Migalhinhas
Camonianas
Luís
Vaz de Camões
Os
Lusíadas, Canto I
As
armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram.
E
também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
...
... ...
Cá
Nesta Babilônia
Cá
nesta Babilônia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá,
onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;
Cá,
neste labirinto, onde a nobreza,
O valor e o saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza;
Cá,
neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da Natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
Erros
Meus, Má Fortuna, Amor Ardente
Erros
meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.
Tudo
passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as freqüências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.
Errei
todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De
amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro gênio de vinganças!
Amor
É Fogo Que Arde Sem Se Ver
Amor
é fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente,
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.
É
um não querer mais que bem querer,
É um andar solitário entre a gente,
É nunca contentar-se de contente,
É um cuidar que se ganha em se perder.
É
querer estar preso por vontade,
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas
como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?
Do
Tempo Que Fui Livre Me Arrependo
O
culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor Divino, que a feitura
Com seu Sagrado Sangue restaurava.
Amor
ali, que o tempo me aguardava,
Onde a vontade tinha mais segura,
Com uma rara e angélica figura
A vista da razão me salteava.
Eu
crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia,
Deixei-me
cativar; mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.
Em
Amor Não Há Senão Enganos
Suspiros
inflamados que cantais
A tristeza com que eu vivi tão cedo;
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Leteo vos percais.
Escritos
para sempre já ficais
Onde vos mostrarão todos co'o dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.
Em
quem, pois, virdes largas esperanças
De amor e da fortuna (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças),
Dizei-lhe
que os servistes muitos anos,
E que em fortuna tudo são mudanças,
E que em amor não há senão enganos.
Não
Canse o Cego Amor de me Guiar
Pois
meus olhos não cansam de chorar
Tristezas não cansadas de cansar-me;
Pois não se abranda o fogo em que abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar.
Não
canse o cego amor de me guiar
Donde nunca de lá possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Enquanto a fraca voz me não deixar.
E
se em montes, se em prados, e se em vales
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, águas,
Ouçam
a longa história de meus males,
E curem sua dor com minha dor;
Que grandes mágoas podem curar mágoas.
Náiades,
Vós que os Rios Habitais
Náiades,
vós que os rios habitais,
Que os saudosos campos vão regando,
De meus olhos vereis estar manando
Outros que quase aos vossos são iguais.
Dríades,
que com seta sempre andais
Os fugitivos cervos derribando,
Outros olhos vereis, que triunfando
Derribam corações, que valem mais.
Deixai
logo as aljavas e águas frias,
E vinde, Ninfas belas, se quereis,
A ver como de uns olhos nascem mágoas.
Notareis
como em vão passam os dias;
Mas em vão não vireis, porque achareis
Nos seus as setas, e nos meus as águas.
Converteu-se-me
em Noite o Claro Dia
Apolo
e as nove Musas, descantando
Com a dourada lira, me influíam
Na suave harmonia que faziam,
Quando tomei a pena, começando:
Ditoso
seja o dia e hora, quando
Tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
Estar-se em seu desejo traspassando!
Assim
cantava, quando Amor virou
A roda à esperança, que corria
Tão ligeira, que quase era invisível.
Converteu-se-me
em noite o claro dia;
E, se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possível.
Para
que Quero a Glória Fugitiva?
Já
é tempo, já, que minha confiança
Se desça duma falsa opinião;
Mas amor não se rege por razão,
Não posso perder, logo, a esperança.
A
vida, sim, que uma áspera mudança
Não deixa viver tanto um coração.
E eu só na morte tenho a salvação?
Sim, mas quem a deseja não a alcança.
Forçado
é logo que eu espere e viva.
Ah!, dura lei de amor, que não consente
Quietação num'alma que é cativa!
Se
hei-de viver, enfim, forçadamente,
Para que quero a glória fugitiva
Duma esperança vã que me atormente?
Tudo
Muda uma Áspera Mudança
Tomava
Daliana por vingança
Da culpa do pastor que tanto amava,
Casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
O erro alheio e pérfida esquivança.
A
discrição segura, a confiança
Das rosas que o seu rosto debuxava,
O descontentamento lhas mudava,
Que tudo muda uma áspera mudança.
Gentil
planta disposta em seca terra,
Lindo fruto de dura mão colhido,
Lembranças de outro amor e fé perjura,
Tornaram
verde prado em dura serra;
Interesse enganoso, amor fingido,
Fizeram desditosa a formosura.
Trocou
Finita Vida por Divina,
Infinita e Clara Fama
– Não passes, caminhante! –
Quem me chama?
– Uma memória nova e nunca ouvida,
De um que trocou finita e humana vida
Por divina, infinita e clara fama.
–
Quem é que tão gentil
louvor derrama?
–
Quem derramar seu sangue não duvida
Por seguir a bandeira esclarecida
De um capitão de Cristo, que mais ama.
–
Ditoso fim, ditoso sacrifício,
Que a Deus se fez e ao mundo juntamente!
Apregoando direi tão alta sorte.
–
Mais poderás contar a toda
a gente
Que sempre deu na vida claro indício
De vir a merecer tão santa morte.
O
Mágico Veneno
Um
mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso.
Um
despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso.
Um
encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento.
Esta
foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.
Alma
Minha Gentil, que te Partiste
Alma
minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na Terra sempre triste.
Se
lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E
se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga
a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Quanto
Mais vos pago, mais vos Devo
Quem
vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só com vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.
Este
me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los;
Donde já me não fica mais de resto.
Assim
que Alma, que vida, que esperança,
E que quanto for meu, é tudo vosso:
Mas de tudo o interesse eu só o levo.
Porque
é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
Onde
Há Inveja, não Há Amizade
Grande trabalho é querer fazer
alegre rosto quando o coração está triste: pano é
que não toma nunca bem esta tinta; que a Lua recebe a claridade do
Sol, e o rosto, do coração. Nada dá quem não
dá honra no que dá: não tem que agradecer quem, no
que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai o que com ela se
compra. Nada se dá de graça o que se pede muito. Está
certo! Quem não tem uma vida tem muitas. Onde a razão se governa
pela vontade, há muito que praguejar, e pouco que louvar. Nenhuma
cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram,
podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça
sem almas, como este purgatório a que chamais honra; donde muitas
vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há
inveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação.
Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora,
ou se há-de viver no mundo sem verdade ou com verdade sem mundo.
E para muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que algo 'tiene
en el cuerpo, que le duele'. Ora temperai-me lá esta gaita, que nem
assim, nem assim achareis meio real de descanso nesta vida; ela nos trata
somente como alheios de si, e com razão:
Pois
somente nos é dada
para que ganhemos nela
o que sabemos.
Se se gasta mal gastada,
juntamente com perdê-la,
nos perdemos.
Enfim,
esta minha Senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, é a mais
fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve é,
ponderemos
e vejamos
que ganhamos em viver
os que nascemos:
veremos que não ganhamos
senão algum bem fazer,
se o fazemos.
E,
por isso, respeitando
que
o porvir tal será,
entesouremos;
porque [ao certo] não sabemos
quando a morte pedirá
que lhe paguemos.
Nunca
vi cousa mais para lembrar, e menos lembrada, que a morte; sendo mais aborrecida
que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude. Mas, contudo, com seu
pensamento, quando lhe vem à vontade, acarreta mil pensamentos vãos;
que tudo para com ela é um lume de palhas. Nenhuma cousa me enche
tanto as medidas para com estes que vivem na maior bonança, como
ela; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras,
dando com os corpos à costa; e se vem à mão, com as
almas no inferno, que é bem ruim gasalhado:
E
pois todos isto temos,
não nos engane a riqueza,
por que tanto esmorecemos,
e trás que vamos;
já que temos a certeza
que, quando mais a queremos, a deixamos.
Gastamos
em alcançá-la
a vida; e quando queremos
usar dela,
nos tira a morte lográ-la;
assim que a Deus perdemos
e a ela.
Nunca
Estamos Contentes
Já ouvistes dizer: «Ninho
feito, pega morta». Que me dizeis ao contentamento do mundo, onde
toda a duração dele está enquanto se alcança?
Porque, acabado de passar, acabado de esquecer. E com razão, porque,
acabado de alcançar, é passado; e maior saudade deixa do que
é o contentamento que deu. Esperai, por me fazer mercê, que
lhe quero dar umas palavrinhas de propósito:
Mundo,
se te conhecemos,
porque tanto desejamos
teus enganos?
E, se assim te queremos,
muito sem causa nos queixamos
de teus danos.
Tu
não enganas ninguém,
pois a quem te desejar
vemos que danas;
se te querem qual te vem,
se se querem enganar,
ninguém enganas.
Vejam-se
os bens que tiveram
os que mais em alcançar-te
se esmeraram;
que uns, vivendo, não viveram,
e os outros, só com deixar-te,
descansaram.
E
se esta tão clara fé
te aclara teus enganos,
desengana;
sobejamente mal vê
quem, com tantos desenganos,
se engana.
Mas
como tu sempre morres
no engano em que andamos e que vemos,
não cremos o que tu podes,
senão o que desejamos
e queremos.
Nada
te pode estimar
quem bem quiser estimar-te
e conhecer-te;
que em te perder ou ganhar,
o mais seguro ganhar-te
é perder-te.
E
quem em ti determina
descanso poder achar,
saiba que erra;
que sendo a alma divina,
não a pode descansar
nada da Terra.
Nascemos
para morrer,
morremos para ter vida,
em ti morrendo.
O mais certo é merecer
nós a vida conhecida,
cá vivendo.
Enfim,
mundo, és estalagem
em que pousam nossas vidas
de corrida;
de ti levam de passagem
ser bem ou mal recebidas
na outra vida.