A CAVERNA
(UM ENCONTRO INSÓLITO COM PLATÃO)

 

ESCURIDÃO/LUZ


Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

Música de fundo: O Sole Mio
Fonte:
http://www.patchuli.com/midis/cantores_internacionais/cantores.htm

 

INTRODUÇÃO

 

       Este conto... Dhoffen era um jovem filho de austríacos que sempre se interessara pelas questões magnas da Filosofia. Quando, tardiamente, começou a falar — aos quatro anos e meio de idade — em pouco tempo passou a fazer perguntas e a dar respostas para as coisas da vida que deixavam seus pais muito impressionados. Se não entendesse alguma coisa, não se contentava com explicações triviais. A uma resposta que não o satisfizesse, emendava outra pergunta. E outra... Em casa, questionava sobre temas avançadíssimos para a sua idade e, socialmente, discutia suas idéias com qualquer um que estivesse disponível e com paciência para aturá-lo. E assim, quase levou seus pais, os professores e os amigos à loucura! Desde garoto, vasculhava a biblioteca do pai em busca de livros que, de alguma forma, o pudessem esclarecer sobre o propósito da vida e as questões metafísicas que atormentavam sua mente. Os livros sagrados das diversas religiões ele os lera praticamente todos. Neles não encontrou respostas que acalmassem sua ânsia de conhecimento. Não sabia o porquê nem o como, mas tinha a certeza de que haviam sido adulterados ao longo dos séculos, e o que continham, em grande medida, contrariava sua intuição. Não conseguia entender também — nem muito menos aceitar — por que os líderes mundiais de todos os tempos fabricaram guerras em nome de deus e no interesse de políticas normalmente perversas. Não compreendia o porquê de o processo instaurado contra Jesus ter estado viciado desde a origem. Tinha lido por acaso uma página de Rui Barbosa e concordava que, no julgamento instituído contra Jesus, tudo quanto se fez foi tumultuário, extrajudicial e atentatório dos preceitos hebraicos. Sempre se perguntou se aquilo tinha mesmo acontecido daquela escabrosa maneira. Havia sido educado na fé católica, mas não atinava, por exemplo, com os motivos que levaram à calcinação de Jacques De Molay, de Joana D'Arc, de Savonarola e de Giordano Bruno. O santo ofício e a inquisição, para ele, eram estigmas que marcaram de maneira indelével sua religião. E isso o entristecia muito, ainda que estivesse consciente de que a Religião Católica mudara muito. Quando, certa vez, comentou esses assuntos com um padre graduado, ficou chocado com as explicações e com os argumentos apresentados pelo prelado. Esse fato fez com que se afastasse definitivamente da Religião Católica, mas não dos preceitos cristãos. Dhoffen era um místico nato, mas não tinha consciência disso.

       Não sabia de onde viera, porque nascera naquela família que tanto adorava, o que estava fazendo neste Planeta e para onde iria depois de morrer. E isso o atormentava. Sabia, contudo, que poderia alterar o rumo de sua vida, mas não tinha qualquer dúvida de que a morte é inexorável. Sobre ela admitia que não tinha qualquer poder. Por outro lado, não conseguia aceitar e compreender a miséria, as doenças, os sofrimentos, as contendas e a desafeição entre os homens. Ora — pensava ele — Deus não pode ser responsável por essas coisas. Sabia algumas coisas por intuição, como, por exemplo, que o Universo é orgânico, não-caótico, ilimitado mas finito e que não caminhava, como propunha sua religião de berço, para um télos na glória de Deus. Dhoffen sentia que, em realidade, não sabia absolutamente nada. Quando pensava que havia compreendido uma lei natural ou um fenômeno qualquer, sobrevinham novas dúvidas. E isso o desesperava!

       Aos dezanove anos prestou vestibular e passou em segundo lugar para uma faculdade de filosofia do Rio de Janeiro. Ao estudar Filosofia Antiga teve um contato mais aprofundado com as obras de Platão, pois, aos dezasseis anos, já havia lido a República duas vezes. Mas, o Mito da Caverna ele não conseguira compreender, e continuava, agora, já com vinte e um anos, sem entender o que Platão quis ensinar com esse Mito. Seus professores lhe davam explicações insatisfatórias, e os colegas de faculdade não estavam preocupados com o que pudesse haver por detrás do Mito. Estavam satisfeitos, sim, com as explicações dadas em sala de aula. Mas, ele sentia em seu interior que havia algo muito mais profundo naquele Mito do que pensavam e admitiam as pessoas. O Mito da Caverna povoava seus pensamentos diuturnamente.

       Em uma tarde de domingo, já no oitavo período da faculdade, prestes a concluir seu curso de Filosofia, resolveu ler de novo o Sétimo Capítulo da República. Em meio às suas lucubrações, adormeceu em seu quarto. Algum tempo depois, sentiu alguém tocá-lo suavemente em seu braço direito. Moveu seu rosto para a direção do toque, e, surpreso, viu, de pé ao lado da poltrona em que adormecera, um venerável ancião que estava a sorrir afetuosamente para ele.

 

Platão  e  Aristóteles


A Escola de Atenas (detalhe)
— Afresco pintado para o Papa Julio II por
Raffaelo com a idade de vinte e cinco anos —
Raffaelo Sanzio (1483-1520)

Platão e Aristóteles. Platão simboliza a filosofia abstrata, iniciática. Tem em sua mão esquerda uma cópia do seu livro Timeu e aponta para o alto, para o Plano das Formas Ideais. Aristóteles segura em sua mão esquerda uma cópia da sua Ética. Seu gestual parece indicar sua preocupação com o Plano das Formas Material-Temporais, representando a filosofia empírica e natural. Provavelmente, segundo os especialistas, a intenção de Raffaelo foi mostrar os diferentes e possíveis caminhos que levam ao conhecimento. A orquestra...

 

A INICIAÇÃO NOS MISTÉRIOS

 

       A princípio, Dhoffen se assustou. Mas, a bondade que aquele homem de pé ao seu lado lhe transmitia acalmou-o rapidamente.

       — Quem é o Senhor? — perguntou Dhoffen, emendando uma segunda pergunta: — E como entrou aqui?

       O venerável ancião fitou o jovem por alguns segundos e respondeu com amabilidade: — Você me conhece, só que não se recorda. Eu estive presente no seu nascimento, e tenho, sem interferir, acompanhado sua vida até o dia de hoje. Meu nome é Aristoclés. Faço parte de um Colegiado no qual Todos São Um. Não como membro do Círculo Mais Elevado, mas como Adepto. Contudo, todos nós mantemos nossas individualidades, ainda que nossas personalidades sejam uma. Isto é: nossas individualidades não se sobrepõem à personalidade do Colégio Cósmico ao qual eu e meus Irmãos pertencemos. Em outras palavras: as individualidades são muitas, mas a personalidade de Nossa Loja é uma e somente uma. Um dia você compreenderá isso. Mas, você me conhece pelo apelido que me deram por causa dos ombros muito largos que eu tinha.

       — Platão? perguntou incrédulo o jovem Dhoffen. — Mas, como...

       — Acalme-se. Não há motivo para temor ou angústia. Estamos em uma dimensão diferente e freqüencialmente muito elevada. Você adormeceu e eu pude fazer contato com você, pois a esfera vibratória em que você penetrou ao adormecer propiciou que este encontro pudesse ser viabilizado, através desta forma simbólico-astral que estou utilizando para que você possa se comunicar comigo. Eu venho tentando 'acordá-lo' há algum tempo, mas não tenho tido sucesso. Hoje, porém, conseguimos. Estou feliz pelo acontecimento.

       — Sei que você está com dificuldades para compreender o Sétimo Livro da 'República'. Vamos, juntos, examiná-lo. Talvez eu possa ajudá-lo.

       — Obrigado — respondeu Dhoffen.

 

CAVERNA  MENTAL

 

       — Os homens começou a explicar Platão — são fisicamente gerados na mais completa escuridão. Quando nascem, muito lentamente começam a enxergar. Mas, esse enxergar se dá apenas com o órgão da visão, que é meramente físico, e, portanto, só permite que sejam vistas as coisas físicas e os objetos físicos. Então, na verdade, é como se continuassem dentro da caverna em que foram gerados. E, assim, permanecem cegos desde o momento em que um espermatozóide é aceito pelo ovócito que fecundará, praticamente até o dia em que, de novo, morrerão. Isto é: algemados de pernas e pescoços dentro da caverna em que aceitaram viver, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar apenas para a frente. São incapazes de voltar a cabeça por causa dos grilhões.

       — Mas isso é muito triste comentou Dhoffen.

       — Sim Respondeu Platão. — Essa é a caverna da vida. Uns falam sobre o que não conhecem; outros ouvem e seguem calados. Uns carregam estátuas de homens e de animais; outros apenas olham. Vivem nas sombras e não vêem mais do que sombras, que, para eles, são a única realidade que conhecem. É como se vivessem de cabeça para baixo enredados em uma teia sem-fim.

 

SOMBRAS

 

 

 

       — Os homens conseguem viver e nem sequer percebem a luz do Sol que os aquece e os permite enxergar. Agora, se alguém os libertasse de suas cadeias e repentinamente fossem curados de sua ignorância, o que você acha que sucederia?

       — Acho que ficariam felizes e mudariam seus estilos de vida — respondeu Dhoffen.

       — Não, Dhoffen — Disse Platão. Logo que alguém fosse solto e fosse forçado a endireitar-se de repente, a voltar a cabeça, a andar e a olhar para a luz, sentiria dor. E o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Sua dificuldade seria imensa, pois suporia que os objetos que via antes de sua libertação eram mais reais do que os que agora estava vendo. Assim, se forçado a olhar para a luz, correria para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria que estes eram, na verdade, mais nítidos do que os que agora passara a ver. Para podermos ver o Mundo Superior é necessário, antes, habilitarmos e habituarmos nossa Visão Interior. Mas, para, um dia, podermos olhar para o Sol, precisamos nos acostumar primeiro com a luz da Lua, reflexo da luz do próprio Sol. Esse, talvez, seja um fato ao qual a maioria dos que buscam um Conhecimento Superior não dão a devida atenção. A pressa, como diz o velho ditado, é inimiga da perfeição.

 

SOMBRAS

 

       — Sim. Penso que seja assim — respondeu amavelmente Dhoffen. — Mas, quando ele visse realmente a luz do Sol, o que aconteceria?

      — Platão ficou observando o rapaz por alguns segundos, e falou: Compreenderia, primeiro, que é o Sol que causa as estações e os anos e que tudo dirige no Mundo Visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que ele via um arremedo. Este novo conhecimento, de um lado o regozijaria; de outro, o entristeceria, pois deploraria os que ainda só enxergavam sombras, pois no âmago de cada homem, oculto, há o reflexo da Luz que não se extingue, e essa Luz amalgama todas as derivações do BEM SUPREMO — o SUMMUM BONUM.

       — Com certeza. Isso eu entendo.

       — Na verdade, este homem experimentaria os mesmos sentimentos que a sombra de Aquiles quando Ulisses o felicitou por continuar a ser o Rei do Hades, isto é, preferiria 'servir junto de um homem pobre, como servo de gleba', do que sofrer tudo de novo e regressar àquelas ilusões de seu passado nas sombras de sua consentida caverna.

       — Suponho que também seria dessa forma.

       — E se descesse de novo para o seu antigo posto, primeiro seus olhos se encheriam de trevas, e depois seria motivo de riso e de reprovação por parte daqueles que continuavam prisioneiros. Se tentasse conduzi-los à força para cima, talvez fosse apedrejado, envenenado, crucificado e morto. Ninguém muda abruptamente nem quer ser auxiliado sem solicitar. E mesmo quando pede amparo, proteção ou ajuda, os homens costumam se revoltar com o bem que receberam. Incomoda muito aos homens receberem qualquer tipo de caridade ou de socorro. A ingratidão é mais poderosa e mais forte do que a gratidão!

       — Mas, foi exatamente isso que aconteceu com Sócrates e com Jesus!

      — Sim, foi isso — Disse Platão. — Mas, aquele que quiser divisar o Bem e fazer o Bem deve estar ciente de que corre esse risco. É tão-somente no limite do cognoscível que o homem poderá avistar, a muito custo, a idéia de Bem. Uma vez percebida, compreende-se que ela é, para todos e em relação a tudo, a causa de quanto há de justo e de belo; que no mundo visível foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no Mundo Inteligível, é ela a senhora da Verdade e da Inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato tanto na vida particular quanto na pública. Ao ensinarem esses princípíos elementares, os Illuminados aos quais você se referiu causaram medo e rancor simultaneamente. Sócrates foi acusado de impiedade. Jesus de conspirar contra o Império Romano. Por isso ambos foram sacrificados.

       — Concordo.

       — E os que alcançaram esta compreensão mais elevada não querem mais tratar dos assuntos dos homens nem se envolver nas disputas humanas, pois desejam manter suas almas nas alturas. Quando se envolvem com a Humanidade, estão a serviço desinteressado da Santa Luz que vislumbraram em seus corações.

       — Sim. Penso que seja assim.

 

PEREGRINAÇÃO

 

       — Mas, há um outro ponto que precisamos examinar Disse Platão. — As perturbações humanas, em realidade, geralmente são duplas. Uma é a passagem da Luz à sombra; outra, da sombra à Luz. Há almas que vivem ofuscadas por terem vindo da esfera de uma Vida Luminosa; outras há que, por viverem em ignorância, percebem, de repente, uma réstia da Luz, e ficam atordoadas. Então, é preciso educar todas as almas para que possam suportar a contemplação do Ser-Luz. Aquele que veio das proximidades da Luz deve aprender a reconhecê-la e nela mergulhar e viver; aquele que momentaneamente a vislumbrou deve ter disponíveis os meios de poder efetivamente alcançá-la e compreendê-la. Em ambos, a meta a ser alcançada deve ser a mesma, e o procedimento para trilhar a senda que levará à essa meta é: formar-se por si e não dever alimentação a ninguém. Isto eu escrevi na 'República'. Mas, o que isto significa?

       — Realmente não compreendo.

       — Significa que devemos nos esforçar ao máximo para encontrarmos sozinhos o Caminho para a Luz. Não devemos imaginar nem querer que alguém faça esse trabalho por nós, pois isso não poderá ser feito jamais. Devemos aprender que a nossa emancipação depende exclusivamente de nós. A categoria que regula estes conceitos que estou lhe explicando é apenas o MÉRITO. É óbvio, Dhoffen, que é preciso trabalhar muito e ter muita perseverança e ilimitada paciência. Mas, se não houver MÉRITO, nada poderá acontecer. Você está compreendendo?

       — Sim, Platão, isso eu posso compreender inteiramente.

       — Você se lembra quando, no início do nosso encontro, eu lhe disse: 'Eu estive presente no seu nascimento, e tenho, sem interferir, acompanhado sua vida até o dia de hoje? Pois é, Dhoffen. Acompanhar é uma coisa; interferir é outra, e, assim, nenhuma interferência pode acontecer, e não acontece. Contudo, quando há mérito, pela aplicação da Lei da A..., podemos 'semear' idéias construtivas e iluminadoras nas mentes daqueles que se esforçaram e merecem. Por outro lado, da mesma forma que não interferimos nas escolhas humanas, as atividades humanas não podem macular Nossa Confraternidade. Nossa Loja está imune aos desmandos humanos. Se você compreendeu estes princípios, deve se esforçar para compreender também que encontrar o Caminho da Luz significa lutar e trabalhar para se tornar seu próprio Mestre. Significa alcançar a faixa vibratória na qual a desagregação e a reciclagem não dissolvem a existência. Peregrinar em direção à Santa Luz, realizar o Sumo Bem e conquistar a Plena Libertação, estas devem ser as Três Metas Primordiais dos seres que desejarem ser aceitos em Nossa Loja.

       — Esta peregrinação — continuou Platão — obriga, entre outras renúncias, a que cada um desça à habitação comum dos outros e aos desvãos do horror para se habituar a observar as sombras e as trevas, o que cada imagem é no Plano das Realidades e o que representa essa mesma imagem. Isto não significa envolvimento emocional. Na verdade, isto não deve acontecer. É meramente um aprendizado, ao mesmo tempo em que permite o exercício da solidariedade e do amor fraternos. Reconhecer, compreender e identificar a representação de cada imagem fará do homem um Iniciado Verdadeiro e servidor incógnito de sua comunidade e da cidade em que vive, e isto, como disse Homero na 'Odisséia', 'não é um sonho, mas uma visão autêntica que há-de se cumprir'. Mas, Dhoffen, lembre-se: Tudo que estou a lhe dizer não se assemelha em nada ao jogo de atirar um caco, mas um retornar da alma das trevas da ignorância para o Verdadeiro Dia, ou seja, sua elevação ao Plano das Atualidades Neguentrópicas — Plano da Verdadeira Philo–ShOPhIa que é o Amor pela Sabedoria Universal. Quando nos despedirmos, você deverá decifrar o significado da igualdade:

ShOPhIa = 300 + 6 + 80 + 10 = 396

       Você — continuou Platão deverá aprender a chegar à contemplação da natureza dos números em si unicamente pelo pensamento, pois isto facilitará a passagem da sua própria alma da mutabilidade à Essência e à Fonte da Verdade, onde é possível adquirir o conhecimento do que existe sempre, e não daquilo que, pelas Lei da Entropia e da Reestruturação, é destruído e gerado. Aprenda isto: a devoção ao cálculo, à aritmética, à geometria e à astronomia purifica e reaviva um órgão da alma que se tornou corrupto e cego pelas ocupações e ilusões mundanas — tornando útil, de inútil que era, a parte naturalmente inteligente da alma — e cuja recuperação importa mais do que a de mil órgãos da visão, porquanto só através dele se pode avistar a Luz Maior e compreender o que a Vida é. Mas, não se esqueça Dhoffen: a Unidade é indivisível. Ela é o que é — mas inconsciente do que é — em meio à sua música perpétua.

 

TETRACTYS

 

       Platão ficou observando o jovem Dhoffen e percebeu que ele estava acompanhando suas explicações. Assim, continuou: — Outro ponto que devemos refletir é sobre a Dialética. O método dialético é o único que, ao destruir sucessivamente as hipóteses, permite à alma apreender de cada objeto sua mesma e própria essência. Lentamente, então, a alma é arrastada do lodo bárbaro em que vive mergulhada e está atolada, para as alturas em seu próprio interior. Pela Dialética é possível compreender claramente que, assim como a essência está para a mutabilidade, está a inteligência para a opinião, e como a inteligência está para a opinião, está a ciência para a fé e o entendimento para a suposição. Você me acompanhou?

       — Sim, Platão. Acho que a meta é a compreensão o mais plena possível da idéia de Bem. E a Dialética facilita e propicia isso, pois representa o fastígio do saber. Estou correto?

 

DIALÉTICA

 

       — Sim, Dhoffen. Todo aquele que — pelas ciências que revisamos e com o auxílio do processo dialético — penetra e queda em silêncio em seu interior, confirmará aquilo que os antigos nos legaram:

Essência
Ciência
Inteligência
Entendimento
Mutabilidade
Opinião
Suposição

 

        Mas, de nada valerá qualquer tipo de conhecimento se não houver humildade. O reconhecimento de que o homem é, em potência, Deus, deve fazer com que perceba também a unidade do Todo. Isto significa, Dhoffen, que um grão de areia tem o mesmo valor de uma galáxia, e um microorganismo é tão importante quanto um ser humano. Quando hierarquizamos as coisas erramos, pois nós as organizamos de acordo com uma ordem hierárquica segundo processos opinativos, não sendo a opinião mais do que incerta, duvidosa e discutível, e isto é o patamar mais baixo da consciência, qual seja, o da Suposição.

       — Também isto está claro para mim.

       — Logo — continuou Platão — a Ciência Cósmico–Iniciática não pode ser aprendida como escravatura, e a Iniciação nos Santos Mistérios não pode se fazer em sete minutos, sete dias, sete meses ou sete anos. Na alma não permanece nada que tenha entrado pela violência, nem a Iniciação pode ser apreendida tão-só com o intelecto. A percepção psíquica em um lance iniciático deverá, sim, ser compreendida pela razão humana, mas a razão humana não decifrará 'per se' os mistérios do Universo, que devem ser observados em seu conjunto. Mas, para tudo isso que estamos a revisitar um outro ponto é importante: ninguém deve se pôr a estudar essas matérias e a meditar se estiver cansado. A fadiga e o sono são inimigos do estudo. E muito menos ter pressa.

       — Compreendo. Acho que, resumindo o que você me ensinou até agora, posso dizer que pela Dialética – prescindindo dos olhos e dos outros sentidos – o homem caminhará em direção ao próprio Ser pela via da Verdade interior. Estou correto nestas conclusões?

       — É isso. Mas, entenda bem: este Ser está fora e está dentro, fora e dentro perfazendo uma Unidade indissociável. Fora não poderá ser vislumbrado, pois os sentidos físicos são incapazes de reconhecê-lo. Só no âmago de cada ente o 'quid' das coisas manifestas e não-manifestas poderá ser conhecido e decifrado.

      — Bem, meu jovem amigo, penso que conversamos bastante. Agora devo partir. Antes quero repassar alguns pontos do que conversamos. As aparências são sombras que a nada conduzem, já que os sentidos em funcionamento de que são dotados os homens não podem ver a essência dos objetos. Geralmente, só enxergam a ausência — que se constitui na realidade objetiva e é sentida como presença — nunca o que subjaz à própria realidade, aquilo que dá sustentação à Atualidade Universal, que é imutável.

       

NOESIS  
(Inteligência ou
Razão Intuitiva)
Mundo Inteligível Superior
(Noeta Superiores)
DIANOIA (Entendimento ou Razão Discursiva)
Mundo Inteligível Inferior
(Noeta Inferiores)
PISTIS
(Fé)
Mundo Concreto
(Zoa)
EIKASIA
(Ilusão)
Mundo da Suposição (Eikones)

 

       — Enquanto o ente viver prisioneiro de seus sentidos viverá nas sombras da ilusão e só perceberá as aparências sensíveis dos objetos ou suas estátuas. A libertação dessa prisão é desejável e é possível. Liberto — porque trabalhou incansavelmente para atingir essa liberação — o ser ascensionará no seio do Verdadeiro Sol rumo à Luz Inextinguível. Mas, compreenderá 'ipso facto' que não existe liberdade individual, solitária. Sentirá, indefectivelmente, que o Universo é orgânico e que todas as coisas e todas as criaturas são uma só. Esta Percepção Iniciática fará com que retorne à todas as cavernas para auxiliar na manumissão de todos aqueles que ainda continuam a viver — como ele um dia viveu — como escravos de suas cobiças, de suas paixões e de seus desejos. Mas, deverá estar preparado e consciente dos riscos que esse desprendimento solidário e fraterno pode acarretar. Todo aquele que testemunhe em uma dimensão socrática ou Iniciática corre risco de não ser entendido, de ser humilhado, de ser proclamado louco, de ser excluído e de ser cobardemente assassinado. Contudo, ele verificou pelas Iniciações que recebeu que esta vida é transitória, efêmera e ilusória. E é isso que se disporá a ensinar aos seus irmãos.

 

ILUMINAÇÃO

 

       — A caverna, Dhoffen, simboliza a vida encarnativa no Plano Terra com todos os seus ilusórios atrativos e todas as injunções das sucumbências ao Corpo Astral, sede das misérias que são construídas pela ignorância, pela vaidade, pelo orgulho, mas, principalmente, pelo egoísmo. Enquanto o homem não se tornar seu próprio Senhor, será escravo e viverá em escravidão.

      Nesse exato momento, quando Platão acabara de pronunciar a última palavra de seu discurso, tocou o telefone no quarto de Dhoffen. O som da campainha soou como se fosse o de uma orquestra completa. Dhoffen se assustou, mas tentou resistir para não sair do Plano em que se encontrava e da companhia de Platão, contudo seu esforço foi em vão. Viu Platão ir desaparecendo rapidamente de sua tela mental com um sorriso nos lábios. Em poucos instantes havia retornado à consciência. Decidiu atender ao telefonema. Não era ninguém. Na realidade, o telefone não tocara.

 

 

PONDERAÇÕES

 

1ª) Terá Dhoffen, realmente, tido um contato psíquico com Platão?

2ª) Terá, efetivamente, Dhoffen passado por uma Iniciação, na qual um certo tipo de Conhecimento lhe foi revelado?

3ª) Dada a ânsia de Dhoffen em compreender exatamente o significado do Mito da Caverna, não terá seu Eu Interno construído um mecanismo psíquico para que ele pudesse ter acesso a um entendimento mais concertado do Mito?

4ª) Ou terá acontecido uma síntese das três primeiras ponderações?

5ª) Ou, em termos junguianos, terá Dhoffen vivenciado uma atualização do Arquétipo do Velho Sábio em seu 'sonho'?

6ª) Ou, por último, a descrição deste conto exemplifica e tipifica uma reação psicótica ou, ainda, uma espécie de transe hipnagógico ou uma vivência na 'zona crepuscular'?

 

 

Nenhum místico — se for realmente um Místico consciente — aceita nada como definitivo, principalmente se a experiência não tiver acontecido consigo. Experiências alheias servem somente como referência preliminar, jamais como ponto final de nada.

 

 

 

 

WEBSITES CONSULTADOS

 

http://www.fflch.usp.br/dh/heros/cursos/

http://dana.ucc.nau.edu/~mac33/backgrounds.html

http://www.ba.infn.it/~zito/bigf1.html

http://www.ifa.hawaii.edu/images/hyakutake/

 

LIVRO BÁSICO DE CONSULTA

PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 5ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, 513 p.