Objetivo
do Estudo
Há
quem morra e morra mesmo; há quem morra e não morra nunca.
Tomás de Torquemada (Valladolid, 1420 – Ávila, 16 de
setembro de 1498), inquisidor-geral dos reinos de Castela e Aragão
no século XV, morreu e morreu mesmo. Já Darcy Ribeiro foi
um desses que jamais aceitou imperativos dissimulados; por isto, morreu
e não morreu. A
você
que fica aí, inútil, vivendo essa vida insossa, só
digo: Coragem! Mais vale errar se arrebentando, do que se preparar para
nada. O único clamar da vida é por mais vida bem vivida.
Quem
diz um treco destes está vivinho da silva. Bem, é sobre Darcy
Vivinho da Silva
Ribeiro
– esse mineiro de Montes Claros, lá das Minas Gerais, que bebeu
a vida até a última gota, que jamais se entregou (nem ao câncer),
que lutou bravamente com alegria, com categoricidade, com incondicionalidade
e com muito amor pelo Brasil e pelo nosso povo caboclo, moreno, brasiliano
e faminto de tudo – que
este estudo inteiramente despretensioso trata. São algumas reflexões,
alguns fragmentos e alguns pensamentos que garimpei cá e acolá,
e listei para, em parte, eu e você recordarmos, e aprendemos um pouco,
também em parte.
Breve
Biografia de Darcy
Darcy
Ribeiro
Darcy
Ribeiro (Montes Claros, 26 de outubro de 1922 – Brasília, 17
de fevereiro de 1997) foi um antropólogo, escritor e político
brasileiro.
Era
filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos e de Josefina Augusta da Silveira.
Em Montes Claros, fez os estudos fundamentais e o secundário, no
Grupo Escolar Gonçalves Chaves e no Ginásio Episcopal de Montes
Claros. Notabilizou-se, fundamentalmente, por trabalhos desenvolvidos nas
áreas de educação, sociologia e antropologia, tendo
sido, ao lado de Anísio Teixeira, amigo a quem admirava, um dos responsáveis
pela criação da Universidade de Brasília, elaborada
no início dos anos sessenta, ficando também na história
desta instituição por ter sido seu primeiro reitor. Também
foi o idealizador da Universidade Estadual do Norte Fluminense. Publicou
diversos livros, vários deles sobre os povos indígenas.
Durante
o primeiro Governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro (1983 – 1987),
Darcy Ribeiro criou, planejou e dirigiu a implantação dos
Centros Integrados de Ensino Público (CIEPs), um projeto pedagógico
visionário e revolucionário no Brasil, de assistência
em tempo integral às crianças, incluindo atividades recreativas
e culturais para além do ensino formal – dando concretude aos
projetos idealizados décadas antes por Anísio. Muito antes
dos políticos de direita incorporarem o discurso referente à
importância da Educação para o desenvolvimento brasileiro,
Darcy e Brizola já divulgavam estas idéias.
Nas
eleições de 1986, Darcy foi candidato ao Governo fluminense
pelo PDT concorrendo com Fernando Gabeira (então filiado ao PT),
Agnaldo Timóteo (PDS) e Moreira Franco (PMDB). Darcy foi derrotado,
não conseguindo suplantar o favoritismo de Moreira, que se elegeu
graças à popularidade do recém lançado Plano
Cruzado. Darcy Ribeiro também foi Ministro-chefe da Casa Civil do
Presidente João Goulart, Vice-governador do Rio de Janeiro de 1983
a 1987 e exerceu o mandato de Senador pelo Rio de Janeiro, de 1991 até
sua morte – anunciada por um lento processo canceroso, que comoveu
todo o Brasil em torno de sua figura. Darcy, sempre polêmico e ardoroso
defensor de suas idéias, teve, em sua longa agonia, o reconhecimento
e admiração até dos adversários.
Poucos
anos antes de falecer, publicou O Povo Brasileiro, obra na qual,
dentre outras impressões, Ribeiro relativiza a suposta ineficiência
portuguesa.
Em 8 de outubro de 1992, Darcy Ribeiro
foi eleito para a Cadeira nº 11 da Academia Brasileira de Letras, que
tem por Patrono Fagundes Varela, sendo recebido, em 15 de abril de 1993,
por Cândido Mendes. Em seu discurso de posse, deixou registrado:

A
minha foi uma infância feliz. Fui órfão de pai aos três
anos, o que é muito confortável já que não houve
quem me domesticasse. Fui feito dessa ausência e de outra, que é
não ter filhos. Como não fui domesticado e não domestiquei
ninguém, fiquei com um espaço de liberdade que poucos têm.
Eu
já disse, num prefácio, que o Casa Grande e Senzala, do Gilberto
Freyre, é o livro mais importante que já se escreveu no Brasil,
e que o brasileiro que não leu é um imbecil porque é
um livro belíssimo, importantíssimo, com uma linguagem nova,
uma expressão barroca. É dez mil vezes melhor que o Cervantes.
O Brasil tem um bolsão de
gente que vem da escravidão, oprimido, marginalizado, que é
o peso que leva a nação. Enquanto não incorporar esse
bolsão, o Brasil não existirá como gente civilizada.
Prioridade
para o Brasil de hoje: A educação. Os japoneses
perceberam isto, e em poucas décadas o Japão transfigurou-se.
O Brasil tem de cumprir esta tarefa. No Japão, esta tarefa é
fácil porque os japoneses são todos iguaizinhos. Mas no Brasil
um é preto, outro é mulato. E ninguém tem muito apreço
por preto ou mulato. Por isto, fizeram escolas para uns poucos, o que resultou
em uma educação totalmente deformada. Nós temos uma
educação primária de elite. Ela é feita para
a criança de classe média que, no fundo, não precisa
dela.
O
Brasil é o único país no mundo em que se vendem diplomas.
É calamitoso.
Os idiotas dizem que o Socialismo
morreu. Não morreu porque o Capitalismo não morreu e não
vai morrer. E haverá sempre uma briga entre Capital e Trabalho.
Sobre
o Teatro Experimental do Negro (TEN): foi um núcleo ativo
de conscientização dos negros, para assumirem orgulhosamente
sua identidade e lutar contra a discriminação.
Sou
um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado, pelas
causas que comovem. Elas são muitas demais: a salvação
dos índios, a escolarização das crianças, a
reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária.
Na verdade somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas
isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que
nos venceram nessas batalhas.
A
você que fica aí inútil, vivendo essa vida insossa,
só digo: Coragem! Mais vale errar se arrebentando, do que preparar-se
para nada. O único clamar da vida é por mais vida bem vivida.
Guardo
em mim recordações indeléveis das brutalidades que
presenciei em fazendas de minha gente mineira e por todos estes brasis,
contra vaqueiros e lavradores que não esboçavam a menor reação.
Para eles a doença de um touro é infinitamente mais relevante
que qualquer peste que achaque sua mulher e seus filhos. Esta alienação
induzida de nossa gente, levada a crer que a ordem social é sagrada
e corresponde à vontade de Deus, é que eu tomei como tema,
mostrando negros e caboclos de uma humildade dolorosa diante de patrões
que os brutalizavam das formas mais perversas. Tanto me esmerei na figuração
destes contrastes que um pequeno bandido político em luta eleitoral
contra mim fez publicar alguns daqueles meus textos de denúncia como
se expressassem minha postura frente aos negros.
...
Os negros, tal como os vi, sempre foram mais
resignados do que revoltados. Além da espoliação de
sua força de trabalho e de toda sorte de opressões a que são
submetidos, nossos caipiras sofrem um roubo maior, que é o de sua
consciência. O patronato rural se mete em suas mentes para fazê-los
ver a si mesmos como a coisa mais reles que há...
Trago
Minas no peito. Minas me dói, demais, de ser como é. Dói
tanto que morro de raiva. O diabo é que, quanto mais odeio, mais
me comovo. Deve ser isso que me faz solene quando penso Minas. Mais ainda
quando escrevo.
Ao meu redor, nessas Minas, floresce
a loucura mansa. Raramente se manifesta com coragem de si, acremente. Também
nunca se esconde de todo: disfarça.
...
Sofrimento que me custa ser tal qual sou.
Sofrimento que eu escondo, discreto, atrás da vaidade mais desvairada.
Este
meu bando de amigos – amigos?
– é uma fauna
esquisita. Aqui tenho cara de todo bicho. No plano moral somos ainda menos
gente. O bom mesmo, pra mim, seria me ver livre desse bando. Não
tratar mais com nenhum deles, nunca mais. Stela, aloucada; Canuto, servil;
Uriel, safado; o Cura, falso; Elmano, mofino; Guedes, poltrão. E
para completar, eu. Eu, o quê? Tudo isso que atribuo a eles e mais:
besta e metido. Sou democrata jurado, socialista convicto, até comunista
sou, conforme a definição. Mas tudo isso com o povo lá
e eu cá, sem confluências. Que intelectualidade é esta
nossa? De quem ela é? Supostamente somos a inteligência do
povo brasileiro e do mineiro também. Mas como é, se só
nos identificamos, de fato, conosco mesmo e com os ricos que dizemos detestar?
Se só servimos aos donos da vida? Esse povo está é
perdido se espera alguma coisa de nós. Os educados, os lidos, os
competentes, os bonitos, entre nós, são serviçais fiéis
da ordem. Nós intelectuais, nos pagando com palavras de discursos
literários, somos esquerdistas pra inglês ver. O desencontro
é total. Nossa vanguarda lúcida, fiel a seu povo, não
existe. O povo brasileiro está órfão. É um corpo
sem cabeça. Nós, intelectuais, sem um povo com que nos identifiquemos,
com horror do povo de verdade que aí está, somos uma cabeça
decepada. A revolução que pregamos é para outra gente,
eu não sei qual; de fato, para gente nenhuma. Mentindo, disfarçando,
servimos é ao sistema, fielmente. Viva a ordem. Merda!
De fato quando você faz aparentemente
atitudes altruístas e generosas você faz também atitudes
egoístas.
Só
há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar.
E eu não vou me resignar nunca.
Os soldados saíram de Roma
há 2000 anos. Chegando na Península Ibérica, latinizaram
os íberos. Ficaram dormindo 1500 anos lá. Depois saltaram
o mar, o oceano, e vieram pra cá. Falando a língua dos romanos!
E aqui, essa língua dos romanos se expandiu por esse povo que é
de 160 milhões. É o maior dos povos latinos! É mais
que França somada com Itália, com Portugal, com Espanha, com
Romênia! Quem mais representa como massa humana a latinidade somos
nós, os mestiços Brasileiros. Nesse sentido, nós somos
a Nova Roma, uma Roma que o mundo vai ver, espantado, no momento em que
realizarmos nossa potencialidade – tantas! –
no momento em que resolvermos problemas elementares:
que todo mundo coma todo dia, que toda criança tenha uma escola,
que se façam aquelas reformas urbanas e rurais para que a terra seja
acessível para quem trabalha, para que as cidades sejam a morada
dos homens – cordial.
Neste dia, vai florescer no mundo uma civilização diferente,
que nunca ninguém viu. Ao lado dos eslavos –
milhões de eslavos! –
ao lado dos neo-britânicos –
milhões! – ,
ao lado dos chineses – milhões! –
dos árabes – milhões!
– de outros – milhões! –
existirá essa face morena.
A
ditadura generalizou a corrupção até nas cúpulas
dos órgãos supremos do poder.
Evidentemente nós, os intelectuais,
não somos nenhuma maravilha.
Adoro futebol. Futebol é o
único reino em que o povo sente sua pátria. Incrível!
Todo brasileiro, do patrão ao empregado... Uma copa é uma
coisa formidável, a torcida da copa…
A
classe dominante brasileira, de filho e neto de senhor de escravo, tem uma
atitude bruta diante do escravo. O escravo é como carvão:
gasta um, compra outro.1
No mundo só há CIEPs;
os imbecis é que não sabem. A escola de um turno é
uma perversão brasileira.
A
escola brasileira é a escola da mentira: o professor finge que ensina,
e o aluno finge que aprende.
Eu
peço a Deus ou ao diabo ou… Eu quero viver. É claro
que eu quero viver com tesão. Quero viver com curiosidade. Eu quero
viver lendo; eu quero viver escrevendo. Meu irmão, por exemplo, vai
para o bar tomar cerveja e mijar com os amigos; aquela coisa de tomar chope
e ficar conversando. Eu nunca prestei para isso. Quer dizer: eu sou uma
máquina de ler, de comer o papel, de pensar.
É
uma coisa tremenda a brutalidade da sociedade. Ela come não só
o pobre, mas a consciência dele.
A única coisa séria
que aconteceu no Brasil nos últimos anos foi o movimento dos sem-terra.
O que mais me comove é o Brasil
que não deu certo. Um país tão rico tem o povo passando
fome.
Outro dia, o Brizola estava lá
em casa, por causa de uma fundação que nós criamos,
e ele dizia: — 'Eu jamais imaginaria, no exílio, que a minha
primeira obra seria um sambódromo, culpa sua.'
Eu
propus e consegui que o Oscar Niemeyer fizesse a planta, e eu meti duzentas
salas de aula embaixo da arquibancada. Então é um sambódromo
e um escolódromo, que empresta a sua sede uma semana por ano para
o Carnaval.
Eu dou uma espécie de carona
às pessoas nos meus ideais, nas coisas que eu quero fazer.
Vejam
os feitos culturais memoráveis no Brasil dos últimos cem anos.
Vejam os acontecimentos políticos conseqüentes e as lutas populares
quase sempre perdidas. Tento sempre assumir o olhar do povo olhando os ricos
viverem e se regalarem; mas vivendo, ele também, com essa alegria
tão miraculosa para gente oprimida e esfomeada. Há
tanta história escrita por aí, tanta crônica folhuda,
tanta sociologia resignada interpretando o sucedido! Há tudo isso,
mas há também esse imenso vazio de desmemória, a fazer
de nós um país eternamente inaugural. É
hora de lavar os olhos para ver nossa realidade, é hora de passar
o Brasil a limpo para que o povão tenha vez. É indispensável
impedir o passado de construir o futuro. Quero dizer: é preciso
tirar da gente que nos regeu e infelicitou através dos séculos
o poder de continuar conformando e deformando nosso destino. No dia em que
todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança puder completar
a escola, quando todo homem e toda mulher encontrar um emprego estável
em que possa progredir, se edificará, no Brasil, a civilização
mais bela deste mundo. Desejo apenas que algum jovem pense que é
tempo de tomar este País nas mãos, para construir aqui a beleza
de nação que podemos e haveremos de ser. (Grifo
meu).
O
câncer foi terrível. Eu tive dois. Há vinte anos eu
tive um e me deixaram vir aqui para morrer. Eu não queria morrer,
joguei fora, pisei nele e saí bem. Agora me veio este segundo. Eu
sempre dizia que eu não podia morrer de pneumonia dupla, porque eu
só tinha um pulmão. Mas, eu não sabia que poderia vir
seqüencial. Teve uma e depois teve outra no mesmo pulmão. E
quase acabou comigo. O câncer é ruim em si; mas o remédio
do câncer é pior. Eu era bonitinho! Olhem meu cabelo! Acabou
tudo! A imagem que eu tenho de mim é uma caveira de poeta ou de gênio.
De repente, eu fiquei com cara de guarda-livros. Não me agrada nada!
Por
isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes.
Construímo-nos queimando milhões de índios. Depois,
queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando e desgastando
milhões de mestiços brasileiros na produção
não do que eles consomem, mas no que dá lucro às classes
empresariais.
Fracassei
em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras,
não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil
se desenvolver autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são as
minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.
A minha utopia é, na realidade,
uma antiutopia. Meu projeto utópico é para ser realizado aqui
e agora.
Aparentemente, Deus é muito
treteiro; faz as coisas de forma tão recôndita e disfarçada
que se precisa desta categoria de gente – os cientistas – para
ir tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a obviedade do
óbvio. O ruim deste procedimento é que parece um jogo sem-fim.
De fato, só conseguimos desmascarar uma obviedade para descobrir
outras, mais óbvias ainda.
Outra
razão de nossa inferioridade evidente – demonstrada pelo desempenho
histórico medíocre dos brasileiros – além dessas
razões, havia a de sermos católicos, de um catolicismo barroco,
não é? Um negócio atrasado, extravagante, de rezar
em latim e de confessar em português.
A
nossa classe dominante conseguiu duas coisas básicas: assegurou a
propriedade monopolística da terra para suas empresas agrárias,
e assegurou que a população trabalharia docilmente para ela,
porque só podia sair de uma fazenda para cair em outra fazenda igual,
uma vez que em lugar nenhum conseguiria terras para ocupar e fazer suas
pelo trabalho.
Foi o negro que civilizou o Brasil.
O
Brasil é a melhor província e o melhor povo do mundo para
fazer um país. Mas é muito difícil. É muito
fácil fazer uma Austrália. Basta caçar uns ingleses
e holandeses, jogar no mato e mandar matar os índios e pedir que
repitam a paisagem inglesa. No caso do Brasil, não. É a partir
de 6 milhões de índios desfeitos, 12 milhões de negros
desafricanizados e a partir de uns poucos milhares de portugueses que se
refaz um povo, um gênero novo de gente que nunca existiu. Gente que
procura sua vez, tem enormes potencialidades mas que ainda não encontrou
o seu destino.
Nosso
problema é continuar existindo para os outros e não existir
para nós. Fomos criados para produzir açúcar que adoçava
a boca do europeu, o ouro que o enriquecia e continuamos produzindo a soja
para engordar porco na Alemanha. Enquanto não fizermos o país
existir para si, nós seremos um país-problema. Os Estados
Unidos sabem mais ou menos o que eles vão ser no ano 2100. E têm
uma idéia do que convém a eles que o Brasil seja. Nós
não temos essa idéia.
Esse
Governo teve a inconsciência privatista de entregar Volta Redonda.
Essa siderúrgica foi conquistada pelo Getúlio durante a guerra,
que exigiu do Roosevelt a sua construção como condição
para apoiar os aliados. Ela foi vendida por um valor menor que o do estoque
de seus produtos. As dívidas foram apagadas. Foi uma doação.
Está
ocorrendo um etnocídio no Brasil. Eu lido com crianças nos
CIEPs e vejo que aquelas que entram com 7 anos tem um tope de 5. Faltam
três centímetros nelas. Depois de comer seis meses, elas se
recuperam, felizmente. Por outro lado, a população está
diminuindo. É um fato espantoso. O censo mostra que faltam 10 milhões
de pessoas na nossa população. Não fizeram planejamento
familiar. Mataram. Como é que estão matando? De fome, de miséria
e também esterilizando. A metade das mulheres de Goiás está
esterilizada. Goiás é um deserto demográfico. Estão
guardando Goiás para quem? Para os chineses?
O
intelectual brasileiro raramente foi fiel ao Brasil. Em um período
de lutas como a da abolição, os intelectuais tiveram a oportunidade
única de se colocarem à frente do povo. No início da
década de 60, comigo no Ministério da Educação,
foi possível levantar com a intelectualidade um movimento formidável,
que, entre outras coisas, produziu o cinema novo. A tendência do intelectual
é acomodar-se. Intelectual não é flor que se cheire.
Em nenhum lugar se costuma confiar em intelectual. A Inglaterra nunca pensou
que os intelectuais iam salvá-la. Tampouco a França.
O
Brasil conseguiu estender tanto o regime escravocrata, que foi o último
país do mundo a abolir a escravidão. O mais assinalável,
porém, como demonstração de agudeza senhorial, é
que ao extingui-la, o fizemos mais sabiamente do que qualquer outro país.
Primeiro, libertamos os donos da onerosa obrigação de alimentar
os filhos dos escravos que seriam livres. Hoje festejamos este feito com
a Lei do Ventre-Livre. Depois, libertamos os mesmos donos do encargo inútil
de sustentar os negros velhos que sobreviveram ao desgaste no trabalho,
comemorando também este feito como uma conquista libertária.
Como se vê, estamos diante de uma classe dirigente armada de uma sabedoria
atroz.
A
industrialização, que é sabidamente um processo de
transformação da sociedade de caráter libertário,
entre nós se converteu em um mecanismo de recolonização.
Primeiro, com as empresas inglesas, depois com as 'yankees' e, finalmente,
com as ditas multinacionais. O certo é que o processo de industrialização
à brasileira consistiu em transformar a classe dominante nacional
de uma representação colonial, aqui sediada, em uma classe
dominante gerencial, cuja função, agora, é recolonizar
o País, através das multinacionais. Isto é também
uma façanha formidável, que se está levando a cabo
com enorme elegância e extraordinária eficácia.
O principal requisito de sobrevivência
e de hegemonia da classe dominante que temos era precisamente manter o povo
chucro. Um povo chucro, neste mundo que generaliza tonta e alegremente a
educação, é, sem dúvida, fenomenal. Mantido
ignorante, ele não estará capacitado a eleger seus dirigentes
com riscos inadmissíveis de populismo demagógico. Perpetua-se,
em conseqüência, a sábia tutela que a elite educada, ilustrada,
elegante, bonita, exerce paternalmente sobre as massas ignoradas. Tutela
cada vez mais necessária porque, com o progresso das comunicações,
aumentam dia-a-dia os riscos do nosso povo se ver atraído ao engodo
comunista ou fascista, ou trabalhista, ou sindical, ou outro.
Ao entregar a educação
primária exatamente àqueles que não queriam educar
ninguém – porque achavam uma inutilidade ensinar o povo a ler,
a escrever e a contar – ao entregar exatamente a eles – ao prefeito
e ao governador – a tarefa de generalizar a educação
primária, a condenavam ao fracasso, tudo isto sem admitir, jamais,
que seu imposto era precisamente este.
Interesses
cruciais da educação: apropriação
latifundiária da terra e ignorância popular.
O
Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma
perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa
classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.
Ultimamente,
a coisa se tornou mais complexa porque as instituições tradicionais
estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrina. A escola
não ensina; a igreja não catequiza; os partidos não
politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação
de massa, impondo padrões de consumo inatingíveis e desejos
inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade dessas populações.
Nenhum
homem poderia ser reduzido a outro, bem sabemos – e aqui reside a
singularidade que cada um de nós pode reivindicar –
mas cada um poderia haver sido muitos outros.
Na
verdade, sou um homem feito muito mais de dúvidas que de certezas,
e estou sempre predisposto a ouvir argumentos e a mudar de opinião.
Tenho mudado muitas vezes na vida. Felizmente.
Eu
mesmo não tenho talento para sofrer.
Vivo,
sei que vivo, no Universo infinito que, pra lá de mim, pra cá
de mim, ao meu redor, sempre existiu e existirá. Igual a si mesmo.
Para
os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena dos seus ganhos, em
ouro e glórias. Para os índios que ali estavam, nus na praia,
o mundo era um luxo de se viver. Este foi o efeito do encontro fatal que
ali se dera. Ao longo das praias brasileiras de 1.500, se defrontaram, pasmos
de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização.
Suas concepções, não só diferentes, mas opostas,
do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. Os navegantes,
barbudos, hirsutos, fedentos, escalavrados de feridas de escorbuto, olhavam
o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios,
esplêndidos de vigor e de beleza, viam, ainda mais pasmos, aqueles
seres que saiam do mar.
Eu
entro no corpo do índio e olho o mundo com os olhos do índio.
Tento carnalizar a dor de ser índio...
Há
duas formas de intelectuais: a mais numerosa é a dos áulicos,
do ajudante-de-ordens, aquele que está contente com o mundo tal qual
é, e fazem seu papel. E há os iracundos, os intelectuais raivosos
como o Gregório de Matos que é uma beleza de iracundo. A primeira
vez que o Brasil tem espírito é com Gregório. Ele é
português, mas a primeira vez que o Brasil é brasileiro é
com ele. Há, ainda, o iracundo Manuel Bonfim, o Silvio Romero que
mostrou que o racismo é uma técnica européia de dominação
colonial e declarou com todas as palavras que o mulato brasileiro funcionava
perfeitamente bem.
A
universidade é o últero das classes dirigentes da nação
do futuro. Nenhuma sociedade pode viver sem universidades.
Os
índios viram chegar os portugueses, crescer os brasileiros, e têm
mais direito do que ninguém a serem eles próprios.
Ai
vida que esvai distraída, entre os dedos da hora, tirando da mão
até a memória do tato dos meus idos. Só persistimos,
se tanto, na usura da memória alheia, à véspera do
longo esquecimento.
Sim,
vou deixar vocês aí, sem tuxaua. Órfãos de mim.
Preciso morrer para que surja e cresça o tuxaua novo.
Quem
fez o meu pai fui eu. Mas quem me fez?
A
Poesia de Darcy
A
poesia de Darcy –
como diz Antonio Miranda – é
a cara dele: nervosa, afirmativa, diante do espelho da própria existência.
Sobrevivente da morte, contra os limites da vida. Delirantemente vívido,
agudo, querendo dar vazão aos sentimentos e idéias, polemizando,
instigando-se. Parecia desdobrar-se, multiplicar-se para viver mais.
IDOS
SIDOS
Que
é que fiz, não fiz, de mim?
Que
é que fiz na vida, da vida?
Quem sou eu? Esse eu que me sou.
Minhas
mãos me pendem soltas.
Inúteis para fazimentos.
Só servem para escrever, acarinhar.
Não
sei dançar, nunca soube.
Olho, idiota, o céu estrelado.
Não conheço estrela nenhuma.
As
árvores, tantíssimas, que vi.
Recordo inumeráveis, enormíssimas,
Não sei quem são.
Diante
das flores me extasio.
Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.
A música clássica me atordoa, cansa.
Quem
sou eu, septuagenário,
Que esgoto meu tempo de me ser aqui?
Insciente, perplexo, inexplicado.
Só
cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói.
MIM
O
tempo transcorre em mim
Celeremente.
Tão afoito que finda.
Acho que sei, afinal, a que vim.
E já me vou. Uma pena.
Não há tempo mais pra mim.
Volto à silente matéria cósmica
Que em mim, um dia, se organizou
Para me ser. Uma vez, uma vez somente.
A
INDESEJADA
Aí
estão eles, os da terceira idade.
Gregários,
vivem aos bandos.
Sentados, jogando cartas, andando devagar.
Conversando pretéritos assuntos.
Olhando tristes os outros viverem.
Antigamente,
todos seriam avós, vovozinhos.
Hoje, são sogros, os chatos dos sogros.
Uns são viúvos, outros largados, poucos.
Muitos deles, os mais, ainda casados.
As mulheres duram demais.
Órfãos
de seus filhos, ocupadíssimos.
Não reclamam, resmungam disfarçados.
Estão todos aflitos, na espera
Da indesejada, que tarda.
Tarda, é certo, mas virá. Inexorável.
AMOR