Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Sirley Dias Carvalho Pinto

 

 

 

 

Jornalista Nelito Fernandes
(Jornal O Globo, 29/06/2007)

 

Dei um soco na Sirley. Quando a empregada doméstica estava sendo espancada covardemente no ponto de ônibus, um dos socos quem deu fui eu.

Você também deu um soco na Sirley. Nós esmurramos a Sirley quando compramos aquele brinquedinho que apareceu no comercial do Cartoon e que nossos filhos abandonam depois de cinco minutos.

Nós deixamos a Sirley com o olho roxo quando fomos grossos com o frentista que errou e pôs mais gasolina do que nós pedimos.

Nós derrubamos e chutamos a Sirley quando não respeitamos os mais pobres, os mais fracos, e passamos aos nossos filhos, na prática, o oposto do nosso discurso politicamente correto.

Nós demos uma surra na Sirley quando pagamos R$ 380 às nossas empregadas domésticas. Quando pedimos, "por favor" que elas façam uma hora extra no sábado à noite para que possamos ir ao cinema e jantar, enquanto elas tomam conta dos nossos filhos. E gastamos num vinho o que elas ganham de salário.

Nós damos um soco na Sirley quando vestimos as babás de branco e pedimos que elas passeiem na Lagoa, no Baixo Bebê, para que possamos dormir um pouco mais.

Você bate na Sirley toda vez que passa na Avenida Atlântica e olha as prostitutas com desprezo, quando ri do mendigo que passou fedendo, quando vira a cara para o menino malabarista, quando xinga o garoto que jogou água no pára-brisa do seu carro novo e pediu uns trocados.

A mídia espanca a Sirley quando usa eufemismos para tratar os delinqüentes de classe média, mas não hesita em chamar de criminosos os meninos do morro. Nossos filhos são pitboys, "estudantes", "rapazes de classe média". Os deles é que são bandidos.

Os jornais quebram o braço da Sirley quando chamam as ladras estudantes de direito que roubavam roupa no shopping da Barra de "cleptomaníacas".

As revistas dão socos na boca do estômago da Sirley quando perguntam onde os pais de classe média erraram quando os filhos deles cometem crimes; mas pedem a redução da maioridade quando os filhos dos miseráveis fazem o mesmo.

Eu e você saímos por aí num carro, de madrugada, para espancar a Sirley quando optamos por ser o "pai amigo". Aquele cara legal, que sempre entende os filhos, que nunca dá limites, que não cobra nada. Quando nosso filho chega às 5 horas da manhã, de porre, dirigindo, e a gente não fala nada porque acha que ser jovem é assim mesmo, nós estamos batendo na Sirley.

Nós entramos no carro e fugimos rindo da cena do crime quando dizemos: "Eu fiz tudo por ele, eu dei tudo a ele. Por que ele fez isso?" Nós batemos na Sirley. O melhor que temos a fazer, agora, é confessar.

 

 

 

 

 

 

Sim. Esmurramos a doméstica Sirley

porque somos muito bem-nascidos e superiores.

Nós espancamos a empregada Sirley

porque cremos que alguns seres são inferiores.

 

Sim. Chutamos a batalhadora Sirley

porque somos brutamontes indomesticáveis.

Nós humilhamos a operária Sirley

porque ainda somos fratricidas abomináveis.

 

Sim. Arroxeamos a pelejadora Sirley

porque inculpamos o gato por nossos traques.

Nós traumatizamos a labutadora Sirley

porque ainda somos uns grandes basbaques.

 

Sim. Pejoramos a marafona Sirley

porque achamos as prostitutas descartáveis.1

Nós menosprezamos a senhora Sirley

porque somos 'covardolas'2 e irresponsáveis.

 

E iremos ultrajar todas as Sirleys

enquanto formos preconceituosos, arrogantes,

meãos, mesquinhos, peidorreiros e intolerantes.

 

 

 

 

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Notas:

1. Nery Neto, um dos rapazes peidorreiros* do grupo de ensandecidos, admitiu o espancamento; disse que seus amigos pensavam que Sirley Dias Carvalho Pinto fosse uma prostituta. E se fosse? Preconceito. Ignorância. Tenebrosidade. Retribuição. Compensação. Desoneração. O que de vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a pedra. (Evangelho de São João, VIII, 7). Convido o leitor a dar uma conferida no texto que escrevi há algum tempo: AS PROSTITUTAS (Que Eu Tanto Amei).

http://paxprofundis.org/livros/prostitutas/prostitutas.html

* Peidorreiro não é só aquele que peida muito. É também uma pessoa que inspira nojo por ser ordinária e mau-caráter. Mas, sinceramente, a mim inspira pena. Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. (Evangelho de São Lucas, XXiii, 34).

2. 'Covardola' = covarde + mariola. Todo covarde precisa de uma caterva ao seu lado para poder extravasar sua covardia; e todo mariola é atrevido, não confiável e canalha com as mulheres, e capaz de praticar todos os tipos de atos traiçoeiros e repugnantes.

 

Música de fundo:

Never on Sunday (Billy Towne & Manos Hadjidakis)

Fonte:

http://www.steveharding.com/page63.html

 

Página da Internet consultada:

http://scienceblogs.com/
bushwells/2006/09/back_to_the_grind.php