Quando
os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem.
O primeiro passo que a Filosofia
tem a dar é precisamente o de expelir as coisas da consciência
e restabelecer a verdadeira relação dela com o mundo.
O
conflito é o sentido original do ser-para-os-outros.
O
importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que
nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
Monsieur...
Eu não acredito em Deus; sua existência tem sido refutada pela
Ciência. Mas, no campo de concentração, eu aprendi a
acreditar no homem.
Eu existo, isso é tudo. E
acho isto enjoativo.
Alguma
coisa me aconteceu, já não posso mais duvidar.... Não
foram necessários mais de três segundos para que todas as minhas
esperanças fossem varridas.
A
existência precede e comanda a essência.
Eu estou condenado a ser livre.
Todas as ações humanas
são equivalentes, e, todas, no princípio,
são condenadas a falhar.
Somos
separados das coisas por nada, apenas por nossa liberdade. É ela
que faz que haja coisas com toda a sua indiferença, em toda
a sua imprevisibilidade e em
toda a sua
adversidade, e que nós sejamos inelutavelmente separados delas, pois
é sobre um fundo de nadificação que elas aparecem e
que se revelam como ligadas umas às outras.
A
natureza do passado é dada ao passado pela escolha original de um
futuro.
A
única força do passado advém do futuro.
A
liberdade – que é minha liberdade –
permanece
total e infinita.
Em
certo sentido, eu escolho ter nascido.1
Eu
sou responsável por tudo, salvo por minha própria responsabilidade,
porque eu não sou o fundamento de meu ser.
A liberdade é o único
fundamento dos valores, e nada, absolutamente nada, me justifica ao adotar
tal ou tal valor, tal ou tal escala de valores. Enquanto ser, pelo qual
os valores existem, eu sou injustificável. E minha liberdade se angustia
de ser o fundamento sem fundamento dos valores.
O
olhar é, antes de tudo, um intermediário que remete de mim
a mim mesmo.
Só sou, para mim, como pura
devolução ao outro.
A vergonha é vergonha de si.
Ela é reconhecimento de que eu realmente sou esse objeto que o outro
olha e julga. Só posso ter vergonha de minha liberdade enquanto ela
me escapa para se tornar um objeto dado.
O
em-si é pleno de si-mesmo e não se poderia imaginar plenitude
mais total, adequação mais perfeita do conteúdo ao
continente: não existe o menor vazio no ser, a menor fissura por
onde se pudesse introduzir o nada.
A consciência nada tem de substancial.
É uma pura 'aparência', no sentido de que só existe
na medida em que se aparece.2
O
ser da consciência não coincide consigo mesmo em uma adequação
plena... A característica da consciência é que ela é
uma decompressão do ser. É impossível, com efeito,
defini-la como coincidência consigo própria. Desta mesa, posso
dizer que ela é pura e simplesmente é esta mesa. Mas de minha
crença, por exemplo, não posso me limitar a dizer que é
uma crença: minha crença é consciência (de) crença.
O para-si é responsável,
em seu ser, por sua relação com o em-si ou, se se preferir,
ela se produz originariamente sobre o fundamento de uma relação
com o em-si... A consciência é um ser para o qual se trata,
em seu ser, do problema de seu ser, enquanto esse ser implica um outro ser
que não ele.
Tu és metade vítima,
metade cúmplice; como todos os outros.
Quanto
aos homens, não é o que eles são que me interessa,
mas o que eles podem se tornar.
A
dúvida é o preço da pureza.
O
inferno são os outros.3
Nossa
liberdade, hoje, não é nada mais do que a livre escolha de
lutar para nos tornarmos livres. E o aspecto paradoxal desta fórmula
exprime simplesmente o paradoxo de nossa condição histórica.
Não se trata de enjaular meus contemporâneos: eles já
estão na jaula.4
Há
uma história humana, com uma verdade e uma inteligibilidade.
O
Marxismo parou precisamente porque esta Filosofia quer mudar o mundo, porque
ela visa se tornar o mundo da Filosofia, porque ela é e quer ser
prática. Por isto, operou-se no Marxismo uma verdadeira cisão
que lançou a teoria para um lado e a práxis para o outro.
Nós censuramos o Marxismo
contemporâneo por relegar ao azar todas as determinações
concretas da vida humana... O resultado é que ele perdeu inteiramente
o sentido do que seja um homem: ele não dispõe, para preencher
as suas lacunas, senão da absurda psicologia de Pavlov.5
O
Marxismo degenerará em uma antropologia inumana se não reintegrar,
em si o próprio, homem como seu fundamento.6
No
momento em que a pesquisa marxista assumir a dimensão humana (isto
é, o projeto existencial) como o fundamento do saber antropológico,
o Existencialismo não terá mais razão de ser: absorvido,
excedido e conservado pelo movimento totalizante da Filosofia, ele cessará
de ser uma pesquisa particular para se tornar o fundamento de toda pesquisa.
O Existencialismo ateu, que eu represento,
declara que se Deus não existe, há, ao menos, um ser no qual
a existência precede a essência, um ser que existe antes de
poder ser definido por algum conceito, e que esse ser é o homem ou,
como diz Heidegger7,
a realidade humana. O que significa a existência preceder a essência?
Isto significa que, primeiramente, existe o homem, ele se deixa encontrar,
surge no mundo, e que ele só se define depois. O homem, tal como
o concebe o existencialista, não é definível porque,
inicialmente, ele nada é. Ele só será depois, e ele
será tal como ele se fizer. Assim, não existe natureza humana,
já que não há um Deus para concebê-la. O homem
é apenas não somente tal como ele se concebe, mas tal como
ele se quer, e como ele se concebe após existir, como ele se quer
depois desta vontade de existir, ou seja: o homem é apenas aquilo
que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do Existencialismo.
Será
que, no fundo, o que amedronta no Existencialismo ateu não é
fato de que ele deixa uma possibilidade de escolha para o homem?
O
existencialista declara freqüentemente que o homem é angústia.
Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja
e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolheu
ser, mas, também, um legislador que escolhe simultaneamente a si-mesmo
e a Humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua
total e profunda responsabilidade.
Se uma voz se dirige a mim, sou sempre
eu-mesmo que terei de decidir se essa voz é a voz do anjo; se considero
que determinada ação é boa, sou eu-mesmo que escolho
afirmar que ela é boa e não má.
Não
existe determinismo. O homem é livre. O homem é liberdade.
O desespero é um conceito
extremamente simples. Ele significa que só podemos contar com o que
depende da nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam
a nossa ação possível.
Não
é preciso ter esperança para empreender.
Farei o melhor que puder.
Morremos
no exato momento em que deixamos de ser úteis.
No
amor somos injustos porque supomos que o outro é perfeito.
No
amor, um mais um é igual a um.
Para
o existencialista, não existe amor senão aquele que se constrói.
Não há possibilidade de amor senão a possibilidade
que se manifesta em um amor.
O que o existencialista afirma é
que o covarde se faz covarde e que o herói se faz herói. Existe
sempre, para o covarde, uma possibilidade de não mais ser covarde,
e, para o herói, de deixar de o ser. O que conta é o engajamento
total, e não é com um caso particular, com uma ação
particular, que alguém se engaja totalmente.
A
escolha é possível, em certo sentido; porém, o que
não é possível é não escolher. Eu posso
sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim
mesmo estarei escolhendo.
A
única coisa que importa é saber se a invenção
que se faz é feita em nome da liberdade.
Todo
homem que inventa um determinismo é um homem de má-fé.
Nossa responsabilidade é muito
maior do que poderíamos supor, porque ela engaja a Humanidade inteira.
Sou
responsável por mim mesmo e por todos, e crio uma certa imagem do
homem que eu escolho: escolhendo a mim, escolho o homem.
Cada
vez que o homem escolhe seu compromisso e seu projeto com toda sinceridade
e com toda lucidez, torna-se-lhe impossível preferir um outro.
Enquanto
o Capitalismo existir, o Marxismo será a melhor teoria.
A
violência, seja qual for a maneira como se manifesta, é sempre
uma derrota.
Quanto
mais areia escorreu no relógio de nossa vida, mais claramente deveríamos
ver através do vidro.
Um
amor, uma carreira, uma revolução: outras tantas coisas que
se começam sem saber como acabarão.
Quando
a liberdade irrompe em uma alma humana, os deuses deixam de poder seja lá
o que for contra esse homem.
Detesto
as vítimas quando elas respeitam os seus carrascos.
Se
você sente solidão quando está a sós, está
em má companhia.
O
homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se
criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado
no mundo, é responsável por tudo o que faz.
Ainda que fôssemos surdos e
mudos como uma pedra, a nossa própria passividade seria uma forma
de ação.
O
homem não é senão o seu projeto, e só existe
na medida em que se realiza.
O
silêncio é reacionário.
Eu
era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas
mágoas.
Nunca seremos homens enquanto não
encontrarmos alguma coisa pela qual estejamos dispostos a morrer.
O homem não é a soma
do que tem; mas a totalidade do que ainda não tem, do que poderia
ter.
Ser
homem é tender a ser Deus; ou, se preferirmos, o homem é fundamentalmente
o desejo de ser Deus.
A
verdade é subjetividade.8
A
imagem não é uma coisa; é um ato de consciência.
O ato revolucionário é
um ato livre por excelência.
O escritor sempre pode ajudar a evitar
que o pior aconteça.
É
melhor vencermos a nós mesmos do que ao mundo.
Um
homem não pode ser mais homem do que os outros homens porque a liberdade
é igualmente ilimitada em todos.
A espécie de felicidade de
que preciso não é fazer o que quero, mas não fazer
o que não quero.
A cultura não salva nada nem
ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem:
nela, ele se projeta e se reconhece; esse espelho crítico é
o único a oferecer-lhe a sua imagem.
Para
mim, o que vicia as relações entre as pessoas é que
cada um conserva, na relação com o outro, alguma coisa de
oculto, de secreto. Penso que a transparência deve sempre substituir
o segredo. E penso muito no dia em que duas pessoas não terão
mais segredos entre si porque não mais os terão para ninguém,
porque a vida subjetiva, assim como a objetiva, estará totalmente
aberta.
Algumas
Reflexões de Simone
O único bem coletivo é
aquele que assegura o bem individual dos cidadãos.
As
mulheres, mais do que os homens, têm necessidade de ter um céu
sobre as suas cabeças.
Ninguém nasce um gênio;
a pessoa se torna um.
O
homem é livre; mas ele encontra a lei na sua própria liberdade.
Todas
as vitórias ocultam uma abdicação.
O presente não é um
passado em potencial; ele é o momento da escolha e da ação.
O mais escandaloso dos escândalos
é que nos habituamos a eles.
É pelo trabalho que a mulher
vem diminuindo a distância que a separava do homem. Somente o trabalho
poderá lhe garantir uma independência concreta.
Não
se nasce mulher; torna-se...
A
morte parece menos terrível quando se está cansado.
Querer-se
livre é também querer o outro livre.
Eu
passava muito bem sem Deus. Se utilizava o seu Nome, era para designar um
vazio que havia em meus olhos: o clarão da plenitude.
Por
vezes, a palavra representa um modo mais acertado de se calar do que o próprio
silêncio.
O
escritor original, enquanto não está morto, é sempre
escandaloso.
Não se pode escrever nada
com indiferença.
O
homem sério é muito perigoso; pode se transformar
em um tirano.
Era-me mais fácil imaginar
um mundo sem um criador do que um criador carregado com todas as contradições
do mundo.
Quando se respeita alguém,
não se força a sua alma sem o seu consentimento.
O compromisso multiplica por dois
as obrigações familiares e todos os compromissos sociais.
É o desejo que cria o desejável
e o projeto que lhe põe fim.
É horrível assistir
à agonia de uma esperança.
Renunciar
ao amor parecia-me tão insensato como desinteressarmo-nos da saúde
porque acreditamos na eternidade.
A minha liberdade não deve
procurar captar o ser, mas desvendá-lo.
As
oportunidades do indivíduo não as definiremos em termos de
felicidade, mas em termos de liberdade.
Seja
qual for o país – capitalista ou socialista –
o
homem foi, em todo o lado, arrasado pela tecnologia, alienado do seu próprio
trabalho, feito prisioneiro e forçado a um estado de estupidez.
É
na arte que o homem se ultrapassa definitivamente.
Não
são as pessoas que são responsáveis pelo falhanço
do casamento; é a própria instituição que,
desde a origem, é pervertida.
Que
nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria
substância.
Toda
a busca do ser está fadada ao fracasso; este mesmo fracasso, porém,
pode ser assumido. Renunciando ao sonho vão de nos tornarmos deus,
podemos satisfazer-nos simplesmente em existir.9
Não
se deve acreditar que todas as dificuldades se atenuem nas mulheres de temperamento
ardente. Ao contrário, podem exasperar-se. A perturbação
feminina pode atingir uma intensidade que o homem não conhece.
Hoje
cedo desejei ardentemente ser a garota que comunga na missa da manhã
e tem uma certeza serena... No entanto, não quero acreditar: um ato
de fé é o ato mais desesperado que existe, e quero que o meu
desespero, pelo menos, conserve sua lucidez. Não quero mentir para
mim mesma.
Não
há uma pegada do meu caminho que não passe pelo caminho do
outro.
À minha volta, reprovava-se
a mentira, mas se fugia cuidadosamente da verdade.
Antes de tudo, exige-se deles [dos
idosos] a serenidade; afirma-se que possuem essa serenidade,
o que autoriza o desinteresse por sua infelicidade.
O indivíduo idoso sente-se
velho através do outro, sem ter experimentado sérias mutações;
interiormente não adere à etiqueta que se cola a ele: não
sabe mais quem é.
A
velhice é a paródia da vida.
A
velhice não é um fato estático; é o resultado
e o prolongamento de um processo, uma idéia ligada à noção
de mudança.
O
erotismo implica uma reivindicação do instante contra o tempo,
do indivíduo contra a coletividade.
Em todas as lágrimas há
uma esperança.
Nós, para os outros, apenas
criamos pontos de partida.
Diante
de um obstáculo que é impossível de ser superado, obstinação
é estupidez.
Sem fracasso, não há
moral.10
Parecia-me
que a Terra não seria habitável se não houvesse alguém
que eu pudesse admirar.
A
mulher é dividida contra si mesma, muito mais profundamente do que
o homem. A mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para
si, mas tal qual o homem a define. O que o homem ama e detesta, antes de
tudo, na mulher, amante ou mãe, é a imagem remota de seu destino
animal, é a vida necessária à sua existência,
mas que o condena à finitude e à morte. Nenhum destino biológico,
psíquico ou econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade: é o conjunto da civilização
que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado
e que qualificam de feminino.
Trechos
dos Relatos
de Simone de Beauvoir
Sobre sua viagem ao Brasil
Desembarque
Eles não
estão conseguindo descer o trem de pouso, disse-me
Sartre. Pensei: Conseguirão?.
Nada de mal podia acontecer àquela hora, sob aquele céu,
no limiar de um continente novo.
Sabores
Bebi
a minha primeira batida: uma mistura de cachaça e suco de
limão... Conheci também o sabor do maracujá
– a fruta da paixão – cujo suco de uma rica tonalidade
amarela enchia as garrafas. Amado encheu meu copo de suco de caju:
pensava, como eu, que é pela boca que, em grande parte, se
conhece um país...
As
Brasileiras
Falei
sobre mulheres em uma grande sala diante de damas paramentadas,
que pensam exatamente o contrário do que eu dizia. Uma jovem
advogada, porém, agradeceu-me em nome das mulheres que trabalham.
Machismo
A
condição das mulheres brasileiras é difícil
de definir: varia segundo as regiões. As grandes cidades
industriais do Sul são mais liberais… No Nordeste uma
moça, mesmo que viva numa favela, não tem nenhuma
possibilidade de se casar, se não é virgem.
Injustiça
No
Brasil, quando um homem morre, só a primeira esposa é
legatária: a companheira que compartilhou de sua vida, sem
contrato oficial, nada herda.
Fome
No
Recife, há um mendigo sob cada palmeira, mas naquele ano
chovera e os camponeses dos arredores tinham raízes para
roer. Nos períodos de seca, eles se abatem sobre a cidade.
São 20 milhões de homens que agonizam de fome crônica,
em árido polígono de extensão da França.
Filosofia
Baiana
Amado
mostrou-nos as ruas comerciais da Cidade Alta. Na porta da Universidade,
lia-se: Filosofia em greve.
Mercado
Moreno
Os
eflúvios do óleo de coco misturavam-se com o cheiro
de salmoura; nos barcos ou em terra firme, ia e vinha uma multidão
de homens e mulheres, cujas peles, do chocolate ao branco, passavam
por todos os matizes do moreno.
Mãe-de-santo
Aqui
a religião serve aos pobres e não aos ricos... Advertida
de nossa visita, a mãe-de-santo apresentou-se em sua mais
bela vestimenta: saias, anáguas, xales, colares e jóias.
Era viva, tagarela e maliciosa. Consultou os búzios para
saber de que espírito dependíamos: Sartre era Oxalá
e eu, Oxum.
Filhas-de-santo
O
automóvel nos levou, à noite, através dessas
montanhas russas que são os subúrbios da Bahia, até
as casas longínquas, onde rufavam tambores... Uma jovem negra
terminava o ciclo de sua iniciação. Cabeça
raspada, vestida de branco, permaneceu deitada no chão durante
toda a primeira parte da noite. Gemia, ligeiramente, o olhar fixado
no invisível, presente e ao mesmo tempo longe, como meu pai
em sua agonia. Por fim, entrou em transe, retirou-se e voltou transfigurada
por uma alegria misteriosa.
Redenção
Fiz
a pergunta clássica: — Como
se explicam esses transes? Esses fatos nada têm
de patológico, são de ordem cultural; encontram-se,
análogos, em toda parte em que os indivíduos estão
divididos entre duas civilizações. Constrangidos a
se curvar ao mundo ocidental, os negros da Bahia, outrora escravos,
hoje explorados, sofrem uma opressão que vai até a
desapossá-los de si mesmos. Como defesa, não lhes
basta preservar seus costumes, suas tradições, suas
crenças. Então, cultivam as técnicas que os
ajudam a se arrancar, pelo êxtase, da personalidade falsa
em que os aprisionaram. Exatamente no momento em que parecem se
perder é que se reencontram: possuídos sim, mas por
sua própria verdade.
Inferno
em Itabuna
Gastamos
três horas para chegar ao fim da estrada, cheia de barrancos…
Entramos em um recinto pouco iluminado, onde mulheres extenuadas
amassavam, com seus pés nus, folhas de fumo; ao odor ocre
juntava o cheiro das latrinas, onde amontoados de imundícies
se decompunham ao Sol. Tive a impressão de um inferno, com
mulheres condenadas a patinar sobre os próprios excrementos.
Rio
de Janeiro
Toda
a cidade se convulsiona em morros e pães de açúcar,
atravessados, subterraneamente por avenidas. Esses montes são
cobertos de verde; a floresta invade a cidade que o oceano também
sitia: nenhuma outra grande cidade pertence tão inteiramente
à Natureza.
Mulatas
Um
domingo, subindo uma nova avenida, cortada por um canal, notamos
homens de camisa cor-de-rosa, amarelas, verdes (que é a cor
favorita dos brasileiros) conversando e rindo com mulheres, debruçadas
aos cachos nas janelas de grandes casas baixas. Pelas portas entreabertas,
vimos sentadas, em escadas, belas mulatas em roupa de banho. Nada
de clandestino, às claras.
Morro
da Babilônia, Leme
Miséria, sujeira, doença, a mesma coisa que em todas
as outras; porém. com uma particularidade: lá morava
uma religiosa, irmã Renata, filha de um cônsul francês.
Surpreendeu-nos por sua inteligência, sua cultura e seu bom
senso materialista. Falaremos
de Deus a essa gente, quando tiverem água... Primeiro o esgoto;
a moral depois. São acusados por uma porção
de crimes, mas acho que, nas condições em que vivem,
até os cometem pouco.
Drogas
Na
mesa de irmã Renata, havia um grande livro sobre a maconha:
homens e mulheres intoxicavam-se na favela. Aos sábados à
noite, celebravam macumbas muito diferentes da Bahia... O transe
era uma aventura individual e não coletiva, os iniciados
queimavam-se e feriam-se... No domingo de manhã, Renata os
medicava.
Zélia
Gattai
Tinha
personalidade e calor, observação aguda e conversa
viva; achei sua presença tônica e era uma das raras
mulheres com quem eu ria.
Oscar
Niemeyer
Niemeyer
morava nas alturas, em uma mansão, obra sua, que mais parecia
uma escultura abstrata do que uma casa: um telhado cobria o terraço
e o estúdio abria-se inteiramente, sob o céu. Ofereceu-nos
gim-tônica e conversamos como se nos conhecêssemos há
muito tempo. Construir, em todos os seus detalhes, uma cidade é,
para um arquiteto, uma extraordinária oportunidade; ele estava
satisfeito com JK por lhe ter oferecido essa oportunidade e tê-la
sustentado contra todos e contra tudo.
Bossa
Nova
Encontramos
(na casa de Cacá Diegues) um bando de moças e rapazes
da bossa nova… Sartre disse-me, ao sair, que diante das moças
sentia constrangimento. Olhava, com encanto, o rosto agradável
e as formas generosas e verificara que estava olhando uma menina
de 13 anos!
Neuroses
Masculinas
Passamos
a noite na fazenda do diretor do Estado de São Paulo. É
um jornal da direita, mas bem diferente dos do nosso país…
Durante o jantar, M. (Júlio Mesquita) atacou as mulheres
que fumam: o fumo exaspera, segundo ele, as neuroses do nosso sexo.
Sua mulher, que parecia ter os nervos bem no lugar, conduziu-nos
aos grandes quartos antigos preparados para nós.
Ciúmes?
Sartre
tornou-se muito popular entre os jovens... Em todas as esquinas
nos abordavam. — Que
pensa a seu respeito, Monsieur Sartre? — perguntou-lhe
uma jovem no fim de uma conferência. Não
sei — respondeu ele, rindo. — Nunca
me encontrei. — Que
pena para o senhor — disse ela.
A
Caminho da Capital
Niemeyer
prometera enviar-nos de Brasília uma perua e um motorista
– ninguém apareceu, a viagem começava mal...
Enfim, o carro surgiu, conduzido por um homem de bigodes…
No caminho, compreendemos a razão de seus atrasos. A mala
do carro estava cheia de relógios e jóias. Acumulava
as funções de motorista e de polícia, o que
facultava frutuosos contatos com um tipo de trabalho muito importante
no Brasil: os contrabando. Confiscava-lhes ou comprava-lhes a preço
baixo suas mercadorias, que os habitantes de Brasília, isolados
do mundo, adquiriam a preços caríssimos...
Brasília
À noite, enfim, chegamos a Brasília. Uma maquete em
tamanho natural. Essa falta de humanidade salta logo aos olhos…
Só se pode circular de automóvel… A rua, esse
lugar de encontro entre moradores e turistas, lojas e residências,
sempre imprevista – a rua, tão cativante em Chicago
como no Rio, por vezes deserta e sonhadora, mas cujo silêncio
é vivo. A rua, em Brasília, não existe nem
existirá.
Palácio
da Alvorada
Muito
longe, no mínimo a 10 km, ergue-se o Palácio da Alvorada,
onde reside o presidente... Em um lago, duas ninfas de bronze ocupam-se
em se pentear: dizem que elas representam as duas filhas de JK arrancando
os cabelos porque foram relegadas por Brasília.
JK
Tivemos
com ele, em seu gabinete, uma breve conversa, bastante formal. Ele
encara Brasília como obra sua, pessoal. Na Praça dos
Três Poderes, há um museu consagrado à história
da nova Cidade. Dir-se-ia uma escultura abstrata; simples, inesperado
e muito belo; infelizmente, de uma das paredes, surge, em tamanho
maior que o natural e verde, a cabeça de Juscelino.
Cidade
Livre
A
impressão é de uma cidade do faroeste... A calçada
é uma confusão; pisam-nos os pés, a poeira
avermelha nossos sapatos, entra em nossos ouvidos, irrita nossas
narinas, arranha nossos olhos, o Sol nos castiga. No entanto, nos
sentimos felizes, porque nos reencontramos na terra dos homens.
Risos
Freqüentemente,
acontecem incêndios; a madeira, naquela secura, inflama-se
com rapidez; pouco antes de nossa chegada um quarteirão pegara
fogo; não houve vítimas, mas viam-se, por toda parte,
escombros, destroços, móveis enegrecidos, sucata,
colchões rasgados. Esquecíamos, porém, essa
tristeza, vendo pelas ruas da Cidade Livre os candangos abraçando-se
e rindo. Eles não riam em Brasília.
Mito
ou Monstro
Jorge
Amado reconhecia que Brasília era um mito... Guardo a impressão
de ter visto nascer um monstro, cujo coração e pulmão
funcionam artificialmente, graças a processos de um custo
mirabolante.
Sozinhos
na Amazônia
Sartre
não tinha vontade de ir à Amazônia, onde ninguém
nos convidara, aliás. Sobrevoei o Amazonas ao mesmo tempo
arrebatada e despeitada, pois sabia que não voltaria a ver
nenhuma daquelas coisas.
Pressa
de Voltar
Eu
já não mais podia sustentar-me em pé; a terra
parecia ter febre, Deitei-me. — Vamos
partir mesmo assim? — perguntou-me Sartre. Sim!
Ah, sim! Eu tinha pressa de chegar a Recife e a Paris.
Miséria
Durante
dois meses, amei o Brasil. Amo-o ainda. Naquele momento, porém,
quase cheguei a ponto de gritar contra a seca, contra a fome, contra
toda aquela angústia, contra toda aquela miséria.
Ardi em febre. Pela manhã, cometi a imprudência de
chamar um médico. Diagnosticou tifo... Mandou me remover
para o hospital de doenças tropicais.
À
Moda Antiga
A
eternidade durou sete dias. Disse ao médico que queria partir..
. As irmãs T. (Cristina e Lúcia Tavares) ofereceram-me
sua casa em Recife. Passei três dias em um quarto mobiliado
à antiga. O calor me sitiava. Uma noite, o médico
viria me visitar. Disse a Sartre e às irmãs T. que
fossem jantar. Elas se recusaram: não se deve deixar um homem
sozinho com uma mulher, mesmo da minha idade, em uma casa.
Adeus
Na
noite de nossa partida, um vendaval varria o aeroporto. Durante
horas, embotados, sonolentos, esperamos que acalmasse. E, enfim,
embarcamos.
|
Palavras
Finais
Encerrarei
este estudo com estas reflexões:
Eu
sou uma espécie de imperfeição
que
derivou da Suma Perfeição.
Eu
sou um projeto de vida
que
procedeu da Santa Vida.
Eu
sou uma espécie de não-sei-não-sou
que,
um dia, dirá: — Eu-sei-eu-sou!
Então,
neste dia, eu serei Luz;
Luz
com e na Santa LLuz!

______
Notas:
1. Mística
e praticamente, há duas formas de nascimento: os que nascem conscientemente
(uma minoria) e os que nascem meio que forçados, inconscientemente
(a maioria).
2. Recentemente,
escrevi um texto – 63
– em que afirmo: A Lei é sempre a Lei – a mesma Lei –
quer para a esquerda, quer para a direita; quer para cima, quer para baixo;
quer do lado de dentro, quer do lado de fora, quer para a GLB, quer para
a GLN.
3. O
inferno não são os outros; o inferno somos nós. Basicamente,
com a nossa ignorância e com o nosso egoísmo, nós o
produzimos, nós o alimentamos, nós o avultamos. Imputar aos
outros o que é nossa responsabilidade é, no mínimo,
uma covardia.
4. Sim.
As pessoas vivem enjauladas porque a liberdade implica em muitas coisas,
mas, principalmente em responsabilidade; e são poucos os que querem
ser responsáveis ou que têm a necessária força-coragem
de e para ser responsáveis. Somos responsáveis por tudo! Como
disse o próprio Sartre, o
desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser.
Desamparo e angústia caminham juntos.
5. Ivan
Petrovich Pavlov (14 de setembro de 1849 – 27 de fevereiro de 1936)
foi um fisiólogo russo premiado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina
em 1904 por suas descobertas sobre os processos digestivos de animais. Pavlov
veio, no entanto, a entrar para a história por sua pesquisa em um
campo que se apresentou a ele quase que por acaso: o papel do condicionamento
na Psicologia do Comportamento (reflexo condicionado).
6. Este
parece ser exatamente o caso da República Democrática Popular
da Coréia, que tem como lema: Cada um tem a certeza de ganhar
se acreditar e depender do povo. Com uma população aproximada
de 22.665.345 pessoas, a ditadura proletária lá estabelecida
por Kim Il-sung, desde o final da década de 1940, a República
Democrática Popular da Coréia é o último país
stalinista do Planeta. Mas, de seu lema e de sua herança budista
e confucionista praticamente nada se observa, pois o Estado, em seu totalitarismo
démodé,
promove repressões políticas aos opositores, prendendo-os,
torturando-os, executando-os ou enviando-os aos campos de trabalho forçado.
Mísseis? Oh!, sim! O povo? Que coma arroz, se houver arroz para comer!
O acordo Coréia do Norte–EUA, assinado em 1999, pelo qual os
norte-coreanos abriam mão do seu programa nuclear em troca de combustível,
mas inadimplido pela administração de George W. Bush, não
justifica o crescimento das hostilidades da potência norte-coreana
e a aceleração do seu programa nuclear. Os problemas e as
dissensões entre as nações só poderão
ser solucionados por duas vias: humor aquoso-viscoso segregado pelas glândulas
salivares e negociação.
7. Martin
Heidegger (Meßkirch, 26 de setembro de 1889 – Friburgo, 26 de
maio de 1976) foi um filósofo alemão. É, seguramente,
um dos pensadores fundamentais século XX – ao lado de Bertrand
Russell, Wittgenstein, Adorno e Foucault – quer pela recolocação
do problema do ser e pela refundação da Ontologia, quer pela
importância que atribuiu ao conhecimento da tradição
filosófica e cultural. Influenciou muitos filósofos, dentre
os quais Jean-Paul Sartre.
8. Não
pretendo corrigir Sartre, mas, se por um lado
a verdade é subjetividade, por outro, é relatividade.
9. Não
pretendo corrigir nem polemizar com Simone; mas, se não formos entropizados
por nossas extravagâncias, estamos, sim, destinados a nos tornarmos
Deus – o Deus de nossos Corações.
10.
Mais uma vez, cito Raymond Bernard (19 de maio de 1923 – 10 de janeiro
de 2006): Na Via
Iniciática prestigiosa que seguimos, as tentações são
numerosas, as quedas ocasionais e a dúvida periódica.
Bibliografia:
REALE,
Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia (do Romantismo
até nossos dias). Volume III. São Paulo: Paulinas, 1991.
MORA,
José Ferrater. Diccionário de Filosofía. Madrid:
Alianza Editorial, 1990.
LOGOS
- ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE FILOSOFIA. Lisboa/São Paulo:
Editorial Verbo, 1992.
Páginas
da Internet consultadas:
http://www.himalayanacademy.com/
resources/books/dws/dws_r5_truth-atheism.html
http://neliaf.multiply.com/
journal/item/1050/1050
http://www.truca.pt/fofo_material_janeiro
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http://pt.wikipedia.org/
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http://www.simonebeauvoir.kit.net/
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http://www.revista.agulha.nom.br/
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http://www.arthursclipart.org/
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http://smacaitis.googlepages.com/
http://pt.wikipedia.org/
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wiki/Coreia_do_Norte
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http://pt.wikiquote.org/
wiki/Jean-Paul_Sartre
Fundo
musical:
La Mer
(Charles Trenet)
Fonte:
http://www.puxaki.com.br/procurar.php?
tipobusca=contenha&palavras=lamer