Thomas More
por Hans Holbein, o Jovem (1527)

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga


 

 

 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Thomas More (latinizado: Thomas Morus), Londres, 7 de fevereiro de 1478 – Londres, 6 de julho de 1535, foi um homem de leis e de Estado, diplomata, livre-pensador, escritor e advogado que ocupou vários cargos públicos, e, em especial, de 1529 a 1532, o de Lord Chancellor (Chanceler do Reino) de Henrique VIII Tudor (1491 – 1547), da Inglaterra. É geralmente considerado como um dos grandes humanistas do Renascimento. Foi canonizado como santo da Igreja Católica em 9 de maio de 1935, e sua festa litúrgica se dá em 22 de junho.

 

Thomas era homem de muito bom humor, caseiro e dedicado à família, muito próximo e amigo dos filhos. Dele se disse que era amigo de seus amigos. Entre estes se encontravam os mais destacados humanistas de seu tempo, como Desiderius Erasmus Roterodamus (1466 – 1536) e Juan Luís Vives (1492 – 1540). A sua obra mais famosa é De Optimo Reipublicæ Statu Deque Nova Insula Utopia (em português: Sobre o Melhor Estado de uma República e Sobre a Nova Ilha Utopia ou simplesmente Utopia, publicada em 1516, e que em grego, Utopos, significa em lugar nenhum). Neste livro – sua principal obra literária e escrita em latim – Thomas, através de um diálogo com o português de origem judaica Raphael Hythloday – que havia corrido o mundo em companhia de Américo Vespúcio – cria uma Ilha-reino imaginária, que alguns autores modernos viram como uma proposta idealizada de Estado e outros como sátira à Europa do século XVI, relatando os costumes e as instituições do povo utopiano. Seja como for, a Utopia, uma versão thomasiano-renascentista do Estado ideal de Platão, representa a primeira crítica fundamentada do regime burguês e encerra uma análise profunda das particularidades inerentes ao feudalismo em decadência, na qual, como bem escreveu Ridendo Castigat Mores, as gerações se sucediam sem finalidade, sem trabalho e sem pão. Thomas More, depois de ter feito na Utopia uma sátira a todas as instituições da época, edifica uma sociedade imaginária, ideal, sem propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e do solo, sem antagonismos entre a cidade e o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos supérfluos e luxos excessivos e com o Estado como órgão administrador da produção. Embora o caráter essencialmente imaginário e quimérico da Utopia, a obra de More, como pensam vários autores, fica na história do Socialismo como a primeira tentativa teórica de edificação de uma sociedade baseada na comunidade dos bens. E o seu nome, como afirmou (e com quem concordo) Castigat Mores, já citado, ficou para sempre incorporado ao vocabulário universal como o significado do todo sonho generoso de renovação social...

 

Entretanto, penso que a Utopia também possa ser lida, em parte e no tempo, como uma espécie de obra de frente para trás, uma justificativa antecipada de More por ter sido moral e religiosamente obrigado a resignar, dezesseis anos depois de sua publicação, à Chancelaria, que ele jamais pretendeu e que só aceitou por determinação real irrecusável, pois, logo no começo da obra, pela boca de Raphael Hythloday, afirma: os reis não sentirão falta se eu e dois ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos. Mais adiante, insiste: o sacrifício de meu sossego seria inútil à causa pública. Em primeiro lugar, os príncipes cuidam somente da guerra (arte que me é desconhecida e que não tenho qualquer desejo de conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de conquistar novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o profano, o crime e o sangue, não os detêm. Em compensação, ocupam-se muito pouco de bem administrar os Estados submetidos à sua dominação. E, mais adiante, justifica: Platão não ignorava isso; sabia, como nós, que os reis nunca seguiam os conselhos dos filósofos, se eles próprios já não o eram também. E um pouco mais abaixo: A filosofia não tem acesso na corte dos príncipes. Fica, então, a pergunta que jamais será respondida: será que Thomas sabia que um dia seria impositivamente convidado (melhor, então, seria dizer convocado) para ser Lord Chancellor de Henrique VIII, e que acabaria por ter que renunciar ao cargo? Eu vou arriscar uma resposta: sim, ele sabia. Um pouco mais abaixo, há uma justificativa para eu ter respondido desta forma, isto se a justificativa estiver correta.

 

Da História da Inglaterra se sabe que Thomas Wolsey, Arcebispo de York, não foi bem sucedido na tentativa de conseguir junto ao papa Clemente VII (início do Pontificado: 19 de novembro de 1523; fim do Pontificado: 25 de setembro de 1534) o divórcio e a anulação do casamento do rei Henrique VIII com Catarina de Aragão (que queria porque queria se divorciar de Catarina e se casar com Ana Bolena, que acabou decapitada e trocada por Jane Seymour, que não foi a última consorte, pois a ela se sucederam Ana de Cleves, Catarina Howard e a última e demasiado protestante, segundo Henrique VIII, Catarina Parr). Wolsey teve que, a contragosto, se demitir do cargo em 1529, e Thomas More foi escolhido e nomeado Chanceler; mas decide, como já foi dito acima, contudo, abandonar a Chancelaria, em 1532, por ser visceralmente contra o divórcio, em razão da doutrina católica sobre a indissolubilidade do matrimônio, e por Henrique VIII ter abjurado o Catolicismo e se ter atribuído unilateralmente a liderança da Igreja Católica da Inglaterra – uma hediondez, segundo o entendimento católico de More. Esta inabalável dignidade acabou lhe custando a vida. Foi preso na Torre de Londres (onde escreveu o Diálogo Sobre o Conforto Espiritual e a Atribulação), julgado, condenado à morte e posteriormente executado em Tower Hill, em 6 de julho de 1535. No momento da execução, suplicou aos presentes que orassem pelo monarca, e disse que morria como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro.

 

A execução de Thomas More, ordenada por Henrique VIII, foi e ainda é considerada uma das mais graves e injustas sentenças aplicadas pelo Estado contra um homem de honra, conseqüência da vingança pessoal de um rei despótico e absolutista. De Thomas, teria dito Erasmus Roterodamus: Thomas More é um homem que vive com esmero a verdadeira piedade, sem a menor ponta de superstição. Tem horas fixas em que dirige a Deus suas orações, não com frases feitas, mas nascidas do mais profundo do Coração. Quando conversa com os amigos sobre a vida futura, vê-se que fala com sinceridade e com as melhores esperanças. E assim é More também na Corte. Isto, para os que pensam que só há cristãos nos mosteiros... Ele não era alto nem baixo, caminhava com o ombro direito mais levantado que o esquerdo, e parecia nascido para a amizade. Sempre com uma expressão de alegria amigável no rosto, estava sempre pronto a se divertir, fosse com o prazer de ouvir os intelectuais ou com a ignorância alheia, como se conversar fosse, para ele, a melhor coisa da vida. Tinha sempre um dito espirituoso e todos se deliciavam com sua prosa. Já João Paulo II, em (31 de outubro de 2000, ao proclamá-lo patrono dos governantes, disse: O seu profundo desdém pelas honras e riquezas, a humildade serena e jovial, o sensato conhecimento da natureza humana e da futilidade do sucesso e a segurança de juízo radicada na fé conferiram-lhe aquela confiança e fortaleza interior que o sustentaram nas adversidades e frente à morte. A sua santidade refulgiu no martírio, mas foi preparada por uma vida inteira de trabalho ao serviço de Deus e do próximo. Para Umberto Padovani e Luís Castagnola, More foi mártir da fé, sacrificado ao despotismo cismático de Henrique VIII. Na sua 'Utopia' bosquejou o plano de um Estado ideal, imitando a República, de Platão, e a Cidade do Sol, de Campanella.

 

Há, finalmente, quem afirme, por outro lado, que Thomas More teria sido uma das Encarnações (melhor seria dizer Projeção Cósmica Consciente) do Mestre Ascensionado do Primeiro Raio El Morya. Se isto é um fato, como eu escrevi mais acima, Thomas More sabia que seria convocado para ser Lord Chancellor de Henrique VIII e que acabaria por ter que renunciar ao cargo. Talvez até soubesse que seria decapitado!

 

 

 

El Morya

 

 

 

 

A Ilha da Utopia
(Breve Descrição)

 

 

 

 

A Ilha da Utopia
(Xilogravura de Ambrosius Holbein
para a edição de 1518)

 

 

 

A Ilha da Utopia tem duzentos mil passos em sua maior largura, situada na parte média. Esta largura diminui gradual e sistematicamente do centro para as duas extremidades, de maneira que a Ilha inteira se arredonda em um semicírculo de quinhentas milhas de arco, apresentando a forma de um crescente, cujos lados estão afastados onze mil passos aproximadamente.

 

O mar enche esta imensa bacia; as terras adjacentes que se estendem em anfiteatro quebram o furor dos ventos, mantendo as águas calmas e pacificas, e dando a esta grande massa líqüida a aparência de um lago tranqüilo. Esta parte côncava da Ilha é como um único e vasto porto acessível aos navios em todos os pontos.

 

A entrada do golfo é perigosa por causa dos bancos de areia de um lado, e dos recifes, do outro. No meio se levanta um rochedo visível de muito longe, e que, por isto, não oferece qualquer perigo. Os utopianos construíram uma fortaleza, defendida por uma boa guarnição. Outros rochedos ocultos pela água oferecem armadilhas inevitáveis aos navegantes. Unicamente os nativos conhecem as passagens navegáveis e, por esse justo motivo, ninguém pode entrar no estreito sem ser guiado por um piloto utopiano. Esta precaução seria ainda insuficiente, se os faróis dispostos pela costa não indicassem o rumo a seguir. A simples transposição desses faróis seria suficiente para destruir a frota mais numerosa, dando-lhe uma falsa direção.

 

Na parte oposta da Ilha, encontram-se diversos portos, e a arte e a Natureza fortificaram de tal forma as costas, que um punhado de homens poderia impedir o desembarque de um grande exército.

 

A Ilha da Utopia tem cinqüenta e quatro cidades espaçosas e magníficas. A linguagem, os hábitos, as instituições e as leis são perfeitamente idênticas. As cinqüenta e quatro cidades são edificadas sobre o mesmo plano e possuem os mesmos estabelecimentos e edifícios públicos, modificados segundo as exigências locais. A menor distância entre essas cidades é de vinte e quatro milhas, a maior é de uma jornada a pé.

 

Amaurota é a capital da Ilha; sua posição central transformou-a em ponto de reunião mais conveniente para todos os deputados. Amaurota se estende em doce declive sobre a vertente de uma colina. Sua forma é de quase um quadrado. Começa a estender-se um pouco acima do cume da colina, prolonga-se cerca de dois mil passos sobre as margens do rio Anidra, alargando-se à medida que vai margeando o rio. Uma cadeia de altas e largas muralhas circunda a cidade e, a pequenas distâncias, erguem-se torres e fortalezas. As muralhas, dos três lados, estão cercadas de fossos sempre secos, mas largos e profundos, atravancados de sebes e espinheiros. O quarto lado tem por fossa o próprio rio. As ruas e as praças são convenientemente dispostas, seja para o transporte, seja para abrigar-se do vento. Os edifícios são construídos confortavelmente; brilham de elegância e de conforto e formam duas fileiras contíguas, acompanhando de longo as ruas, cuja largura é de vinte pés.

 

Um mínimo de vinte mil passos de terra é destinado em cada cidade à produção dos artigos de consumo e à lavoura. Em geral, a extensão do território é proporcional ao afastamento das cidades. Estas felizes cidades não procuram aumentar os limites fixados pela lei. Os habitantes se olham mais como rendeiros do que como proprietários do solo.


 

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

 

Esta pesquisa, como todas as outras que faço nesta linha de publicação, nada tem de original. Objetivou, apenas, garimpar substantivamente na Utopia, de Thomas More – concepção teórica de um Estado perfeito no qual se viveria em plena liberdade religiosa, ou seja, a Cidade de Deus contraposta à cidade terrestre – e na Internet alguns fragmentos que possam ser ilustrativamente úteis para uma reflexão de quem visitar esta página. Este couvert, por assim dizer, não significa ou obriga, claro, que a obra original de Thomas não deva ser lida. Pelo contrário: deve ser dialeticamente examinada com a máxima atenção, até porque, incentivantemente, a obra é fácil de ser lida e as traduções para a língua portuguesa giram em torno de cento e poucas páginas. Por isto, abaixo está sugerido um endereço para que o texto possa ser lido integralmente, por quem assim o desejar:

http://www.ebooksbrasil.org/
eLibris/utopia.html

 

Finalmente, devo informar, como sempre faço, que fiz alguns (pouco extensos) ajustes didáticos e algumas pequenas edições em um certo número dos fragmentos coligidos, publicados desta forma tão-só para facilitar a leitura e para acomodá-los a este tipo de trabalho. Entretanto, o pensamento do autor foi inteiramente preservado e resguardado, pois não reveli ou introduzi qualquer mudança e muito menos fabriquei qualquer adulteração, o que seria – ab absurdo, ainda que não-geométrico! – um despautério desutópico sem paralelo na Utopia thomasiana. As traduções, às vezes, vêm recheadas com erros gramaticais e ortográficos e erros tipográficos que eu me recuso a reproduzir. Bastam as minhas fragilidades vernaculares e lingüísticas, que não são poucas.

 

 

 

 

 

Bom Humor e Utopismo de
Thomas More

 

 

 

 

Aos juízes que o condenaram, disse Thomas More: — Nós todos poderemos futuramente ainda nos encontrar alegremente no céu, para a salvação eterna.

No dia em que seria executado, um barbeiro perguntou a Thomas More:

Senhor, quereis que eu vos corte o cabelo?

Meu amigo, devo informar que o rei e eu temos um processo a respeito da minha cabeça, e não quero assumir nenhuma despesa com ela antes que o assunto esteja resolvido.

Quando ia subir a escada para o cadafalso, pediu a um dos presentes que o ajudasse a subir. E acrescentou:

Na hora de descer, não lhe darei esse incômodo.

Quando se ajoelhou tranqüilamente no cadafalso, para ser executado, recolheu com cuidado a barba, que havia crescido enquanto estivera na preso na Torre de Londres, e travou o seguinte diálogo com o carrasco:

Seria uma lástima que ela fosse cortada, pois nunca fez mal a ninguém.

O carrasco replicou: — O senhor está querendo preservar a barba, quando toda a cabeça vai ser cortada?

Isso não tem tanta importância para mim — respondeu Thomas. Mas o senhor poderá dizer que executou fielmente a sua tarefa, pois a ordem real manda cortar minha cabeça, e não a minha barba. Penso que este bom humor de Thomas ao encarar a inevitável morte que se aproximava esteja de acordo com o que escreveu anos antes na sua Utopia: O temor da morte é para os utopianos um mau augúrio; parece-lhes que este temor não existe senão nas almas sem esperança e cujas consciências intranqüilas tremem diante da eternidade, como se sentissem já o aproximar do suplício. Além disto, acreditam que Deus não recebe com prazer o homem que não acorre de bom grado ao Seu chamado, mas é pela morte arrastado à Sua presença entre rebelde e aflito.

 

Os habitantes da Utopia aplicam o princípio da posse comum. Para abolir a idéia da propriedade individual e absoluta, trocam de casa a cada dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha.

 

O povo utopiano é espiritual, amável, engenhoso e ama o lazer. É paciente no trabalho, quando o trabalho é necessário. Suas paixões favoritas são o exercício e o desenvolvimento do espírito.

 

Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça e de fazer a felicidade do gênero humano é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a classe mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.

 

O cadáver sem sepultura tem o céu por mortalha; há por toda parte caminho para chegar a Deus.

 

Dai-nos, Senhor, a vossa graça para trabalhar pelas coisas pelas quais oramos.

 

A distribuição eqüitativa e justa dos bens e seu emprego feliz em prol da Humanidade só é possível mediante a abolição completa da propriedade; enquanto esta permanecer, uma carga angustiante pesará sempre na parte melhor e mais preponderante dos homens.

 

Sê o que quiseres, mas procura sê-lo totalmente.

 

Alguns homens só abrem mão de seus bens já velhos e na agonia, e é ainda chorando que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não mais podem reter.

 

O dinheiro é o nervo da guerra, quer para comprar traições, quer para combater abertamente.

 

A piedade dos utopianos também se estende aos soldados de todas as bandeiras; sabem que o soldado não vai por sua própria vontade à guerra, mas é arrastado pelas ordens e pelos furores dos príncipes.

 

Os príncipes, entre as palavras latinas 'servire' e 'inservire', vêm apenas uma sílaba a mais ou a menos.

 

Quando considero e observo as repúblicas mais florescentes hoje, não vejo – Deus me perdoe senão uma conspiração de ricos a gerir do melhor modo os seus negócios sob o rótulo e o título pomposos de república. Os conjurados procuram por todas as manhas e meios possíveis atingir um duplo fim: primeiramente, assegurar a posse certa e indefinida de uma fortuna mais ou menos mal adquirida; em segundo lugar, abusar da miséria dos pobres, abusar de suas pessoas, e comprar pelo preço mais baixo suas habilidades e labores. E essas maquinações decretadas pelos ricos em nome do Estado, e, por conseguinte, em nome dos pobres, também são transformadas em leis.

 

Na Utopia, a avareza é impossível, porque o dinheiro ali não é de uso algum. Quem não sabe, com efeito, que as fraudes, os roubos, as rapinas, as rixas, os tumultos, as querelas, as sedições, os assassínios, as traições, os envenenamentos; quem não sabe que todos esses crimes dos quais se vinga a sociedade com suplícios permanentes, sem, entretanto, poder preveni-los, seriam suprimidos no dia em que o dinheiro desaparecesse? Então, desapareceriam também o temor, a inquietude, os cuidados, as fadigas e as canseiras. A própria pobreza, que parece ser a única a carecer de dinheiro, diminuiria no instante mesmo, caso o dinheiro fosse completamente abolido.

 

 



 

É o vício que destrói os impérios; e o vício é engendrado pelas más opiniões.

 

O orgulho não mede a felicidade de acordo com o bem-estar pessoal, mas de acordo com a infelicidade alheia. O orgulho recusaria mesmo ser Deus, se não lhe restassem mais infelizes a insultar e a tratar como escravos, se o luxo de sua felicidade não fosse mais exaltado pelas angústias da miséria, e se a ostentação de suas riquezas não torturasse mais a indigência e acendesse o seu desespero. O orgulho é uma serpente do inferno que se introduziu no coração dos homens, que os cega com seu veneno e que os afasta da senda de uma vida melhor. Este réptil se agarra tão fortemente à carne que se torna difícil arrancá-lo.

 

Neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e a medida universal, grande é o número das artes frívolas e vãs que se exercem unicamente a serviço do luxo e do desregramento.

 

O simples roubo não merece a forca, e o mais horrível suplício não impedirá de roubar o que não dispõe de outro meio para não morrer de fome.1 Não seria melhor garantir a existência a todos os membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade de roubar, primeiro, e de morrer, depois? É injusto matar-se um homem por ter tirado dinheiro de outrem, desde que a sociedade humana não pode [ainda] ser organizada de modo a garantir para cada um uma igual porção de bens.

 

Summum jus, summa injuria. O supremo direito é uma injustiça suprema. A vontade do legislador não é tão infalível e absoluta que seja necessário desembainhar a espada à menor infração aos seus decretos. A lei não é tão rígida e estóica que coloque, no mesmo nível, todos os delitos e crimes, e não estabeleça nenhuma diferença entre matar um homem e roubá-lo. Se a eqüidade não é uma palavra cã, há entre essas duas ações um abismo.

 

Nós não temos o direito de derramar – sob qualquer pretexto o sangue de nosso irmão. (Grifo meu).

 

 

 

 

A principal causa da miséria pública reside no número excessivo de nobres, zangões ociosos, que se nutrem do suor e do trabalho de outrem, e que, para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar suas terras escorchando os rendeiros até à carne viva. Não conhecem outra Economia. Mas, tratando-se, ao contrário, de comprar um prazer, são pródigos, então, até à loucura e à mendicidade. E não menos funesto é o fato de arrastarem consigo uma turba de lacaios e mandriões incapazes de ganhar a vida.

 

A lei deve ser elaborada para punir o crime, conservando o homem. Deve tratar o condenado com benignidade e justiça, de tal sorte que o eduque a se tornar honesto e a reparar, durante o resto de sua vida, todo o mal que fez à sociedade.

 

Os freis mendicantes são os maiores vagabundos do mundo.

 

A Humanidade será feliz, um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis forem filósofos. [Platão, apud Thomas More].

 

Se os senhores do mundo estivessem preparados para receber a Luz, poderiam ver e compreender. Infelizmente, cega-os uma venda fatal – a venda dos preconceitos e dos falsos princípios em que se formaram e com os quais foram inficionados já na infância.

 

O dever mais sagrado de um príncipe é velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua própria.

 

Qual o homem que mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja existência atual é miserável? Qual o homem que revelará maior audácia em subverter o Estado? Não será aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?

 

A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.

 

Prefiro governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de fato, nadar em delícias, saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e gemidos de um povo, não é manter um reino e sim uma cadeia. [Fabricius2, apud Thomas More].

 

Ó vós que não sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos a subsistência e as comodidades da vida! Corrigi vossa ignorância, vosso orgulho e vossa preguiça: é isso o que excita o ódio e o desprezo pelo soberano. Vivei de vosso patrimônio, segundo a justiça; medi vossas despesas na proporção de vossas rendas; detende as torrentes do vício; criai instituições de benemerência, que previnam o mal e o estiolem no germe, ao invés de inventar suplícios contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara impele ao crime e à morte.

 

Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propósito. E, se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito quando os próprios homens forem bons e perfeitos. E até lá, os séculos passarão.

 

Há covardia ou má-fé em calar as verdades que condenam a perversidade humana, sob o pretexto de que serão escarnecidas como novidades absurdas ou quimeras impraticáveis.

 

Os pregadores, homens sagazes e mal-intencionados, vendo que repugnava aos homens acomodar seus maus costumes à Doutrina Cristã, torceram o Evangelho, como se fosse uma lei de chumbo, para modelá-lo segundo os maus costumes dos homens. Onde os conduziu esta hábil manobra? A dar ao vício a calma e a segurança da virtude.

 

Em toda a parte onde a propriedade for um direito individual, onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar nem a justiça nem a prosperidade social, a menos que denomineis justa a sociedade em que o que há de melhor é a partilha dos piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pública é a presa de um punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres, enquanto a massa é devorada pela miséria.

 

Na Utopia, as leis são pouco numerosas; a administração distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente repartida, que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.

 

Ora, a igualdade é, creio, impossível em um Estado em que a posse é particular e absoluta; porque cada um se apóia em diversos títulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria.

 

O único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça e de fazer a felicidade do gênero humano é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.

 

Os habitantes da Utopia aplicam o princípio da posse comum. Para abolir a idéia da propriedade individual e absoluta, trocam de casa a cada dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha.

 

Todos, na Utopia, vivem ocupados em artes e ofícios realmente úteis. O trabalho material é de curta duração e mesmo assim produz a abundância e o supérfluo. Quando há acúmulo de produtos, os trabalhos diários são suspensos e a população é transportada em massa para reparar as estradas esburacadas e estragadas. Na falta de obras comuns ou extraordinárias a realizar, um decreto autoriza uma diminuição nas horas de trabalho, porque o Governo não procura fatigar seus cidadãos em labores inúteis. Na Utopia, o fim das instituições sociais é de prover, antes de tudo, às necessidades do consumo público e individual, e deixar a cada um o maior tempo possível para se libertar da servidão do corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades intelectuais pelo estudo das ciências e das letras. É neste desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira felicidade.

 

Segundo os princípios utopianos, a guerra mais justa3 é aquela que se faz a um povo que possui imensos territórios incultos e que os conserva desertos e estéreis, notadamente quando este mesmo povo interdiz a sua posse e o seu uso aos que vêm para cultivá-los e deles se nutrir, conforme a lei imprescritível da Natureza.

 

Os utopianos não fazem a guerra sem graves motivos. Só a empreendem para defender suas fronteiras ou repelir uma invasão inimiga nas terras de seus aliados, ou, ainda, para libertar da escravidão e do jugo de um tirano um povo oprimido. Neste caso, não consultam os seus interesses; vêem apenas o bem da Humanidade.

 

Aquele que tem a certeza de que nada faltará jamais, não procurará possuir mais do que é preciso. O que torna, em geral, os animais cúpidos e rapaces é o temor das privações futuras. No homem, em particular, existe uma outra causa de avareza — o orgulho, que o excita a ultrapassar em opulência os seus iguais e a deslumbrá-los pelo aparato de um luxo supérfluo. Mas as instituições utopianas tornam esta grave imperfeição impossível.

 

Os insulares utopianos têm por princípio que a volúpia4 que não engendra nenhum mal é perfeitamente legítima... A virtude mais nobre e mais humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os sofrimentos do próximo, arrancá-lo ao desespero e à tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou, em outros termos, fazê-lo ter parte também na volúpia... A volúpia é o fim de todas as nossas ações; tal é a vontade da Natureza, e obedecer a esta vontade é ser virtuoso.

 

Na Utopia, a ociosidade e a preguiça são impossíveis. Não se vêm nem tabernas, nem lugares de prostituição, nem oportunidade para deboches, nem antros ocultos, nem assembléias secretas... A abundância de todas as coisas é o fruto desta vida pura e ativa. O bem-estar se reparte igualmente por todos os membros desta admirável sociedade; a mendicidade e a miséria são aí monstros desconhecidos... A república utopiana é como uma única e mesma família.

 

O ouro e a prata não têm, nesse país, mais valor do que lhes deu a Natureza. Esses dois metais são ali considerados bem abaixo do ferro, o qual é tão necessário ao homem quanto a água e o fogo. Com efeito, o ouro e a prata não têm qualquer virtude, qualquer uso, qualquer propriedade cuja privação acarrete um inconveniente natural e verdadeiro. Foi a loucura humana que pôs tanto valor em sua raridade.

 

Eis aqui o catecismo religioso dos utopianos: A alma é imortal. Deus, que é bom, criou-a para ser feliz. Depois da morte, as recompensas coroam a virtude, suplícios atormentam o crime.

 

Praticar virtudes severas e difíceis, renunciar aos prazeres da vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar depois da morte em recompensa às mortificações da Terra, é, aos olhos dos insulares, o cúmulo da loucura.

 

A felicidade não está em toda espécie de voluptuosidade; está unicamente nos prazeres bons e honestos. É para esses prazeres que tudo, até a própria virtude, arrasta irresistivelmente a nossa natureza; são eles que constituem a felicidade... A virtude, para os utopianos, é viver segundo a Natureza... O homem que segue o impulso da Natureza é aquele que obedece à voz da razão. Ora, a razão inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais o amor e a adoração da majestade divina, à qual nós devemos o ser e o bem-estar. Em segundo lugar, ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente e sem lamentações, e a proporcionar aos nossos semelhantes, que são nossos irmãos, os mesmos benefícios.

 

A Natureza, que inspira em nós a caridade por nossos irmãos, não ordena que sejamos cruéis conosco mesmos.

 

A Natureza convida todos os homens a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida. Este preceito é justo e razoável, pois não há indivíduo tão altamente colocado acima do gênero humano que somente a Providência deva cuidar dele. A Natureza deu a mesma forma a todos; aquece todos com o mesmo calor e envolve todos com o mesmo amor. O que ela reprova é aumentar o próprio bem-estar agravando a infelicidade de outrem.

 

A sabedoria reside em procurar a felicidade sem violar as leis. A religião é trabalhar pelo bem geral. Calcar aos pés a felicidade de outrem, em busca da sua, é uma ação injusta.

 

Os utopianos colocam no plano dos mais puros e mais desejáveis à Alma a prática da virtude e a consciência de uma vida sem mancha.

 

Crucificar a carne, sacrificar-se por um vão fantasma de virtude ou para habituar-se antecipadamente a misérias que talvez não aconteçam jamais é dar mostra de loucura, de uma covarde crueldade para consigo mesmo, de orgulhosa ingratidão para com a Natureza. É pisar aos pés os benefícios do Criador, como desdenhando ser-lhe obrigado em alguma coisa.

 

Na Utopia, a poligamia é severamente proscrita e o casamento não se dissolve, na maioria das vezes, senão pela morte, excetuando-se o caso de adultério e de costumes absolutamente dissolutos.

 

Os insulares da Utopia consideram como injustiça suprema enlear os homens em uma infinidade de leis, tão numerosas que se torna impossível conhecê-las todas, ou tão obscuras que é impossível compreendê-las. Todos, na Utopia, são doutores em Direito, porque as leis são em pequeno número e a interpretação mais grosseira e mais material é admitida como a mais razoável e mais justa. As leis são promulgadas com a única finalidade de que cada qual seja advertido de seus direitos e de seus deveres.

 

O homem, afirmam os cidadãos utopianos, está unido ao homem de uma maneira mais íntima e mais forte pelo Coração e pela caridade do que pelas palavras e protocolos.

 

A maior parte dos habitantes da Utopia, que é também a mais sábia, repele as idolatrias e reconhece um Deus único, eterno, imenso, desconhecido, inexplicável, acima das percepções do espírito humano, enchendo o mundo inteiro com sua onipotência e não com sua vastidão corpórea. Este Deus é chamado Pai; é a Ele que atribuem as origens, o crescimento, o progresso, as revoluções e o fim de todas as coisas. É a Ele, unicamente, que rendem homenagens divinas.

 

Apesar da diversidade de suas crenças, todos os utopianos concordam numa coisa: que existe um Ser Supremo, ao mesmo tempo Criador e Providência. Este Ser é designado, na língua do país, sob o nome comum de Mitra. A dissidência consiste em que Mitra não é o mesmo para todos. Mas qualquer que seja a forma pela qual cada um represente seu Deus, cada um adora, sob esta forma, a Natureza majestosa e potente, a quem somente pertence o soberano império de todas as coisas, por consentimento geral dos povos... Entretanto, como quer que seja, muitos dentre os utopianos abraçaram o Cristianismo e foram purificados pelas águas sagradas do Batismo... Os habitantes da Ilha que não crêem no Cristianismo não se opõem à sua propagação e não maltratam, de nenhuma maneira, os neo-convertidos... Os utopianos incluem no número de suas mais antigas instituições a que proíbe prejudicar uma pessoa por sua religião... A cada um é permitida inteira liberdade de consciência e de fé... Os utopianos crêem em uma vida futura, onde castigos são preparados para os crimes e recompensas para as virtudes...

 

Se bem que os utopianos não professem a mesma religião, entretanto todos os cultos desse País, em suas múltiplas variedades, convergem por diversos caminhos para o mesmo fim que é a adoração da Natureza Divina; É por isto que não se vê e não se encontra nada nos templos que não sirva a todas às crenças em conjunto. Cada um celebra em sua casa, em família, os mistérios particulares à sua fé. O culto público é organizado de maneira a não contradizer em nada o culto doméstico e privado. Não se encontra nos templos qualquer imagem de deuses, a fim de que fique cada um livre de conceber a Divindade sob a forma que corresponda à sua crença. Não se invoca jamais Deus sob outro nome que o de Mitra, termo que exprime em geral a Essência da Majestade Divina, qualquer que seja esta Essência. Não se faz ali nenhuma prece que todos não possam repetir sem ferir sua consciência religiosa.

 

A dissimulação é proscrita na Utopia e a mentira é detestada tanto quanto a trapaça.

 

 

 

 

 

Grande número de utopianos admite que as almas dos animais são imortais como as nossas, ainda que muito inferiores quanto ao quinhão da dignidade e da felicidade que lhes são destinadas.

 

Ninguém lamenta um cidadão que sabe morrer alegremente, cheio de esperança. Cânticos de alegria acompanham seus funerais. Recomenda-se com fervor sua alma a Deus, e queima-se-lhe o corpo com respeito, mas sem lamentações.

 

Segundo as idéias utopianas, os mortos se misturam à sociedade dos vivos e são testemunhas de suas ações e de suas palavras. A crença na presença dos antepassados inspira a este povo uma confiança extrema nas suas ações, porque lhes assegura a proteção e o apoio de poderosos defensores; além disso, impede uma enorme quantidade de crimes ocultos.

 

Os padres da Utopia são de uma santidade perfeita, e, por conseqüência, em número muito restrito; para cada cidade não há senão treze a serviço de igual número de templos.

 

Os cidadãos da Utopia reconhecem Deus como autor da criação e da conservação de todos os bens. Rendem-Lhe graças pelos numerosos benefícios recebidos. Agradecem a Deus, em particular, por tê-los feito nascer, por este insigne favor no seio da República mais feliz e da religião que lhes parece ser a verdadeira. Entretanto, se esta crença for um erro, se existir um governo e um culto melhores, mais propícios ao Eterno, suplicam sua Divina Bondade de lhes trazer revelação, declarando-se prontos a obedecer, em tudo, a Sua vontade. Mas, ao contrário, se o culto e o governo da Utopia são os mais perfeitos, pedem, então, a Deus que lhes conceda o favor de perseverar, e que conduza o resto dos homens às mesmas instituições religiosas e sociais, a não ser que, nos Seus desígnios impenetráveis, tenha por bom esta grande diversidade de religiões. Finalmente, suplicam à Misericórdia Divina recebê-los em paz, depois de uma boa morte. Não ousam pedir ao céu prolongar ou abreviar a duração da própria vida; mas o que dizem a Deus, sem temer ofender Sua Majestade, é que prefeririam chegar a Ele pela morte mais penosa, do que ficar muito tempo privados de Sua presença na vida mais venturosa.

 

Na Utopia, onde tudo pertence a todos, não pode faltar nada a ninguém. A fortuna do Estado nunca é injustamente distribuída. Não se vêm nem pobres nem mendigos, e ainda que ninguém tenha nada de seu, todos são ricos. Existe, na realidade, mais bela riqueza do que viver alegre e tranqüilo, sem inquietações nem cuidados? Existe sorte mais feliz do que não temer pela existência? Não ser aturdido pelos pedidos e pelas queixas da esposa? Não temer a pobreza para seus filhos? Não se apoquentar pelo dote da filha, mas estar sempre seguro e certo da existência e do seu bem-estar e dos seus – mulher, filhos, netos, bisnetos – até à mais longínqua posteridade de que poderia se orgulhar um fidalgo?

 

 

 

Uma Palavra Final

 

 

 

Na Utopia, ao discutir Das Relações Mútuas Entre os Cidadãos, Thomas More faz o seguinte relato circunstanciado: Os mercados estão juntos dos mercados de comestíveis, onde se depositam os legumes, as frutas, o pão, o peixe, as aves domésticas e as partes de se comer dos animais quadrúpedes. Fora da cidade, existem os matadouros onde se abatem os animais destinados ao consumo. Esses matadouros são mantidos sempre limpos graças a correntes de água que arrastam o sangue e as imundícies dos animais. É daí que é levada ao mercado a carne limpa e retalhada pelas mãos dos escravos, pois a lei proíbe aos cidadãos o ofício de carniceiro, temerosa que o hábito da matança destrua pouco a pouco o sentimento de humanidade, o sentimento mais nobre do coração do homem. Esses açougues são situados fora da cidade no intuito de evitar também aos cidadãos um espetáculo hediondo, ao mesmo tempo em que desembaraça a cidade das sujeiras e matérias animais cuja putrefação poderia provocar moléstias. Mais abaixo descreve: Os escravos são encarregados dos trabalhos de cozinha mais sujos e penosos. As mulheres cozinham os alimentos, temperam os guisados e servem e tiram as mesas.

 

Ora, este parágrafo, salvo melhor juízo, está repleto de contradições. Um povo que supostamente tenha alcançado o nível de desenvolvimento espiritual da Utopia thomasiana jamais poderá, minimamente, ser comedor de bichos, jamais poderá ter matadouros onde se abatem os animais destinados ao consumo e jamais poderá ter escravos, pois a escravidão e a guerra são incompatíveis com um Estado utópico no qual, presumidamente, reinem a Concórdia, a Paz, o Bem e a Beleza. Logo, por exemplo, admitir, como está admitido na Utopia, que também o adultério é punido com a mais dura escravidão, e que a reincidência no adultério é punida com a morte, são desmedidos exageros semelhantes às desditas sucessivas de Jean Valjean, que comento na nota nº 1 (isto se houver qualquer tipo de semelhança entre os temas, que acho que, na realidade, não há). O argumento usado por Thomas para justificar a escravidão é que os utopianos crêem que a escravidão não é menos terrível para os celerados do que a morte, sendo, além disso, mais vantajosa para o Estado. E acrescenta: Um homem que trabalha, afirmam os utopianos, é mais útil do que um cadáver; e o exemplo de um suplício perpétuo inspira um terror muito mais duradouro do que uma matança legal, que faz o culpado desaparecer em um instante. Em outro passo, há a propositura da eutanásia – que não comentarei nesta oportunidade, pois já escrevi um trabalho sobre essa matéria. O fato é que também está escrito na Utopia: os infelizes afetados de males incuráveis e que se deixam persuadir, põem fim a seus dias pela abstinência voluntária ou são adormecidos por meio de um narcótico mortal, e morrem sem se aperceber; mas, quem se mata sem motivo reconhecido pelo magistrado e pelo padre, é julgado indigno da terra e do fogo; seu corpo é privado de sepultura e atirado ignominiosamente nos pântanos. Subitamente, mas não sei bem o motivo, estas reflexões me levaram a conjecturar que a maior alegria de um Mestre Ascensionado deva ser quando seu chela se torna um Mestre. Por outro lado, mas nesta mesma linha especulativa, penso que um pai ou uma mãe que egolatricamente não desejam que seus filhos se tornem melhores do que eles não merecem ser chamados de pai ou de mãe. Mas há uma palavra reguladora de tudo isto: mérito. E assim, eu admito que, por mais celerado que o indivíduo seja, uma ínfima gota de mérito ele deverá ter; pois, se não tivesse, nem sequer teria encarnado como um ser-no-mundo. Agora, se até passar pela transição for se degradando progressivamente, só lhe restará ser entropizado. Mas não cabe a ninguém acelerar este processo. Pena capital = NUNCA!

 

Releia o extrato acima e você encontrará mais incoerências, o que reforça a tese de que, mesmo entre os seres-no-mundo mais evoluídos que eventualmente visita(ra)m este Plano-Terra, como foi o caso particular de Thomas More, há desarmonias, desconexões, discrepâncias e inconseqüências que necessitam ser revistas e transmutadas. Nada está pronto e acabado; nada estará jamais pronto e acabado. A Escada da Existência é ilimitada; sempre haverá o que apreender, o que ser reexaminado, o que ser transmudado. Nem Jesus, o Cristo, nem o Senhor Buddha foram exceções a este entendimento, pois o Universo rejeita não-inclusões, situações privilegiadas e desvios da Lei. A Lei é uma e é para tudo e para todos.

 

Por conseguinte, se isto é assim ou se é apenas mais ou menos assim, vou propor, agora, um rápido exercício que eu mesmo faço regularmente. Se você achar conveniente, acenda um incensinho e coloque uma música de fundo que lhe agrade. Olhe para o seu passado pessoal, próximo ou remoto, e escolha uma atitude que você tenha tomado e da qual se envergonhe sobremodo. É preciso ter coragem para fazer isto, mas valerá a pena; e penso que suavizará a futura e inexorável descida-revisitação aos infernos que todos nós teremos que fazer. Reveja colorizada e corajosamente este momento em seus mínimos pormenores. Se doer, não importa: deixe doer. Se quiser chorar, chore, pois chorar é bom e lava a Alma. Depois que você tiver pintado em sua tela mental o quadro desta infeliz escorregadela, assuma o compromisso de jamais repeti-la. Delete-a, então, efetivamente, de sua mente com o firme propósito de não reproduzi-la, seja nesta encarnação, seja em uma encarnação posterior. Se você quiser, escreva em um pedaço de papel o mau pensamento pensado, o pernicioso ato praticado, a malévola palavra proferida, e depois o queime, determinando que – seja lá o que for jamais se repetirá, e que você acaba de se libertar desta prisão (fabricada por você). Diga, então: está selado. Isto feito, esqueça o assunto, até porque você o deletou de sua mente. Um bom lugar para depois jogar as cinzas dessa folha de papel que foi queimada é o vaso sanitário de sua casa. Quando você der a descarga, repita: está selado.

 

Bem, tenho dito que se sairmos desta vida tendo corrigido um único defeito, tendo regenerado uma única mácula em nossa personalidade, teremos cumprido, ainda que parcialmente, o propósito da própria encarnação. A maioria de nós, antes de nascer, assume determinados compromissos que, ao longo da vida, acaba esquecendo. Fazer o quê? Pelo menos, devemos endireitar os acréscimos negativos que fabricamos (consciente ou inconscientemente). Isto é o mínimo que pode e deve ser feito. Paz Profunda.

 

 

Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2008.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Notas:

1. Isto me faz lembrar de Jean Valjean, órfão de pai e mãe e figura principal de Les Misérables (Os Miseráveis), uma das principais obras escritas pelo escritor francês Victor Hugo (Besançon, 26 de fevereiro de 1802 – Paris, 22 de maio de 1885), publicada em 3 de abril de 1862 simultaneamente em Leipzig, Bruxelas, Budapeste, Milão, Roterdã, Varsóvia, Rio de Janeiro e Paris. Um dia, quando não há trabalho, dinheiro ou comida, Jean Valjean furta um pão em uma padaria, mas é preso. No Tribunal de Faverolles, França, Jean Valjean é condenado a passar cinco anos na prisão por roubar um pão, pena agravada pelo fato de ele possuir uma arma de fogo em casa. A pena vai aumentando devido às suas repetidas tentativas de fuga, de forma que Jean Valjean acaba por passar dezenove anos na prisão. Tudo por furtar um simples pão!

2. Fabricius, general romano, cônsul entre 282 e 275 a.C. Morreu tão pobre que o Estado foi forçado a fazer-lhe os funerais.

3. Aqui, devo discordar de Thomas More e recordar Henrique VI, de Shakespeare (1564 1616): Blessed are the peacemakers on Earth. São benditos os que trabalham para a paz na terra). E se for preciso, como disse Samuel Butler (1612-1680), aceitar o fato de que an injust Peace is to be preferr’d to a just war (uma paz injusta deve ser preferida a uma guerra justa). E assim, não é si vis pacem, para bellum, mas, precisamente, si vis pacem, para pacem (se queres a paz, prepara-te para a paz), ainda que, como bem disse John Fitzgerald Kennedy (1917 – 1963) no Discurso do Estado da União, em 11 de janeiro de 1962, the mere ab absence of war is not peace (a mera ausência de guerra não é paz). Seja como for, a paz e a compaixão deverão começar no Coração de cada um de nós. Enquanto existir um único coração belicoso, tirânico... Não há, sob qualquer que seja a alegação, guerra justa.

4. Os utopianos chamam de volúpia todo o estado ou todo movimento da alma e do corpo, nos quais o homem experimenta uma deleitação natural. Não é sem razão que eles acrescentam a palavra natural, porque não é somente a sensualidade; é também a razão que nos atrai para as coisas naturalmente deleitáveis. E, por isto, devemos compreender os bens que se podem procurar sem injustiça, os gozos que não privem de um prazer mais vivo, e que não arrastem consigo qualquer mal... Eles dividem em duas espécies as voluptuosidades do corpo. A primeira espécie compreende todas volúpias que exercem sobre os sentidos uma impressão atual, manifesta, e cuja causa é o restabelecimento dos órgãos consumidos pelo calor interno. Essa impressão nasce, de um lado, da ação de beber e de comer, que devolve as forças perdidas; de outro lado, das funções animais que expelem do corpo as matérias supérfluas. Tais são as secreções intestinais, o coito e o alívio de uma comichão qualquer, ao esfregar-se ou ao coçar-se. Algumas vezes, o prazer dos sentidos não provém das funções animais que reparam os órgãos esgotados ou que os aliviam de uma exuberância penosa; mas pelo efeito de uma força interior e indefinível que comove, encanta e seduz. Tal é, por exemplo, o prazer que nasce da música. A segunda espécie de volúpia sensual consiste no equilíbrio estável e perfeito de todas as partes do corpo, isto é, em uma saúde isenta de mal-estar. Com efeito, o homem que não é afetado pela dor, experimenta em si um certo sentimento de bem-estar, mesmo que nenhum objeto exterior agite agradavelmente os seus órgãos. É verdade que esta espécie de volúpia não afeta nem atordoa os sentidos, como, por exemplo, os prazeres da mesa; apesar disso, muitos a colocam em primeiro lugar, e quase todos os utopianos declaram que ela é a base e o fundamento da verdadeira felicidade, porque, dizem, só uma saúde perfeita torna a condição da vida humana tranqüila e apetecível. Enfim, sem saúde, não há voluptuosidade possível; sem ela, a própria ausência da dor não é um bem, é a insensibilidade de um cadáver... Comprazer-se de uma saúde perfeita é sentir encanto, satisfação. Ora, este encanto, esta satisfação, que outra coisa é senão a voluptuosidade? O que é, então, a dor? A dor é a conseqüência inevitável de toda volúpia desonesta.

 

Bibliografia:

MORE, Thomas. Utopia. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Escala Educacional, 2006.

 

Páginas da Internet e Websites consultados:

http://www.dnna.net/

http://en.wikipedia.org/
wiki/Utopia_(book)

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Les_Mis%C3%A9rables

http://ourworld.compuserve.com/
homepages/dp5/johnson.htm

http://www.cobra.pages.nom.br/
fmp-thomasmore.html

http://www.caminhosdeluz.org/
A-116Ea.htm

http://en.wikipedia.org/
wiki/Thomas_More

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Thomas_More

http://pt.wikiquote.org/wiki/Thomas_More

http://www.eduquenet.net/
Morus.htm

http://www.ebooksbrasil.org/
eLibris/utopia.html

 

Fundo musical:

First Knight

Fonte:

http://www.aragos.net/Monte/phpBB2/viewtopic.php?
p=3671&sid=ccb5f5d90c7a4c9ba6368ec60599f593