Eram
mais ou menos seis horas da tarde do primeiro sábado da primavera.
Zan havia terminado a conferência que fora fazer em uma fraternidade
iniciática pouco conhecida, e, nos lindos jardins da Residência,
conversava animadamente com alguns irmãos e oficiais da organização,
quando uma senhora de uns quarenta anos se aproximou, e disse:
—
Gostei muito da sua conferência, meu
irmão; não compreendi tudo, mas, para mim, foi deveras educativa.
Zan
voltou-se para o lado de onde viera a voz, e seus profundos olhos azuis
viram uma jovem senhora sentada em uma cadeira de rodas. Ao seu lado, estava
um rapaz de uns vinte anos, que a jovem senhora se apressurou em apresentar:
—
Este
é meu filho, Eduardo. Ele sempre me acompanha, pois não posso
andar. É o meu anjo protetor.
Zan
ficou em silêncio por alguns instantes, e perguntou:
—
E qual é o seu nome, minha
irmã?
—
Eu
recebi o nome da minha minha avó materna; eu me chamo Marta.
Zan
voltou a ficar em silêncio, dirigindo seu olhar para o centro da testa
da jovem senhora. De repente, um calor agradável começou a
subir pela sua coluna vertebral, e uma mudança vibratória
começou a se manifestar naquele lindo jardim. O ar pareceu se tornar
mais leve, e, em volta da jovem senhora, um arco luminoso começou
a se formar, embelezando ainda mais aquele lindo sábado de primavera.
Entretanto, nenhum dos presentes percebeu qualquer mudança; apenas
Zan sabia o que estava acontecendo e o que iria acontecer em seguida.
Imediatamente,
como em um filme, Zan pôde, então, ver psiquicamente o porquê
de aquela jovem senhora estar aprisionada àquela cadeira de rodas
há exatos dezenove anos. Depois de ter dado à luz ao seu filho,
ela nunca mais pôde ficar de pé. Mas, não havia rancor
nem revolta ou frustração em seu Coração. Marta
sempre fora muito espiritualizada, e aceitava aquele fardo com resignação.
Sabia perfeitamente que era uma dura compensação que estava
cumprindo, mas, talvez, por medo ou por vergonha, nunca se interessou, direta
ou indiretamente, em pesquisar o motivo daquela dolorosa provação.
Ela acreditava que ficaria presa àquela cadeira de rodas até
o último dos seus dias; logo, saber ou não saber o porquê
daquela retribuição incapacitante não resolveria nada.
O
interessante nesta história, que bem poderia ter acontecido, é
que, em um dado momento, Zan percebeu que Marta, por seu nobre comportamento
frente à paralisia psicológica que sucedera logo após
o parto, já havia compensado integralmente os desvios do passado,
e as causas que haviam posto em ação a Lei de Conseqüência
(também conhecida como Lei da Reciprocidade, Lei da Ação
e Reação, Lei de Causa e Efeito, Lei da Compensação,
Lei da Retribuição ou, ainda, Lei de Causação
Ética) já haviam produzido os efeitos educativos necessários.
Basicamente, pode-se dizer que a causa é primária; o efeito
é secundário. Mas, o efeito só poderá se manifestar,
se as causas entrarem em ação. Logo, não pode haver
compensação para algo que não aconteceu; mas, o que
acontecer, em qualquer época, deverá ser compensado. Remissão
por remissão, mesmo que haja arrependimento, não existe no
Universo. O arrependimento sincero poderá aliviar a compensação;
entretanto, jamais a suprimirá integralmente. Marta, entretanto,
não tomara propriamente consciência das falhas que suscitaram
aquela específica compensação, mas, desde que ficou
impossibilitada de andar, em um superlativo esforço de regeneração,
lutou para corrigir as máculas e os maus costumes de sua personalidade
na presente encarnação. Hoje, na verdade, depois de diuturno
e incansável empenho, poder-se-ia dizer que ela quase havia se tornado
uma santa, pois vivia retamente em pensamentos, palavras e ações.
As práticas inferiores e desarmonizadoras de encarnações
passadas, ainda que, para preservação de sua própria
sanidade, dela fossem desconhecidas, certamente, tinham sido transmutadas
e foram ultrapassadas. Era como se Marta tivesse escrito em seu Átomo-semente:
'a partir desta vida, eu e o
meu Deus seremos um; não
me esconderei mais da Santa LLuz.' Em resumo: Zan constatou
que o necessário e educativo ajuste estava completado, e se Marta
permanecesse presa àquela cadeira de rodas, seria inteiramente inútil.
Então,
Zan se aproximou de Marta, ajoelhou-se ao seu lado e a abraçou carinhosamente.
Mentalmente, pronunciou uma Santa Palavra só conhecida dos Altos
Iniciados, induzidora e redentora, e, à sua orelha, sussurrou:
—
Minha
irmã Marta: o tempo de suas dores está concluído. Levante!
Eu a ajudarei.
Ao
terminar de proferir estas palavras, o calor agradável que subira
pela coluna vertebral de Zan, agora, se transformara em um Fogo Alquímico
abrasador. Marta tremia convulsivamente, e uma sensação de
paz profunda logo invadiu todo o seu corpo. Então, um som inaudível
ressoou em seu interior. O que foi misticamente programado para se consumar
estava consumado completamente.
—
Levante!
Agora! — insistiu fraternalmente
Zan.
Auxiliada
por Zan e por seu filho, ainda que meio temerosa, Marta se pôs de
pé. Afinal, foram dezenove anos!
Claudicante,
Marta deu alguns passos, e percebeu que podia andar novamente.
—
Meu Deus! Meu Deus! O que aconteceu?
—
Não
se preocupe — disse Zan. Em
nossa Irmandade, você aprendeu o funcionamento da Lei de Conseqüência,
que não pune nem premia; apenas educa. Como está
escrito em Gálatas, VI: 7, 'o que o homem semear, isto mesmo colherá',
o que repete a sentença dos Puranas hinduístas: 'Todo homem
colhe as conseqüências de suas próprias obras.' Por esta
Lei, justiça absoluta é assegurada para todos os
seres humanos, justiça que não fica aquém nem vai além
do que é necessário. A coisa toda, minha irmã, é
exatamente como está escrito em O Caibalion – livro que contém
a essência dos ensinamentos de Hermes Trismegistus, tal como foi ensinado
nas escolas herméticas do Antigo Egito e da Grécia: 'Tudo
tem fluxo e refluxo; tudo tem suas marés; tudo sobe e desce; tudo
se manifesta por oscilações compensatórias; a medida
do movimento à direita é a medida do movimento à esquerda;
enfim, o ritmo é a compensação. Toda causa tem seu
efeito, todo efeito tem sua causa. Tudo acontece de acordo com a Lei. O
acaso é simplesmente o nome dado a uma Lei desconhecida. Há
muitos Planos de Causalidade, porém, nada pode escapar à Lei.'
Minha irmã: em sua antepenúltima encarnação,
aqui na Terra, você cometeu certos atos que necessitavam ser compensados.
Você os compensou com dignidade e galhardia. Ficar tolhida nesta cadeira
de rodas até o final desta vida seria, ao mesmo tempo, um desperdício
e uma imprestabilidade. Eu pude ver todo o quadro do seu passado e sua maneira
de agir no presente, e apenas tive o privilégio de auxiliar você
a se libertar desta carga. Como você sabe muito bem, aqui, hoje, não
aconteceu um milagre, pois milagres inexistem; minha interferência
foi apenas altruística e equilibradora. Então, compreenda:
o mérito é exclusivamente seu.
Mas,
Marta não se conteve, e disse: — Oh! muito, muito
obrigado. Que Deus o abençoe por toda a eternidade.
—
Não,
minha querida irmã; não me agradeça. Agradeça
a você e ao Deus de seu Coração, que a tem Illuminado.
O mérito é seu, repito; não meu. Todavia, na verdade,
os agradecimentos são tão desnecessários e inócuos
quanto as ingratidões. O que tiver de acontecer, acontecerá.
Sempre. As Leis Cósmicas da Necessidade e de Conseqüência
não podem ser abolidas nem substituídas. É por meio
delas – e só por meio delas –
que seremos reintegrados.
Morrer e viver são aspectos ou fases indissociáveis e essenciais
da mesma moeda. Mas, tanto encarnar nesta Terra quanto compensar o que já
foi compensado –
no que concerne
ao espírito educacional intrínseco a estas duas Leis –
se tornam inúteis,
quando o aprendizado está concluído, e o ser, digamos assim,
foi diplomado. E, por assim dizer, entenda bem, eu só pude intervir
porque pude intervir; se não pudesse, não interviria. Em outro
sentido, é por isto que os Nirmânâkâyas que aqui
se projetam – 'sem qualquer recompensa futura na ordem evolutiva,
pois, no sentido comum desta palavra, não há renascimentos
para eles,' como ensina Madame Blavatsky em sua Doutrina Secreta –
fazem-no volitivamente e exclusivamente por amor à Humanidade.
Como eu disse, e
Eles sabem muito bem, não há prêmio nem castigo no Universo.
A opção
de aqui retornar é o ato mais sublime que um Illuminado poderá
praticar.
Marta
ouviu atentamente as palavras de Zan, e disse: — Então
agradecerei em silêncio, mas agradecerei. Se não fosse por
seu intermédio, provavelmente, eu não me levantaria desta
cadeira até passar pela transição.
—
Está
bem —
disse Zan —
não vamos discutir por isto. Eu é que deveria agradecer a
você pela oportunidade de ter podido servir. Agora, acho melhor você
descansar um pouco, pois suas pernas estão enfraquecidas pelos dezenove
anos de inatividade. Logo que puder, recomendo que você contrate os
serviços profissionais de um fisioterapeuta por algum tempo. Vá
em paz, minha irmã.
.....................
Três
anos depois, totalmente recuperada, Marta reencontrou Zan no mesmo lindo
jardim daquela augusta Residência. Abraçaram-se ternamente
por algum tempo, e ela, enfim, disse:
—
Não
adianta, meu querido irmão. Você poderá até se
aborrecer comigo. Eu não me importo; mas, todos os dias, agradeço
a você o bem que recebi.
Zan
apenas sorriu.
A
medida do movimento à direita
é a medida do movimento à esquerda.