Não
acredito que haja um progresso linear no que diz respeito à felicidade
humana. Podemos dizer que, como um pêndulo, nos movemos de tempos
mais felizes para tempos menos felizes e de menos felizes para mais felizes.
Hoje, temos medo e somos infelizes do mesmo modo como também tínhamos
medo e éramos infelizes há cem anos, mas por razões
diferentes. A modernidade sólida tinha um aspecto medonho: o espectro
das botas dos soldados esmagando as faces humanas. Virtualmente, todo mundo,
quer da esquerda quer da direita, assumia que a Democracia, quando existia,
era para hoje ou para amanhã, mas que uma ditadura estava sempre
à vista; no limite, o totalitarismo poderia sempre chegar e sacrificar
a liberdade em nome da segurança e da estabilidade. Por outro lado,
como Richard Sennett (Chicago,
1º de janeiro de 1943) mostrou, a antiga condição
de emprego poderia destruir a criatividade e as habilidades humanas, mas
construía, por assim dizer, a vida humana, que podia ser planejada.
Tanto os trabalhadores como os donos das fábricas sabiam muito bem
que iriam se encontrar novamente amanhã, depois de amanhã,
no ano seguinte, pois os dois lados dependiam um do outro. Os operários
dependiam da Ford assim como esta dependia dos operários, e porque
todos sabiam disso podiam brigar uns com os outros, mas, no final, tendiam
a concordar com um 'modus vivendi'. Esta dependência recíproca
mitigava, em certo sentido, o conflito de interesses e promovia algum esforço
positivo de coexistência, por menor que fosse. Bem,
nada disto existe hoje. Os medos e as infelicidades de agora são
de outra ordem. Dificilmente outro tipo de stalinismo voltará e o
pesadelo de hoje não é mais a bota dos soldados esmagando
as faces humanas. Temos outros pesadelos. O chão em que piso pode,
de repente, se abrir como num terremoto, sem que haja nada ao que me segurar.
A maioria das pessoas não pode planejar seu futuro muito tempo adiante.
Os acadêmicos são umas das poucas pessoas que ainda têm
essa possibilidade. Na maioria dos empregos, podemos ser demitidos sem uma
palavra de alerta. Você chama isso nostalgia? Não sei... Para
pessoas que viveram no tipo de sistema Ford, semitotalitário, que
tinha uma tendência totalitária inerente, como Hannah Arendt
dizia, nossas apreensões devem parecer incompreensíveis! A
questão é que, como já disse antes, aproximando-me
dos meus 80 anos, não mais acredito que possa existir algo como uma
sociedade perfeita. A vida é como um lençol muito curto: quando
se cobre o nariz os pés ficam frios, e quando se cobrem os pés
o nariz fica gelado. Há sempre um custo a ser pago para a melhora
em uma determinada direção. Mas insisto que a sociedade que
obsessivamente se vê como não sendo boa o suficiente é
a única definição que posso dar de uma boa sociedade.
Pessimismo?
No meu entender, o otimista é aquele que acredita que este é
o melhor dos mundos possíveis. E o pessimista é aquele que
suspeita que o otimista tem razão. Neste quadro, não me identifico
nem com o otimista nem com o pessimista, pois acredito que o mundo possa
ser melhorado, e que essa mera crença é instrumental em torná-lo
melhor...
Gostaria
que os jovens tentassem, apesar de tudo, apesar de todas as tendências
em contrário e de todas as pressões de fora, reter na consciência
e na memória o valor da durabilidade, da constância, do compromisso.
Eles não podem mais contar, como a antiga geração,
com a natureza permanente do mundo lá fora, com a durabilidade das
instituições que tinham antes toda a probabilidade de sobreviver
aos indivíduos. Isto não é mais possível e,
na verdade, a vida humana individual, apesar de ser muito curta, abominavelmente
curta, é a única entidade da sociedade de agora que tem sua
longevidade aumentada. Sim, somente a vida humana individual vê crescer
sua durabilidade, enquanto a vida de todas as outras entidades sociais que
a rodeiam – instituições, idéias, movimentos
políticos – é cada vez mais curta. Assim, o único
sentido duradouro, o único significado que tem chance de deixar traços,
rastos no mundo, de acrescentar algo ao mundo exterior, deve ser fruto de
seu próprio esforço e trabalho. Os jovens podem contar unicamente
com eles próprios, e só haverá em suas vidas o sentido
e a relevância que forem capazes de lhes dar. Sei que esta é
uma tarefa muito difícil, mas é a única coisa que posso
lhes dizer.
Que
os seres humanos sempre preferiram a felicidade à infelicidade é
uma observação banal, um pleonasmo, já que o conceito
de 'felicidade' em seu uso mais comum diz respeito a estados ou eventos
que as pessoas desejam que aconteçam, enquanto a 'infelicidade' representa
estados ou eventos que elas queiram evitar. Os dois conceitos assinalam
a distância entre a realidade tal como ela é e uma realidade
desejada. Por esta razão, quaisquer tentativas de comparar graus
de felicidade experimentados por pessoas que adotam modos de vida distintos
em relação ao ponto de vista espacial ou temporal só
podem ser mal interpretadas e, em última análise, inúteis.
A
maior atração de uma vida de compras é a oferta abundante
de novos começos e novas ressurreições (chances de
renascer). 'Consumir', portanto, significa investir na avaliação
social de si próprio, o que, em uma sociedade de consumidores, traduz-se
em 'vendabilidade': obter qualidades para as quais já existe uma
demanda de mercado ou reciclar as que já possui, transformando em
mercadorias para as quais a demanda pode continuar sendo criada.
Os
membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias
de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que
os torna membros autênticos desta mesma sociedade.
Logo
que a liberdade se estabelece e se transforma em uma rotina diária,
um novo tipo de terror, não menos apavorante do que aqueles que a
liberdade deveria banir, empalidece as memórias de sofrimentos e
rancores de passado: o terror da responsabilidade.
Os sofrimentos humanos mais comuns
nos dias de hoje tendem a se desenvolver a partir de um excesso de possibilidades,
e não de uma profusão de proibições, como ocorria
no passado. E se a oposição entre possível e impossível
superou a antinomia do permitido e do proibido como arcabouço cognitivo
e critério essencial de avaliação e escolha da estratégia
de vida, deve-se apenas esperar que a depressão nascida do terror
da inadequação venha substituir a neurose causada pelo horror
da culpa (ou seja, da acusação de inconformidade que pode
se seguir à quebra das regras) como a aflição psicológica
mais característica e generalizada dos habitantes da sociedade de
consumidores.
Outro
serviço que uma existência vivida sob estados de emergência
recorrentes ou quase perpétuos (ainda que produzidos de maneira artificial
ou enganosamente proclamados) pode oferecer à saúde mental
de nossos contemporâneos é uma versão atualizada da
'caça à lebre', de Blaise Pascal, ajustada a um novo ambiente
social. Trata-se de uma caçada que, em total oposição
a uma lebre já morta, cozinhada e consumida, deixa o caçador
com muito pouco tempo, ou mesmo nenhum, para refletir sobre a brevidade,
o vazio, a falta de significado ou a inutilidade de suas ações
mundanas e, por extensão, de sua vida na Terra como um todo.
As
relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais
penosos com que precisamos nos confrontar e solucionar. Nestes tempos líquidos,
precisamos da ajuda de um companheiro leal, 'até que a morte nos
separe', mais do que em qualquer outra época. Mas qualquer coisa
'até a morte' nos desanima e assusta: não se pode permitir
que coisas ou pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo
de nossa vida. Compromissos de tempo indeterminado ameaçam frustrar
e atrapalhar as mudanças que um futuro desconhecido e imprevisível
pode exigir. Mas, sem este compromisso e a disposição para
o auto-sacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar
no amor verdadeiro. De fato, é uma contradição sem
solução. A esperança, ainda que falsa, é que
a quantidade poderia compensar a qualidade: se cada relacionamento é
frágil, então, vamos ter tantos relacionamentos quanto forem
possíveis.
Quanto mais fácil se torna
terminar relacionamentos, menos motivação existe para se negociar
ou buscar vencer as dificuldades que qualquer parceria sofre, ocasionalmente.
Afinal, quando os parceiros se encontram, cada um traz a sua biografia,
que precisa ser conciliada, e não se pode pensar em conciliação
sem fazer concessões e auto-sacrifício... No fim das contas,
é uma questão de escolha, do valor que se dá a estar
junto com o parceiro, e da força do amor que torna o auto-sacrifício
em prol do amado algo natural, doce e prazeroso, em vez de amargo e desanimador.
Nos
comportamos exatamente como o tipo de sociedade apresentada nos 'reality
shows', como, por exemplo, o 'Big Brother'. A questão da realidade
, como insinuam os programas desse tipo, é que não é
preciso fazer algo para 'merecer' a exclusão. O que o 'reality show'
apresenta é o destino e a exclusão – é o destino
inevitável. A questão não é 'se', mas 'quem'
e 'quando'. As pessoas não são excluídas porque são
más, mas porque outros demonstram ser mais espertos na arte de passar
por cima dos outros. Todos são avisados de que não têm
capacidade de permanecer porque existe uma cota de exclusão que precisa
ser preenchida. É exatamente essa familiaridade que desperta o interesse
em massa por este tipo de programa. Muitos de nós adotamos e tentamos
seguir a mensagem contida no lema do programa 'Survivor': 'não confie
em ninguém!' Um 'slogan' como esse não prediz muito bem o
futuro das amizades e parcerias humanas.
A
globalização negativa cumpriu sua tarefa. As fronteiras que
já foram abertas para a livre circulação de Capital,
mercadorias e informações não podem ser fechadas para
os humanos. Podemos prever que quando e se os atentados terroristas desaparecerem,
isto irá acontecer, apesar da violência brutal das tropas.
O terrorismo só vai diminuir e desaparecer se as raízes sociopolíticas
forem eliminadas. E isto vai exigir muito mais tempo e esforço do
que uma série de operações militares punitivas. A guerra
real e capaz de se vencer contra o terrorismo não é conduzida
quando as cidades e vilarejos arruinados do Iraque ou do Afeganistão
são devastados, mas quando as dívidas dos países pobres
são canceladas, os mercados ricos são abertos à produção
dos países pobres e quando as 115 milhões de crianças
atualmente sem acesso a nenhuma escola são incluídas em programas
de educação.
Até
agora, a nossa globalização é totalmente negativa.
Todas as sociedades já estão abertas. Não há
mais abrigos seguros para se esconder. A 'globalização negativa'
cumpriu seu papel, mas sua contrapartida 'positiva' nem começou a
atuar. Esta é a tarefa mais importante em que o nosso século
terá que se empenhar. Espero que um dia seja cumprida. É questão
de vida ou morte da Humanidade!
A civilização moderna
não tem tempo nem vontade de refletir sobre a escuridão no
fim do túnel. Ela está ocupada resolvendo sucessivos problemas,
e, principalmente, os trazidos pela última ou penúltima tentativa
de resolvê-los. O modo com que lidamos com desastres segue a regra
de trancar a porta do estábulo quando o cavalo já fugiu e
provavelmente já correu para bem longe para ser pego. E o espírito
inquieto da modernização garante que haja um número
crescente de portas de estábulos que precisam ser trancadas. Ocasiões
chocantes como o 11 de Setembro, o 'tsunami' na Ásia e o furacão
Katrina deveriam ter servido para nos acordar e fazer agir com sobriedade.
Chamar o que aconteceu em Nova Orleans e redondezas de 'colapso da lei e
ordem' é simplista. Lei e ordem desapareceram como se nunca tivessem
existido.
Esse excesso de população
precisa ser ajudado a retornar ao convívio social assim que possível.
Eles são o 'exército reserva da mão-de-obra' e lhes
deve ser permitido que voltem à vida ativa na primeira oportunidade.
Os 'redundantes' são obrigados a conviver com o resto da sociedade,
o que é legitimado pela capacidade de trabalho e de consumo. Em vez
de permanecer, como era visto anteriormente, como um problema de uma parte
separada da população, a designação de 'lixo'
torna-se a perspectiva potencial de todos. Há partes do mundo que
se confrontaram com o antes desconhecido fenômeno de 'população
sobrando'. Os países subdesenvolvidos não se disporiam, como
no passado, a receber as sobras de outros povos, e nem podem ser forçados
a aceitar isso.
O
número de 'pessoas desnecessárias' crescerá. E aí
há o grande problema que, mais cedo ou mais tarde, teremos que enfrentar:
capacitar ou não China, Índia e Brasil a imitar o modelo de
'bem-estar' adotado nos Estados Unidos em uma época em que modernização
ainda era um privilégio de poucos? Para dar vazão, seriam
necessários três planetas, mas nós só temos um
para dividir.
Até
onde vai a situação de nosso Planeta com um único superpoder,
confundido e subjugado pela ilusão de sua repentina ilimitada liberdade?
A elevação súbita dos Estados Unidos à posição
de superpotência absoluta e uma incontestada hegemonia mundial pegou
líderes políticos americanos e formadores de opinião
desprevenidos. É muito cedo para declarar a natureza deste novo império
e generalizar seu impacto no Planeta. Seu comportamento é, possivelmente,
o fator mais importante da incerteza definida como 'Nova Desordem Mundial'.
Um império estabelecido pela guerra tem que se manter por guerras.
Acabamos de ver isto no Iraque, apesar de todos saberem que era óbvio
que bombardear e invadir o País não aniquilaria o terrorismo.
O
que é chamado de 'jeitinho brasileiro' é a maneira que a modernização
nos obrigou a reagir. Um dos resultados cruciais da modernização
é a dependência dos processos da vida humana pelos 'jeitinhos'.
Isto implica o outro lado da mesma moeda: a vulnerabilidade crescente dos
legítimos modos instruídos de viver.
Pierre
Félix Bourdieu (Denguin,
1º de agosto de 1930 – Paris, 23 de janeiro de 2002)
ressaltou que o número de personalidades do cenário político
que podem compreender e articular expectativas e demandas está encolhendo.
Precisamos aumentá-lo, e isto só pode ser feito apresentando
problemas e necessidades. O próximo século pode ser o da catástrofe
final ou um período no qual um novo acordo entre os intelectuais
e as pessoas que representam a Humanidade seja negociado e trazido à
tona. Vamos esperar que a escolha entre estes dois futuros ainda seja nossa.
Riscos
e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são
apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo
individualizados.
A
fluidez dos vínculos, que marca a sociedade contemporânea,
encontra-se inevitavelmente inserida nas próprias características
da modernidade.
Os relacionamentos a dois não
podem se desenrolar à parte da cena social, das regras do jogo estabelecidas
pela sociedade global. Nada pode fugir deste complexo panorama, do moderno
fenômeno conhecido como globalização.
A
ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais
de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem,
uma falha da função nomeadora (segregante) que a linguagem
deve desempenhar… A ambivalência é, portanto, o 'alter
ego' [um segundo eu; substituto
perfeito] da linguagem e sua companheira permanente – com
efeito, sua condição normal.
Por
causa da nossa capacidade de aprender e de memorizar, temos um profundo
interesse em manter a ordem do mundo… A situação torna-se
ambivalente quando os instrumentos lingüísticos de estruturação
se mostram inadequados; ou a situação não pertence
a qualquer das classes lingüisticamente discriminadas ou recai em várias
classes ao mesmo tempo.
Sem a negatividade do caos, não
há positividade da ordem; sem o caos, não há ordem.
A
prática tipicamente moderna, a substância da política
moderna, do intelecto moderno, da vida moderna, é o esforço
para exterminar a ambivalência: um esforço para definir com
precisão – e suprimir ou eliminar tudo que não poderia
ser ou não fosse precisamente definido.
A soberania do Estado moderno é
o poder de definir e de fazer as definições pegarem. Tudo
que se autodefina ou que escape à definição assistida
pelo poder é subversivo. O outro dessa soberania são as áreas
proibidas de agitação e desobediência, de colapso da
lei e da ordem… A resistência à definição
coloca um limite à soberania, ao poder, à transparência
do mundo ao seu controle, à ordem.
A
história da modernidade é uma história de tensão
entre a existência social e sua cultura.
Alguns
pensadores enxergam a dominação política, econômica
e militar no ocidente, delineando os modos alternativos de vida, como uma
autodefesa da modernidade. Ela obliquamente reafirma e reforça o
mito etiológico da civilização moderna como um triunfo
da razão sobre as paixões – a crença de que este
triunfo foi um passo inequivocamente progressista no desenvolvimento histórico
da moralidade pública.
Ao
longo de toda a era moderna, a razão legislativa dos filósofos
combinou bem com as práticas demasiadamente materiais dos Estados…
Legislar e impor as leis da razão é o fardo daqueles poucos
conhecedores da verdade – os Filósofos.
A ciência moderna nasceu da
esmagadora ambição de conquistar a Natureza e de subordiná-la
às necessidades humanas… Despojada de integridade e significado
inerentes, a Natureza parece um objeto maleável às liberdades
do homem.
'Nunca
tanto poder se combinou com tão pouca indicação sobre
o seu uso. Ainda assim há uma compulsão, uma vez existente
o poder, para usá-lo de qualquer forma.' (Hans
Jonas (10 de maio de 1903 – 5 de fevereiro de 1993, apud
Zygmunt
Bauman).
O
que a lição do holocausto nos ensinou foi a duvidar da sabedoria
pretensiosa dos cientistas ao dizerem o que é bom ou mau, da capacidade
da ciência como autoridade moral, enfim, da capacidade dos cientistas
de identificar questões morais e de fazer um julgamento moral dos
efeitos de suas ações.
A ambigüidade que a mentalidade
moderna acha difícil de tolerar e as instituições modernas
se empenharam em aniquilar reaparece como a única força capaz
de conter e isolar o potencial destrutivo genocida da modernidade.
A
ambivalência se situa entre amigo e inimigo, entre a ordem e o caos,
dentro e fora. Ela representa a deslealdade dos amigos, o gracioso disfarce
dos inimigos, a falibilidade da ordem, a vulnerabilidade interna.
Ser
um estranho significa, primeiro e antes de tudo, que nada é natural;
nada é dado por direito, nada vem de graça. A união
primitiva do nativo entre o eu e o mundo foi dividida. Cada lado da união
foi colocado sob o foco da atenção – como um problema
e uma tarefa. Tanto o eu como o mundo são claramente visíveis.
Ambos requerem constantemente exame e precisam urgentemente ser 'operados',
'manejados', 'administrados'. Sob todos esses aspectos, a situação
do estranho difere drasticamente do modo de vida nativo com conseqüências
de longo alcance.
'O
que difere do existente parecerá ao existente bruxaria,
enquanto figuras de pensamento como proximidade, lar, segurança mantêm
o mundo imperfeito sob seu feitiço. Os homens têm medo de que
perdendo esta mágica percam tudo, porque a única felicidade
que conhecem, mesmo em pensamento, é a de ser capaz de se ater a
algo – a perpetração da falta de liberdade. (Theodor
Adorno, apud
Zygmunt
Bauman).
A
autoridade social da especialização pode ser assim descrita:
a
individualização crescente faz com que a pessoa se feche e
contenha em si no sonho de uma vida feliz; a
identidade ambígua na pós-modernidade gera uma infelicidade
que o individuo procura resolver com o tratamento especializado; cada causa
de infelicidade tem um tipo específico de solução especializada
que o individuo procura solucionar; o descontrole e as frustrações
resultantes da assimilação da sociedade moderna, com o advento
de problemas emocionais específicos direcionam a solução
na busca de saídas privatizadas; as
habilidades privatizadas desalojam habilidades interpessoais tradicionais,
sem que se precise recorrer à ajuda externa; as pessoas têm
habilidades naturais à sua disposição que permitem
a própria solução de problemas individuais; as
ciências controlam fontes de incerteza ou desconhecimento popular,
produzindo ciclos de padrão da dependência e poder; o descontrole
das autoridades no mundo da vida sacrifica as reais necessidades do ser
humano na sociedade moderna; e a
fragilidade nascida no culto à racionalidade da escolha e da conduta
em si mesmo preferem a ordem, em vez da diversidade e ambivalência.
A
prova cabal da ciência é o credo da superioridade do conhecimento
científico sobre qualquer outro conhecimento, ou seja, o direito
de a ciência validar e invalidar, de legitimar e deslegitimar.
A
modernidade atinge a
construção do conhecimento quando é capaz
de enfrentar o fato de que o aumento do conhecimento expande o campo da
ignorância, que a cada passo ao horizonte novas terras desconhecidas
aparecem, e que, para colocar a coisa de maneira mais genérica, a
aquisição do conhecimento não pode se exprimir de nenhuma
outra forma que não a da consciência de mais ignorância.
A
regulação normativa da vida diária é, com freqüência,
sustentada por iniciativa de base popular de natureza heterodoxa, e tem
de ser protegida contra transgressões de cima.
A
tolerância só pode evitar agressões quando se transforma
em solidariedade, no reconhecimento universal de que a diferença
é uma universalidade que não está aberta à negociação,
e que o ataque ao direito universal de ser diferente é o único
afastamento face a universalidade que nenhum dos agente solidários,
por mais diferente que seja, pode tolerar, exceto com perigo para si e todos
os outros agentes.
A política que reduziu as
responsabilidades assumidas em relação à segurança
pública, retirando-se das tarefas da administração
social, efetivamente dessocializou os males da sociedade e traduziu a injustiça
social como inépcia ou negligência individual.
A
conquista da Natureza produziu mais desperdício do que felicidade
humana.
Hoje,
cada
vez menos pessoas acreditam na
capacidade mágica do crescimento econômico e na expansão
tecnológica. Uma coisa que as pessoas acham que a tecnologia produz
infalivelmente e cada vez mais é um crescente desconforto e perigo
– novos riscos, menos previsíveis e remediáveis.
Nossos
ancestrais eram esperançosos: quando falavam de ‘progresso’,
se referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior.
Nós estamos assustados: ‘progresso’, para nós,
significa uma constante ameaça de ser chutado para fora de um carro
em aceleração.
O
impulso de transgredir, de substituir e de acelerar a circulação
de mercadorias rentáveis não dá ao fluxo uma oportunidade
de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e se solidificar
em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida.
A
questão
não é de 'abrir os olhos'. O verdadeiro
problema é: quem é capaz de fazer o que deve ser feito para
evitar o desastre que já podemos prever? O problema não é
a nossa falta de conhecimento, mas a falta de um agente capaz de fazer o
que o conhecimento nos diz ser necessário fazer, e urgentemente.
Por exemplo: estamos todos conscientes das conseqüências apocalípticas
do aquecimento do Planeta. E todos estamos conscientes de que os recursos
planetários serão incapazes de sustentar a nossa filosofia
e prática de 'crescimento econômico infinito' e de 'crescimento
infinito do consumo'. Sabemos que estes recursos estão rapidamente
se aproximando de seu esgotamento. Estamos conscientes, mas, e daí?
Há poucos (ou nenhum) sinais de que, de própria vontade, estamos
caminhando para mudar as formas de vida que estão na origem de todos
estes problemas.
A
atual crise financeira poderá ou não mudar a forma como vivemos.
Primeiro, a crise está longe de terminar. Ainda veremos suas conseqüências
de longo prazo (um grande desemprego, entre outras). Em segundo lugar, as
reações à crise não foram até agora animadoras.
A resposta quase unânime dos Governos foi de recapitalizar os bancos,
para fazê-los voltar ao 'normal'. Mas foi precisamente esse 'normal'
o responsável pela atual crise. Esta reação significa
armazenar problemas para o futuro. Mas a crise pode nos obrigar a mudar
a maneira como vivemos. A recapitalização dos bancos e instituições
de crédito resultou em dívidas públicas altíssimas,
que precisão ser pagas pelos nossos filhos e netos – e isto
pode empobrecer as próximas gerações. As dívidas
exorbitantes podem levar a uma considerável redistribuição
da riqueza. São os países ricos agora os mais endividados.
De qualquer forma, não são as crises que mudam o mundo, e,
sim, nossa reação a elas.
Os
contatos 'on-line' têm uma vantagem sobre os 'off-line': são
mais fáceis e menos arriscados – o que muita gente acha atraente.
Eles tornam mais fácil se conectar e se desconectar. Casos as coisas
fiquem 'quentes' demais para o conforto, você pode simplesmente desligar,
sem necessidade de explicações complexas, sem inventar desculpas,
sem censuras ou culpa. Atrás do seu 'laptop' ou do 'iPhone', com
fones no ouvido, você pode se cortar fora dos desconfortos do mundo
off-line. Mas não há almoços grátis, como diz
um provérbio inglês: se você ganha algo, perde alguma
coisa. Entre as coisas perdidas estão as habilidades necessárias
para estabelecer relações de confiança, as para o que
der vier, na saúde ou na tristeza, com outras pessoas. Relações
cujos encantos você nunca conhecerá a menos que pratique. O
problema é que, quanto mais você busca fugir dos inconvenientes
da vida off-line, maior será a tendência a se desconectar.
Amor
líquido é um amor 'até segundo aviso', o amor a partir
do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem
satisfação, e os substitua por outros que prometem ainda mais
satisfação. O amor com um espectro de eliminação
imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima
dele. Na sua forma 'líquida', o amor tenta substituir a qualidade
por quantidade – mas isto nunca pode ser feito, como seus praticantes
mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom lembrar que o amor
não é um 'objeto encontrado', mas um produto de um longo e
muitas vezes difícil esforço e de boa vontade.
Em
um mundo 'líquido', em rápida mutação, 'compromissos
para a vida' podem se revelar como sendo promessas que não podem
ser cumpridas, deixando de ser algo valioso para virarem dificuldades. O
legado do passado, afinal, é a restrição mais grave
que a vida pode impor à liberdade de escolha. Mas, por outro lado,
como se pode lutar contra as adversidades do destino sozinho, sem a ajuda
de amigos fiéis e dedicados, sem um companheiro de vida, pronto para
compartilhar os altos e baixos? Nenhuma das duas variedades de relação
é infalível. Mas a vida também não é.
Além disto, o valor de um relacionamento é medido não
só pelo que ele oferece a você, mas também pelo que
oferece aos seus parceiros. O melhor relacionamento imaginável é
aquele em que ambos os parceiros praticam esta verdade.
Em
uma vida regulada por mercados consumidores, as pessoas passaram a acreditar
que, para cada problema, há uma solução. E que esta
solução pode ser comprada na loja. Que a tarefa do doente
não é tanto usar sua habilidade para superar a dificuldade,
mas para encontrar a loja certa que venda o produto certo que irá
superar a dificuldade em seu lugar. Não foi provado que essa nova
atitude diminua nossas dores. Mas foi provado, além de qualquer dúvida
razoável, que a nossa induzida intolerância à dor é
uma fonte inesgotável de lucros comerciais. Por esta razão,
podemos esperar que esta nossa intolerância se agrave ainda mais,
em vez de ser atenuada.
Não
é o ideal de perfeição que lubrifica as engrenagens
da indústria de cosméticos, mas o desejo de melhorar. E isto
significa seguir a moda atual. Todos os aspectos da aparência corporal
são, atualmente, objetos da moda, não apenas o cabelo ou a
cor dos lábios, mas os tamanhos dos quadris ou dos seios. A 'perfeição'
significaria um fim a outras 'melhorias'. Na cirurgia plástica, são
oferecidos aos clientes cartões de 'fidelidade', garantindo um desconto
nas sucessivas cirurgias que eles certamente irão realizar. Assim
como a indústria de celebridades, a indústria cosmética
não tem limites, e a demanda por seus serviços pode, a princípio,
se expandir infinitamente.
O
'grande público' precisa de celebridades, de pessoas que estejam
no centro das atenções. Pessoas que, na ausência de
autoridades confiáveis, líderes, guias, professores, se oferecem
como exemplos. Diante do enfraquecimento das comunidades, estas pessoas
fornecem 'assuntos-chave' em torno dos quais as quase-comunidades, mesmo
que apenas por um breve momento, se condensam —para desmoronar logo
depois e se recondensar em torno de outras celebridades momentâneas.
É por isto que a indústria de celebridades está garantida
contra todas as depressões econômicas.
Na
lógica das armas de fogo, uma vez carregadas, em alguém ou
em alguma coisa elas deverão ser descarregadas.
No
Brasil, as favelas servem como uma lixeira para um número enorme
de pessoas tornadas desnecessárias em partes do País onde
suas fontes tradicionais de sustento foram destruídas – para
quem o Estado não tinha nada a oferecer nem um plano de futuro. Mesmo
que não declararem isso abertamente, as agências estatais devem
estar felizes pelo fato de o povo nas favelas tomar os problemas em suas
próprias mãos. Por exemplo, ao construir seus barracos rapidamente
e de qualquer forma, usando materiais instáveis, encontrados ou roubados,
na ausência de habitações planejadas e construídas
pelas autoridades estaduais ou municipais para acomodá-los.
Epilogando
(Pondo o Dedo na Ferida)
Chorando,
chiando,
clamando – justiça!
–
somos
todos atores na mesma injustiça.
O
imposto que é pago por um pão francês
é
o mesmo... Pobre ou rico seja o freguês!
É
isto que nos diferencia dos animais:
cagamos e acumpliciamos cada vez mais.
Pensamos
assim:
— Nada tenho com isso.
Primeiro,
a família; outro é meu compromisso.
Entretanto,
até a raiz dos nossos cabelos
–
pêlo por pêlo – todos os nossos pêlos
estão
envenenados pela cumplicidade.
Quando
será que compreenderemos?
Quando
será que nos comiseraremos?
Quando
gritaremos: — Enfim, Fraternidade!?