FILOSOFIA PORTUGUESA (II):
A DOUTRINA MÍSTICA DE ANTÓNIO DE LISBOA

 

Rodolfo Domenico Pizzinga


Música de fundo: Meditación
http://www.obispadogchu.org.ar/cancionero/midi.htm

 


TRAÇOS BIOGRÁFICOS


       As crônicas e a tradição informam que Santo António, uma das mais importantes figuras das culturas lusófonas, nasceu em Lisboa no final do século XII. A data exata de seu nascimento é desconhecida e foi fixada em 15 de Agosto, tributo pela devoção nutrida por ele, durante toda a vida, à Virgem Maria – Mãe de Jesus. O ano também é duvidoso. Uns falam de 1191, outros de 1195.

       Nessa época, seus pais, Martim de Bulhões e Teresa Taveira, moravam junto à Catedral de Santa Maria no caminho que levava à porta de ferro, mais tarde Arco de Nossa Senhora da Consolação, e, logo que o menino veio ao mundo, batizaram-no com o nome de Fernando Martini Bulhões. Ainda criança, seus pais o puseram sob os cuidados dos cônegos da Catedral, para que pudesse desde a mais tenra idade ser doutrinado e educado na fé católica.

       Apesar da preocupação de seus pais com sua formação religiosa, o menino era adulado e mimado vivendo na regalia e no luxo. Mas isso não o satisfazia. A bajulação, a mentira, a pompa e a politicagem que cercavam sua família, pelo fato de seu pai ser Governador de Lisboa, o enfastiaram da vida aparatosa que levava. Iimpulsionado por uma espiritualidade incipiente, mas férrea e definitiva, decidiu afastar-se daquele ambiente em que residia, resolvendo-se pela vida religiosa.

       Transcorria o ano de 1210 e, nessa época, havia em Lisboa um Mosteiro de Agostinianos denominado São Vicente de Fora, construído por D. Afonso I. Ali foi bater Fernando e, recebido pelo Cônego Gonçalo Mendes, começou vida nova, vestindo o hábito branco dos Cônegos de Santo Agostinho. Nesse Convento residiu e estudou por vinte e seis meses.

 

São Vicente de Fora

São Vicente de Fora, Lisboa. Hoje.

 

São Vicente de Fora

São Vicente de Fora, Lisboa. Hoje.


       De Lisboa transferiu-se para Coimbra, completando assim a renúncia. Recolheu-se ao Mosteiro de Santa Cruz, também da Ordem Agostiniana, que gozava fama de virtudes e abrigava um grupo de homens escolhidos, em santidade e ciência, que lhe povoavam os claustros. Foi nesse Mosteiro que se ordenou padre e celebrou sua primeira missa. Já transcorria o ano de 1219, e, agora, era ele o Cônego Fernando Martini. Como membro da Ordem Agostiniana, Fernando recebeu o título de Dom, abreviação de Dominus que indica posição social conquistada e respeito.

 

Mosteiro de Santa Cruz

Mosteiro de Santa Cruz, Coimbra. Hoje.

 

Mosteiro de Santa Cruz

Mosteiro de Santa Cruz, Coimbra. Hoje.


       Foi no Mosteiro de Santa Cruz que Dom Fernando Martini entrou em contato com os mais famosos escritores latinos da Antigüidade, com os Santos Padres, com a teologia e com a filosofia, debruçando-se sobre os escritos dos mais famosos pensadores de todos os tempos. Sobre essa fase especial da vida de Dom Fernando, Baggio informa:


   Nesse universo maravilhoso, Fernando trabalhou e labutou por nove anos, no fim dos quais era doutor consumado nas ciências divinas e humanas. Por isso, torna-se, ao lado de um grande Santo, um grande representante da cultura de seu século.[1]


       Nesse mesmo período, na Itália, ebulia um movimento religioso renovador — os Irmãos Menores — liderados por um jovem filho de um rico mercador, tal como Dom Fernando: Francisco Bernardone, mais conhecido como Francisco de Assis. Foi nessa época também que Dom Fernando estabeleceu os primeiros contatos com um grupo de franciscanos que visitavam Coimbra. Foi com eles que, tendo a oportunidade de conversar longamente, conheceu a história de seu Fundador. Conheceu-lhes o modo de ser, a Regra, a devoção ao Evangelho e o desejo de sacrificarem suas vidas pelos princípios ensinados pelo Cristo. Este encontro deixaria uma marca indelével em sua existência.

       O ano de 1219 continuava e, certo dia, o Convento dos Agostinianos recebeu cinco frades de Frei Francisco. Eram eles: Frei Bernardo, Frei Oto, Frei Adjuto, Frei Acúrsio e Frei Pedro. Dom Fernando e os frades conversaram profunda e longamente sobre os mais variados temas. Poucos dias depois os religiosos visitantes partiram para missionar no Marrocos, onde foram presos, torturados e mortos em 16 de janeiro de 1220. Tornaram-se, nesse sentido, os primeiros mártires da história da Ordem Franciscana.

       Os restos mortais desses frades foram trasladados para o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, o mesmo local que os abrigara antes de sua partida para o flagício e para o martírio. Entre os assistentes das cerimônias fúnebres dos protomártires franciscanos encontrava-se, entre perplexo, inconsolado e enlutado, Dom Fernando Martini.

       O tempo passa. Em Dom Fernando se intensificava o desejo, que acabaria por se consumar em ação: trocar o hábito branco dos agostinianos pelo hábito marrom dos franciscanos. E assim se consumou a aspiração vocacional de Dom Fernando. Só que impôs um condição, logo aceita por seus novos irmãos: ... queria partir para a terra dos moiros [Marrocos], na esperança de poder verter seu sangue como haviam feito aqueles bravos frades, cujas relíquias eram veneradas agora na capela do Mosteiro.[2]
Assim, em uma bela manhã de 1220, operou-se, no Mosteiro de Santa Cruz, a troca dos hábitos, e Dom Fernando deixou-se cingir por rude corda. Trocou os sapatos por sandálias e adaptou os cabelos ao corte dos franciscanos. Completando a transformação, trocou o nome de Dom Fernando pelo de Frei António. E como, na época, era costume acrescentar ao nome da Ordem o nome do local de nascimento, seu nome completo ficou sendo: Frei António de Lisboa.[3]

       E, dessa forma, ofereceu Frei António toda a sua vitalidade à causa dos franciscanos. Esteve na África com Frei Filipino, pois a Regra de Francisco mandava que os frades fossem pelo mundo dois a dois. Esteve também na reunião convocada por Francisco de Assis, conhecida na história da Ordem com o nome de Capítulo das Esteiras, que se realizou em Assis de 29 de maio a 8 de junho de 1221. Dali partiu em companhia do Provincial da Romanha para a solidão de Montepaolo, nos Contrafortes dos Apeninos, Cordilheira Central da Itália. Ali, acrescentou à oração a contemplação, o jejum e o silêncio. Posteriormente, o Frade Luso recebeu do Provincial Frei Graciano o ofício de pregador, e com sua eloqüência sábia e erudita veio professar a singeleza devota e a encantadora poesia nos eremitérios da Ordem dos Irmãos Menores.

 

São Francisco da Assis

São Francisco da Assis


       Esteve em Bolonha e na França e acabou por se tornar um orador tão famoso que, um dia, foi convidado pelo Papa Gregório IX para pregar em Roma para o próprio Santo Padre e para os cardeais. O Papa gostou tanto da pregação que quis que Frei António ficasse hospedado no palácio papal. Quis fazê-lo também cardeal. Mas Frei António não aceitou nem se instalar em Roma, nem o barrete cardinalício. Continuou missionário, peregrinando de lugar em lugar, ensinando e divulgando a Sagrada Escritura, consagrando integralmente sua vida à pregação e à catequese, quer pelo exemplo, quer pela palavra.

 

Papa Gregório IX

Papa Gregório IX


       A ele são atribuídos diversos milagres, mas a própria Ordem reconhece a dificuldade em serem comprovados histórica e cientificamente. A Tradição Arcaica, por outro lado, recusa veementemente a manifestação e a existência de milagres. A Lei é a Lei, e não pode ser adulterada. Quando se desconhecem as Leis envolvidas em determinados eventos, tem-se, geralmente, a tendência descomprometida e equivocada de qualificá-los de milagres. Milagre, enfim, é a contribuição mental ilusória que pagam a si mesmos, aqueles que ignoraram as Leis que regulam as manifestações do Universo e da Divindade. Mas o que certamente marcou a vida de Frei António foi seu grande destemor e sua incansável defesa da Igreja. Era chamado de Martelo dos Hereges em virtude de sua clareza no falar e coragem ao expor suas idéias. Por sua capacidade, cultura, discernimento e força interior, Frei Francisco solicitou a Frei António que ensinasse a Sagrada Teologia aos irmãos da Ordem. Foi, assim, nomeado o primeiro professor de Teologia da Ordem dos Franciscanos. Seus sermões públicos chegavam a atrair tanta gente, que as crônicas da Ordem falam de até trinta mil pessoas. Certa feita pregava Frei António em Bouges, França, e o Arcebispo do lugar, D. Simão de Sully, muito amigo do Papa, estava presente na cerimônia. O Frade sabia que o Arcebispo não cumpria integralmente suas obrigações, e sua vida não condizia com a posição que ocupava, muito menos com os preceitos religiosos. Na prédica, o Frade Lisboeta censurou duramente o Prelado. Esperou-se uma reação vigorosa do Arcebispo às acusações. Ao invés disso, ajoelhou-se aos pés de Frei António e, consternado, pediu-lhe perdão. A força do orador era tamanha que inimizades se acabavam, famílias desunidas se uniam, alguns ricos ladrões devolviam os bens mal adquiridos e o vício desaparecia por onde passava Frei António.[4]

       Em 3 de outubro de 1228, morria Francisco, o extraordinário Fundador da Ordem. Foram convocados a Assis os superiores regionais do mundo inteiro, entre eles Frei António, que naquela oportunidade ocupava o cargo de Superior da Região de Limoges, na França. Foi eleito Ministro Geral da Ordem o Superior da Espanha e Portugal, Frei João Parente, que em Santa Cruz de Coimbra dera o hábito de frade a Frei António. Como resultado dessa Assembléia, o Frei Lusitânico recebeu a investidura de Provincial da Província Italiana da Emília.

       Em Pádua, por volta de 1230, começou a atuar mais profundamente, tentando divulgar o lema de Francisco: PAZ e BEM. Foi nesse ano também que começou a acusar sinais de fraqueza física, proveniente de moléstias contínuas que iam se agravando. Sentindo que o espaço histórico de sua vida ia-se esvaindo, pregava com todo o vigor que seu corpo ainda possuía. Em seus sermões verberava contra toda a classe de injustiças, contra toda sorte de vícios, contra o amor à riqueza, ao luxo e aos prazeres desenfreados, e, principalmente, contra a usura que minava os princípios espirituais do Catolicismo. Os historiadores consideram o ano de 1230 o ano-testamento do Frei, que não perdia tempo: pregava de dia, estudava e orava de noite.

       O conhecido episódio místico que aparece em todas as imagens de Frei António e em toda a sua iconografia deu-se, segundo relatos históricos, em Campo Sampiero, perto de Pádua, na casa do Conde Tiso. Passava o ano de 1231. Baggio narra:


[estava] orando o bom Frade, em seu quarto; encheu-se este de luz e um menino veio pousar nos braços do Frei António, que sorria, enquanto este O contemplava e acariciava.[5]

 

Frei António Frei António

 

       Frei António, depois de dedicar a maior parte de sua vida à divulgação da fé católica, pregando nos últimos onze anos de vida sob os princípios da Ordem de Francisco de Assis, veio a falecer em 13 de junho de 1231 no Eremitério de Arcela, com a idade de 36 anos. Em 30 de maio de 1232, na festa de Pentecostes, o Papa Gregório IX, em imponente e inesquecível cerimônia, proclamou Frei António, Santo António. E porque vivera ultimamente em Pádua e lá se dizia que operava prodígios, apesar de nascido em Lisboa, ficou conhecido no mundo como Santo António de Pádua. Em todo o mundo, a sucessão de fatos extraordinários a ele atribuídos, coloca o Santo entre os mais queridos e procurados, o que não deixa de, sob certo aspecto, deformá-lo, pois abandona nas sombras o teólogo, o místico, o exegeta e intérprete da Bíblia, o moralista, o psicólogo, e também, certamente, o Filósofo. Foi exatamente para arrancá-lo dessa situação, até certo ponto vexatória e detrimental a ele e à própria Ordem dos Franciscanos, que o Papa Pio XII, em 16 de Janeiro de 1946, pelo Breve Exulta Portugal, proclamou Santo António Doutor da Igreja. Segundo Baggio, as palavras do Papa Pio XII foram:


   Quem percorre atentamente os Sermões do Paduano, logo descobre em Santo António o exegeta peritíssimo, na interpretação das Sagradas Escrituras, o exímio teólogo no perscrutar os dogmas, o doutor e mestre insigne no tratar os assuntos da ascética e da mística... E porque Santo António usou, com tanta freqüência, os textos e as sentenças do Evangelho, bem merece o nome de Doutor Evangélico.[6]

 

A DOUTRINA MÍSTICA EM GERAL


       A primeira observação a ser anotada é a referente às três virtudes preparatórias, purgativas e iluminadoras, que santificam o homem, enunciadas no sermão In Dominica III in Quadragesima: a pobreza, a castidade e a abstinência. No que concerne à pobreza, a verdadeira distorção não reside na posse, maior ou menor, de bens materiais. A raiz do mal não é o dinheiro, mas o amor ao dinheiro. O mau uso dos bens materiais (cupidez e avareza) é que provoca o aviltamento e macula a alma, colocando o homem em um estado de entorpecimento espiritual, privando-o de um contato mais próximo com o Deus de sua compreensão. Quanto à castidade, esta se faz necessária e se cumpre em grande parte pelo isolamento e pela renúncia. A abstinência é a terceira ponta do triângulo. Sua prática pretende evitar, por um lado, derrame ou desperdício de energia que ocorre no ato sexual e, por outro, impedir a devassidão que alimenta energias psíquicas de baixo teor vibratório, e que inexoravelmente conduzem à fraqueza física e moral, à desagregação social, à doença, à morte prematura. Santo António, propriamente, não desceu ao detalhe nem explicitou minuciosamente o porquê de se observar as três virtudes acima. Esta é, portanto, uma interpretação pessoal do seu pensamento. A perfeita compreensão da necessidade da prática equilibrada da abstinência, que auxilia a conduzir gradualmente ao encontro do Cristo Interno, é de difícil explicação por simples palavras, eis que se fundamenta em realização pessoal, vivência pessoal, experiência pessoal e, em última análise, mérito pessoal. Santo António soube porque, provavelmente, passou por esse processo inteiro. De qualquer maneira, há, consabidamente, três formas ou tipos de relações sexuais: infra-sexo, sexo (normal) e supersexo. O infra-sexo degrada; o sexo (normal) pode retardar; e o supersexo promove a ascensão espiritual da consciência interior. Neste nível ocorre um certo tipo de fusão espiritual... Não se recomenda a ninguém que vier a ler estas linhas, que, por mera curiosidade, procure saber e experimentar irresponsavelmente o que vem a ser aquilo que se conhece por supersexo. Ele só pode e só deve ser praticado por aqueles que alcançaram um elevadíssimo nível de maturidade moral e de desenvolvimento espiritual. Sua prática inconseqüente poderá levar a resultados desastrosos e irreversíveis. Entretanto, estas últimas reflexões, s.m.j., não estão contempladas na obra antoniana. De qualquer sorte, particularmente acredito que sejam desnecessárias determinadas práticas adotadas por alguns místicos no que concerne ao supersexo. Tudo pode e deve acontecer in corde.

       A tríade acima descrita (pobreza, castidade e abstinência) tem uma finalidade: preparar o homem para a contemplação e, nesse sentido, deve ser compreendida como um período ascético, figurado pela luta da penitência. A contemplação, para Santo António, tem várias conotações: via mística, oração mental e meditação, vida contemplativa, visualização, compunção da alma, compunção da penitência, devoção, conhecimento experimental, entre outras. Entretanto, para o Santo Lisboeta, a possibilidade de se ver Deus ocorre pela exclusão da razão, sendo a alma conduzida inteiramente pela graça. Este é o estado de contemplação infusa ou de alienatio mentis. Pelo exposto, observa-se que o vocábulo contemplação foi usado pelo Santo nos mais diversos sentidos, aproveitando-o com larga maleabilidade, como, aliás, outros mestres da espiritualidade mística ... também o fizeram.[7] O sentido, todavia, é marcadamente platônico.

       Outro aspecto interessante dos sermões de Santo António é aquele concernente à vida ativa e à vida contemplativa. A vida ativa caracteriza-se pela ação, pelo movimento, pela obrigatoriedade de realizar. É aquela que se passa no mundo exterior em oposição à vida contemplativa, que é interior. Apesar de terem funções experiencialmente opostas, uma é a base da outra. Caeiro explica:


   ... ambas se entrelaçam de forma que, começando por constituir uma a parte inferior e a outra a superior do mesmo todo, da vida ativa se sobe para a contemplativa, e desta se desce depois para a ativa, trazendo-lhe forças ou energias preciosas para a sua eficiência e aperfeiçoamento.[8]

 

Interdependência Entre a Vida Ativa e a Vida Contemplativa

 

     Também distinguiu o Doutor Evangélico duas espécies de amor: o amor a Deus e o amor ao próximo. A ação conjugada de ambos ilumina e induz o homem à prática das boas ações. O Santo de Francisco exaltou também profundamente o poder da oração. Todo místico de vertente teológica sabe que o ato de orar é um processo transcendental de comunhão com Deus e obedece a uma lei espiritual, que impõe que se bata na porta para que ela se abra. É, portanto — segundo esse entendimento — necessário pedir para receber. Por outro lado, deve haver o mérito para que o peticionário seja atendido. Ao lado da contemplação, cultivar as virtudes anteriormente referidas, segundo Santo António, conduzirá à obtenção da graça suplicada. Verifica-se, imediatamente, que uma das chaves do processo místico antoniano é a oração. O coração daquele que se deixa inflamar pelo seu místico poder certamente alcançará e penetrará as nuvens e o Céu. É o último estágio de perfeição. A alma despida da vaidade, em intenso amor, está perante Deus. É o supremo gozo espiritual. A alma ascende ao mais alto grau da contemplação e imerge ou mergulha nas coisas divinas. (Sobre o sentido esotérico da oração, que, sob alguns aspectos cruciais diverge do conceito antoniano, sugere-se a consulta à Oração das Sete Súplicas, trabalho que está incluído neste site).

       Mas este alargamento espiritual para atingir, captar e tocar o Mais Alto — Deus — pressupõe, outrossim, um esforço intelectual. Assim, além do amor e da humildade, é necessário um intelecto ágil, forte, para impressionar Deus. O elemento discretio — que significa discernimento, aptidão — consiste em se decidir pelo justo meio. Discretio permite, dessa forma, ponderar, dosar e calcular o esforço que cada um tem de fazer no processo ascensional, de modo a não exceder sua possibilidade pessoal, como também não ficar aquém desta. Serve, também, como medida ou limite do que apreender das coisas celestes. A cada um...

       A doutrina antoniana, todavia, não exclui a intuição no processo de compreensão pelo homem da graça alcançada pela iluminação interior. O último grau de contemplação é, portanto, um fenômeno místico no qual são parceiros experienciais a intuição e o amor. Em última análise, a essência da visão antoniana de Deus associa, no ápice da contemplação, elementos da visão intuitiva, do gosto inefável [gustus mysticus] e do amor.[9]

       Santo António distinguiu no aperfeiçoamento três estágios: o dos principiantes, o dos que alcançaram algum grau de proficiência e o dos que atingiram a perfeição. De um modo geral o primeiro estágio — o dos neófitos na senda — coincide com a ascese preconizada anteriormente; os outros dois identificam-se com a contemplação. Outro ponto extremamente interessante da doutrina antoniana é o papel decisivo que desempenham a humildade, o amor e a dor na ascensão espiritual. Para o Frade Franciscano, antes de tudo, o ato contemplativo deve ser humilde — vir humilis. A humildade para Santo António, assim como para São Bernardo, São Gregório e São Bento, é o primeiro degrau da contemplação, ao mesmo tempo em que é o primeiro degrau do conhecimento. Quanto ao amor, aquele que não ama não verá Deus, adverte Santo António, porque sendo Deus amor e caridade (Deus caritas est), só atrai sua semelhança. O homem para alcançá-Lo deverá amar o próximo, consolando-o, auxiliando-o e o acompanhando na sua dor e nas suas necessidades. A dor se apresenta sob duas formas: sofrimento pelas misérias do próximo e desespero pelos erros cometidos. A dor, entretanto, não é um sofrimento inútil, vazio. O próprio derrame de lágrimas catalisará o encontro do homem com Deus, realização última da solidariedade e da compreensão. Enfim, o processo contemplativo antoniano constitui-se de uma seqüência ordenada e progressiva de atos (estágios) espirituais com uma finalidade: alcançar Deus. O objeto de tudo, portanto, na mística antoniana, é o encontro do contemplativo com Deus. Conforme se teve a oportunidade de referir anteriormente, para o iniciado, isto é uma impossibilidade, porque a reintegração só pode se dar assintoticamente.

       Da doutrina mística de Santo António, enfim, podem-se extrair nove pontos principais: a) o homem para tentar alcançar Deus, para se elevar até Deus, deve se recolher e se interiorizar; b) o ideal da doutrina antoniana é a união com Deus; c) é pela contemplação que a alma se dilata até tocar, captar Deus; d) na contemplação o contemplativo morre para o mundo; e) na contemplação a alma do homem é inundada por uma satisfação espiritual que a consola e inebria; f) na contemplação há uma sensação de paz, conforto, segurança e quietude celestiais; g) a contemplação reforça a fé; h) a contemplação reanima e inspira o homem para prosseguir na vida ativa; e i) pela contemplação o homem conhece o verdadeiro amor, a caridade absoluta, a compreensão total, a tolerância irrestrita e a beleza inefável de seu Criador.

 

SÍNTESE FILOSÓFICA DA HUMILDADE


       A primeira observação a ser feita ao se estudar a mística especulativa antoniana é referente à humildade, virtude que absorveu e guiou o Santo, apoderando-se de sua alma e de toda a sua vida espiritual. Para Santo António, a humildade é como que a mola propulsora, o catalisador, a força impulsionadora, para se atingir a presença de Deus. Entretanto, a opção da doutrina antoniana no que tange à humildade é especulativa. E a busca mergulha na Escatologia, percorre os conceitos incipientes da Escolástica e penetra os domínios da Metafísica e da Ética. O exame desta categoria no nível iniciático é mais complexo. Para Santo António, a humildade é a raiz de toda a vida espiritual, e essa idéia se lhe torna obsessiva. Acredita que todas as boas ações derivam da humildade. E a causa maior, possivelmente, foi a admoestação de Jesus, o Cristo: aprendei de mim que sou manso e humilde de coração. O Sermão da Montanha é um outro exemplo de chamamento à humildade, no qual o Santo provavelmente se inspirou. Muitos outros exemplos são encontrados nas diversas literaturas religiosas e correntes teológicas, mas, particularmente e de forma mais incisiva, o assunto é sobremodo arejado na teologia católica.

       O Santo acreditava que para alcançar Deus o homem deverá subir a Escada da Humildade. Esse simbolismo ele o retirou do 4º Livro dos Reis, no qual é feita referência à cura de Ezequias pelo Senhor, cujo sinal é estabelecido em relação ao retrocesso do relógio solar de Acaz, em dez graus. Os dez graus do Relógio do Sol foram utilizados por Santo António para simbolizar os dez degraus da humildade. São eles:


1º Vileza e fetidez da matéria que origina o homem; 2º geração (ou gestação) durante nove meses, nas trevas do útero materno e à custa do sangue menstrual; 3º saída, a chorar, do útero materno, em estado de nudez e imundície; 4º peregrinação abominável e de miséria neste mundo, no qual há dor, gemidos, angústia e pranto; 5º lembrança da própria iniqüidade, por tudo quanto o homem faz ou omite, quando, apesar da sua liberdade, se vende ‘de graça’ ao Diabo, com manifesta ingratidão para com Deus, devendo por isso arrepender-se dos pecados cometidos para que Deus lhos perdoe e lhe restitua a graça perdida; 6º pensar na morte, ‘mais amarga do que toda a amargura’, na qual o homem entrega a carne aos vermes, a alma aos Demónios (se não se penitenciar) e a substância restante aos filhos e parentes, que a aguardam como se fossem raposas astutas espreitando a pele do burro morto; 7º recordação de Cristo, apesar de encher o Céu e a Terra, ter andado nove meses no ventre da Mãe, ter sido, ao nascer em um pobre curral de gado, envolto em pobres paninhos e se haver sujeitado depois aos sofrimentos da Paixão; 8º benignidade e misericórdia de Jesus para com os pecadores, que atraía pela Sua doçura, mansidão e compaixão; 9º tortura e sofrimentos da crucificação de Cristo; e 10º meditação sutil sobre a ressurreição dos mortos no Juízo Final e sobre o destino de felicidade ou de castigo eterno que os espera.[10] (sic)


       Por esses processos sucessivos de aperfeiçoamento, o homem percebe sua vilanagem, reconhece sua insignificância perante a magnificência da criação e se torna humilde, pois é pelo exercício diuturno da humildade, segundo a mística antoniana, que ele se compreende melhor e se credencia a conhecer Deus.

       Para o Santo, é a soberba o mais grave pecado (ante omnia Deus superbiam detestatur), e todo aquele que é soberbo e avarento terá grande dificuldade em entrar no Reino de Deus. Os bens materiais serão sempre fator impeditivo (quando possuídos com mesquinhez, egoísmo, cupidez e avareza) para se realizar a plena espiritualidade e alcançar Deus. Uma das sínteses importantes da doutrina antoniana é a que conduz à liberdade, pois quando o coração é humilde, nasce a obediência. Pela obediência os cinco sentidos servirão exclusivamente à razão. E, assim, o homem liberta-se dos desejos e das paixões inferiores, e não fica limitado por qualquer tipo de desejo de posse, oriundo de deformações morais pelo mau exercício da vontade. Pode-se, em conseqüência, concordar com o seguinte silogismo verdadeiro: Da humildade nasce a obediência; mas da obediência nasce a liberdade; logo, da humildade nasce a liberdade.[11] Com a liberdade, vem o entendimento prístino.

       Finalmente, Santo António dá ênfase ao papel da humildade exercida como a honestidade e a retidão de proceder como conduta moral de vida. A própria castidade é lembrada no papel confiado à humildade como Torre da Castidade, com função de defendê-la dos inimigos (interiores e exteriores) que a rondam para subjugá-la.


A NOITE MÍSTICA


       A Noite Mística (Noite Negra ou Noite Obscura) da alma é o vestibular da ascensão mística. Em diversas predicações Santo António referiu-se à Noite Mística como processo necessário à purificação e preparação da alma para atuar em um plano mais elevado de consciência. Nesse sentido, o Santo referiu-se à Noite como a obscuridade dos místicos — mysticorum obscuritas.[12] A Noite não tem, ordinariamente, a duração da noite física. A Noite tem começo (Conticínio), meio (Meia-Noite) e fim (Aurora), e o tempo de duração é individual. Durante sua manifestação, a Noite tem e traz conseqüências terríveis, dentre as quais o Santo aponta: privação da luz da razão; o ser torna-se frágil e o conhecimento adequado de nada adianta; o eu interior fica em trevas e o homem é tentado a tudo abandonar (trevas da consciência); a claridade tentadora da prosperidade mundana entenebrece a alma e se transmuda em caligem da morte; a noite é um amplo campo de adversidade em que a alma anda às apalpadelas sem consciência de si mesma.[13] A Noite é, pois, uma etapa da reintegração (regeneração) do homem à sua imaculada, cósmica e divina origem. E, nesse aprendizado, terá que eliminar, minimamente, a soberba do coração, a lascívia da carne, a avareza do mundo, a ira, a vanglória, a inveja e a gula, que compõem as sete violações capitais enunciadas na teologia católica.

 

 

O Conticínio (Conticinium)


       É a primeira fase da Noite em que tudo está silente. É o tempo em que são satisfeitas as seduções blandiciosas da carne — carnis suavia blandimenta. O Santo ensinou que, para vencer as tentações próprias do Conticínio, é preciso meditar sobre as iniqüidades praticadas, considerar o exílio (e desejar ardentemente a reintegração) e contemplar o Criador. Auxiliado pela razão e pela discrição, o principiante vai subindo, degrau por degrau, a escada da crucifixão: a razão dominando os sentidos e esclarecendo sobre o bom caminho. Assim, derramando lágrimas, envergonhado, vexado e cabisbaixo vai o postulante trilhando a senda que levará à iluminação. Lentamente, os sentidos físicos e os apetites do corpo vão sendo dominados, e os incipientes passam para o estádio de aproveitantes (fase da Meia-Noite).[14] Porém, no que concerne ao sofrimento moral, este se vai intensificando. É o reconhecimento tácito da queda, do afastamento da Luz, do exílio de Deus, da consciência plena da ainda permanência nas trevas. É a angústia por desejar alcançar a Luz Maior, por desejar ardentemente realizar o Cristo Interno e, em graça total, contemplar o Criador. É o desespero por ter, tenuemente, vislumbrado a possibilidade de se tornar uno com o Pai — o Deus de seu coração — e de não ter podido ainda realizar o sonho dos sonhos. É uma dor lancinante. Um desespero sufocante. Um horror atemorizante. É a noite negra. É a crucificação individual. É o inferno interior. É a compreensão do exílio da Vida. A Noite Negra traz à lembrança a fase negra da Crisopéia.

 

 

A Meia-Noite (Media Nox)


       A segunda fase da Noite Obscura equivale para Santo António, ao período de luta espiritual em que a alma, vendo-se no exílio deste mundo, dele procura libertar-se... para, depois... poder chegar à contemplação de Deus e unir-se com Ele por amor.[15]
O aproveitante (aproveitado) já convencido do erro da vaidade, suplica cheio de fé, de amor e de esperança, força para suportar o exílio. À medida que acorda, recorda-se da vida antiga e, envergonhado, humilhado, sentindo-se desprezível, chora amargamente. É o pleno reconhecimento do erro. Nu, perante si mesmo e perante o Criador, confessa-se ao Deus de seu coração e clama por perdão. E perdoa aos que o perseguem e caluniam, aos que o aviltam e ofendem, aos que escarnecem, pois sabe que esses não o compreendem, mas que, inexoravelmente, um dia subirão também o primeiro degrau da Noite Negra. E se compromete a, nessa hora, estar presente para ajudar no que for possível e permitido, para amparar em cada queda, para consolar quando a dor e a vergonha forem mais intensas. Esse é o verdadeiro sentido do perdão, da humildade, da fraternidade e do amor universal em um sentido teológico. É a tomada de consciência pelo aproveitante de que todos, em última instância são unos entre si e com o Pai, ainda que exilados. A Meia-Noite faz recordar o branco da Grande Obra. É também uma possibilidade para explicar o Mito da Caverna, de Platão. Voltar para ajudar e servir é um supremo ato de sacrifício e de amor. Aqueles que voltaram sabem. Entretanto, não há essa referência consignada na obra antoniana.


A Aurora (Aurora)


       A Aurora - bendita Aurora - é o último estágio da Noite Mística, e se assemelha ao vermelho da Alquimia Operativa. Santo António assim a delineia:


É a infusão da graça divina.
A alma pôde... justificar-se ou tornar-se justa.
A alma se torna reta e ereta...
A Aurora é o fim da Noite e o princípio do Dia.
Ela é o fim da miséria e a entrada na beatitude...
É o último estádio da ascensão espiritual
o estado perfeito...
... a alma sente-se agora invadida por indizível alegria.
É a contemplação do Criador.
[16]


       Do exposto, pode-se simbolicamente deduzir e afirmar, que a Noite Obscura é um processo de purgação (uma verdadeira Alquimia Iniciática Interior) que o homem tem indubitavelmente que passar para alcançar o Deus de sua compreensão e realizar o Cristo interno. Iniciaticamente é desta forma que acontece. O Sol, que pretende simbolizar o Sol da Graça a ser alcançada, com sua claridade, brancura e calor, ilumina a alma em contrição. É com a luz do Sol das primeiras horas da manhã — símbolo do Sol interior — que são dissipadas as trevas da noite. É com o nascer do Sol místico que são esvaecidas a superstição e a ignorância. E o ser purificado, limpo e perfeito, entra na posse do conhecimento de seu Criador. Esse Sol, depois de nascido, jamais se põe. Essa foi uma afirmação feita por Santo António e por todos aqueles que alcançaram a 'perfeição', e passaram pelo processo místico purgativo da Noite Negra da Alma (consultar Anexo I). O ato derradeiro de humildade ao conquistar a Aurora é, assevera-se mais uma vez, o retorno à Caverna, para consolar e auxiliar os que ainda desconhecem a LLUZ. Repete-se: por evidente, esta reflexão não está presente em Frei António. (Para maiores esclarecimentos consultar o Anexo I).

 

O TOQUE MÍSTICO


       A ascensão espiritual, no conceito concebido por Santo António, oriunda de atos próprios de aperfeiçoamento voluntário e que conduzem à união com Deus, impõe a participação ativa (e passiva quando conveniente) do homem, ao mesmo tempo em que necessita da colaboração divina..., ou seja, o Toque (místico) constituído pela infusão da graça. Nesse sentido, o homem necessita, e num dado momento de sua vida, quer se salvar; mas é incapaz de o conseguir por si próprio e, assim, precisa do concurso divino, afirma o Santo. O Toque, segundo a doutrina antoniana, ... parece ser a expressão metafórica, como que materializada, da insuflação da graça divina para o efeito do aperfeiçoamento da alma, e mais concretamente, ou de um modo mais restrito, para o de sua união final com Deus e gozo que esta proporciona no cume da ascensão espiritual.[17]

       O Toque traz ao beneficiário vantagens muito amplas: aqui, a visão possível e o gozo inefável de Deus; mais tarde, a glória celeste. Mas, para alcançar o estado vibratório especial para que tal êxtase místico seja viável, o Santo Português ensinou que esta graça... deve ser pedida em oração acompanhada de lágrimas, fonte de devoção e de amor. A ORAÇÃO...

       Outro aspecto extremamente interessante e relevante da doutrina mística antoniana é aquele que concerne ao recolhimento espiritual. Pelo recolhimento espiritual ou recolhimento interior (um dos pilares da ascensão mística), todas as reações objetivas e racionais tendem progressivamente a desaparecer, e a elevação da alma (mentis elevatione) passa a ser comandada pela graça de Deus. Este o Toque Místico divino da alma no cume da contemplação.[18] O testemunho da própria experiência de Santo António ensina que a alma que alcança este especial estado vibratório e é tocada por Deus, desprezará toda e qualquer honraria, toda e qualquer glória e pompa deste mundo. E as delícias e o prazer místico que tal estado proporciona, provocam uma ânsia espiritual progressiva, aumentando o desejo de as desfrutar. Enfim, o Santo Luso entendeu que qualquer esforço pessoal do homem como aspirante à ascensão de sua alma será frustro, se não tiver o concurso de Deus. Entretanto, para merecer tal bênção, é imperativo, e mesmo fundamental, que o homem se dispa da vaidade e do rancor, lave seu corpo com as lágrimas do arrependimento confesso na dor, na vergonha e na aflição, perdoe antes para merecer só então o rogado perdão, e ame a todos incondicionalmente para alcançar a possibilidade de penetrar no raio da esfera mais próxima da contemplação e compreensão de Deus. Aí, então, em estado de recolhimento interior, despido das vestes materiais, puro e belo, perante o Deus de seu coração, o homem será tocado, consagrado e elevado. É a sua mais alta graduação, onde o grau lhe será conferido pelo Toque Místico do amor de Deus. É o TaV cabalístico da vida e o objeto final da humana existência, segundo a mística antoniana.

       Assim, pode-se entender que Santo António foi um exemplo vivo de que a vida contemplativa não é incompatível com a vida ativa. A análise de sua obra permite que seja considerado o pensador mais importante da pré-escolástica Franciscana. O sentido fundamental da antropologia antoniana, segundo Maria Cândida Pacheco, é claramente otimista, abarcando toda Criação, e sua obra, cujo fundamento é a Teoria Criacionista (entretanto não no sentido leonardino, e muito menos esotérico), abrange, no seu desdobramento, Deus, o Mundo, a Alma e o Homem. Mas, realmente, não importa se Santo António foi ou não foi um esoterista ou mesmo um iniciado. Foi, verdadeiramente, um Homem Santo, cuja santidade esteve a serviço da Ordem de Francisco e da Igreja Católica. Se a confraria católica de hoje se debruçasse um pouco sobre seus sermões e sobre sua Filosofia... muito teria a aprender. Talvez até se (des)preocupasse com as lendas e paspalhices disseminadas irresponsavelmente sobre ele.

       A manifestação do homem na Terra (contrariamente ao pensamento de Sampaio Bruno que será examinado na fase IV desta seqüência de estudos sobre a Filosofia Portuguesa) não é originária de uma diminuição da onipotência divina, muito menos oriunda é de um pecado original; antes tem cariz estritamente ascensional, na qual, exclusivamente por esforço individual, elevar-se-á, assintoticamente (este conceito não foi utilizado por Santo António), de sua condição inferior à 'plenitude divina'. A obra filosófico-teológica de Santo António, sua atividade de pregador apostólico e as funções docentes que exerceu demonstram, cabalmente, que seu pensamento integra-se no pensamento místico ocidental. Enfim, observa-se de suas meditações e de seus sermões, que só quando a liberdade interior é alcançada, a verdadeira fraternidade se manifesta. Há, neste particular, aproximação com o pensamento de Leonardo Coimbra.

       A obtenção, pela graça, segundo a Doutrina Mística Antoniana, da possibilidade da visão de Deus, ou até da sensação interior de tê-Lo alcançado, obriga o místico que consegue essa especial e elevada harmonização cósmica, ao retornar à vida ativa, a participar diligentemente, com todas as suas forças, na evolução e progresso da humanidade. Na Doutrina elaborada pelo Santo Lisboeta não há lugar para o egoísmo, como, obviamente, não há em nenhuma doutrina espiritual autêntica. O egoísmo é uma das mais sinistras deformações do ente ainda subjugado pelo corpo astral.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


       A Doutrina espiritual de Santo António de Lisboa baseia-se na humildade, no amor, na compaixão, na tolerância, na fraternidade, na caridade e na abstinência, entre outras tantas virtudes que o místico tem que permanentemente cultivar, para estar e se manter em perfeito equilíbrio e em plena harmonia com os padrões universais, que representam e correspondem a essas idéias-força. Ensinou como alcançar o estado vibratório próprio para ver Deus, ou seja, entrar na posse do Deus de cada coração, do Deus do coração do aspirante. Ensinou, também, realisticamente, que o ápice da senda mística só será atingido pela renúncia, pela compreensão absoluta dos erros cometidos, pela purgação de cada falha, pela eliminação consciente e desejada de toda imperfeição. A ignorância tem que ser removida para que a LLUZ possa brilhar. E, nessa luta do neófito contra seus desejos inferiores, para merecer o privilégio de um dia poder estar na presença do Deus do seu entendimento, ele desce aos infernos em vida e penetra na Noite Negra da Alma. É aí que se trava a mais dramática luta do homem. Por um lado, o desejo sincero de vencer o lobo interior; por outro, a fera interna acossando todos os seus sentidos tentando derrotá-lo e arrastá-lo de novo à luxúria, à soberba, à hipocrisia da vida dissoluta de outrora. Mas ele sabe que, ou vence a tentação que lhe atormenta, e vencendo merece o privilégio de ser misticamente tocado e se torna um ser realizado, um ser perfeito, ou vacila, e... se afasta do Deus interior de sua compreensão. É uma luta dura, tormentosa e aparentemente desigual e sem perspectiva de vitória. O homem se vê, por inteiro desnudo, com todas as suas fraquezas, com todas as suas mazelas. Chora de dor, de vergonha, prefere até desistir a ter que admitir tanta desgraça sob sua responsabilidade. Desiste mesmo temporariamente. Cai. Levanta. Recomeça. Se desistir, terá de recomeçar. E recomeçará quantas vezes forem necessárias... Compulsoriamente tem que recomeçar.

       Todavia, se vencer (e um dia vencerá) haverá de se tornar uno com o Pai. Ah! Bendita Unidade! Pois é aceito com todas as fraquezas do passado. O esforço sincero empreendido para alcançar a Luz Perfeita e a Harmonia Imaculada é recompensado pela compreensão, pela bondade e pelo amor do Deus do seu coração, que sempre o aguardou no santuário interno do seu ser (Sanctum Sanctorum) e que sempre o desejou de volta. Nesse instante o exílio termina. O filho retorna à casa paterna. A reintegração é operada. A Alquimia Interior está concluída. Deus e seu filho tornam-se UM, amalgamados, para toda a eternidade, pois o filho se realiza no PAI, e o PAI, no filho. Nesse momento, e só nesse momento, o homem será capaz de compreender o verdadeiro sentido da fraternidade. Nada, absolutamente, nada mais o separará de seus irmãos de jornada. Todavia, e isto o Santo não comentou, outros níveis de elevação espiritual deverão ser alcançados. Se o Teclado Cósmico é ilimitado... ilimitadas são as possibilidades em direção ao Centro de Idéia. Mas, onde está o centro?

       Mas enquanto a Aurora não chega, cada peregrino, reconhecendo os limites de seu próximo, e principalmente os próprios, deve envidar todos os seus esforços e empenhar todo seu conhecimento para que haja, perto de si e onde for possível, paz, harmonia, beleza, tolerância, solidariedade, compreensão, justiça, temperança, fortaleza e amor — condições essenciais e preliminares para a realização de uma verdadeira e autêntica FRATERNIDADE ENTRE OS HOMENS.

 

DADOS SOBRE O AUTOR


Mestre em Educação, UFRJ, 1980. Doutor em Filosofia, UGF, 1988. Professor Adjunto IV (aposentado) do CEFET-RJ. Consultor em Administração Escolar. Presidente do Comitê Editorial da Revista Tecnologia & Cultura do CEFET-RJ. Professor de Metodologia da Ciência e da Pesquisa Científica e Coordenador Acadêmico do Instituto de Desenvolvimento Humano - IDHGE.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1. Santo António, Frei Hugo Baggio, p. 12.
2. Ibid., pp. 18 a 20.
3. Ibid., p. 21.
4. Almanaque Popular Santo António, Frei Almir Ribeiro Guimarães, p. 104.
5. Op. cit., p. 67. Não cabe nesta oportunidade fazer qualquer análise desde episódio. Apenas considera-se, no mínimo, extravagante que o Logos e o AMeN da Era de Peixes se manifestasse à Frei António da forma como historicamente é relatado. Todavia, o merecimento de Frei António está fora de questão.
6. Op. cit., pp. 75 e 76.
7. Santo António de Lisboa, Francisco da Gama Caeiro, p. 9.
8. Ibid., p. 10.
9. Ibid., p. 36.
10. Ibid., p. 110. Evidentemente que, sendo Santo António um religioso católico, interpretou teologicamente esta passagem bíblica. Entretanto, não se pode deixar de discordar do Pensador quando afirmou, por exemplo, que o nascimento de Jesus ocorreu em um curral de gado. Hoje, já se sabe perfeitamente que o HUMILDE PEIXE encarnou em uma gruta-hospital essênia. Não pode ser esquecido de que José e Maria eram ESSÊNIOS.
11. Ibid., p. 120.
12. Ibid., p. 129.
13. Ibid., passim.
14. Op. cit., p. 166.
15. Op. cit., pp. 167 a 169.
16. Op. cit., pp. 174 a 177.
17. Op. cit., p. 194.
18. Op. cit., pp. 222 a 224.

 

BIBLIOGRAFIA


ANTÓNIO de LISBOA, Santo. Obras completas. Vol. I. Sermões dominicais. Da septuagésima ao Pentecostes. Introdução, tradução e notas de Henrique Pinto Rema. Porto/ Lisboa: Restauração, 1970, 304 p.

______. Obras completas. Vol. II. Sermões dominicais. Depois de pentecostes. Tradução de Henrique Pinto Rema. Porto/ Lisboa: Restauração, 1970, 472 p.

______. Obras completas. Vol. III. Sermões dominicais. Domingos do Advento ao 4º depois da epifania. Marianos e festivos. Tradução de Henrique Pinto Rema. Porto/ Lisboa: Restauração, 1970, 460 p.

BAGGIO, Hugo D. Frei. Santo António. São Paulo: Edições Loyola, 1982, 99 p.

CAEIRO, F. da Gama. Santo António de Lisboa (A espiritualidade antoniana). Lisboa: Ramos, Afonso & Moita, Ltda, 1969, v. II, t 1, 272 p.

GUIMARÃES, Almir Ribeiro Frei. Almanaque popular Santo António. Petrópolis: Vozes, 1984, 127 p.

PIZZINGA, Rodofo Domenico et alii. A noite mística: senda da verdadeira fraternidade. In: Convergência Lusíada. Revista do Real Gabinete Português de Leitura. Rio de Janeiro 12: 171-6, 1995 e In: Anais do II Simpósio Internacional de Ética, 1a. parte, Rio de Janeiro, 50-5, 1994.

 

ANEXO I
MISTÉRIOS DA NOITE NEGRA

marcorelho.tripod.com.br/misteriosmarcorelianos/id43.html
Acesso em 25/12/2003


Ensaio Rosacruz sobre o momento trágico que todos nós, humanos mortais — místicos ou não — atravessamos, invariavelmente, durante nossa vida neste Planeta Terra.

     A Noite Negra é um dos períodos que todo místico é compelido a vivenciar na Senda da Luz. Não houve um só um Avatar, Messias ou Profeta que, de uma forma ou de outra, não tenha evocado esse período de grande confusão, que todo buscador, num dado momento de sua busca, deve enfrentar e, se possível, superar.

     A Noite Negra é o símbolo de um ciclo, no plano individual, que corresponde a um questionamento do ideal seguido até então. Conforme o caso, esse questionamento pode ter origem em uma série de provações que atravessamos, ou em uma crise interior sem qualquer ligação com o mundo objetivo. Uma doença, um acidente, a perda de um ente querido, problemas familiares, problemas profissionais, são alguns elementos que podem abalar a vida mística de um indivíduo e mergulhá-lo nas trevas da dúvida.

     Esteja sua origem nas tribulações terrenas ou em um grande sofrimento interior, a Noite Negra costuma se traduzir de uma mesma forma: a chama de nossa fé mística vacila e se apaga pelo período que dura nossa persistência em não reacendê-la.

       Passamos a não acreditar mais em nada, nem em Deus, nem em Satanás, nem no homem, nem no amigo, nem em nós próprios. Deixamo-nos aprisionar pela fatalidade e tornamo-nos o espectador entediado de nós mesmos.

       Entre nós, muitos já conheceram esses períodos particularmente sombrios da existência, que são o quinhão que a todos nós cabe, mas que, no caso do místico, assume uma dimensão interior muito mais ampla, pois ele sabe que corresponde a escolhas cujo resultado concerne diretamente à sua evolução mística.

       Tomemos um dos exemplos mais dolorosos para ilustrar o que dizemos: a morte. Muitos místicos já vivenciaram um período de total entrega após a perda de um ente querido. Nessas penosas circunstâncias, eles se sentiram assaltados por um sentimento de injustiça, que inevitavelmente os levou a duvidar de suas próprias crenças. Por que seu marido ou sua mulher, seu pai ou sua mãe, seu filho ou sua filha, seu irmão ou sua irmã, morreram tão jovens? Por que com tanto sofrimento? Por que naquele momento? Deus verdadeiramente existe? Será que o misticismo só serve para dar falsas esperanças, tornar a existência menos amarga, dissimular um Não-Ser, escusar um acaso cego e arbitrário? É claro que quando se deixa a mente se enredar nesse tipo de engrenagens de perguntas-respostas surgem tantos 'por ques' quanto motivos para duvidar.

     Com efeito, quanto mais duvidamos da dimensão espiritual da existência, mais damos importância ao mundo material. Em outras palavras, quanto mais questionamos o Deus de nosso coração, mais o Diabo de nossa compreensão se rejubila. Pode acontecer que coloquemos em dúvida nosso ideal místico, porque a morte, é bem verdade, priva-nos de uma presença à qual nosso Eu objetivo foi apegado por muitos anos.

     Mas, se a existência da alma sempre foi para nós uma evidência, se consagramos toda uma vida terrena à evolução de nossa alma, como não a reconhecer no momento derradeiro em que ela deixa o corpo de alguém que amamos tanto quanto amamos a nós mesmos?

     A experiência mostra que não somos invulneráveis e que a adversidade pode obscurecer nossa vida espiritual. Por que? Porque o fato de sermos adeptos do misticismo não faz de nós necessariamente místicos com uma fé inabalável. Por outro lado, nossa análise das provações que sofremos pode ser imperfeita. Penso em particular naqueles que, sistematicamente, tentam compreender as razões cármicas dos sofrimentos físicos ou morais de que são vítimas em certos momentos da vida.

     Alguns se sentem invadidos pela dúvida quando sofrem provações que atribuem a um carma negativo, ao seu ver injustificado, em vista do bem que tinham a certeza de ter espalhado ao seu redor. Assim, nunca se deve estabelecer uma relação sistemática entre a provação e o carma negativo. Em outras palavras, parece-me fundamental compreender que nem todas as provações, sejam quais forem, são necessariamente cármicas. Muitas delas têm caráter puramente evolutivo, e sua única finalidade é testar nossa força interior, pressionando, ao mesmo tempo, nossa aptidão física e mental para sobrepujá-las. As provações existem porque são uma condição sine qua non de evolução, e porque é impossível, como seres encarnados que somos, evoluirmos sem termos problemas a resolver e dificuldades a superar. Assim, parece-me muito importante não sermos vítimas de um misticismo mal compreendido, que tenda a associar toda tribulação a um carma negativo. Se assim fosse, deveríamos admitir que Jesus foi crucificado — para usar apenas um exemplo — para compensar uma sucessão de más ações! Esse tipo de conclusão, devemos admitir, é absurdo e se opõe ao mais simples bom-senso.

     Portanto, quando surgirem provações em sua vida, em vez de procurar determinar se são ou não são cármicas, enfrente-as de um modo responsável, o que quer dizer, de uma maneira mística, com a certeza de que é capaz de superá-las e de que elas contribuirão para uma aceleração de sua evolução.

     Se, em lugar de se fecharem os recônditos sombrios de suas idéias negras, elas se abrissem à luz de tudo o que é belo, claro e límpido, compreenderiam a que ponto tinham sido vitimadas pela própria falta de confiança em seu ideal. Esta observação me leva agora a abordar os motivos místicos que estão na origem da Noite Negra. Seja ela consecutiva à morte de um ente querido, a uma multiplicidade de provações ou a um abandono muito fácil às nossas próprias angústias, só pode ensombrecer a existência de um místico, em virtude do apego que ele devota ao seu ideal ser muito frágil, superficial ou ilusório. Do ponto de vista esotérico, a Noite Negra é o reflexo de uma vitória obtida por nosso dragão interior. Por isso a vida de todo místico é marcada tanto por Noites Negras quanto por derrotas sofridas pelo anjo que nele existe.

     Enquanto o ser não tiver atingido o ponto de evolução que propicia a experiência íntima do Divino, permanece vulnerável em sua busca, e sua vulnerabilidade é proporcional à sua fé mística. Isso pressupõe que bem poucos de nós podem afirmar que nunca conheceram períodos sombrios em sua vida espiritual ou que não os conhecerão mais. O próprio Mestre Jesus, em um momento supremo de sua missão, clamou: Pai, por que me abandonastes? Por uma fração de segundo, esse Iniciado do mais alto grau duvidou. [Sobre este tema, convido para a leitura de um texto de minha autoria, que se encontra neste site, cujo título é: Aspectos Esotéricos da Vida de Jesus.].

     Mas, a questão essencial é saber do que ele duvidou e do que nós duvidamos quando a Noite Negra mergulha nossa alma nas trevas do ateísmo. Quando examinamos atentamente esse acontecimento da vida mística de Jesus, tudo leva a pensar que ele não duvidou de Deus, mas de si mesmo e de sua capacidade de permanecer fiel em seu sofrimento. Em nosso nível, é exatamente o contrário que acontece quando duvidamos, porque na maior parte do tempo duvidamos de tudo, menos de nós próprios. Nossa única preocupação deve ser a de pedir o auxílio do Cósmico para termos força interior para vencer nossa própria fraqueza, pois é nessa vitória que está a solução de todos os problemas, por mais dramáticos que eles sejam no plano humano. Isto pressupõe que a prece e a meditação constituem nossos dois maiores aliados para fazer brilhar novamente a LUZ quando as circunstâncias tiverem mergulhado nosso Sanctum interior na mais total obscuridade. O que devemos fazer pelo bem de nosso corpo, também devemos fazer pelo bem de nossa alma. Em vez de esperarmos até que as circunstâncias alterem nossa vida espiritual e destruam nossa fé mística, devemos cultivar nosso jardim interior, semeando ali as sementes de um amor incondicional à CAUSA SUPREMA.

     Desejo dizer, com tudo isto, que é mais fácil preservarmos nosso corpo dos perigos que o ameaçam, do que protegermos nossa alma dos ataques do abandono espiritual. No primeiro caso, a ameaça é perceptível; no segundo, ela não o é. Isso explica por que um Rosacruz que começa a atrasar o estudo semanal de suas monografias acaba não as abrindo mais. Finalmente, chega o momento em que ele não é mais Rosacruz a não ser no nome, quando então reúne as melhores condições para passar pela experiência de uma Noite Negra decisiva para seu futuro místico.

     O dever de todos os místicos, e não falo só dos Rosacruzes, é induzir progressivamente uma mudança nas mentalidades, de modo a estabelecer o equilíbrio entre as preocupações materiais e as exigências espirituais. Toda Noite Negra, seja ela individual ou coletiva, é uma INICIAÇÃO. Ao final de cada INICIAÇÃO há uma pequena chama e, quando todas as pequenas luzes se fundirem em uma só, a consciência individual ou coletiva, vivencia a Iluminação Cósmica. O acesso à Luz Maior então é definitivo e as trevas são banidas para sempre. Assim seja.

*


Excerto do livro Assim Seja, por Christian Bernard, Imperator da Antiga e Mística Ordem Rosacruz – AMORC. Publicado na Revista O Rosacruz, nº 239, 1º Trimestre/2002.

 

PAZ PROFUNDA