Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

O Poeta

 

 

 

 

 

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples:
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

 

Fernando Pessoa
(escrito pelo heterônimo Alberto Caeiro)

 

 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 – Lisboa, 30 de novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português. A razão por detrás do nome Fernando António encontra-se relacionada com Santo António: a sua família reclamava uma ligação genealógica com Fernando Martim de Bulhões e Taveira Azevedo, nome de batismo de Santo António de Lisboa, OFM — Ordo Fratrum Minorum (Ordem dos Frades Menores) (Lisboa, 15 de agosto de 1195 – Pádua, 13 de junho de 1231), cujo dia tradicionalmente consagrado em Lisboa é 13 de junho, dia em que Fernando Pessoa nasceu.

 

Pessoa é considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa, e o seu valor é comparado ao de Luís Vaz de Camões (cerca de 1524 – 10 de junho de 1580). E se o gênio de Camões é comparável ao de Públio Virgílio Marão (70 a.C. – 19 a.C.), ao de Dante Alighieri (1265 – 1321), ao de Miguel de Cervantes e Saavedra (1547 – 1616) ou ao de William Shakespeare (1564 – 1616), o de Pessoa – por que não? – também pode ser. O crítico literário Harold Bloom considerou-o, ao lado de Pablo Neruda, o mais representativo poeta do século XX. E eu, que não li todos os poetas que a Humanidade produziu, peço licença para considerá-lo, dentre os que li, o maior de todos. E, por ter vivido a maior parte de sua juventude na África do Sul, a língua inglesa também possuiu gigantesco destaque em sua vida, com Pessoa traduzindo, escrevendo, trabalhando e estudando no idioma. Seus biógrafos admitem que sua última frase tenha sido escrita em inglês.

 

Pessoa teve uma vida discreta, em que atuou no jornalismo, na publicidade, no comércio e, principalmente, na literatura, onde se desdobrou em várias outras personalidades conhecidas como heterônimos. A figura enigmática em que se tornou movimenta grande parte dos estudos sobre sua vida e sua obra, além do fato de ser o maior autor da heteronímia.

 

 

*   *   *

 

Quando me recebeu em sua casa, em Lisboa, o escritor português e meu muito amigo António Gabriel de Quadros Ferro (Lisboa, 14 de julho de 1923 – Lisboa, 21 de março de 1993), autor da Obra Poética e em Prosa de Fernando Pessoa (fonte exclusiva de consulta para garimpar os fragmentos pessoanos que compuseram este trabalho), me contou um fato (ou um fado?) interessante (entre outros), que me deixou estupefato: as 4.065 páginas dos três volumes que compõem a coleção por ele escrita e concluída em 1986, editada pela Lello & Irmão - Editores, representavam, na época, talvez, algo em torno de 10% do que Pessoa havia escrito! Estupefação! Logo, que ninguém se surpreenda e espere mais do que é menos do que muito menos: este rascunho que estou começando a digitar é meramente um acanhado aperitivo. Representará mesmo 10(menos não sei quanto) do pensamento de Pessoa! Do pensamento que está escrito, disponível e publicado; bem entendido.

 

 

*   *   *

 

Fernando Pessoa morreu de problemas hepáticos aos 47 anos na mesma cidade onde nascera, tendo sua última frase sido escrita na língua inglesa, com toda a simplicidade que a liberdade poética sempre lhe concedeu: I know not what tomorrow will bring... (Eu não sei o que o amanhã trará...)

 

Alberto Caeiro – um dos heterônimos de Fernando Pessoa e 'morto' pelo Poeta em 1915 – deixou escrito:

 

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples:
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
(Grifo meu).

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

 

 

 

 

Cronologia Básica Conhecida

 

 

 

 

1888: Às três horas e vinte minutos da tarde de 13 de junho nasce em Lisboa, capital portuguesa, Fernando António Nogueira Pessoa.

1893: Em janeiro nasce seu irmão Jorge. O pai morre de tuberculose em 13 de julho. A família é obrigada a leiloar parte de seus bens.

1894: No mês de janeiro, seu irmão Jorge morre. Cria, com apenas seis anos de idade, seu primeiro heterônimo – Chevalier de Pas – fato relatado pelo próprio Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro (1908 – 1972), em uma carta de 1935 em que fala extensamente sobre a origem dos heterônimos.

1895: Em julho escreve seu primeiro poema. Sua mãe se casa pela segunda vez, por procuração, na Igreja de São Mamede, em Lisboa, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban (África do Sul), o qual havia conhecido um ano antes.

1896: Em 7 de janeiro, em companhia da mãe e de um tio-avô, Manuel Gualdino da Cunha, parte para Durban, na África do Sul. Nasce Henriqueta Madalena, irmã do poeta, em 27 de novembro.

1897: Faz o curso primário em West Street. No mesmo Instituto, faz a Primeira Comunhão.

1898: Nasce, em 22 de outubro, sua segunda irmã, Madalena Henriqueta.

1899: Ingressa na Durban High School em Abril. Cria o pseudônimo Alexander Search.

1900: Em janeiro, nasce o terceiro filho do casal, Luís Miguel. Em junho, Pessoa passa para a Form III e é premiado em francês.

1901: Em junho é aprovado no exame da Cape School High Examination. Falece Madalena Henriqueta. Começa a escrever as primeiras poesias em inglês. Em agosto, parte com a família para uma visita a Portugal.

1902: Em janeiro nasce, em Lisboa, o seu irmão João Maria. Vai à ilha Terceira em maio. Em junho a família retorna a Durban. Em setembro volta sozinho para Durban.

1903: Submete-se ao exame de admissão à Universidade do Cabo, tirando a melhor nota no ensaio em inglês e ganhando, assim, o Prêmio Rainha Vitória.

1904: Em agosto nasce sua irmã Maria Clara e em dezembro termina seus estudos na África do Sul.

1905: Parte definitivamente para Lisboa, onde passa a viver com a avó Dionísia. Continua a escrever poemas em inglês.

1906: Matricula-se, em outubro, no Curso Superior de Letras. A mãe e o padrasto retornam a Lisboa e Pessoa volta a morar com eles. Falece, em Lisboa, a sua irmã Maria Clara.

1907: A família retorna mais uma vez a Durban. Pessoa passa a morar com a avó. Desiste do Curso Superior de Letras. Em agosto, a avó morre. Durante um curto período, estabelece uma tipografia.

1908: Começa a trabalhar como correspondente estrangeiro em escritórios comerciais.

1910: Escreve poesia e prosa em português, em inglês e em francês.

1912: Pessoa publica na revista Águia o seu primeiro artigo de crítica literária. Idealiza Ricardo Reis.

1913: Intensa produção literária. Escreve O Marinheiro.

1914: Cria os heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Escreve os poemas de O Guardador de Rebanhos e também Livro do Desassossego. Curiosamente, em uma tarde em que o escritor português José Régio – pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira (1901 – 1969) – tinha combinado de se encontrar com Pessoa, este apareceu, como de costume, com algumas horas de atraso, declarando ser Álvaro de Campos, pedindo perdão por Pessoa não ter podido aparecer ao encontro.

1915: Sai em março o primeiro número de Orpheu. Pessoa 'mata' Alberto Caeiro.

1916: Seu amigo Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de maio de 1890 – Paris, 26 de abril de 1916) suicida-se. Sá-Carneiro, poeta, contista e ficcionista português, foi um um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.

 

 

Mário de Sá-Carneiro
Mário de Sá-Carneiro

 

 

1918: Pessoa publica poemas em inglês, resenhados com destaque no Times.

1920: Conhece Ophélia Queiroz. Sua mãe e seus irmãos voltam para Portugal. Em outubro, atravessa uma grande depressão que o leva a pensar em se internar em uma casa de saúde. Rompe com Ophélia.

 

 

Ophélia Queiroz
Ophélia Queiroz

 

 

1921: Funda a editora Olisipo, onde publica poemas em inglês.

1924: Aparece a revista Atena, dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz.

1925: Morre em Lisboa a mãe do poeta, em 17 de março.

1926: Dirige, com seu cunhado, a Revista de Comércio e Contabilidade. Requer patente de uma invenção sua.

1927: Passa a colaborar com a revista Presença.

1929: Volta a se relacionar com Ophélia.

1931: Rompe novamente com Ophélia.

1934: Publica Mensagem.

1935: Em 29 de novembro, é internado com o diagnóstico de cólica hepática. Morre no dia 30. O assento de óbito de Pessoa indica como causa da morte bloqueio intestinal.

 

 

 

Fernando Pessoa - em flagrante delitro

 

 

 

 

Objetivo do Trabalho

 

 

 

 

Este trabalho, de certa maneira e em um certo sentido, é uma espécie de continuação-conclusão de um outro que há tempos escrevi, O Lado Oculto de Fernando Pessoa, publicado, pela primeira vez, na revista Presença Filosófica, volume XII, números 1 a 4, Jan/Dez de 1986, e, posteriormente, revisado, atualizado e ampliado em 2004 para ser divulgado no Website Pax Profundis, que pode ser lido no endereço abaixo:

http://paxprofundis.org/
livros/pessoa/ppppppp.htm

 

Como introdução àquele texto citei Pessoa: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-mestre dos Templários, e combater, sempre em toda a parte, os seus três assassinos — a ignorância, o fanatismo e a tirania. (Hyram, Filosofia Religiosa e Ciências Ocultas. Notas e posfácio de Petrus. 1933, p. 107.)

 

Por isto, penso que a vida de Pessoa tenha sido mais ou menos assim: mais do que viver para criar, criou para viver, e, em paralelo, combater seus próprios demônios e mostrar ao mundo como é possível a cada um combater os seus. Tudo isto em um crescente conhecimento do oculto, que Pessoa jamais negou. Se não afirmou esta competência com todos os esses e erres, pelo menos, não a negou peremptoriamente. Apesar de ter tergiversado muito, acho que, até, deixou isto claro demais em diversas prosas e em diversos poemas (tanto ortonímicos quanto heteronímicos), pois, é sabido e admitido que o ortônimo foi profundamente influenciado, em vários momentos, por doutrinas esotéricas como a Teosofia1 e por sociedades secretas como, por exemplo, a Maçonaria, ainda que estas influências, muitas vezes, tenham sido, para ele, acabrunhantes e conflitantes. Mas nem por isto, tanto quanto o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875 – 1961), Pessoa fugiu do oculto ou o desdenhou. Pelo contrário: foi um pesquisador pertinaz de tudo o que dizia respeito à Alquimia, à Astrologia, ao Rosacrucianismo, ao Espiritismo, à KaBaLa, à Maçonaria, à Magia etc. Entretanto, dentre todas as doutrinas que conheceu, foi a Teosofia – pela particularidade de abranger todas as ciências exatas, ocultas, filosóficas e religiões em geral – que o entusiasmou definitivamente. Chegou, inclusive, a traduzir para a língua portuguesa The Voice of the Silence (A Voz do Silêncio) – um livro Místico-iniciático baseado no Livro dos Preceitos de Ouro, que Helena Petrovna Blavatsky (1831 - 1891) havia memorizado enquanto residiu em uma lamaseria tibetana.

 

Uma das maiores crises existenciais pelas quais passou Fernando Pessoa foi quando tomou conhecimento da existência da Doutrina Teosófica, materializada para a Humanidade por Helena Petrovna Blavatsky, definitivamente, em sua Doutrina Secreta, obra, segundo a própria autora, escrita com a ajuda dos Mahatmas e com mais de 2.000 citações com indicações precisas de páginas e de autores. Não deixa de ser profundamente curioso e significativo que, em 1888, justamente no ano em que nasceu Fernando Pessoa, Madame Blavatsky tenha apresentado ao mundo sua monumental obra – The Secret Doctrine, the Synthesis of Science, Religion, and Philosophy (A Doutrina Secreta, Síntese da Ciência, Religião e Filosofia) – onde foi formulada e oferecida ao mundo a Teosofia.

 

Seja como for – qual é mesmo, afinal, a importância se foi cru, cozido, refogado, assado ou frito? – Pessoa, há muito, sentira coisas semelhantes àquelas que conheceu ao se inteirar da Teosofia, ao ler, não por acaso, um livro inglês sob o título Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruzes. Eis o relato de Pessoa sobre as sensações que a Teosofia lhe causou: A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pelas suas grandezas ocultistas, repugna-me pelo seu humanitarismo e ‘apostolismo’... essenciais; atrai-me por se parecer tanto com um ‘paganismo transcendental’ (é este o nome que eu dou ao modo de pensar a que havia chegado); repugna-me por se parecer tanto com o Cristianismo [talvez, tenha querido se referir ao Catolicismo], que não admito. É o horror e a atração do abismo realizados no além-alma. Um pavor metafísico! Seja assim ou de outra forma, que eu prefiro, o fato é que, progressivamente, seus escritos foram se tornando cada vez mais crípticos e mais herméticos. À citação acima, será que poderia ser aplicada sua confissão: O poeta é um fingidor? Ora bem, quem lê apenas as linhas críptico-herméticas (do que é críptico-hermético) do que Pessoa escreveu não lê absolutamente nada. Pensa ter lido, e, realmente, apenas leu. Ou melhor: leu, sim, mas não entendeu o que está deliberadamente encoberto pelo véu. Só é possível – se possível for – entender Fernando Pessoa lendo as entrelinhas, que o Poeta, em sua humildade/simplicidade, escreveu tão-só como linhas! O pior, o grotesco ou o mais [des]interessante é que muitas pessoas (sem calemburgo) têm a mania de comentar o que não entendem, e, ao comentarem, particularmente fragmentos pessoanos, tomam alhos por bugalhos e fado por rock-'n'-roll, barafundeando coisas inteiramente dessemelhantes. Fazer o quê?

 

Fazer o quê? Bem, penso que para acompanhar e tentar entender os poucos fragmentos que selecionei para compor este último e definitivo texto que escrevi sobre Fernando Pessoa (fragmentos que não serão comentados para evitar qualquer tipo de influência ou de interferência), no que aparentemente for incompreensível, só há um jeito: fechar os olhos e deixar, in Corde, a Vox Dei falar. Ainda que alguns fragmentos sejam razoavelmente fáceis de ser compreendidos, pois o Poeta nem sempre hermetizou seu pensamento, outros são impossíveis de ser compreendidos em qualquer nível de razão, seja dianóica, seja noética. Por isto, repito: não desesperar, relaxar, fechar os olhos e, in Corde, deixar a Vox Dei falar. Se você permitir, transracionalmente Ela falará! Seja como for, penso que valha muito a pena dar uma conferida nos fragmentos abaixo. São inspiradores; e se não fizerem espuma agora, farão no futuro-eterno-presente.

 

Finalmente, peço perdão pelas gralhas involuntárias de digitação e por eventuais equívocos cometidos. Então, se gralhas e equívocos houver (descontadas as poucas atualizações da língua portuguesa que pratiquei), sei que Pessoa não ficará aborrecido. Acho, até, que gostará deste estudo não-hermenêutico de sua obra, mas revisitativo no essencial. Espero que você também não se avesse. E que goste. Mas não se esqueça: desconcordar é um privilégio de uma inteligência livre. E as poucas animações que enfiei no meio dos excertos nada têm a ver com Pessoa; são – se forem – apenas educativo/explicativas.

 

 

 

 

Crípticos de Fernando Pessoa

 

 

 

E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. (Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal)

 

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
(Eros e Psique).

 

A Beleza. No mundo não existe.
Ai de quem com a alma inda mais triste
Nos seres transitórios quer colhê-la!
(Em Busca da Beleza).

 

Só quem da vida bebeu todo o vinho,
Dum trago ou não, mas sendo até o fundo,
Sabe (mas sem remédio) o bom caminho.
(Em Busca da Beleza).

 

No são sossego azul do Sol... (Mar. Manhã).

 

Há um país imenso mais real
Do que a vida que o mundo mostra ter
Mais do que a Natureza natural
À verdade tremendo de viver.
(Visão).

 

E o meu mal é ser (alheio Cristo)
Nestas horas doridas e serenas
Completamente consciente disto.
(Tédio).

 

Sonho que se sente
De si próprio ausente...
(Hora Morta).

 

Às vezes sou o Deus que trago em mim
E então eu sou o Deus e o crente e a prece...
(Deus).

 

Às vezes não sou mais do que um ateu...
Desse deus meu que eu sou quando me exalto... (Deus).

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho...
(Abdicação).

 

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
(Abdicação).

 

Ouço a Esfinge rir por dentro... (Chuva Oblíqua).

 

Cansado até dos deuses que não são...
Ideais, sonhos... Como o Sol é real.
E na objetiva coisa universal
Não há o meu coração...
Eu ergo a mão.
(Sem título, 1920).

 

Não quero ir onde não há luz... (Ligeia).

 

Não haver deus é um deus também. (Sem título, 1926).

 

Sei que nunca terei o que procuro
E que nem sei buscar o que desejo,
Mas busco, insciente, no silêncio escuro
E pasmo do que sei que não almejo.
(Presságio).

 

O meu coração quebrou-se
Como um bocado de vidro
Quis viver e enganou-se...
(Sem título, 1928).

 

Meu ruído de alma cala.
E aperto a mão no peito,
Porque sob o efeito
Da arte que faz trejeito,
O que é de Cristo fala.
(Sem título, 1930).

 

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?
(Sem título, 1930).

 

É por ser mais poeta
Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?
(Sem título, 1931).

 

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Autopsicografia).

 

Gastei tudo que não tinha,
Sou mais velho do que sou,
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
(O Andaime).

 

Tivesse Quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.
(Sem título, 1932).

 

Tenho principalmente não ter nada... (Sem título, 1932).

 

A morte é a curva da estrada... (Sem título, 1932).

 

Ouço e sinto sorrir
O que em mim nada quer.
(Sem título, 1933).

 

Sei, sim, é belo, é luz, é impossível,
Existe, dorme, tem a cor e o fim,
E, ainda que não haja, é tão visível
Que é uma parte natural de mim.
(Sem título, 1934).

 

E cada Sol é um Deus... (O Mistério do Mundo).

 

Deus? Nojo. Céu, inferno? Nojo, nojo. (O Mistério do Mundo).

 

Tornei minha alma exterior a mim. (O Mistério do Mundo).

 

Quanto mais profundamente penso, mais
Profundamente me descompreendo.
O saber é a inconsciência de ignorar...
(O Horror de Conhecer).

 

Só a loucura é que é grande!
E só ela é que é feliz!
(O Horror de Conhecer).

 

 

 

O Louco
(Corresponde à Letra ShIN,
seu número é 21
e seu nome esotérico é Amor)

 

 

Horror supremo! E não poder gritar
A Deus – que Deus não há – pedindo alívio!
A alma em mim se ironiza só pensando
Na de pedir ridícula vaidade...
(O Horror de Conhecer).

 

Sua inconsciência alegre é uma ofensa
Para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Sua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
Me escarro sobre o que na alma humana
Cria festas e danças e cantigas...
(A Falência do Prazer e do Amor).

 

Ah, o horror de morrer!
E encontrar o mistério frente a frente
Sem poder evitá-lo, sem poder...
(Temor da Morte).

 

Há metafísica bastante em não pensar em nada. (O Guardador de Rebanhos).

 

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
(O Guardador de Rebanhos).

 

E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme. (O Guardador de Rebanhos).

 

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora.
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
(Poemas Inconjuntos).

 

Um dia de chuva é tão belo como um dia de Sol.
Ambos existem; cada um é como é.
(Poemas Inconjuntos).

 

Senta-te ao Sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.
(Odes, de Ricardo Reis).

 

Não consentem os deuses mais que a vida. (Odes, de Ricardo Reis).

 

Quer pouco: serás tudo.
Quer nada: serás livre.
(Odes, de Ricardo Reis).

 

Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
(Odes, de Ricardo Reis).

 

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
(Lisbon Revisited).

 

Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
(Adiamento).

 

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
(Insônia).

 

Os outros também são eu. (Reticências).

 

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.
(Trapo).

 

Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
(Pecado Original).

 

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito... (Dactilografia).

 

Deuses, forças, almas de ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.
(Barrow-on-Furness).

 

 

Prece

 

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

 

 

Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
(Natal).

 

Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me encontro quando de mim fujo.
(O Último Sortilégio).

 

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.
(Sem título, 1933).

 

Neófito, não há morte. (Iniciação).

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(Mar Português).

 

A investigação de qualquer assunto, disse Quaresma, depende, essencialmente, da plena segurança dos raciocínios; a plena segurança dos raciocínios depende essencialmente, por sua vez, de três coisas: (1ª) a determinação primária de quais são, no caso de que se trate, os fatos, isto é, aqueles detalhes da realidade que, sendo absolutamente nítidos, sejam de todo incontroversos; (2ª) a determinação secundária de qual o 'fato de conjunto', isto é, o fato formado pela relação entre si desses fatos primários; (3ª) partindo desse ponto, qual a história inteira do caso, isto é, indo de indicação em indicação, eliminando, comparando, joeirando, qual a conclusão que vai dando de si o fato conjunto quando devidamente, e progressivamente, analisado. (Novelas Policiárias da Série 'Quaresma Decifrador').

 

Não choremos, não odiemos, não desejemos... (Na Floresta do Alheamento).

 

Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas. [Milímetros (sensações de coisas mínimas)].

 

O único modo de estarmos de acordo com a vida [Vida] é estarmos em desacordo com nós-próprios. (Absurdo).

 

O maior domínio de si próprio é a indiferença por si-próprio, tendo-se, alma e corpo, por a casa e a quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida. (Estética da Indiferença).

 

Dar bons conselhos é insultar [não respeitar] a faculdade de errar que Deus deu aos outros. (Máximas).

 

A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final. (Máximas).

 

Decerto, a Humanidade tem uma intuição do Absoluto, mas, pela sua própria natureza, não mais do que uma intuição. (Idéia de Deus).

 

Deus não é positivo nem negativo; é contrário a todas as coisas humanas, está para além de todo o conhecimento humano definido. É o meio-termo, o termo incognoscível de todas as entidades. Com Ele tudo é Presente; não há o Passado nem o Futuro; porque o Presente não tem negativo nem positivo, pois é o inexplicável intermediário entre o Passado e o Futuro. Já que Deus nem é nem não é, é óbvio que não pode ser negativo, pois o positivo e o negativo são humanas considerações de vida e não-vida. (Deus não é Positivo nem Negativo).

 

Deus é o númeno2 [em alemão, noumenon] de que o Universo é o fenômeno... O Universo é o fenômeno de Deus; nós (indivíduos) somos os fenômenos do Universo. (Deus é Númeno).

 

Deus é o sentido para onde tendem todas as inteligências que governam este mundo contra a vontade satânica da sua matéria inerte. Como o ponto para onde tendem existe já, porque o tempo é uma ilusão, Deus é a Perfeição Absoluta; como tendem para Suprema Beleza, Deus é a Beleza Suprema. O Universo está já onde estará, e já isso é Deus. (Deus é Sentido).

 

 

 

 

Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa que é o Cristo.

Que símbolo final
Mostra o Sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
(O Encoberto).

 

 

I

 

Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Ate à Noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De Além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

 

II

 

Mas antes era o Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada,
Do Caos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,
Em si, que é Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste Mundo, humano e ungido,
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Não só de aqui, mas já de nós, despertos,
No sangue atual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.

 

III

 

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vêmo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?

....................................................................

Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Rosacruz conhece e cala.
(No Túmulo de Christian Rosencreutz).

 

 

 

 

A Grande Viagem

 

 

 

 

 

 

 

 

_____

Notas:

1. A Teosofia é um corpo doutrinário – que sintetiza Filosofia, Religião e Ciência – que está presente, em maior ou menor grau, em diversos sistemas de crenças ao longo da história, e foi exposto modernamente primeiro por Helena Blavatsky no final do século XIX, e, desde então, por outros autores. Etimologicamente, a palavra deriva do grego theosophia, de theos, Deus, e de sophos (ShOPhIa), Sabedoria, e geralmente é traduzida como Sabedoria Divina ou Sabedoria dos Deuses. Em um conceito mais geral: Sabedoria referente a Deus e às Coisas Divinas.

2. Filosoficamente, númeno advém do alemão noumenon; plural noumena. É uma palavra que foi criada pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), a partir do grego nooúmena usada por Platão ao falar da idéia; propriamente aquilo que é pensado, pensamento. No kantismo, númeno é exatamente a realidade tal como existe em si mesma, de forma independente da perspectiva necessariamente parcial (aquilo que ocorre no tempo) em que se dá todo o conhecimento humano. Númeno pode ser entendido como a coisa-em-si, sem atributo fenomenal; é a pura idéia a que não corresponde qualquer objeto material. Em resumo, fenômeno é o objeto do conhecimento e númeno é a coisa-em-si, independendo do tempo e do espaço para existir.

 

Bibliografia:

MEDITAÇÕES SOBRE OS 22 ARCANOS MAIORES DO TARÔ. (Por autor que quis manter-se no anonimato). Sic. Prefácio de Robert Spaemann. Apresentação de Hans Urs von Balthasar. 4ª edição. São Paulo: Paulus, 1989, 636 p.

PESSOA, Fernando. Obra poética e em prosa. Introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa. Volume I. Poesia. Porto: Lello & Irmão - Editores, 1986, 1212 p.

______. Obra poética e em prosa. Introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa. Volume II. Prosa 1. Porto: Lello & Irmão - Editores, 1986, 1352 p.

______. Obra poética e em prosa. Introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa. Volume III. Prosa 2. Porto: Lello & Irmão - Editores, 1986, 1501 p.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Teosofia

http://omj.no.sapo.pt/Fotos_
adolescencia_adulto_fernando_pessoa.htm

http://www.insite.com.br/
art/pessoa/mensage3.html

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Helena_Petrovna_Blavatsky

http://www.cfh.ufsc.br/
~magno/teosofiaefpessoa.htm

http://pre-vestibular.arteblog.com.br/51085/
FERNANDO-PESSOA-mistico-ao-poetizar/

http://arrozcomtodos.blogs.sapo.pt/
133543.html

http://nay7.wordpress.com/
2006/12/05/um-soneto-de-pessoa/

http://luminescencias.blogspot.com/archives/
2005_05_22_luminescencias_archive.html

http://pt.wikipedia.org/
wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Fernando_Pessoa

http://pt.wikisource.org/
wiki/Se_depois_de_eu_morrer

 

Fundo musical:

Ai Mouraria
Compositores: Amadeu do Vale e Frederico Valério

Fonte:

http://www.artemotore.com/midi/midi25001.htm

 

 

Não desespere,
relaxe,
feche os olhos,
e, in Corde,
deixe a Vox Dei falar.

 

 

 

In Corde loquitur nostro Vox Dei.

Em nosso Coração fala a Voz de Deus.