O Teeteto
(em grego, )
é um diálogo platônico sobre a natureza do conhecimento
(episteme), no qual
é profundamente analisado o pensamento de Protágoras de Abdera
(Abdera, 480 a.C. – Sicília, 410 a.C.). Nesta obra, aparece,
talvez, pela primeira vez explicitamente na Filosofia, o confronto entre
verdade e relativismo. Os personagens principais do diálogo são
Sócrates, Teodoro de Cirene e Teeteto de Atenas, este um matemático
que estudou com Teodoro na cidade de Cirene. Terpsião e Euclides
são dois outros dois personagens que participam apenas do início
do diálogo.
O
jovem estudioso de Matemática e ciências afins Teeteto propõe
quatro definições para o conhecimento que são rechaçadas
por Sócrates. O saber não pode ser definido mediante exemplos,
não é percepção nem opinião verdadeira,
nem é uma explicação acompanhada de opinião
verdadeira. Sócrates rebate estes argumentos de um ponto de vista
crítico, isto é, só questiona o que propõe Teeteto
através de perguntas, mas não formula um conceito do que é
conhecimento.
Então,
proponho que estudemos esta importante obra de Platão, e, mais uma
vez, ofereço
para reflexão
alguns fragmentos (editados,
em alguns casos) do Teeteto,
que, com Crátilo, Sofista e Político, faz parte, segundo Diógenes
Laércio, da Segunda Tetralogia. Agora, preste atenção:
à medida que você for lendo os fragmentos, perceberá
que alguns se contradizem entre si. Isto porque a Maiêutica Socrática,
como parto intelectual, parto do conhecimento ou parto das idéias,
vai se desenvolvendo no sentido de ir eliminando estas mesmas contradições.
Por isto, é conveniente ler o Teeteto
integralmente.
Para
ler a obra integralmente, tradução de Carlos Alberto Nunes,
por favor, dirija-se a:
http://www.dominiopublico.gov.br/
download/texto/cv000068.pdf
Fragmentos
do Teeteto
Sócrates
—
Quando a cera que está na alma de alguém é
não apenas densa, mas abundante e lisa, com a consistência
adequada, o que vem através das percepções
grava-se neste «Coração» da alma. Como
Homero lhe chama de modo enigmático, referindo-se à
semelhança com a cera. Neste momento, os sinais se tornam
puros nestas pessoas e têm suficiente densidade para chegarem
a ser duradouros. Quantos são deste tipo têm, em primeiro
lugar, facilidade em aprender, em segundo, boa memória, e,
em terceiro, não desviam os sinais das suas percepções,
mas têm opiniões verdadeiras. Com efeito, dado que
os sinais são claros e bem espaçados, distribuem-nos
rapidamente em cada uma das impressões, às quais,
sem dúvida, se chama coisas-que-são. E estas pessoas
são chamadas sábias. Ou não te parece?
Teeteto
—
Sem dúvida. A explicação é maravilhosamente
convincente.
Sócrates
—
Ora
bem, vejamos o que sucede quando o Coração de uma
pessoa é hirsuto – coisa que o poeta elogiou, na sua
enorme sabedoria – ou quando a cera está suja e é
impura, ou quando é extremamente líquida ou dura:
aqueles cuja cera é líquida têm facilidade para
aprender, mas se tornam esquecidos, enquanto, com aqueles cuja cera
é dura, ocorre o contrário. Os que têm a sua
cera hirsuta e áspera, como se fosse de pedra, repleta de
terra, ou de sujidade mesclada com ela, têm impressões
sem clareza. Os que a têm dura também têm as
impressões sem clareza, pois têm-nas sem densidade.
E os que a têm líquida, por sua vez, também
carecem de clareza, pois, por ação da fusão,
rapidamente se tornam confusas. E se, além de tudo isto,
as impressões caíram umas em cima das outras, devido
à falta de espaço, e, se a alminha de uma pessoa é
pequena, são ainda mais carentes de clareza do que aquelas.
Por conseguinte, todos estes são os que chegam a opinar falsidades,
pois, quando vêem, ouvem ou pensam algo não são
capazes de distribuir com rapidez a impressão a cada coisa
e são lentos. E, ao distribuírem o que corresponde
à outra, não só vêem mal, como ainda
por cima ouvem e pensam mal, na maior parte das vezes. Estes são
os que não só se encontram na falsidade, a respeito
da realidade, como são chamados de ignorantes.
|
A
admiração é própria da natureza do filósofo;
e a Filosofia deriva apenas da estupefação.
Não
quebres teu compromisso. Reveste-te de confiança e não desfaças
tua promessa.
Aprender
significa se tornar sábio a respeito do que se aprende.1
É
pela sabedoria que os sábios ficam sábios.
Quem
errar ou se atrapalhar como burro irá se assentar.
És
muito generoso, amigo, e extremamente liberal; pedem-te um, e dás
um bando; em vez de algo simples, tamanha variedade.
Não
compreenderá a arte do sapateiro nem qualquer outra arte quem não
souber o que seja conhecimento.
É
ridícula a resposta de quem é perguntado o que seja conhecimento,
sempre que acrescenta o nome de determinada arte. Falou em conhecimento
de alguma coisa, porém, não foi isto o que lhe perguntaram.
Assim, por exemplo, quando alguém é perguntado a respeito
de lama, deverá responder de maneira trivial e simples, ou seja,
lama é terra molhada, sem se dar ao trabalho de dizer quem a emprega.
Devemos
nos esforçar para encontrar a explicação das coisas,
principalmente do que venha a ser conhecimento.
Eu
sou filho de uma parteira famosa e imponente, Fanerete, e eu exerço
esta mesma arte.2
Por isto dizem que eu sou o homem mais esquisito do mundo e que lanço
confusão no espírito dos outros. Seja como for, a minha arte
obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras,
com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens,
e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto.
Porém, a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade
de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência
de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo
e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril
em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura
que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar
opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de
sabedoria. E a razão é a seguinte: a Divindade me incita a
partejar os outros, todavia, me impede de conceber. Por isto, não
sou sábio, não havendo um só pensamento que eu possa
apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela
dado à luz. Contudo, os que tratam comigo, suposto que alguns, no
começo, pareçam de todo ignorantes, com a continuação
de nossa convivência, quantos a Divindade favorece, progridem admiravelmente,
tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é
fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos
é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo,
nisto tudo, eu e a Divindade como parteira. E a prova é que muitos
desconhecedores deste fato e que tudo atribuem a si próprios, ou
por me desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se
de mim cedo demais. O resultado é alguns expelirem antes do tempo,
em virtude das más companhias, os germes por mim semeados, e estragarem
outros, por falta da alimentação adequada, os que eu ajudara
a pôr no mundo, por darem mais importância aos produtos falsos
e enganosos do que aos verdadeiros, com o que acabam por parecerem ignorantes
aos seus próprios olhos e aos de estranhos. Quando voltam a implorar
insistentemente minha companhia, com demonstrações de arrependimento,
em alguns casos meu demônio familiar me proíbe de reatar relações;
em outros o permite, voltando estes, então, a progredir como antes.
Neste ponto, os que convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem
dores lancinantes e andam dia e noite desorientados, em um trabalho muito
mais penoso do que o delas. Estas dores é que minha arte sabe despertar
ou acalmar. É o que se dá com todos. Todavia, Teeteto, os
que não me parecem fecundos, quando eu chego à conclusão
de que não necessitam de mim, com a maior boa vontade assumo o papel
de casamenteiro e, graças a Deus, sempre os tenho aproximado de quem
lhes possa ser de mais utilidade. Muitos desses já encaminhei para
Pródico, e outros mais para varões sábios e inspirados.
Se te expus tudo isto, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi
por suspeitar que algo em tua alma está no ponto de vir à
luz, como tu mesmo desconfias. Entrega-te, pois, a mim, como o filho de
uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular
alguma questão, procura responder a ela do melhor modo possível.
E se no exame de alguma coisa que disseres, depois de eu verificar que não
se trata de um produto legítimo, mas de algum fantasma sem consistência,
que logo arrancarei e jogarei fora, não te aborreças como
o fazem as mulheres com seu primeiro filho. Alguns, meu caro, a tal extremo
se zangaram comigo, que chegaram a me morder por os haver livrado de um
ou outro pensamento extravagante. Não compreendiam que eu só
fazia aquilo por bondade. Estão longe de admitir que, de jeito nenhum,
os Deuses podem querer mal aos homens, e que eu, do meu lado, nada faço
por malquerença, pois não me é permitido em absoluto
pactuar com a mentira nem ocultar a verdade. Enfim, o que faço é
ajudar no trabalho do parto das idéias. Uma vez isto conseguido,
decidirei se se trata de um ovo sem gema ou de algum produto legítimo.
'O
homem é a medida de todas as coisas; da existência das coisas
que existem e da não-existência das coisas que não existem.'
(Protágoras, apud
Platão).
Sensação
[aisthesis]
é sempre sensação do que existe, não
podendo, pois, ser ilusória, visto ser conhecimento.
Da
translação das coisas, do movimento e da mistura de umas coisas
com as outras é que se forma tudo o que dizemos existir. Todavia,
a rigor nada é ou existe; tudo devém. Sobre
isto, com exceção de Parmênides, todos os sábios,
por ordem cronológica, estão de acordo: Protágoras,
Heráclito e Empédocles. E, entre os poetas, os pontos mais
altos dos dois gêneros de poesia: Epicarmo na comédia e Homero
na tragédia. Homero,
por exemplo, quando se refere 'ao Pai de todos os Deuses Eternos –
o Oceano e a mãe
Tétis' – dá a entender que todas as coisas se originam
do fluxo e do movimento. (Grifos meus).
O
calor e o fogo – que geram e coordenam todas as coisas – são
gerados, por sua vez, pela translação e pela fricção,
que também consistem em movimento. Daí também procede
a geração dos seres vivos.
O
que se passa com a alma é semelhante, pois é pelo estudo e
pelo exercício (que também são movimentos) que a alma
adquire conhecimentos, conserva-os e se torna melhor, ao passo que com o
repouso e por falta de exercício e aplicação, ou nada
aprende ou esquece o que aprendeu.
O
repouso estraga e destrói; o seu contrário conserva.
O
branco, o preto e todas as demais cores resultam do encontro dos olhos com
o movimento particular de cada uma, e a cor designada por nós como
existente não é nem o que atinge o senciente nem o que é
atingido, porém algo intermediário e peculiar a cada indivíduo.
'Nossa
língua fica a salvo de censura, não o espírito.' (Eurípides,
apud Platão).
Jamais
alguma coisa ficou maior, seja em volume seja em quantidade, enquanto se
manteve igual a si mesma. Uma coisa a que nada se acrescente e de que nada
se tire não aumentará nem desaparecerá, porém,
continuará sempre igual. O que não existia antes não
poderia ter existido sem se formar ou ter sido formado.
Sem
o devir, nada poderá vir a ser.
O não-iniciado só acredita
na existência daquilo que ele é capaz de segurar com as duas
mãos; porém, não admite que participe da realidade
nem das ações nem das gerações nem de tudo o
mais que não se vê.
Só
há movimento, e, fora disto, nada existe, havendo duas espécies
de movimento, ambas de número infinito: uma de força ativa
e outra de força passiva. Da união de ambas e da fricção
recíproca nasce prole de número infinito, porém, sempre
aos pares: um dos termos é objeto da sensação; o outro,
a própria sensação. Damos às sensações
vários nomes, tais como: visões, audições, olfações,
frio e quente, e também prazeres, dores, desejos, temor e muitos
outros nomes. Infinitas são as anônimas; numerosíssimas
as que têm nome. Por sua vez, o gênero dos sensíveis
tem cognatos correspondentes a cada uma destas sensações:
para as inúmeras visões, para as cores de perder a conta;
para as audições, para os sons em igual variedade, e para
as outras sensações, outros tantos objetos sensíveis,
que lhes são aparentados.
O
olho que se enche de visão passa a ver, sem, com isso, tornar-se
visão, porém um olho que vê.
Em si e por si mesmas, a dureza,
a quentura e as demais qualidades nada são. De sua aproximação
recíproca e do movimento é que as coisas nascem, pois nem
o elemento ativo nem o passivo podem ser concebidos como unidades fixas
e independentes, porque não pode existir algo ativo sem a prévia
união com o elemento passivo, e o inverso. E mais: o que em determinado
caso se revelou ativo, mais adiante, em outras conexões, se tornará
paciente. De tudo isto, se conclui que nada existe em si e por si mesmo,
e que cada coisa só devém por causa de outra. Segundo a natureza,
teremos de dizer que as coisas devêm, formam-se, destroem-se ou se
alteram. Expõe-se a ser facilmente refutado quem quer que, no seu
modo de se expressar, assevere a estabilidade seja do que for.
Não
desistas. Declara com independência e decisão o que pensas.
O
bem, o belo... Nada existe. Tudo se acha num perpétuo vir-a-ser.
Nada
existe tal como nos aparece.3
Estaremos
dormindo? Estaremos realmente acordados? Estaremos efetivamente entretidos
com as coisas da vida? Não será uma espécie de sonho
tudo o que pensamos e vivenciamos?
A verdade será definida pela
maior ou menor duração do tempo.4
Todas
as coisas são verdadeiras para quem as representa como tal.
Não
é possível haver a identidade nem de virtude nem do que quer
que seja.
Se
dissermos que alguma coisa existe ou devém, será preciso acrescentar
que existe ou se forma de alguém ou para alguém ou com relação
a alguma coisa. Mas, que alguma coisa seja ou se torne por si mesma é
o que se não deve dizer nem permitir que outros afirmem.
O
que atua sobre um determinado ser só se relaciona com este ser; só
este ser o percebe, mais ninguém.5
O
conhecimento não passa de sensação, o que vem a dar,
precisamente, nisto de Homero e de Heráclito e de toda a tribo de
seus acompanhantes: tudo se movimenta como um rio. Ou, segundo a fórmula
do sapientíssimo Protágoras: 'O homem é a medida de
todas as coisas.' Há, portanto, perfeita identidade entre conhecimento
e sensação.
Analisar
e procurar refutar as fantasias e as opiniões de outras pessoas,
dado que todas sejam certas para cada um de nós, será sempre
o cúmulo da sensaboria e da tolice.
Como, em temas transcendentes
[que transcende a natureza física
das coisas], acolher argumentos baseados apenas em verossimilhança
[que parece ser verdadeiro]
e probabilidade [que parece
ser provável]?
Quando
não prestamos suficiente atenção ao sentido dos vocábulos,
nos vemos forçados a admitir absurdos dos quais, comumente, nos servimos
para afirmar ou negar alguma coisa.
Poderá
haver pode haver conhecimento agudo e conhecimento obtuso, conhecimento
de perto, porém, não de longe ou, ainda, conhecimento intenso
e conhecimento frouxo?
Saber
e não saber a mesma coisa significa puramente não saber.
Se
cada um de nós é a medida do que é e do que não
é, e se um dado indivíduo difere de outro ao infinito, é
precisamente por isto de as coisas serem e de aparecerem de certa forma
para determinada pessoa e de forma diferente para outra.6
Sábio
é o indivíduo capaz de mudar o aspecto das coisas, fazendo
ser e parecer bom para esta ou aquela pessoa o que era ou lhe parecia mau.
Não
devemos sustentar que o doente é ignorante por pensar desta ou daquela
maneira, e que é sábio o indivíduo com saúde
por ser de opinião contrária. O que importa é modificar
a condição do primeiro, pois a outra lhe é superior
em tudo. Assim, no domínio da educação, cumpre passar
os homens do estado pior para o melhor.
Não
é possível ter representação do que não
existe.
Se
um indivíduo de má constituição de alma tem
opiniões de acordo com esta disposição, com a mudança
apropriada passará a ter opiniões diferentes, opiniões
estas que os inexperientes denominam verdadeiras. No meu modo de pensar,
estas serão melhores do que as primeiras; mais verdadeiras, nunca.
O
sábio faz ser e parecer benéfico o que, até então,
era pernicioso.
Seria
o cúmulo da inconseqüência alguém se declarar zeloso
da virtude e só se valer de subterfúgios em suas discussões.
Aqui, a falta de lealdade consiste em entabular o diálogo sem fazer
a necessária distinção entre o que é discussão
propriamente dita e o que é investigação dialética.
No primeiro caso, o disputador se diverte com o adversário e procura
lográ-lo o mais possível; no outro, o dialético procede
com seriedade e se esforça por levantar o adversário, mostrando-lhe
apenas os erros em que ele incorrera, seja por conta própria, seja
por má orientação de outros ensinadores.
Tudo
se move. As coisas são como, de fato, aparecem a cada um, tanto para
os indivíduos como para as cidades.
Por
eu ser pequeno, meu socorro é pequeno.
As
pessoas não devem se privar de discutir as coisas dialeticamente,
pois o debate dialético só trará vantagem para elas
mesmas, pois, apenas através da Dialética, a alma se elevará,
gradativamente, das aparências sensíveis às realidades
inteligíveis ou idéias.
Nas
opiniões dos homens não há só verdade, porém
as duas coisas: verdades e erros.
Geralmente,
nossas opiniões são verdadeiras para nós, porém,
falsas para miríades de pessoas.7
É
muito difícil afirmarmos com segurança que temos um critério
absoluto para dizer que encontramos e que estamos no caminho certo.8
O
que nos compete é nos valermos de nós mesmos, tal como nos
fez a Natureza, e dizer sempre o que nos pareça ser verdadeiro.
Em
cada cidade e para cada um de nós, belo e feio, justo e injusto,
pio e ímpio são verdades ou falsidades, não havendo,
neste domínio, superioridade em matéria de sabedoria, nem
entre os particulares nem entre as cidades, ainda que tudo o que determinada
cidade legisle, na convicção de que lhe será de proveito,
terá de ser, infalivelmente vantajoso.
Não
importa se a conversa dura muito ou pouco. O que importa é atingir
a verdade.
Aqueles que, desde a infância,
são escravos se ressentem no crescimento, na retidão e na
liberdade, o que os leva a práticas tortuosas, deixando suas tenras
almas expostas a perigos e temores de toda a espécie. Não
podendo transpor estes obstáculos sem ferir a justiça e a
liberdade, voltam-se muito cedo para a mentira e respondem, à injustiça
com injustiça, donde vêm a ficar inteiramente deformados e
retorcidos.
Conhecemos
tão pouco como quanta areia há no mar! Muitas vezes, nem chegamos
mesmo a saber que não sabemos! Como diz Píndaro,9
'muitos sondam os abismos da Terra e medem a sua superfície, contemplam
os astros para além do céu, mas jamais descem para se ocupar
com o que se passa ao seu lado.'
Sermos
semelhantes a Deus consiste em nos tornarmos justos e santos com Sabedoria
[ShOPhIa].
De modo nenhum Deus é injusto, senão justo em grau máximo,
não podendo ninguém se tornar semelhante a Ele se não
for se tornando o mais justo possível. O conhecimento de semelhante
fato configura a Sabedoria e a verdadeira Virtude, e sua ignorância,
maldade e tolice manifestas.
Quando
alguém é injusto ou ímpio, por ações
ou por palavras, será melhor não lhe conceder que todo o seu
êxito se baseia na astúcia, pois este indivíduo se envaideceria
com o reparo, muito ancho por ter ouvido dizer, segundo crê, que não
é néscio ou fardo inútil sobre a Terra, porém
homem como terão de ser os que melhor sabem vencer na vida pública.
A estes tais é preciso lhes dizer a verdade: que são tanto
mais o que julgam não ser, quanto menos sabem o que são.
Na
própria ordem das coisas há dois paradigmas: um divino e bem-aventurado;
outro, contrário a Deus e miserabilíssimo.
Tudo é um...
Uma
coisa se movimenta quando ela muda de lugar e também quando gira
em torno do mesmo ponto.
Também
devem ser consideradas formas de movimento quando determinada coisa, parada
no lugar em que está, vem a envelhecer, ou de negra fica branca,
ou passa de dura para mole, ou sofre alterações de outra natureza.
Por isto, podemos entender que há duas espécies de movimento:
o de alteração e o de translação.
Se
tudo tem de se mover, em nada há imobilidade. Tudo se move sempre.
Em
parte alguma existe umidade em si mesma.10
Nunca
devemos nos valer da expressão 'assim', visto como este 'assim' já
não seria movimento, nem, ainda, da contrária 'não
assim', que também implicaria em ausência de movimento.
Já
que tudo se move, como o conhecimento poderá ser sensação?11
Vemos
com os olhos ou por meio dos olhos? Ouvimos com os ouvidos ou por meio dos
ouvidos?
Haverá
em nós um princípio, sempre o mesmo, com o qual, por meio
dos olhos, atingimos o branco e o preto, e, por meio de outros órgãos,
outras qualidades? Os órgãos, por intermédio dos quais
sentimos o quente e o seco, o leve e o doce, estarão localizados
no corpo ou em outra parte? Será a alma, por si mesma, que apreende
o que em todas as coisas é comum, abrangendo o semelhante e o dissemelhante,
o idêntico e o diferente, o belo e o feio, o bom e o mau? Será
a alma que examina o ser, comparando suas relações recíprocas
com os fatos passados, presentes e futuros?
Desde
o nascimento, tanto os homens como os animais têm o poder de captar
as impressões que atingem a alma por intermédio do corpo.
Porém, relacioná-las com a essência e considerar a sua
utilidade, é o que só com tempo, trabalho e estudo conseguem
os raros a quem é dada semelhante faculdade.
Não
poderá atingir a verdade de alguma coisa quem não alcançar
a sua essência. E, não se alcançando a verdade não
se poderá ter conhecimento.12
O
conhecimento não reside nas impressões que recebemos das coisas,
mas no raciocínio. O raciocínio é único caminho
para que se possa atingir a essência e a verdade; de outra forma é
impossível. Logo, que fique claro: sensação e conhecimento
não são a mesma coisa. Portanto, não se deve procurá-lo
de jeito nenhum na sensação, porém no nome que possa
ter a alma, quando se ocupa sozinha com o estudo do ser.
Vale
mais conseguir pouco e bom do que muito e imperfeito.
São
duas coisas inteiramente diferentes o aprender e o esquecer e o saber e
o não saber.
Quando
alguém forma opinião falsa, toma as coisas que sabe, não
pelo que elas são, mas por outras que ele sabe; de onde vem que,
conhecendo ambas, ignora as duas. Ou então, toma o que não
sabe por outra coisa que também não sabe, como seria o caso
de alguém que, não conhecendo nem Teeteto nem Sócrates,
se pusesse a imaginar que Sócrates é Teeteto e que Teeteto
é Sócrates.13
Opinião
falsa o equívoco de quem, confundindo no pensamento duas coisas igualmente
existentes, afirma que uma é outra. Deste modo, ele sempre pensa
em algo existente, porém põe uma coisa em lugar de outra.
Assim, visar a um alvo errado é o que com todo o direito se pode
denominar opinião falsa.
Formar
opinião é discursar um discurso enunciado, não evidentemente,
de viva voz para outrem, porém em silêncio para si mesmo.
Do
que fica impresso, temos lembrança e conhecimento enquanto persiste
a imagem; o que se apaga ou não pôde ser impresso, esquecemos
e ignoramos.14
O
que se sabe por ter a lembrança impressa na alma, porém não
se percebe, não é possível tomar por outra coisa que
se sabe e de que se tenha a impressão, porém não se
percebe; como também não o será tomar o que se sabe
pelo que não se sabe nem possui a impressão, ou o que não
se sabe, por algo que, do mesmo modo, não se sabe, ou, ainda, que
o que não se sabe seja o que se sabe. Não é, também,
possível imaginar que o que se percebe realmente seja outra coisa
também percebida, ou que o que se percebe seja o que não se
percebe, ou o que não se percebe, o que se percebe; e o inverso:
o que não se percebe seja o que se percebe. Há mais: o que
se sabe e se percebe e possui a marca conforme a respectiva impressão,
imaginar que seja outra coisa que se conhece e percebe e possui a marca
de acordo com a impressão é ainda mais impossível do
que os casos anteriores. Mais: não é possível confundir
o que se sabe e percebe e de que se conserva a impressão fiel, com
aquilo que se sabe, como também o que se sabe e percebe e de que
se conserva a impressão fiel, com aquilo que se sabe, como também
o que se sabe e percebe e possui impressão exata com o que se percebe,
nem, ainda, o que não se sabe nem se percebe com o que não
se sabe nem se percebe, como também o que não se sabe nem
se percebe com o que não se percebe. Em todos estes casos é
mais do que impossível, para quem quer que seja, formar opinião
falsa. Os únicos casos de opinião falsa – a se admitir
esta possibilidade – seriam os seguintes: os em que se tomam as coisas
conhecidas por outras conhecidas e percebidas, ou por outras não
conhecidas porém percebidas, ou, ainda, os casos de confusão
entre coisas conhecidas e percebidas e outras também conhecidas e
percebidas. Enfim, do que se sabe em determinado momento, é possível
não se ter nenhuma sensação, como é possível
ter. E também é possível, com relação
ao que não se sabe, não ter, por vezes, nenhuma sensação
e, por vezes, não ter senão a sensação correspondente.
Acerca
do que nunca se soube nem do que nunca se percebeu, não é
possível nem nos enganarmos nem formarmos uma opinião falsa.
Mas, justamente nas coisas que sabemos e que percebemos é que a opinião
vira e se modifica, ficando, de vez em quando, falsa e verdadeira: quando
ela se ajusta direta e exatamente a cada objeto é verdadeira; se
se der o oposto, será falsa.
Pensar
com acerto é belo; pensar erroneamente é feio. Quando a cera
que se tem na alma é profunda e abundante, branda e suficientemente
amassada, tudo o que se transmite pelo canal das sensações
vai se gravar no Coração da alma, como diz Homero, aludindo
à sua semelhança com a cera, saindo puras as impressões
aí deixadas, bastante profundas e duradouras. Os indivíduos
com semelhante disposição aprendem facilmente e de tudo se
recordam e sempre formam pensamentos verdadeiros, sem virem jamais a confundir
as marcas de suas sensações. Sendo nítidas e bem espaçadas
todas as impressões, com facilidade põem em relação
cada imagem com a correspondente marca – as coisas reais, como lhes
chamam. São esses os denominados sábios. Já quando
o Coração anímico de alguém é veloso,
qualidade decantada pelo poeta sapientíssimo, ou é constituído
de cera carregada de impurezas, ou de cera muito úmida ou muito seca,
as pessoas aprendem depressa, mas esquecem facilmente. As de Coração
veloso, áspero e pedrento, devido à mistura de terra e de
espurcícia, recebem impressões pouco claras, por carecerem
de profundidade. Igualmente pouco nítidas são as de Coração
úmido: por se fundirem umas com as outras, em pouco tempo ficam irreconhecíveis.
E se além de tudo isto, por exigüidade de espaço, ficarem
amontoadas, mais indistintas se tomarão: os indivíduos deste
tipo são propensos a emitir juízos falsos, pois quando vêem
ou ouvem ou pensam, falta-lhes agilidade para relacionar de imediato cada
coisa com sua marca peculiar; são morosos, trocam as coisas, vêem
e ouvem mal e, no mais das vezes, pensam errado. Daí serem chamados
de ignorantes e se dizer que sempre se enganam com a realidade.15
Talvez
não haja criatura mais incômoda e molesta do que o indivíduo
conversador [tagarela],
que, por pura estupidez, puxa seus argumentos em todos os sentidos, sem
nunca se dar por convencido nem abrir mão de nenhum.
A mesma pessoa não sabe e
sabe, a um só tempo, a mesma coisa.16
Ou
não há opinião falsa ou é possível não
se saber o que se sabe.
O
Saber é posse de Conhecimento [Sabedoria
= ShOPhIa].
Não possuir o que se possui não poderá ocorrer de jeito
nenhum, haja ou não haja erro.
Às
vezes, é possível que uma pessoa tome alhos por bugalhos,
como, por exemplo, no caso de alguém pensar que um pombo torcaz seja
um pombo manso.17
Há,
porém, um aborrecimento ainda mais sério, sempre que se dá
troca de conhecimentos e se origina a opinião falsa. Em primeiro
lugar, na hipótese de se ter o conhecimento de uma coisa e, não
obstante, não se conhecer esta coisa, não por ignorância,
mas em virtude do próprio conhecimento. Depois, pensar que esta coisa
seja outra, e que esta última seja aquela. Não será
o cúmulo do absurdo ter presente na alma o conhecimento, nada conhecer
e ignorar tudo? Seguindo este mesmo raciocínio, nada impediria admitir
que a ignorância condiciona conhecer alguma coisa, e a cegueira perceber
algo, uma vez que o conhecimento pode levar alguém a não saber.
A
opinião verdadeira é conhecimento. O pensamento certo está
isento de erro, e tudo o que sai dele é belo e bom.18
Se
conhecimento e opinião verdadeira, nos tribunais, fossem a mesma
coisa, nunca o melhor juiz julgaria sem conhecimento.
Conhecimento
é opinião verdadeira acompanhada da explicação
racional. As coisas que não encontram explicações não
podem ser conhecidas, sendo, ao revés disto, objeto do conhecimento
todas as que podem ser explicadas.
Quando,
sem a racional explicação, alguém forma uma opinião
verdadeira de qualquer objeto, sua alma fica de posse da verdade a respeito
deste objeto, porém sem conhecê-lo. Pois, quem não sabe
nem dar nem receber explicação de alguma coisa, carece do
conhecimento desta coisa; porém, se a esta opinião acrescentar
a explicação racional, então, ficará perfeito
em matéria de conhecimento. Então, a opinião verdadeira,
acompanhada da razão, pode ser entendida como sendo conhecimento.
Enfim, como poderia haver conhecimento perfeito sem explicação
racional e sem opinião verdadeira?
Não
se pode falar de conhecimento de alguma coisa, da qual se tenha opinião
verdadeira, antes de enumerar seus elementos componentes.
A
sílaba é uma forma única e indivisível.
Tudo
o que tem partes é composto de partes.
Conhecimento
não pode ser nem sensação, nem opinião verdadeira,
nem a explicação racional acrescentada a esta opinião
verdadeira. Ao que parece, só ficamos ricos em sonhos, onde imaginamos
ter encontrado a perfeita definição do conhecimento. Estaremos,
amigo, sempre em estado de gravidez e com dores de parto a respeito do conhecimento.
Tudo não passa de vento...
E
assim...
Ora
admitimos: desconhecemos.
Ora nos
persuadimos: sabemos.
Mas,
será que sabemos mesmo
ou tudo
não passa de um esmo?
Não
importa se é cru ou assado;
temos
de altear nosso Quadrado.
Se separarmos,
deveremos jungir;
se falharmos,
deveremos adimplir.
O
que não devemos é desistir;
se for
preciso, até contra-impelir.
Nada
deve embargar nossa meta;
nada
deve embaçar o azul-violeta.