O
primeiro era como um leão e tinha asas de águia...
(Profecia de
Daniel, VII, 4).
Platão e Aristóteles
são dois marcos fundamentais na história da filosofia.
Apesar de terem posições diferentes sobre a origem
das idéias, definiram o campo de nossa experiência
cognitiva ao estabelecer que todo conhecimento tem uma parte sensível
e outra intelectiva.
Para
que algo possa ser conhecido por nós é preciso que seja
percebido pelos sentidos, mas isso ainda não é suficiente
para dizermos que conhecemos o que a coisa é. É preciso
que reconheçamos tal objeto como um objeto de certo tipo e
não de outro (para que eu identifique o objeto como cadeira
e não como banco, por exemplo).
Para
isso, eu preciso de um conceito. Um conceito é uma representação
geral e abstrata de algo. Ele é um meio entre o sujeito que
conhece e o objeto conhecido. Por meio dele eu me refiro às
coisas no mundo e posso comunicar meus conhecimentos para outras pessoas.
O
conceito pode ser considerado subjetivamente como ato de conceituar
ou classificar os objetos, e objetivamente como conteúdo do
ato, ou seja, o que o conceito significa. Por seu caráter geral
e abstrato, os conceitos são considerados universais, ou seja,
um termo que é comum a muitos singulares, sem designar a nenhum
deles em particular, da mesma forma que podemos dizer que os indivíduos
singulares Maria, João, José pertencem à Humanidade
(universal).
A Querela dos Universais
Durante a Idade Média,
a natureza dos universais1
deu lugar a intensos debates entre as mentes mais brilhantes desse
período. Este debate que ficou conhecido como a querela dos
universais.
A
querela tem início com uma série de questões
colocadas por Porfírio (232 - 304) no prefácio de sua
Introdução às Categorias de Aristóteles
(Isagoge). Recusando-se a tomar partido em favor de Aristóteles
ou de Platão, Porfírio limita-se a anunciar qual é
a natureza do problema.
Vejamos:
quando me refiro às idéias gerais (como o gênero
animal e a espécie homem), identifico determinadas características
comuns que me permitem dizer que Maria, João e José
pertencem à espécie humana, e que humanos, aves e peixes
são animais.2
Muito
bem, a questão é se tais gêneros e espécies
são realidades subsistentes em si ou simples concepções
do nosso espírito. Ou seja, quando formo o conceito de 'gato',
ele é apenas uma abstração ou existe algo como
uma 'gatuidade' presente em cada um dos indivíduos e que me
permite reconhecê-los como tais? Supondo-se que o universal
tenha algum suporte na realidade, tal suporte é corpóreo
ou incorpóreo? Mais ainda: supondo que sejam incorpóreos,
eles existem à parte das coisas sensíveis ou somente
unidos a elas?
Boécio
(470 - 525), que traduziu a 'Isagoge' do grego para o latim, logo
percebeu o magnífico programa que as questões de Porfírio
anunciavam. Além disso, viu nelas uma oportunidade de apresentar
uma solução capaz de conciliar Platão e Aristóteles
em uma única teoria.
Inicialmente,
o filósofo latino concorda com Aristóteles sobre a impossibilidade
de idéias gerais serem substâncias, já que os
gêneros e as espécies são comuns por definição,
e o que é comum a vários indivíduos não
pode ser um indivíduo. Por outro lado, imaginemos que as idéias
gerais são simples representações de nosso espírito,
isto é, que nenhum objeto corresponda, na realidade, às
idéias que temos deles. Mas um pensamento sem objeto não
é sequer um pensamento. Logo, é preciso que os universais
sejam pensamentos de alguma coisa.
A
solução proposta por Boécio é
que os nossos sentidos nos comunicam as coisas no estado de confusão.
Nosso espírito, porém, tem a capacidade de distinguir
nos corpos as propriedades que se encontram misturadas e separá-las.
O espírito extrai dos seres corpóreos o que eles têm
de incorpóreo, como os gêneros e as espécies.
Nós retiramos dos corpos a forma nua e pura, como as noções
de animal e de homem, abstraídas de indivíduos concretos.
Para
o filósofo, não há problema em abstrair determinadas
propriedades de seres concretos; apenas é preciso lembrar que
tais formas só existem em seres reais, como pensar a linha
a partir da superfície. O problema está em pensar como
conjuntos coisas que estão separadas na realidade, como o corpo
de um leão com asas de águia. Os universais, portanto,
são incorpóreos, mas subsistem apenas ligados aos corpos,
embora possamos pensá-los separadamente.
A
solução apresentada por Boécio não é
isenta de problemas e de lacunas. Por exemplo, como o intelecto realiza
a separação do que percebemos confusamente? Existe algo
de geral na realidade ou a generalização é meramente
intelectual?
*Josué
Cândido da Silva é professor de Filosofia da Universidade
Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus (BA).
Fonte:
http://educacao.uol.com.br/filosofia/
teoria-do-conhecimento-os-universais.jhtm
______
Notas:
1.
Sobre esta matéria, recorda Nicola Abbagnano, a solução
aristotélica é a que se encontra mais comumente defendida
na Escolástica. A tradição escolástica
alcançou o apogeu no século XIII, em que personalidades
intelectuais como Alberto Magno (1200 – 1280) e Tomás
de Aquino (1227 – 1274) seguem uma forte orientação
aristotélica e supõem a harmonia parcial entre fé
e razão; neste período, o pensamento cristão
da Idade Média baseava-se na tentativa de conciliação
entre um ideal de racionalidade, corporificado especialmente na tradição
grega do platonismo e do aristotelismo, e a experiência de contato
direto com a verdade revelada, tal como a concebe a fé cristã.
É manifestada por Tomás de Aquino afirmando que o Universal
é in
re como forma ou substância das coisas,
post
rem como conceito no intelecto e ante
rem na Mente Divina como idéia ou modelo
das coisas criadas. Estes três Universais não são
senão um, isto é, se identificam com a essência,
substância ou forma da coisa, que existe ab
æterno no Intelecto Divino e que o intelecto humano
abstrai da própria coisa.
2.
Neste particular, discordo do exemplo dado pelo meu colega Josué
Cândido da Silva. Penso que, ao invés de apenas
três reinos, na Terra, atualmente, existam quatro reinos percebidos
objetivamente, a saber: mineral, vegetal, animal e hominal. Então,
Maria, João e José pertencem à espécie
humana, são humanos, mas com as aves, os peixes e outros bichos
não poderão fazer parte do reino animal, pois são
hominais. Observe a animação abaixo:
eneralização é meramente intelectual?