A
principal causa da miséria pública reside no número
excessivo de nobres, zangões ociosos, que se nutrem do suor e do
trabalho de outrem, e que, para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar
suas terras escorchando os rendeiros até à carne viva. Não
conhecem outra Economia. Mas, tratando-se, ao contrário, de comprar
um prazer, são pródigos, então, até à
loucura e à mendicidade. E não menos funesto é o fato
de arrastarem consigo uma turba de lacaios e mandriões incapazes
de ganhar a vida.
A
lei deve ser elaborada para punir o crime, conservando o homem. Deve tratar
o condenado com benignidade e justiça, de tal sorte que o eduque
a se tornar honesto e a reparar, durante o resto de sua vida, todo o mal
que fez à sociedade.
Os
freis mendicantes são os maiores vagabundos do mundo.
A
Humanidade será feliz, um dia, quando os filósofos forem reis,
ou quando os reis forem filósofos. [Platão, apud
Thomas More].
Se
os senhores do mundo estivessem preparados para receber a Luz, poderiam
ver e compreender. Infelizmente, cega-os uma venda fatal – a venda
dos preconceitos e dos falsos princípios em que se formaram e com
os quais foram inficionados já na infância.
O
dever mais sagrado de um príncipe é velar pela felicidade
do povo antes de velar pela sua própria.
Qual
o homem que mais deseja uma revolução? Não será
aquele cuja existência atual é miserável? Qual o homem
que revelará maior audácia em subverter o Estado? Não
será aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?
A dignidade real não consiste
em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.
Prefiro
governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de fato, nadar em delícias,
saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e gemidos de um povo,
não é manter um reino e sim uma cadeia. [Fabricius2,
apud Thomas More].
Ó
vós que não sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos
a subsistência e as comodidades da vida! Corrigi vossa ignorância,
vosso orgulho e vossa preguiça: é isso o que excita o ódio
e o desprezo pelo soberano. Vivei de vosso patrimônio, segundo a justiça;
medi vossas despesas na proporção de vossas rendas; detende
as torrentes do vício; criai instituições de benemerência,
que previnam o mal e o estiolem no germe, ao invés de inventar suplícios
contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara
impele ao crime e à morte.
Aprendei a dizer a verdade com propriedade
e a propósito. E, se vossos esforços não puderem servir
para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal;
porque tudo só será bom e perfeito quando os próprios
homens forem bons e perfeitos. E até lá, os séculos
passarão.
Há covardia ou má-fé
em calar as verdades que condenam a perversidade humana, sob o pretexto
de que serão escarnecidas como novidades absurdas ou quimeras impraticáveis.
Os
pregadores, homens sagazes e mal-intencionados, vendo que repugnava aos
homens acomodar seus maus costumes à Doutrina Cristã, torceram
o Evangelho, como se fosse uma lei de chumbo, para modelá-lo segundo
os maus costumes dos homens. Onde os conduziu esta hábil manobra?
A dar ao vício a calma e a segurança da virtude.
Em
toda a parte onde a propriedade for um direito individual, onde todas as
coisas se medirem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar
nem a justiça nem a prosperidade social, a menos que denomineis justa
a sociedade em que o que há de melhor é a partilha dos piores,
e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pública
é a presa de um punhado de indivíduos insaciáveis de
prazeres, enquanto a massa é devorada pela miséria.
Na
Utopia, as leis são pouco numerosas; a administração
distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de
cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao mesmo
tempo, a riqueza nacional é tão igualmente repartida, que
cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.
Ora,
a igualdade é, creio, impossível em um Estado em que a posse
é particular e absoluta; porque cada um se apóia em diversos
títulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza
nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido número
de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria.
O
único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça e
de fazer a felicidade do gênero humano é a abolição
da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício
social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá
por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.
Os
habitantes da Utopia aplicam o princípio da posse comum. Para abolir
a idéia da propriedade individual e absoluta, trocam de casa a cada
dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha.
Todos,
na Utopia, vivem ocupados em artes e ofícios realmente úteis.
O trabalho material é de curta duração e mesmo assim
produz a abundância e o supérfluo. Quando há acúmulo
de produtos, os trabalhos diários são suspensos e a população
é transportada em massa para reparar as estradas esburacadas e estragadas.
Na falta de obras comuns ou extraordinárias a realizar, um decreto
autoriza uma diminuição nas horas de trabalho, porque o Governo
não procura fatigar seus cidadãos em labores inúteis.
Na Utopia, o fim das instituições sociais é de prover,
antes de tudo, às necessidades do consumo público e individual,
e deixar a cada um o maior tempo possível para se libertar da servidão
do corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades
intelectuais pelo estudo das ciências e das letras. É neste
desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira felicidade.
Segundo
os princípios utopianos, a guerra mais justa3
é aquela que se faz
a um povo que possui imensos territórios incultos e que os conserva
desertos e estéreis, notadamente quando este mesmo povo interdiz
a sua posse e o seu uso aos que vêm para cultivá-los e deles
se nutrir, conforme a lei imprescritível da Natureza.
Os
utopianos não fazem a guerra sem graves motivos. Só a empreendem
para defender suas fronteiras ou repelir uma invasão inimiga nas
terras de seus aliados, ou, ainda, para libertar da escravidão e
do jugo de um tirano um povo oprimido. Neste caso, não consultam
os seus interesses; vêem apenas o bem da Humanidade.
Aquele
que tem a certeza de que nada faltará jamais, não procurará
possuir mais do que é preciso. O que torna, em geral, os animais
cúpidos e rapaces é o temor das privações futuras.
No homem, em particular, existe uma outra causa de avareza — o orgulho,
que o excita a ultrapassar em opulência os seus iguais e a deslumbrá-los
pelo aparato de um luxo supérfluo. Mas as instituições
utopianas tornam esta grave imperfeição impossível.
Os
insulares utopianos têm por princípio que a volúpia4
que não engendra nenhum mal é perfeitamente legítima...
A virtude mais nobre e mais humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar
os sofrimentos do próximo, arrancá-lo ao desespero e à
tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou, em outros termos, fazê-lo
ter parte também na volúpia... A volúpia é o
fim de todas as nossas ações; tal é a vontade da Natureza,
e obedecer a esta vontade é ser virtuoso.
Na
Utopia, a ociosidade e a preguiça são impossíveis.
Não se vêm nem tabernas, nem lugares de prostituição,
nem oportunidade para deboches, nem antros ocultos, nem assembléias
secretas... A abundância de todas as coisas é o fruto desta
vida pura e ativa. O bem-estar se reparte igualmente por todos os membros
desta admirável sociedade; a mendicidade e a miséria são
aí monstros desconhecidos... A república utopiana é
como uma única e mesma família.
O
ouro e a prata não têm, nesse país, mais valor do que
lhes deu a Natureza. Esses dois metais são ali considerados bem abaixo
do ferro, o qual é tão necessário ao homem quanto a
água e o fogo. Com efeito, o ouro e a prata não têm
qualquer virtude, qualquer uso, qualquer propriedade cuja privação
acarrete um inconveniente natural e verdadeiro. Foi a loucura humana que
pôs tanto valor em sua raridade.
Eis
aqui o catecismo religioso dos utopianos: A alma é imortal. Deus,
que é bom, criou-a para ser feliz. Depois da morte, as recompensas
coroam a virtude, suplícios atormentam o crime.
Praticar
virtudes severas e difíceis, renunciar aos prazeres da vida, sofrer
voluntariamente a dor e nada esperar depois da morte em recompensa às
mortificações da Terra, é, aos olhos dos insulares,
o cúmulo da loucura.
A
felicidade não está em toda espécie de voluptuosidade;
está unicamente nos prazeres bons e honestos. É para esses
prazeres que tudo, até a própria virtude, arrasta irresistivelmente
a nossa natureza; são eles que constituem a felicidade... A virtude,
para os utopianos, é viver segundo a Natureza... O homem que segue
o impulso da Natureza é aquele que obedece à voz da razão.
Ora, a razão inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais o amor
e a adoração da majestade divina, à qual nós
devemos o ser e o bem-estar. Em segundo lugar, ela nos ensina e nos instiga
a viver alegremente e sem lamentações, e a proporcionar aos
nossos semelhantes, que são nossos irmãos, os mesmos benefícios.
A
Natureza, que inspira em nós a caridade por nossos irmãos,
não ordena que sejamos cruéis conosco mesmos.
A
Natureza convida todos os homens a se ajudarem mutuamente e a partilharem
em comum do alegre festim da vida. Este preceito é justo e razoável,
pois não há indivíduo tão altamente colocado
acima do gênero humano que somente a Providência deva cuidar
dele. A Natureza deu a mesma forma a todos; aquece todos com o mesmo calor
e envolve todos com o mesmo amor. O que ela reprova é aumentar o
próprio bem-estar agravando a infelicidade de outrem.
A
sabedoria reside em procurar a felicidade sem violar as leis. A religião
é trabalhar pelo bem geral. Calcar aos pés a felicidade de
outrem, em busca da sua, é uma ação injusta.
Os
utopianos colocam no plano dos mais puros e mais desejáveis à
Alma a prática da virtude e a consciência de uma vida sem mancha.
Crucificar
a carne, sacrificar-se por um vão fantasma de virtude ou para habituar-se
antecipadamente a misérias que talvez não aconteçam
jamais é dar mostra de loucura, de uma covarde crueldade para consigo
mesmo, de orgulhosa ingratidão para com a Natureza. É pisar
aos pés os benefícios do Criador, como desdenhando ser-lhe
obrigado em alguma coisa.
Na
Utopia, a poligamia é severamente proscrita e o casamento não
se dissolve, na maioria das vezes, senão pela morte, excetuando-se
o caso de adultério e de costumes absolutamente dissolutos.
Os
insulares da Utopia consideram como injustiça suprema enlear os homens
em uma infinidade de leis, tão numerosas que se torna impossível
conhecê-las todas, ou tão obscuras que é impossível
compreendê-las. Todos, na Utopia, são doutores em Direito,
porque as leis são em pequeno número e a interpretação
mais grosseira e mais material é admitida como a mais razoável
e mais justa. As leis são promulgadas com a única finalidade
de que cada qual seja advertido de seus direitos e de seus deveres.
O
homem, afirmam os cidadãos utopianos, está unido ao homem
de uma maneira mais íntima e mais forte pelo Coração
e pela caridade do que pelas palavras e protocolos.
A
maior parte dos habitantes da Utopia, que é também a mais
sábia, repele as idolatrias e reconhece um Deus único, eterno,
imenso, desconhecido, inexplicável, acima das percepções
do espírito humano, enchendo o mundo inteiro com sua onipotência
e não com sua vastidão corpórea. Este Deus é
chamado Pai; é a Ele que atribuem as origens, o crescimento, o progresso,
as revoluções e o fim de todas as coisas. É a Ele,
unicamente, que rendem homenagens divinas.
Apesar
da diversidade de suas crenças, todos os utopianos concordam numa
coisa: que existe um Ser Supremo, ao mesmo tempo Criador e Providência.
Este Ser é designado, na língua do país, sob o nome
comum de Mitra. A dissidência consiste em que Mitra não é
o mesmo para todos. Mas qualquer que seja a forma pela qual cada um represente
seu Deus, cada um adora, sob esta forma, a Natureza majestosa e potente,
a quem somente pertence o soberano império de todas as coisas, por
consentimento geral dos povos... Entretanto, como quer que seja, muitos
dentre os utopianos abraçaram o Cristianismo e foram purificados
pelas águas sagradas do Batismo... Os habitantes da Ilha que não
crêem no Cristianismo não se opõem à sua propagação
e não maltratam, de nenhuma maneira, os neo-convertidos... Os utopianos
incluem no número de suas mais antigas instituições
a que proíbe prejudicar uma pessoa por sua religião... A cada
um é permitida inteira liberdade de consciência e de fé...
Os utopianos crêem em uma vida futura, onde castigos são preparados
para os crimes e recompensas para as virtudes...
Se
bem que os utopianos não professem a mesma religião, entretanto
todos os cultos desse País, em suas múltiplas variedades,
convergem por diversos caminhos para o mesmo fim que é a adoração
da Natureza Divina; É por isto que não se vê e não
se encontra nada nos templos que não sirva a todas às crenças
em conjunto. Cada um celebra em sua casa, em família, os mistérios
particulares à sua fé. O culto público é organizado
de maneira a não contradizer em nada o culto doméstico e privado.
Não se encontra nos templos qualquer imagem de deuses, a fim de que
fique cada um livre de conceber a Divindade sob a forma que corresponda
à sua crença. Não se invoca jamais Deus sob outro nome
que o de Mitra, termo que exprime em geral a Essência da Majestade
Divina, qualquer que seja esta Essência. Não se faz ali nenhuma
prece que todos não possam repetir sem ferir sua consciência
religiosa.
A
dissimulação é proscrita na Utopia e a mentira é
detestada tanto quanto a trapaça.
Grande
número de utopianos admite que as almas dos animais são imortais
como as nossas, ainda que muito inferiores quanto ao quinhão da dignidade
e da felicidade que lhes são destinadas.
Ninguém
lamenta um cidadão que sabe morrer alegremente, cheio de esperança.
Cânticos de alegria acompanham seus funerais. Recomenda-se com fervor
sua alma a Deus, e queima-se-lhe o corpo com respeito, mas sem lamentações.
Segundo
as idéias utopianas, os mortos se misturam à sociedade dos
vivos e são testemunhas de suas ações e de suas palavras.
A crença na presença dos antepassados inspira a este povo
uma confiança extrema nas suas ações, porque lhes assegura
a proteção e o apoio de poderosos defensores; além
disso, impede uma enorme quantidade de crimes ocultos.
Os
padres da Utopia são de uma santidade perfeita, e, por conseqüência,
em número muito restrito; para cada cidade não há senão
treze a serviço de igual número de templos.
Os
cidadãos da Utopia reconhecem Deus como autor da criação
e da conservação de todos os bens. Rendem-Lhe graças
pelos numerosos benefícios recebidos. Agradecem a Deus, em particular,
por tê-los feito nascer, por este insigne favor no seio da República
mais feliz e da religião que lhes parece ser a verdadeira. Entretanto,
se esta crença for um erro, se existir um governo e um culto melhores,
mais propícios ao Eterno, suplicam sua Divina Bondade de lhes trazer
revelação, declarando-se prontos a obedecer, em tudo, a Sua
vontade. Mas, ao contrário, se o culto e o governo da Utopia são
os mais perfeitos, pedem, então, a Deus que lhes conceda o favor
de perseverar, e que conduza o resto dos homens às mesmas instituições
religiosas e sociais, a não ser que, nos Seus desígnios impenetráveis,
tenha por bom esta grande diversidade de religiões. Finalmente, suplicam
à Misericórdia Divina recebê-los em paz, depois de uma
boa morte. Não ousam pedir ao céu prolongar ou abreviar a
duração da própria vida; mas o que dizem a Deus, sem
temer ofender Sua Majestade, é que prefeririam chegar a Ele pela
morte mais penosa, do que ficar muito tempo privados de Sua presença
na vida mais venturosa.
Na
Utopia, onde tudo pertence a todos, não pode faltar nada a ninguém.
A fortuna do Estado nunca é injustamente distribuída. Não
se vêm nem pobres nem mendigos, e ainda que ninguém tenha nada
de seu, todos são ricos. Existe, na realidade, mais bela riqueza
do que viver alegre e tranqüilo, sem inquietações nem
cuidados? Existe sorte mais feliz do que não temer pela existência?
Não ser aturdido pelos pedidos e pelas queixas da esposa? Não
temer a pobreza para seus filhos? Não se apoquentar pelo dote da
filha, mas estar sempre seguro e certo da existência e do seu bem-estar
e dos seus – mulher, filhos, netos, bisnetos – até à
mais longínqua posteridade de que poderia se orgulhar um fidalgo?
Uma
Palavra Final
Na
Utopia, ao discutir Das Relações Mútuas
Entre os Cidadãos, Thomas More faz o seguinte relato circunstanciado:
Os mercados estão juntos
dos mercados de comestíveis, onde se depositam os legumes, as frutas,
o pão, o peixe, as aves domésticas e as partes de se comer
dos animais quadrúpedes. Fora da cidade, existem os matadouros onde
se abatem os animais destinados ao consumo. Esses matadouros são
mantidos sempre limpos graças a correntes de água que arrastam
o sangue e as imundícies dos animais. É daí que é
levada ao mercado a carne limpa e retalhada pelas mãos dos escravos,
pois a lei proíbe aos cidadãos o ofício de carniceiro,
temerosa que o hábito da matança destrua pouco a pouco o sentimento
de humanidade, o sentimento mais nobre do coração do homem.
Esses açougues são situados fora da cidade no intuito de evitar
também aos cidadãos um espetáculo hediondo, ao mesmo
tempo em que desembaraça a cidade das sujeiras e matérias
animais cuja putrefação poderia provocar moléstias.
Mais abaixo descreve: Os
escravos são encarregados dos trabalhos de cozinha mais sujos e penosos.
As mulheres cozinham os alimentos, temperam os guisados e servem e tiram
as mesas.
Ora,
este parágrafo, salvo melhor juízo, está repleto de
contradições. Um povo que supostamente tenha alcançado
o nível de desenvolvimento espiritual da Utopia thomasiana
jamais poderá, minimamente, ser comedor de bichos, jamais
poderá ter matadouros onde
se abatem os animais destinados ao consumo
e jamais poderá ter escravos, pois a escravidão e a guerra
são incompatíveis com um Estado utópico no qual, presumidamente,
reinem a Concórdia, a Paz, o Bem e a Beleza. Logo, por exemplo, admitir,
como está admitido na Utopia, que também o
adultério é punido com a mais dura escravidão, e que
a reincidência no adultério é punida com a morte,
são desmedidos exageros semelhantes às desditas sucessivas
de Jean Valjean, que comento na nota nº 1 (isto se houver qualquer
tipo de semelhança entre os temas, que acho que, na realidade, não
há). O argumento usado por Thomas para justificar a escravidão
é que os utopianos
crêem que a escravidão não é menos terrível
para os celerados do que a morte, sendo, além disso, mais vantajosa
para o Estado. E acrescenta: Um
homem que trabalha, afirmam os utopianos, é mais útil do que
um cadáver; e o exemplo de um suplício perpétuo inspira
um terror muito mais duradouro do que uma matança legal, que faz
o culpado desaparecer em um instante. Em outro passo, há
a propositura da eutanásia –
que não comentarei nesta oportunidade, pois já escrevi um
trabalho sobre essa matéria. O fato é que também está
escrito na Utopia: os
infelizes afetados de males incuráveis e
que se deixam persuadir, põem fim a seus
dias pela abstinência voluntária ou são adormecidos
por meio de um narcótico mortal, e morrem sem se aperceber; mas,
quem se mata sem motivo reconhecido pelo magistrado e pelo padre, é
julgado indigno da terra e do fogo; seu corpo é privado de sepultura
e atirado ignominiosamente nos pântanos. Subitamente,
mas não sei bem o motivo, estas reflexões me levaram a conjecturar
que a maior alegria de um Mestre Ascensionado deva ser quando seu chela
se torna um Mestre. Por outro lado, mas nesta mesma linha especulativa,
penso que um pai ou uma mãe que egolatricamente não desejam
que seus filhos se tornem melhores do que eles não merecem ser chamados
de pai ou de mãe. Mas há uma palavra reguladora de tudo isto:
mérito. E assim, eu admito que, por mais celerado que o indivíduo
seja, uma ínfima gota de mérito ele deverá ter; pois,
se não tivesse, nem sequer teria encarnado como um ser-no-mundo.
Agora, se até passar pela transição for se degradando
progressivamente, só lhe restará ser entropizado. Mas não
cabe a ninguém acelerar este processo. Pena capital = NUNCA!
Releia
o extrato acima e você encontrará mais incoerências,
o que reforça a tese de que, mesmo entre os seres-no-mundo
mais evoluídos que eventualmente visita(ra)m este Plano-Terra, como
foi o caso particular de Thomas
More, há desarmonias,
desconexões, discrepâncias e inconseqüências que
necessitam ser revistas e transmutadas. Nada está pronto e acabado;
nada estará jamais pronto
e acabado. A
Escada da Existência é ilimitada; sempre haverá o que
apreender, o que ser reexaminado, o que ser transmudado. Nem Jesus, o Cristo,
nem o Senhor Buddha foram exceções
a este entendimento, pois o Universo rejeita não-inclusões,
situações privilegiadas e desvios da Lei. A Lei é uma
e é para tudo e para todos.
Por
conseguinte, se isto é assim ou se é apenas mais ou menos
assim, vou propor, agora, um rápido exercício que eu mesmo
faço regularmente. Se você achar conveniente, acenda um incensinho
e coloque uma música de fundo que lhe agrade. Olhe para o seu passado
pessoal, próximo ou remoto, e escolha uma atitude que você
tenha tomado e da qual se envergonhe sobremodo. É preciso ter coragem
para fazer isto, mas valerá a pena; e penso que suavizará
a futura e inexorável descida-revisitação aos infernos
que todos nós teremos que fazer. Reveja colorizada e corajosamente
este momento em seus mínimos pormenores. Se doer, não importa:
deixe doer. Se quiser chorar, chore, pois chorar é bom e lava a Alma.
Depois que você tiver pintado em sua tela mental o quadro desta infeliz
escorregadela, assuma o compromisso de jamais repeti-la. Delete-a, então,
efetivamente, de sua mente com o firme propósito de não
reproduzi-la, seja nesta encarnação, seja em uma encarnação
posterior. Se você quiser, escreva
em um pedaço de papel o
mau pensamento pensado, o
pernicioso ato praticado, a malévola palavra proferida, e depois
o queime, determinando que – seja lá o que for –
jamais se repetirá, e que
você acaba de se libertar desta prisão (fabricada por você).
Diga, então: está
selado. Isto
feito, esqueça o assunto, até porque você o deletou
de sua mente. Um bom lugar para depois jogar as cinzas dessa folha de papel
que foi queimada é o vaso sanitário de sua casa. Quando você
der a descarga, repita: está selado.
Bem,
tenho dito que se sairmos desta vida tendo corrigido um único defeito,
tendo regenerado uma única mácula em nossa personalidade,
teremos cumprido, ainda que parcialmente, o propósito da própria
encarnação. A maioria de nós, antes de nascer, assume
determinados compromissos que, ao longo da vida, acaba esquecendo. Fazer
o quê? Pelo menos, devemos endireitar os acréscimos negativos
que fabricamos (consciente ou inconscientemente). Isto é o mínimo
que pode e deve ser feito. Paz Profunda.
Rio
de Janeiro, 31 de agosto de 2008.