em primeiro lugar, uma Filosofia da História que há de mostrar porque a Filosofia Positiva é a que deverá imperar em um futuro próximo; em segundo lugar, uma fundamentação e uma classificação das ciências assentadas na Filosofia Positiva; por último, uma Sociologia ou doutrina da sociedade que, ao determinar a estrutura essencial da mesma, permita passar à reforma prática e, finalmente, à reforma religiosa, à Religião da Humanidade. A Filosofia Positiva de Comte não se resume, por outro lado, apenas em uma mera organização das ciências. Requer, fundamentalmente, uma ordem hierárquica para poder ser implementada. A animação abaixo representa esse pensamento.

 

 

A Matemática encontra-se na base da pirâmide pelo fato de, desde tempos imemoriais, ter alcançado o estado positivo, ou seja, pela simplicidade de seu conteúdo. A Astronomia, a Física, a Química e a Biologia., por apresentarem uma complicação intrínseca, obriga que, nelas, o Positivismo demore mais a se manifestar. Finalmente, no ápice da pirâmide, tem-se a Física Social, posteriormente denominada de Sociologia, que é, segundo Comte, a ciência cujos conteúdos são mais concretos, e, por isso, penetrará com mais demora na esfera da Doutrina Positiva. Sobre a Sociologia, ouça-se Mora: A inclusão da Sociologia neste domínio é o que caracteriza, no fundo, o advento do estado positivo total, da fase na qual a Sociologia como ciência do homem e da sociedade poderá, finalmente, ser convertida, pelo método narutalista, em uma estática e em uma dinâmica do social. O Positivismo de Comte, enfim, tem sedutoramente por base o amor como princípio, a ordem como base, o progresso como fim.

Em resumo, Abbagnano apresenta como teses fundamentais do Positivismo:

1ª - A ciência é o único conhecimento possível e o método da ciência é o único válido. Portanto, o recurso a causas ou a princípios que não sejam acessíveis aos métodos da ciência não dá origem a conhecimentos, e a metafísica, que justamente recorre a tal método, não tem qualquer valor.

2ª - O método científico é puramente descritivo no sentido de que descreve os fatos e mostra aquelas relações constantes entre os fatos, que são expressas pelas leis e consentem a previsão dos mesmos fatos (Comte); ou no sentido que mostra a gênese evolutiva dos fatos mais complexos a partir dos mais simples (Spencer).

3ª - O método científico, enquanto é o único válido, deve ser estendido a todos os campos da indagação e da atividade humanas; a vida humana inteira, individual ou associada, deve ser guiada por ele.

 

 

AUGUSTE COMTE E A CIÊNCIA

 

Nenhum filósofo agasalhou e demonstrou um entusiasmo tão exuberante pela ciência quanto Auguste Comte. Nela depositou todas as suas esperanças, e acreditou que, pelo pleno domínio de todas as variantes do saber, o homem, um dia, haveria de se tornar mais desprendido de sua animalidade natural, ou seja, mais enérgico, mais inteligente e mais bondoso. Ora, disto ninguém pode discordar. Com 21 anos, Comte afirmou: É preciso fundar, fora da Teologia, uma ciência positiva, como a Astronomia, a Química e a Fisiologia, cujas concepções sejam suscetíveis de verificação. Nesse sentido, para Comte, a nova ciência deveria vir depurada de toda e qualquer metafísica, tornando-a coerente e homogênea por intermédio do método científico. Assim, em 1830, na presença de vários cientistas da época, após doze anos de ininterrupta pesquisa, professou o seu Curso de Filosofia Positiva. Neste ponto também concordo com Comte, pois nada pode ser mais atrasador para a Humanidade do que essa quantidade interminável de religiões existentes, que só apocopam, iludem e estimulam sentimentos preconceituosos. Pior é quando alguns de seus confrades entendem de matar em nome dos deuses.

Todo o trabalho de Comte apoiava-se no estudo e no domínio do que o filósofo denominou de ciências fundamentais, isto é, aquelas que constam da pirâmide anteriormente apresentada. Tudo se resume em ver para poder prever, e nos campos social e político o espírito positivo acabaria por passar o poder espiritual para o controle dos cientistas.

 

A Lei dos Três Estados

 

 

O que levou Comte a desenvolver a Lei dos Três Estados foram os trabalhos do filósofo Condorcet, nos quais baseou todos os seus escritos a partir de 1818. Segundo Codorcet, a civilização se move de forma progressiva segundo leis naturais, e a observação filosófica do passado pode prever e determinar cada época. Baseando-se no pensamento de Condorcet, Comte formulou a Lei dos Três Estados, que é a espinha dorsal do seu sistema. Segundo Comte, pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos é necessariamente sujeito, em sua marcha, a pasar, sucessivamente, por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; e, por fim, o estado científico ou positivo. No primeiro, os fatos observados são explicados pelo sobrenatural, ou seja, as idéias baseadas no sobrenatural são usadas como ciência. Ainda nesta fase, a sociedade se encontra em uma estrutura militar fundamentada na propriedade e na exploração do solo. No segundo, já se encontram as idéias naturais, mas ainda há a presença do sobrenatural nas ciências. A indústria já se expandiu mas não totalmente, e a sociedade já não é francamente militar. Pode-se dizer que este estado serve apenas de estágio intermediário entre o primeiro e o terceiro. No terceiro, ocorre o apogeu do que os dois anteriores prepararam progressivamente. Neste, os fatos são explicados segundo leis gerais de ordem inteiramente positiva. A indústria torna-se preponderante tendo como atividade única e permanente a produção.

Entretanto, não se deve pensar que os três estados representem etapas nítidas e delimitadas pelas quais a Humanidade tenha percorrido. O sentido desta Lei, segundo o próprio Comte, é o de que são as diversas manifestações intelectuais que passam por essas três etapas, separadamente, e em momentos diversos para cada uma delas. A própria evolução que caracteriza a caminhada ascendente da Humanidade não se faz por uma linha reta. Compõe-se, segundo o Filósofo de Montpellier, de uma série de oscilações progressivas comparáveis às que apresenta o mecanismo de locomoção. Assim, no estado ou época religiosa o homem procura dar explicações para os fenômenos recorrendo a causas sobrenaturais; metafisicamente explica os mesmos fenômenos recorrendo a princípios recônditos incomprovados; e apenas no estado positivo ou científico se esforça para explicar os mesmos fenômenos por meio das leis naturais que, por si só, são auto-explicáveis. O próprio Comte perguntou: Quem de nós não recorda, refletindo em sua própria história, que foi sucessivamente, com respeito às noções mais importantes, 'teólogo' na infância, 'metafísico' na juventude e 'físico' na idade adulta? Bem, não posso deixar de discordar de Comte quanto a este exemplo. Há uma imensa massa de pessoas que alcançam a idade adulta (e até provecta), cientistas inclusive, que continuam a viver naquilo que o filósofo categorizou de estado teológico. Alguns chegam até a matar (e/ou mandar matar) em nome de um presumido e suposto deus, na esperança de serem recompensados por esses atos. E quanto ao estado metafísico, é preciso que se faça uma substantiva distinção. Há dois tipos básicos de Metafísica: um de cariz eminentemente religioso; outro estritamente místico e iniciático. Se assim é, os estados teológico e metafísico-teológico são variações de um mesmo estado caractarizado pela ignorância e pelos sentimentos desfavoráveis formados a priori, isto é, pelo preconceito obliterante. E por que apenas três estados na peregrinação humana rumo à consciência autoconsciente da Consciência Cósmica (que dorme nos entes que Dela ainda não tomaram consciência)? Já tive oportunidade de apresentar meu entendimento sobre essa matéria, e penso que a reintegração dos seres está se fazendo (como sempre se sefez) e se fará ad semper e ilimitadamente. Finalizar em um estado qualquer (paradisíaco, límbico ou infernal) seria estagnar, e não existe estagnação no Universo.

 

Auguste Comte e a Psicologia

 

Comte entendeu que todos os fatos de ordem psicológica, em última instância, decorrem do movimento daquilo que denominou de Física Social. Edmond Goblot (1858-1935), professor de História e das Ciências da Universidade de Lion assim explicou:

Comte teve o mérito de haver sido o primeiro a compreender que todos os fatos psicológicos decorrem da Sociologia, o que não é mais contestado. Foi também o primeiro a reconhecer que, para o indivíduo isolado, não haveria nem verdade nem mentira, mas, apenas, opiniões, sendo a verdade um fato social. Também foi Comte quem primeiro observou que a objetividade do conhecimento, sem a qual não há verdade nem ciência, se acha no caráter coletivo do conhecimento – em seu valor interpessoal – logo social. Ainda foi Comte o primeiro a salientar que, na ordem dos fenômenos afetivos, com exclusão de algumas inclinações intrapessoais – que são tendências inteiramente rudimentares e instintivas da vida animal – todos os nossos sentimentos, mesmo egoísticos, são inclinações interpessoais, e, conseqüentemente, fatos sociais, cujo estudo é impossível fora da Sociologia.

Para analisar este parágrafo de Goblot seria necessário um texto completo. Vou apenas acrescentar, discordando do historiador, que a verdade não é 'um fato social'. Se houver uma Verdade Absoluta, esta jamais poderá ser alcançada ou compreendida pelo homem (enquanto homem). A sociedade, geralmente, gesta verdades(?) que lhe convêm (normalmente para manutenção do poder que ela mesma pariu para se manter ad æternum – enquanto puder – montada nesse abominável poder), e muitas pessoas engolem essas verdades(?) porque são incapazes de praticar um mínimo de dialética, isto é, ainda estão inabilitadas para refletir sobre as verdades relativas mais elevadas da escada ilimitada da inalcançável e presumida Verdade Absoluta(?), através da qual a personalidade-alma se eleva, suposta e gradativamente, das aparências sensíveis, ilusórias e objetivas às Atualidades Inteligíveis ou Plano das Idéias Eternas. Se isto for possível e contiver um mínimo de relativa verdade, a progressão na percepção daquilo que se possa presumir ou admitir como Verdade Absoluta (e repito: se existir), só poderá se dar solitária e individualmente. In Corde. Ad infinitum. Mas, o que poderá ser o infinito? Como o infinito parece dar uma idéia de geração ininterrupta, e como o que é, e como, ainda, nada pode aparecer do nada, ser gerado do nada e sumir no nada – pois o nada ou não existe ou é, sempre foi e será alguma coisa – é aqui e agora que cada ente deverá se esforçar para transmutar suas deficiências. Depois? Depois poderá ou não existir. Dependerá de muitas coisas. Assim, se há um caráter coletivo do conhecimento, ele não é também mais do que relativo, e tão-só um Caminho Peregrinante desbastará paulatinamente os absurdos e as perplexidades dessa relatividade: In Corde. É mais ou menos assim: Conhecimento —› Sabedoria (ShOPhIa). E isto em nada se aproxima do egoísmo; pelo contrário: faz contraponto com o voluntariado, com a solidariedade e com a fraternidade, cujo pilares são a humildade e a renúncia. Estes comentários estão em consonância com um texto que escrevi há algum tempo A Caverna (Um Encontro Insólito com Platão), que, oportunamente, poderá ser lido em:

http://paxprofundis.org/livros/caverna/caverna.htmL

 

A Relatividade dos Conhecimentos Humanos

 

Aos dezenove anos, em 1817, Comte propôs um aforismo verdadeiro (que curiosamente contrasta em muitos pontos com sua doutrina) no qual pretendeu repousar toda a epistemologia (estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico, ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história) comtiana, qual seja: Tudo é relativo — eis o único príncipio absoluto. Ao homem é possível somente ter acesso ou obter conhecimento relativos, ou seja, fatos relacionados a outros fatos, fenômenos em relação a outros fenômenos, e assim por diante. Ravaisson, citado por Lins, comenta: Pela palavra 'positivo' Auguste Comte entendeu os fatos que conhecemos através da experiência; e esses fatos são, afinal, a seus olhos, coisas relativas. A Metafísica, ao contrário, propõe-se a conhecer as coisas que existem por si mesmas, independentemente de quaisquer relações, isto é, que existem de modo absoluto, sendo, por conseguinte, uma ciência ilusória. Ora, como explicar a Religião da Humanidade proposta por Comte? Tudo isso é uma grande contradição. Comte, sem sabê-lo ou sem tê-lo admitido, foi um dos maiores metafísicos que a nossa Humanidade já produziu. Para ele, metafísicos eram os outros. A sua Religião da Humanidade, da qual Comte, desde 1847, autoproclamou-se Grande Sacerdote, apenas retirou do altar os santos católicos e sacralizou no Calendário Positivista – 13 meses iguais de 28 dias, com um ano bissexto, quando houvesse necessidade de ajuste, tendo o ano 1 começado em 1/1/1789, ano da queda da Bastilha e símbolo da Revolução Francesa – os pensadores, líderes religiosos e cientistas de todos os tempos [(1)Moisés, (2)Homero, (3)Aristóteles, (4)Arquimedes, (5)César, (6)São Paulo, (7)Carlos Magno, (8)Dante, (9)Gutenberg, (10)Shakespeare, (11)Descartes, (12)Frederico II e (13)Bichat)], fazendo os mortos ensinarem os vivos, porém através de suas obras. A liturgia positivista foi toda baseada no catolicismo romano e estabelecida posteriormente na obra O Catecismo Positivista ou Exposição Sumária da Religião Universal, de 1852. Usando o raciocínio positivista, a coisa se passou mais ou menos como se Comte tivesse migrado (retrocedendo) de um raciocínio aristotélico para um fideísmo paulino. Émile Maximilien Paul Littré (1801-1881), o líder máximo dos heterodoxos, considerou o período religioso de Comte como um atraso para o Positivismo. Mutatis mutandis, é como se um Iniciado se desligasse de sua Ordem para se filiar a uma religião qualquer, ou alguém que, já na idade adulta, passasse a acreditar em mula-sem-cabeça (antiga lenda dos povos da Península Ibérica que, por crendice, admitiam que as concubinas dos padres, por punição e geralmente depois de mortas, metamorfoseadas em mula, saíam, certas noites, cumprindo os seus fadários, a correr desabaladamente, ao fúnebre tilintar de cadeias que arrastam, amedrontando os supersticiosos). Concubina? Que palavra mais démodé! Não sei porquê isso me lembra deflorar (retirar ou perder as flores)! Flores?

Para Comte todos os conhecimentos que o homem possui e catalogou são relativos, de um lado ao meio como sendo suscetível de atuar sobre ele, e de outro ao seu próprio organismo enquanto sensível a essa ação. É mais ou menos como disse o filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939): Se a nossa espécie fosse cega, a astronomia deixaria de existir para ela. Portanto, provavelmente, se a constituição do nosso corpo físico fosse diferente, nosso conhecimento a respeito do(s) Universo(s) certamente seria outro. O Positivismo – conforme afirma Mora – é uma teoria do saber que se nega a admitir outra realidade que não sejam os fatos, e a investigar outra coisa que não sejam as relações entre os fatos. Daí a aversão positivista pela Metafísica.

Nesse sentido, portanto, as leis científicas não possuem valor absoluto e sua incontestabilidade se verifica tão-só relativamente aos tipos abstratos aos quais fazem referência. A relatividade das leis científicas fica patente, por exemplo, na Lei da Gravitação Universal de Newton, Na Lei da Conservação da Massa de Lavoisier, na Mecânica Ondulatória de De Broglie, na Economia, na política etc. No campo do misticismo, que o Positivismo abomina, esta relatividade também é válida, pois o maior ou menor sucesso de um estudante depende fundamentalmente de seu mérito e do seu esforço leal nesse âmbito.

 

Comte e a Evolução Científica

 

O comtismo inquestionavelmente teve papel de relevo nos progressos científicos a partir do século XIX, isto devido à sistematização instituída por Comte. O Curso de Filosofia Positiva revolucionou espíritos e inspirou numerosas reformas universitárias. Lins afirma que, entre tantos outros cientistas de renome, a própria Marie Sklodowska Curie (1867-1934) – Prémio Nobel de Física de 1911 pelas suas descobertas no campo da radioatividade – teve sua formação intelectual infuenciada pela metodologia comtiana.

O Positivismo, ao proclamar um determinismo rigoroso, onde as modificações são limitadas em cada caso à maior ou menor intensidade dos fenômenos correspondentes, recusa o Princípio de Indeterminação de Werner Heisenberg (1901-1976) – o descobridor da Mecânica Quântica que teve como um dos pontos de partida de sua pesquisa a leitura do Timeu, de Platão – que admite a impossibilidade de se determinar simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula com precisão.

 

 

De Broglie, com apoio de Einstein, entendia que: as incertezas de Heisenberg são apenas incertezas de previsão e não acarretam, de nenhum modo, verdadeira indeterminação na posição e no estado de movimento do corpúsculo.

 

 

Princípio da Incerteza
René Magritte - 1944

 

Quanto à Astronomia, afirmou Comte: A Astronomia é, até hoje, o único ramo da filosofia natural em que o espírito humano se haja por fim rigorosamente libertado de todas as influências teológica e metafísica, o que particularmente lhe realça o verdadeiro caráter filosófico. Por ser a Astronomia fecundo exemplo do Positivismo, Comte, durante anos, ofereceu cursos gratuitos dessa ciência, que posteriormente foram publicados em um tratado especial sobre o assunto.

A contribuição de Comte no campo da Biologia, segundo seus biógrafos, foi inestimável, levando-se em conta que, na época em que viveu, a teoria celular inexistia, ao ponto de biologistas e fisiologistas famosos reconhecerem no pai do Positivismo uma autoridade no assunto, e de se obrigarem a seguir minudenciosamente seus passos para melhor proveito tirarem de seus ensinamentos e os aplicarem às suas respectivas pesquisas.

Da Economia Política, sabe-se que Comte se irritava profundamente pelo fato de que, no seu tempo, esta, a seu juízo, era uma teoria odiosa pelo seu otimismo de encomenda e pela sua indiferença perante as desordens sociais e sofrimentos dos operários. Apesar de a ciência econômica vigente afirmar que o Estado não deveria intervir e que as perturbações sociais acabariam por se ajustar – considerando que a sociedade é harmônica por excelência – o que Comte via, e com isso se desesperava, era a miséria do operariado, o desemprego e a fome do povo. Comte lutou enquanto pôde para integrar o trabalhador na sociedade.

 

Comte e a História das Ciências

 

Comte, realmente, também pode ser considerado o fundador da história das ciências. Seu Curso de Filosofia Positiva, publicado entre 1830 e 1842, apresenta três idéias centrais até hoje irrefutadas (segundo George Alfred Leon Sarton 1884-1956): 1º - Nenhum trabalho sintético pode ser elaborado sem que constantemente se recorra à história das ciências; 2º - Para se compreender o desenvolvimento do espírito humano e a história da Humanidade é preciso estudar a evolução das diversas ciências; e 3º - Não basta estudar a história de uma ou de várias ciências particulares; deve-se estudar a história de todas as ciências consideradas em seu conjunto.

 

Sistema de Política Positiva

 

 

Continua na Parte II

 



Websites Consultados

http://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_Comte

http://pt.wikipedia.org/wiki/Conde_de_Saint-Simon

http://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_Comte#A_Lei_dos_Tr.C3.AAs_Estados

http://www.felipex.com.br/cal_positivista.htm

http://www.unificado.com.br/calendario/07/bastilha.htm

http://www.atractor.pt/simetria/matematica/docs/SimCubo3.htm

http://www.fflch.usp.br/dh/heros/antigosmodernos/seculoxx/heisenberg/

http://www.espacoacademico.com.br/016/16col_rromano.htm

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000300007

http://membres.lycos.fr/clotilde/contacts/arthur/pseudo.htm

http://membres.lycos.fr/clotilde/clotilde.htm