Teixeira de Pascoaes
(Reflexões em Gotas)

 

 

 

Teixeira de Pascoaes

Teixeira de Pascoaes

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Intróito e Objetivo do Estudo

 

 

 

Este é mais um estudo que estou disponibilizando, elaborado e intencionado no sentido de (tentar) sacudir o pó e espanejar as teias de aranha dos nossos porões mentais, onde, geralmente, todos nós, guardamos cacarecos e tarecos velhos, sujos e inúteis, saudosos às avessas de um nada que para nada serve. Esses somos nós: eu e você!

 

O sacudidor-espanejador do momento é Teixeira de Pascoaes – um filósofo-místico português que viveu além de seu tempo, e, por isto, por muito tempo, permaneceu desconhecido do grande público, ainda que o pintor, poeta e principal representante do surrealismo português Mário Cesariny de Vasconcelos (Lisboa, 9 de agosto de 1923 – Lisboa, 26 de novembro de 2006) o tivesse elegido como poeta superior a Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 – Lisboa, 30 de novembro de 1935), o que, sinceramente, não posso compreender e muito menos concordar.

 

Ora, como é possível paralelizar, superiorizar ou inferiorizar, ainda que seja para um pouquinho mais ou para um pouquinho menos, E, inda tonto do que houvera,/À cabeça, em maresia,/Ergue a mão, e encontra hera,/E vê que ele mesmo era/A Princesa que dormia, escrito por Fernando Pessoa, com O destino do homem é ser a Consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus, escrito por Teixeira de Pascoaes? Paralelizar, superiorizar ou inferiorizar, neste caso, só pode dar em um angu-de-caroço surreal e caleidoscópico, para nem Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol (Figueres, 11 de maio de 1904 – Figueres, 23 de janeiro de 1989) nem Mário Cesariny de Vasconcelos botarem um defeitinho sequer! Enfim, ou apre(e)ndemos agora ou apre(e)nderemos depois a descaleidoscopizar nossas ignorâncias, nossos preconceitos e nossas escolhas (deliberadamente) incoerentes!

 

 

 

 

Pascoaes e Pessoa foram únicos, como você e eu somos únicos. Na verdade, essa coisa fedegosa de fazer comparações é de um mau gosto sesquipedal e infernal; misturativamente, revela sempre falta de refinamento, incultura e gosto estético preconceituoso e inelegante. Bolas! Bolinhas! Bolões! Teixeira de Pascoaes foi Teixeira de Pascoaes; Fernando Pessoa foi Fernando Pessoa; você é você; eu sou eu. Se somarmos – ainda que isto não seja coisa que se some – somos todos Um, como pictorizei aí embaixo!

 

 

 

Biografia de Teixeira de Pascoaes
(Editada de Pedro Teixeira da Mota
)

 

 

 

Teixeira de Pascoaes, pseudônimo literário de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, (Amarante, 8 de novembro de 1877 – Gatão, 14 de dezembro de 1952) foi um poeta e escritor português, principal representante do Saudosismo, e viverá sempre uma relação profundíssima e original com a Natureza. Pascoaes era um eremita, um místico natural e não raras vezes foi descrito como detentor de poderes sobrenaturais. Um dia, um grupo de estudantes que o foi visitar confundiu-o com o jardineiro da quinta, tão humilde e arcaica era a sua aparência: um homem baixo, franzino e seco.

 

Desde novo nutrido por figuras familiares e populares desse berço de Portugal que é o Entre-Minho e Trás-os-Montes, com a sua figura esquálida e nervosa perseguirá durante toda a vida uma missão de realizar o ideal do ressurgimento pátrio, a reconciliação do Ateísmo e do Teísmo, do Passado e do Futuro, do Homem e da Natureza, do Cristianismo e do Paganismo numa doutrinação poético-religiosa marcada pelo saudosismo, fusão de lembrança, da matéria e do Espírito.

 

Licenciou-se em Direito, em 1901, e exerceu funções judiciais durante oito anos, mas depois as abandonou para se consagrar à sua missão poético-profética. Em 1913, com alívio, dá por terminada a sua carreira judicial. Sobre esta sua penosa experiência jurídica dirá: Eu era um Dr. Joaquim na boca de toda a gente. Precisava de honrar o título. Entre o poeta natural e o bacharel à força, ia começar um duelo que durou dez anos, tanto como o cerco de Tróia e a formatura de João de Deus. Vivi dez anos, num escritório, a lidar com almas deste mundo, o mais deste mundo que é possível — eu que nascera para outras convivências.

 

Em 1909, vai a Londres visitar a sua amada Leonor, mas regressa desiludido. E, em 27 de agosto de 1911, no frondoso choupal de Coimbra, Álvaro Pinto, Leonardo Coimbra, Augusto Gil e Pascoaes decidem lançar o movimento da Renascença Portuguesa, assumindo Pascoaes a direção da Revista Águia. Será nela que se apelará à reconstrução do País através duma orientação das energias intelectuais em prol do ressurgimento da Alma Portuguesa. É uma época heróica de polêmicas, conferências, atuações, sobretudo de Pascoaes e de Leonardo.

 

As obras poéticas de Pascoaes retratam, a partir duma vivência semi-clarividente, tanto da paisagem da natureza bruta como da humana, uma estranha simbiose dos mundos invisíveis das sombras, das almas e das essências. Uma imaginação prodigiosa, uma sensibilidade intensa, permitem-lhe intuir relações cósmicas bastante acertadas.

 

Com o decorrer dos anos, a sua poesia cede lugar à prosa, e podemos dizer que no Norte, Pascoaes, Leonardo Coimbra e outros afirmaram a Tradição Portuguesa numa Criação Crístico-panteísta, enquanto que no Sul as correntes positivistas e modernistas se desenvolveram mais. Com o tempo, a independência de Pascoaes de escolas políticas, religiosas ou literárias impediram-no de ser conhecido do grande público, que aliás só agora é que começa a existir. As suas obras (sobretudo o Homem Universal) estão, pois, ainda muito virgens, e delas podem relampejar impulsos bem profundos e transformantes das almas portuguesas.

 

Em resumo, como escreveu Dulcínea Teixeira, o pensamento de Teixeira de Pascoaes manifesta uma particular forma de religiosidade, que provém desde logo desta presença de Deus na Natureza e da sua evidenciação nela. O autor concebe uma ordem na natureza, um princípio teleológico alheio ao acaso que deixa supor uma Inteligência Ordenadora que presida às transformações da realidade. Todo o esforço humano será para penetrar o Mistério da Vida e do Cosmos.

 

Pascoaes, que parece mesmo não ter sido feito para este mundo, morreu aos 75 anos, em Gatão, de bacilose pulmonar, alguns meses depois da morte da sua mãe, em 1952.

 

 

 

 

A Obra Pascoalina
(Reflexões em Gotas)

 

 

 

 

Da Atlântida submersa em nosso ser, apenas se mostram, fora de água, dois ou três ilhéus escalvados e desertos.

 

Tudo, em volta de nós,/Tinha um aspecto de alma./Tudo era sentimento,/Amor e piedade.

 

A alma exprime o natural sobrenaturalizado, isto é, dum modo original, porque a alma, oriunda de tudo, é senhora de tudo, independente. Sendo todas as coisas, é outra coisa. É todas as árvores e a Árvore. Quando se exalta e canta, num poeta, pode atingir a Divindade, vence o tempo e o espaço, as duas barreiras tenebrosas. Mas o sábio pretende observar o mundo, com uma isenção perfeita, surpreender a realidade limpa de detritos humanos, materialmente pura. Deseja aniquilar a sua personalidade criadora, em benefício do senso crítico. Conseguirá ele, um dia, isolar-se, por completo, dessa personalidade contagiosa? E, distanciado de si mesmo, falecido em si mesmo, contemplar o universo, com uns olhos de caveira inteligente?

 

Os mundos, que são existências, giram no espaço vazio – essa não existência ilimitada.

 

Por mais diferentes que sejam as nossas idéias – sob os pontos de vista religioso, filosófico ou artístico – poderemos sempre nos entender, porque há um lugar em que todos os princípios e todas as idéias fraternizam.

 

Não me cansarei de afirmar que a Saudade é, em sua última e profunda análise, o amor carnal espiritualizado pela Dor ou o amor espiritual materializado pelo Desejo; é o casamento do Beijo com a Lágrima; é Vênus e a Virgem Maria numa só Mulher. É a síntese do Céu e da Terra; o ponto onde todas as forças cósmicas se cruzam; o centro do Universo: a alma da Natureza dentro da alma humana e a alma do homem dentro da alma da Natureza. A Saudade é a personalidade eterna da nossa Raça; a fisionomia característica, o corpo original com que ela há-de aparecer entre os outros Povos. A Saudade é a manhã de nevoeiro; a Primavera perpétua, 'a leda e triste madrugada' do soneto de Camões. É um estado de alma latente que amanhã será Consciência e Civilização Lusitana...

 

A religião interessa-me como Revelação instintiva ou consciente (poesia pura e ciência pura); e não como regra de conduta. Deus não está nos preceitos da Moral, que é de origem social, um produto da vida em comum. Deus é, além de tudo, o espírito criador; e o homem, antes de tudo, é o ser. O cidadão é uma individualidade fictícia; não pesa na balança. Mas o ser imprime as suas pegadas na lama dos caminhos; e a lua contempla-o, e ouve-o, quando ele vai, de noite, a falar só.

 

O silêncio é a alma nua das cousas...

 

Renascer é dar a um antigo corpo uma nova alma fraterna, em harmonia com ele. O passado é indestrutível; é o abismo, a treva onde o homem mergulha as raízes do seu ser, para dar a nova luz do futuro à sua flor espiritual.

 

 

 

 

O pecado é mais fecundo do que a virtude. A virtude é ponto de chegada, e não caminho a percorrer...

 

O céu é apenas um disfarce azul do inferno.

 

Nunca me conformei com um conceito puramente científico da Existência, ou aritmético-geométrico, quantitativo-extensivo. A existência não cabe numa balança ou entre os ponteiros dum compasso. Pesar e medir é muito pouco; e esse pouco é ainda uma ilusão. O pesado é feito de imponderáveis, e a extensão de pontos inextensos, como a vida é feita de mortes. A realidade não está nas aparências transitórias, reflexos palpitantes, simulacros luminosos, um aflorar de quimeras materiais. Nem é sólida, nem líquida, nem gasosa, nem eletromagnética, palavras com o mesmo significado nulo. Foge a todos os cálculos e a todos os olhos de vidro, por mais longe que eles vejam, ou se trate dum núcleo atômico perdido no infinitamente pequeno ou da nebulosa Andrômeda, a seiscentos mil anos de luz da minha aldeia! A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão. Esta apenas descobre um simples jogo de forças repetido ou modificado lentamente, gestos insubstanciais, formas ocas, a casca de um fruto proibido. Mas o miolo é do poeta. Só ele saboreia a vida até ao mais íntimo do seu gosto amargoso, e se embrenha nela até ao mais profundo das suas sensações e sentimentos. É o ser interior a tudo. Para ele, a realidade não é um conceito abstrato, idéia pura, imagem linear; é uma concepção essencial, imagem hipostasiada, possuída em alma e corpo, nupcialmente, dramaticamente, à São Paulo ou Shakespeare.

 

Deus, sentindo a imperfeição da sua obra, não a pôde destruir. Noé salvou-se na barca. Resta apenas emendá-la, expiar o crime. É o significado do Calvário. Jesus é o remorso de Deus, o Filho.

 

Temos o pavor da morte e o da desgraça; e ainda uma aspiração insatisfeita, um desejo indefinido de outra coisa, talvez o instinto da nossa grandeza universal, condenada a ser uma triste criatura.

 

A ciência desenha a onda; a poesia enche-a de água.

 

As coisas que me cercam silenciosas/São almas a chorar que me procuram./Quantas vagas palavras misteriosas/Neste ar que aspiro, trêmulas, murmuram!

 

A dor floresce um ramo e faz brotar um verso.

 

Somos a nuvem, o ser ondulante de incerteza, onde o Tempo adquire uma vaga figura esfumada em vagos sentimentos. Somos a melancolia, a saciedade, talvez o instinto da nossa vida casual, fora duma divina Intenção, sucedendo-se, em virtude de mil acasos favoráveis, até que a falta, também casual, dum só acaso nos precipite no sepulcro!

 

Os animais são pessoas, como nós somos animais.

 

O aperfeiçoamento da Humanidade depende do aperfeiçoamento de cada um dos indivíduos que a formam. Enquanto as partes não forem boas, o todo não pode ser bom. Os homens, na sua maioria, são ainda maus, e é, por isso, que a sociedade enferma de tantos males. Não foi a sociedade que fez os homens; foram os homens que fizeram a sociedade. Quando os homens se tornarem bons, a sociedade tornar-se-á boa, sejam quais forem as bases políticas e econômicas em que ela assente. Dizia um bispo francês que preferia um bom muçulmano a um mau cristão. Assim deve ser. As instituições aparecem com as virtudes ou com os defeitos dos homens que as representam.

 

Se Deus não fosse um absurdo, quem lhe ligaria importância ou acreditaria Nele?

 

Nós encontramos o soldado em várias espécies inferiores. A formiga tem exércitos e creio que polícia civil. Qualquer obscuro passarinho é um autêntico Bleriot.1 Não há industrial alemão que se aproxime da abelha. O canto do galo e os versos da Ilíada. João de Deus e o rouxinol, o castor e o arquiteto, a sub-marinha e os tubarões representam cousas e criaturas que se confundem... Mas o Filósofo revela-se apenas no homem. A Filosofia é o sinal luminoso que o destaca da mesquinha escuridade ambiente... Só o homem é suscetível de magicar, de refazer a Criação à sua imagem... O homem corrige Deus.

 

É possível que entre o crime e a inspiração haja um certo parentesco.

 

Sem poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou o conhecimento científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmônico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do antropóide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade atual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à selva a regressar ao Paraíso. E assim, igualando-se aos bichos, mente ao seu destino, que é ser o Coração e a Consciência do Universo: o Sagrado Coração e o Santo Espírito. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor.

 

 

Por trás dos conhecimentos euclidiano ou científico,
houve, há e sempre haverá um Coração.

 

Somos a consciência dum Acaso, desencantado, que perdeu a divindade… Deus, que seria de ti se não fossem as aves e as flores?!

 

Quem sofre resplandece. A lágrima alumia.

 

A monotonia é a repetição do mesmo milagre. A alma é tão ávida e exigente de maravilhoso que não consente a demora do mesmo prodígio, do mesmo assombro. A luz que nos deslumbra, neste momento, horas depois, deixa-nos às escuras.

 

A Terra ama-nos de tal modo que nos devora, por fim, num acesso de luxúria!

 

Todo o enigma da vida está fechado na cabeça de uma formiga.

 

Deus não está nos preceitos da Moral.

 

Jeová é a caricatura do homem, o homem exagerado em altas nuvens, pondo um trovão na voz e um relâmpago nos olhos.

 

Somos, como indivíduo, um animal religioso; e como coletividade, um animal das selvas. Individualizar os homens, esculpir a massa informe, é dar uma fisionomia própria a cada um, a consciência iluminada do seu ser e, com ela, o sentimento de responsabilidade e liberdade.

 

Ser uma coisa evidente é ficar reduzido a quase nada.

 

O Olimpo e os seus habitantes cabem nesta palavra: infância. A mocidade é já velhice, política, profissão e uma certa loucura em que ardem ignobilmente os últimos farrapos do nosso ser divino. A infância é uma saudade e a mocidade um remorso.

 

Que é morrer? É penetrar na noite do Passado; é abrir a porta que se fechou, atrás de nós, quando entramos neste mundo; é ficar do lado de fora, em pleno vácuo infinito…

 

A criatura vulgar só entende a palavra que atingiu a maioridade, o uso pleno da razão – quer dizer, a palavra morta.

 

O Bem e o Mal, a Justiça, a Liberdade, eis aí letras grandes abrindo palavras ilusórias, pórticos solenes de papelão rasgados sobre o Nada. Comédias que enriquecem os empresários. Filósofos, filantropos, apóstolos, incluindo o próprio S. Pedro… É a pior gente que há no mundo! Comediantes do Eterno; saltimbancos do Divino!

 

Forçar as portas do Infinito! O belo sonho desvairado! Forçá-las a tiros de revólver, como Antero!2

 

Só os animais avistam a Divindade; nós o mais que podemos é adivinhá-la, num recanto ainda intacto do nosso Coração. Existirá esse recanto porventura? Existe e é profundo como a nossa ignorância.

 

Há momentos em que um fio de seda sustentaria no ar um penedo; e há outros em que o sopro duma criança apagaria uma estrela…

 

A dor é a estrada que vai dar ao Ideal.

 

A saudade dos velhos é a inocência das crianças, ressurgindo, embora triste, porque se avizinha a noite. Na inocência e na saudade, há o mesmo sentimento da Verdade oculta nas formas enganadoras, a mesma revelação do mistério, a mesma luz…

 

A existência diminui as criaturas; redu-las a linhas materiais, a uma presença bruta e caída sob o domínio dos sentidos.

 

Os primeiros anos da nossa vida têm uma extensão secular; a dos outros vai diminuindo, conforme se aproximam da atualidade… E o dia de ontem cabe dentro de um minuto.

 

Era o ser de olhar duplo, contemplando/O reino a que pertence e o seu etéreo/Desdobramento anímico; e, por isso/Olhava as duas faces do Mistério.

 

Só os olhos que choram sabem ver.

 

A vida é uma tragédia da qual nos esquecemos quando os intervalos se prolongam. Esquecemo-nos nesta branda claridade de todos os dias sossegados. Mas a corrente elétrica interrompe-se, de súbito, e o fio que se funde desentranha-se em labaredas.

 

A saudade, incidindo sobre o futuro, é esperança ou desejo, como é lembrança quando incide sobre o passado. O primeiro elemento da saudade é criador; o segundo fixa e perpetua. Da ação combinada destes dois elementos resulta o existente material e espiritual.

 

A saudade ressuscita os mortos, dentro em nós; mas, se enlouquece, põe-nos a viver, cá fora, à luz do Sol. A loucura tem outra energia. Faz o mármore e a estátua. O mundo foi construído assim.

 

No artista verdadeiro, a forma deriva da emoção; brota de dentro dela e com ela. Não é um vestuário imposto ao pensamento: é a pele viva.

 

O luar é a luz do Sol vestida de humildade.

 

A caricatura é o riso amarelo da alma, ante a sua origem e o seu destino: ante o Macaco e a Morte. E é, portanto, o pior inimigo duma concepção otimista da Vida. A caricatura nasceu da morte da alma imortal. É filha da Desilusão.

 

Sou poeta quando entendo a voz do vento,/ E me vejo fantasma e sentimento.

 

As palavras são seres.

 

Representamos o objetivo e o subjetivo, a quantidade e a qualidade, o número cardinal e o ordinal, a desordem corpuscular e a música das esferas, a fatalidade e a liberdade. Representamos tudo isso, num cenário sólido, líquido e gasoso. E, por isso, comemos, bebemos, e respiramos – três virtudes do fôlego animado, porque muda o que come, em sensações, o que bebe em sentimentos e o que respira em idéias claras ou obscuras, conforme é límpido o ar ou enevoado... É de sólida origem a sensação; o sentimento é já de origem fluídica; e, então, o pensamento é só cor azul ou imagem íntima da luz.

 

Tudo está em tudo.

 

 

 

 

Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demônios e os anjos alimentam.

 

 

 

Poeta

 

Quando a primeira lágrima aflorou

Nos meus olhos, divina claridade

A minha pátria aldeia alumiou

Duma luz triste, que era já saudade.

 

Humildes, pobres cousas, como eu sou

Dor acesa na vossa escuridade...

Sou, em futuro, o tempo que passou-

Em num, o antigo tempo é nova idade.

 

Sou fraga da montanha, névoa astral,

Quimérica figura matinal,

Imagem de alma em terra modelada.

 

Sou o homem de si mesmo fugitivo;

Fantasma a delirar, mistério vivo,

A loucura de Deus, o sonho e o nada.

 

 

 

Somos apenas defuntos animados, pobres esqueletos revestidos dum tecido efêmero ou ilusório. Nos seus fios vibram as ondas celestes, como lampejos da Consciência Universal, que se multiplicam por um número que foge da Aritmética e é tão luminoso como o gênio de Pitágoras.

 

O corpo tende para a alma, a alma tende para o corpo. Resultado? Um corpo animado que não é alma; uma alma corporizada que não é corpo: o ser que vive.

 

Vivemos porque os nossos olhos encarceram as cousas e os seres em pequenas formas limitadas. Que seria de nós se as víssemos nos seus aspectos verdadeiros? A presença de uma árvore petrificar-nos-ia, de repente!.

 

O que descobrimos do mundo é o que resta do seu desencanto ao ser contemplado pelos homens: os escombros dum incêndio.

 

As divinas Imagens que viveram outrora, em amor e sonho, na alma dos fiéis, existem, hoje, em madeira e tinta, nos altares. O português – vede o grande mal! – sofre de desencanto e de velhice. Mumificou em formas de esqueleto, e ri, como as caveiras. Porque o riso é máscara. Encobre sempre qualquer coisa que nos falta. O riso português encobre um Deus defunto.

 

O amor não é natural; natural é a sensualidade e a crueldade. Basta a sensualidade para que haja vida; mas a vida humana só aparece com o amor.

 

A crença é tão indispensável à ciência como à religião. O sábio acredita no que vê; o místico ou o poeta naquilo que visiona. O que se vê corresponde a uma realidade sensível, e o que se imagina corresponde a outro aspecto da realidade. A imaginação é o sexto sentido, esse que atua na esfera do invisível.

 

O homem, sonhando, transborda de si mesmo, amplia o mundo, porque ilumina as suas dimensões desconhecidas. O sonho é alta temperatura, um estado térmico da alma, a sua incandescência.

 

Deus tem de ser afirmado e negado, pois afirmar e negar é a própria ação espiritual ou a liberdade de pensamento. Tanto serve Deus quem o nega como quem o afirma… É o conflito metafísico, o drama transcendente das almas, a sua razão de ser, a força que as sustenta à flor da vida. As almas, sem esse conflito, caem num conformismo estéril, numa espécie de castidade definhadora, que é o culto virginal da morte.

 

Em todo poeta verdadeiro existe um filósofo adormecido, como existe um poeta adormecido em todo verdadeiro filósofo. O poeta filosofa depois de cantar e o filósofo canta depois de filosofar.

 

Viver é vencer a morte, animar o nosso próprio ser e a paisagem… Viver é ser criança, ouvir falar as árvores e as fontes, ver as asas do zéfiro, o perfil da aurora. Viver é identificar tudo à nossa pessoa, que é uma síntese do Universo – o Universo dado numa flama anímica.

 

O homem nasce e morre várias vezes, desde que sai do berço até que entra no túmulo.

 

Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as coisas... Se fôssemos um ser definido, seríamos, então, um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição. A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo. Entre nós, o Verbo não encarnou inteiramente. Somos corpo e alma, Verbo encarnado e Verbo não encarnado, a matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o encobre e ondula em volta dele, e dança aos ventos da loucura... E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. Neste limbo interior, neste infinito espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura esse bicho do Demônio, que anda por esses 'boulevards', vestido à moda ou coberto de farrapos. Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga. Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demônios e os anjos alimentam. Vivo, porque espero. Lembro-me, logo existo.

 

A questão é ter ouvidos onde o Silêncio se faz Voz e ter uns Olhos onde o Invisível se veste de aparências.

 

Falta-nos alguém… Aquela pessoa que nós somos realmente… O que nos aflige e consome é esta ausência em que vivemos de nós próprios, esta distância infinita que separa o homem da sua alma, do seu espectro... É esta Saudade que nos mata!

 

O riso é um incêndio que arde desde os séculos, desde o tempo em que o mundo era uma estrela. O riso é o último lampejo duma estrela, transmigrando de alma em alma…

 

Que seria do mundo sem o homem? Permaneceria como abismado numa absoluta inexistência.

 

A alegria sai da alma, bate as asas no ar azul e é o sorriso de certas criaturas…

 

Há só milagres. Façamos o milagre da nossa libertação espiritual. Eis a grande questão, não hamlética, mas quixotesca, ibérica. Não se trata de ser ou de não ser, mas de ser absolutamente. E ser é querer ser. Sejamos nós, que a nossa pessoa, quanto mais destacada, mais perfeita.

 

Somos a nossa casa e todas a velhas sombras que a povoam…

 

Nunca bebeste, em manhãs de Sol, uma gota de orvalho? É água, céu e luz. Bebê-la é comungar a Criação!

 

A Morte é a pessoa feminina de Deus.

 

Paira, em tudo, uma voz emudecida.../E essa voz, que é penumbra/E já foi luz e vida,/O meu inquieto espírito deslumbra,/Para que ela traduza a Deus, numa oração,/A dor da Criação...

 

E a eterna luz do mundo/Toma formas estranhas, sem sentido,/Que nunca imaginei.../E vendo-as, dentro em mim, surpreendido,/Eu tive medo delas, e gritei...

 

Atingimos o Nada, a Unidade, a Divindade. Mas temos de admitir o Nada cheio de Tudo, a Unidade cheia de variedade, o simples muito complexo e a Divindade em farrapos humanos e desumanos. Atingimos o absurdo natural, o lógico paradoxo, em que a Existência a si mesma se desvenda, por intermédio da nossa alma.

 

O destino do homem é ser a Consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus.

 

 

 

Com prazer, vou epilogar:

 

 

 

 

 

Da Lemúria que alicerça

– em meu ser –

repercute o Mount Shasta.

Da Atlântida submersa

– em meu ser –

ressai o antiantonomasta.

 

 

Meu Eu Interno transformou

a inadequação

em compreensão e bondade.

Meu Coração transmutou

a separação

em união e compassividade.

 

 

 

 

 

______

Notas:

1. Louis Blériot (Cambrai, França, 1 de junho de 1872 – Paris, 2 de agosto de 1936) foi um aviador francês, talvez o mais popular de todos. Foi graças a ele que ficou demonstrada a utilidade do avião como instrumento militar (e mesmo de transporte de passageiros), quando ele realizou a travessia do canal da Mancha, em 1909. Após seu pouso bem sucedido na Inglaterra com o Blériot XI, o aeroplano ganharia o status de uma máquina com o potencial para transformar as relações entre as nações.

2, Antero Tarquínio de Quental – jurista, escritor (poeta, ensaísta e filósofo), doutrinador e propagandista republicano e socialista – nasceu em 18 de abril de 1842 em Ponta Delgada, no Açores. Em 1863 (ou 1864), Antero foi Iniciado Maçom, em Coimbra, ainda que, em relação ao Grande Arquiteto do Universo, para ele silêncio sempre silente, tenha escrito: Só me falta saber se Deus existe. Em 11 de setembro de 1891, por volta das 17 horas, atormentado por uma fome insaciável de justiça e de verdade, uma agonia filosófica sem-termo, Antero compra um revólver Lefaucheux. Pelas 20 horas, no Campo de São Francisco, lado norte, junto ao muro que fecha a cerca do Convento da Esperança, Antero suicida-se com dois tiros. Transportado para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia, não resiste e morre cerca das 21 horas, deixando capenga aquilo que se poderia denominar de reformas econômicas e sociais na Terra de minha mãe.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://pt.wikipedia.org/wiki/
Louis_Bl%C3%A9riot

http://citador.pt/pensar.php?pensamentos=
Teixeira_de_Pascoaes&op=7&author=20102

http://www.filologia.org.br/soletras/13/07.htm

http://www.cienciadasreligioes.eu/
wikipedia/index.php?title=Teixeira_de_Pascoaes

http://cvc.instituto-camoes.pt
/filosofia/1910a.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/
Teixeira_de_Pascoaes

http://cyberself-neurofilosofia.blogspot.com/
2009/11/teixeira-de-pascoaes-materialismo-e.html

http://www.pensador.info/
teixeira_de_pascoais/

http://joseeduardolopes.tripod.com/id30.html

http://www.triplov.com/poesia/
Teixeira-de-Pascoaes/index.htm

http://cvc.instituto-camoes.pt/
filosofia/1910a.html

http://pt.wikiquote.org/wiki/
Teixeira_de_Pascoaes

 

Música de fundo:

Tiro Liro Liro (repertório popular português)
Interpretação: Amália Rodrigues

Fonte:

http://www.belita.org/Music/