(Recomendo
que o preâmbulo e o
poema sejam lidos com o som ligado.)
Preâmbulo
Em
6 de Dezembro de 1915, Fernando Pessoa escreveu ao seu amigo Sá
Carneiro: Estou outra vez preso de todas as crises imagináveis,
mas agora o assalto é total. Numa coincidência trágica
desabaram sobre mim crises de várias ordens. Estou psiquicamente
cercado... estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo...
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro... Dói-me
a vida aos poucos, aos goles, com interstícios em chorar...
A primeira parte da crise intelectual já você sabe
o que é: a que apareceu agora deriva da circunstância
de eu ter tomado conhecimento das doutrinas teosóficas.
O modo como as conheci foi banalíssimo. Tive de traduzir
livros teosóficos... Fui chamado a Paris para tomar parte
num grande Congresso Trabalhista, ali realizado de 15 a 20 de
julho, e passei um ou dois dias em Fontainebleau com H. P. B.
[Helena Petrovna Blavatsky], que lá se encontrava
para repousar por uma ou duas semanas. Encontrei-a traduzindo
os maravilhosos fragmentos retirados do 'Livro dos Preceitos Áureos',
agora tão bem conhecido como 'A Voz do Silêncio'.
Escrevia fluentemente sem qualquer cópia diante de si e,
à noite, pediu-me que lesse o texto para ver se estava
num inglês decente.1
Bem,
o que é a Noite Negra da Alma? Christian Bernard,
4º Imperator da Ordem
Rosacruz AMORC para este Segundo Ciclo Iniciático,
define: Posso dizer que, no plano individual, é um
ciclo que corresponde a um questionamento do ideal seguido até
então. Conforme o caso, esse questionamento pode ter origem
numa série de provações que atravessamos,
ou numa crise interior sem qualquer ligação com
o mundo objetivo. Também pode acontecer que, continua
o Imperator, por razões puramente psicológicas,
que o místico se sinta invadido por impulsos interiores
negativos que o levem brutalmente a rejeitar os valores em que
acreditava.2
Já
o português lisboeta Fernando Martini Bulhões –
que primeiro vestiu hábito branco dos Cônegos de
Santo Agostinho e depois e definitivamente o hábito marrom
dos Franciscanos – conhecido como Santo António de
Pádua, em seus estudos e reflexões filosóficas
apresentou três estágios para o processo ascensional
da consciência: Conticínio, Meia-Noite e Aurora.
Há alguns anos fiz uma pesquisa sobre o pensamento antoniano,
que acabei divulgando sobre o título Filosofia Portuguesa
II: A Doutrina Mística de António de Lisboa
e que pode ser visitado em:
http://paxprofundis.org/livros/filosofia
portuguesa2/filosofiaportuguesa2.html
Desse
ensaio, transcreverei um pequeno excerto sobre a Noite Negra.
A
NOITE MÍSTICA
A Noite Mística (Noite Negra ou Noite Obscura) da alma
é o vestibular da ascensão mística. Em diversas
predicações Santo António referiu-se à
Noite Mística como processo necessário à
purificação e preparação da alma para
atuar em um plano mais elevado de consciência. Nesse sentido,
o Santo referiu-se à Noite como a obscuridade dos místicos
— 'mysticorum obscuritas'. A Noite não tem, ordinariamente,
a duração da noite física. A Noite tem começo
(Conticínio), meio (Meia-Noite) e fim (Aurora), e o tempo
de duração é individual. Durante sua manifestação,
a Noite tem e traz conseqüências terríveis,
dentre as quais o Santo aponta: 'privação da luz
da razão; o ser torna-se frágil e o conhecimento
adequado de nada adianta; o eu interior fica em trevas e o homem
é tentado a tudo abandonar (trevas da consciência);
a claridade tentadora da prosperidade mundana entenebrece a alma
e se transmuda em caligem da morte; a noite é um amplo
campo de adversidade em que a alma anda às apalpadelas
sem consciência de si mesma'. A Noite é, pois, uma
etapa da reintegração (regeneração)
do homem à sua imaculada, cósmica e divina origem.
E, nesse aprendizado, terá que eliminar, minimamente, a
soberba do coração, a lascívia da carne,
a avareza do mundo, a ira, a vanglória, a inveja e a gula,
que compõem as sete violações capitais enunciadas
na teologia católica.
O Conticínio ('Conticinium')
É a primeira fase da Noite em que tudo está silente.
É o tempo em que são satisfeitas as seduções
blandiciosas da carne — 'carnis suavia blandimenta'. O Santo
ensinou que, para vencer as tentações próprias
do Conticínio, é preciso meditar sobre as iniqüidades
praticadas, considerar o exílio (e desejar ardentemente
a reintegração) e contemplar o Criador. Auxiliado
pela razão e pela discrição, o principiante
vai subindo, degrau por degrau, a escada da crucifixão:
a razão dominando os sentidos e esclarecendo sobre o bom
caminho. Assim, derramando lágrimas, envergonhado, vexado
e cabisbaixo vai o postulante trilhando a senda que levará
à iluminação. Lentamente, os sentidos físicos
e os apetites do corpo vão sendo dominados, e os incipientes
passam para o estádio de aproveitantes (fase da Meia-Noite).
Porém, no que concerne ao sofrimento moral, este se vai
intensificando. É o reconhecimento tácito da queda,
do afastamento da Luz, do exílio de Deus, da consciência
plena da ainda permanência nas trevas. É a angústia
por desejar alcançar a Luz Maior, por desejar ardentemente
realizar o Cristo Interno e, em graça total, contemplar
o Criador. É o desespero por ter, tenuemente, vislumbrado
a possibilidade de se tornar uno com o Pai — o Deus de seu
coração — e de não ter podido ainda
realizar o sonho dos sonhos. É uma dor lancinante. Um desespero
sufocante. Um horror atemorizante. É a Noite Negra. É
a crucificação individual. É o inferno interior.
É a compreensão do exílio da Vida. A Noite
Negra traz à lembrança a fase negra da Crisopéia.
A
Meia-Noite ('Media Nox')
A segunda fase da Noite Obscura equivale para Santo António,
ao período de luta espiritual em que a alma, vendo-se no
exílio deste mundo, dele procura libertar-se... para, depois...
'poder chegar à contemplação de Deus e unir-se
com Ele por amor'. O aproveitante (aproveitado) já convencido
do erro da vaidade, suplica cheio de fé, de amor e de esperança,
força para suportar o exílio. À medida que
acorda, recorda-se da vida antiga e, envergonhado, humilhado,
sentindo-se desprezível, chora amargamente. É o
pleno reconhecimento do erro. Nu, perante si mesmo e perante o
Criador [ele
próprio], confessa-se ao Deus de seu
coração e clama por perdão. E perdoa aos
que o perseguem e caluniam, aos que o aviltam e ofendem, aos que
escarnecem, pois sabe que esses não o compreendem, mas
que, inexoravelmente, um dia subirão também o primeiro
degrau da Noite Negra. E se compromete a, nessa hora, estar presente
para ajudar no que for possível e permitido, para amparar
em cada queda, para consolar quando a dor e a vergonha forem mais
intensas. Esse é o verdadeiro sentido do perdão,
da humildade, da fraternidade e do amor universal em um sentido
teológico. É a tomada de consciência pelo
aproveitante de que todos, em última instância são
unos entre si e com o Pai, ainda que exilados. A Meia-Noite faz
recordar o branco da Grande Obra. É também uma possibilidade
para explicar o Mito da Caverna, de Platão. Voltar para
ajudar e servir é um supremo ato de sacrifício e
de amor. Aqueles que voltaram sabem. Entretanto, não há
essa referência consignada na obra antoniana.
A Aurora ('Aurora')
A Aurora - bendita Aurora - é o último estágio
da Noite Mística, e se assemelha ao vermelho da Alquimia
Operativa. Santo António assim a delineia:
'É a infusão da graça divina.
A alma pôde... justificar-se ou tornar-se justa.
A alma se torna reta e ereta...
A Aurora é o fim da Noite e o princípio do Dia.
Ela é o fim da miséria e a entrada na beatitude...
É o último estádio da ascensão espiritual
— o estado perfeito...
... a alma sente-se agora invadida por indizível alegria.
É a contemplação do Criador'.
Do exposto, pode-se simbolicamente deduzir e afirmar, que a Noite
Obscura é um processo de purgação (uma verdadeira
Alquimia Iniciática Interior) que o homem tem indubitavelmente
que passar para alcançar o Deus de sua compreensão
e realizar o Cristo interno. Iniciaticamente é desta forma
que acontece. O Sol, que pretende simbolizar o Sol da Graça
a ser alcançada, com sua claridade, brancura e calor, ilumina
a alma em contrição. É com a luz do Sol das
primeiras horas da manhã — símbolo do Sol
interior — que são dissipadas as trevas da noite.
É com o nascer do Sol místico que são esvaecidas
a superstição e a ignorância. E o ser purificado,
limpo e perfeito, entra na posse do conhecimento de seu Criador
[que
está, como sempre esteve e estará, em seu interior].
Esse Sol, depois de nascido, jamais se põe. Essa foi uma
afirmação feita por Santo António e por todos
aqueles que alcançaram a 'perfeição', e passaram
pelo processo místico purgativo da Noite Negra da Alma.
O ato derradeiro de humildade ao conquistar a Aurora é,
assevera-se mais uma vez, o retorno à Caverna, para consolar
e auxiliar os que ainda desconhecem a LLUZ.
Repete-se: por evidente, esta reflexão não está
presente em Frei António.
É
exatamente isso, ou um pouco pior. Depende! Depende do tamanho
e da intensidade das nossas paixões, dos nossos desejos
e das nossas cobiças!
Estou
realmente de acordo com meu Imperator Christian: no transcurso
da Noite nossa fé mística vacila e se apaga
por um período que dura o tempo que dura nossa persistência
em não reacendê-la.3
Mas,
o fato é que –
também estou convicto disso – podemos
entrar na Noite Negra de duas formas: consciente ou inconscientemente.
Inconscientemente, penso que tenha ficado claro. Mas o pior é
quando o místico resvala para essa treva conscientemente.
Sabe que vai cometer uma afronta ao Cósmico... E comete!
Sabe que não deve praticar um determinado ato... E pratica!
Sabe que não deve nem pode... Mas faz! É uma espécie
de foda-se que o indivíduo autoriza que ocorra. Depois,
para sair do lamaçal em que se meteu pode demorar anos
ou uma encarnação inteira! Ou várias! Ou
inúmeras! Entrar na areia movediça, conscientemente,
é, de certa forma, muito fácil. Basta querer e ceder.
Sair... é muito difícil e doloroso. Por isso, vou
recordar novamente as palavras de Raymond Bernard: 'Na Via
Iniciática prestigiosa que seguimos, as tentações
são numerosas, as quedas ocasionais e a dúvida periódica'.
O que fica óbvio, de tudo isso, para um místico
sincero? Se as tentações são numerosas, precisamos
estar atentos à Sagrada Luz da qual somos portadores, defensores
e fiéis depositários. Se há quedas ocasionais
– e há – não devemos nos importar tanto
com elas, não devemos nos punir por elas, isto é,
devemos construir o futuro dia-a-dia, conscientes de que somos
seres humanos, portanto falíveis e sujeitos a envergar
e até a tombar. E, quanto às dúvidas que
assaltam nossa consciência, isso é assim mesmo. Em
um âmbito particular dessa matéria, a cada dia que
passa, eu tenho mais (e mais) dúvidas do que certezas.
Eu acho isso ótimo. E cada vez que (penso que) entendo
alguma coisa, escrevo um texto. Como minha cachimônia não
pára e como eu não sou um Tyrannosaurus,
não tenho qualquer compromisso com as minhas idéias
– porque são todas simplesmente relativas e mudam
periodicamente como as nuvens do céu – escrevo como
um alucinado na esperança de que alguém que leia
essas representações, possa ser ajudado ou inspirado
com esses rascunhos. Só isso.
—
Comigo o rolete é mais embaixo. O cara aí
em cima é uma estátua e eu estou vivinho da
Silva. Cai dentro malandro e diz que minhas idéias
são obsoletas e que eu estou ultrapassado. Janto você
sem mastigar.
_______________
E,
para que ninguém se iluda: quem mais nos testa são
aqueles que estão próximos a nós, começando
pelo nosso irmão monozigótico antiquus:
nosso adulado Corpo Astral – nosso Mestre Maior. Mestre
Maior que terá que ser substituído por um processo
duplo de purga e decantação. Entenda-se 'substituído'
por transmutado. E, para que ninguém se iluda, ainda: vencer
a Noite Negra não significa que ela esteja derrotada para
sempre. Não está. Pode voltar arquejando a qualquer
instante; e isso só depende de nós. Se quisermos
que ela volte, ela voltará. E como dizem que recidiva é
pior do que a doença... Então, estar atento e vigilante
não custa nada. E nada é 'para sempre'!
Esclarecendo melhor: tudo está em perpétua transformação.