Jornalista
Nelito
Fernandes
(Jornal O Globo, 29/06/2007)
Dei
um soco na Sirley. Quando a empregada doméstica estava sendo
espancada covardemente no ponto de ônibus, um dos socos quem
deu fui eu.
Você
também deu um soco na Sirley. Nós esmurramos a Sirley
quando compramos aquele brinquedinho que apareceu no comercial do
Cartoon e que nossos filhos abandonam depois de cinco minutos.
Nós deixamos a Sirley
com o olho roxo quando fomos grossos com o frentista que errou e pôs
mais gasolina do que nós pedimos.
Nós derrubamos e chutamos
a Sirley quando não respeitamos os mais pobres, os mais fracos,
e passamos aos nossos filhos, na prática, o oposto do nosso
discurso politicamente correto.
Nós demos uma surra
na Sirley quando pagamos R$ 380 às nossas empregadas domésticas.
Quando pedimos, "por favor" que elas façam uma hora
extra no sábado à noite para que possamos ir ao cinema
e jantar, enquanto elas tomam conta dos nossos filhos. E gastamos
num vinho o que elas ganham de salário.
Nós damos um soco na
Sirley quando vestimos as babás de branco e pedimos que elas
passeiem na Lagoa, no Baixo Bebê, para que possamos dormir um
pouco mais.
Você
bate na Sirley toda vez que passa na Avenida Atlântica e olha
as prostitutas com desprezo, quando ri do mendigo que passou fedendo,
quando vira a cara para o menino malabarista, quando xinga o garoto
que jogou água no pára-brisa do seu carro novo e pediu
uns trocados.
A mídia espanca a Sirley
quando usa eufemismos para tratar os delinqüentes de classe média,
mas não hesita em chamar de criminosos os meninos do morro.
Nossos filhos são pitboys, "estudantes",
"rapazes de classe média". Os deles é que
são bandidos.
Os jornais quebram o braço
da Sirley quando chamam as ladras estudantes de direito que roubavam
roupa no shopping da Barra de "cleptomaníacas".
As revistas dão socos
na boca do estômago da Sirley quando perguntam onde os pais
de classe média erraram quando os filhos deles cometem crimes;
mas pedem a redução da maioridade quando os filhos dos
miseráveis fazem o mesmo.
Eu e você saímos
por aí num carro, de madrugada, para espancar a Sirley quando
optamos por ser o "pai amigo". Aquele cara legal, que sempre
entende os filhos, que nunca dá limites, que não cobra
nada. Quando nosso filho chega às 5 horas da manhã,
de porre, dirigindo, e a gente não fala nada porque acha que
ser jovem é assim mesmo, nós estamos batendo na Sirley.
Nós entramos no carro
e fugimos rindo da cena do crime quando dizemos: "Eu fiz tudo
por ele, eu dei tudo a ele. Por que ele fez isso?" Nós
batemos na Sirley. O melhor que temos a fazer, agora, é confessar.