O JOGO DE SINUCA

(A lição de vida que não foi aprendida)

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Música de fundo: Trem das 11
(Adoniran Barbosa)

Fonte: http://www.cifrantiga.hpg.ig.com.br/Crono3/midis.htm

 

Moreira da Silva

 

Eram 11 horas da manhã de uma sexta-feira e o Bilhar Esperança ainda estava às moscas. A malandragem ainda não havia chegado e um dos empregados estava acabando de limpar o salão para receber os fregueses. Era 7 de Setembro, e feriado era bom para os negócios; 'as casa' enchia de pregos e os malandros faziam a festa. Eu me lembro de que na Guerra do Yom Kipur (o Dia do Perdão), que começou em 6 de Outubro de 1973, um malandro de sinuca muito safado – um tal de Graveto no segundo dia da Guerra, apostou com um lorpa metido a sabido que era Israel e dava o empate. Eram mais ou menos 100 árabes para um judeu. O trouxa topou... e perdeu! Até hoje ele não entendeu como a Síria e o Egito – a antiga República Árabe Unida (RAU) criada por Gamal Abdel Nasser (1918-1970) – auxiliados pela Jordânia, Arábia Saudita, Líbia, Algéria e Tunísia, e também pelo Iraque, Sudão, Marrocos, Kuwait e Líbano perderam aquela Guerra, que, no final, se não fosse pela interferência do Conselho de Segurança da ONU com apoio dos EUA e da URSS, as forças egípcias, que estavam cercadas no Canal de Suez, teriam sido massacradas! Havia outro espertalhão que era especialista em risca-risca. Não perdia para ninguém. Claro! Jogava com vários números de cada vez! Um terceiro conseguia jogar algumas paradas de poker com 6 cartas. Aquele bilhar tinha de tudo: ladrão, atravessador, traficante, proxeneta, chincheiro, agiota, professor, médico, advogado, engenheiro, delegado de polícia etc., mas todos se respeitavam e, relativizadas as devidas idiossincrasias, se davam razoavelmente bem. A regra de bem conviver nesses lugares é: não ver, não ouvir e não falar. Mas de vez em quando saía um pau que era logo apartado. Briga é o que menos interessa nesses ambientes. Afasta a freguesia e acaba dando prejuízo. E prego gosta de perder e de contar estória. Mas em paz e segurança.

Há coisas, muitas coisas, que acontecem nos chamados submundos que as pessoas comuns nem desconfiam que possam acontecer. Nesse bilhar, por exemplo, freqüentava um procurador aposentado que, quando era solteiro, se meteu em um jogo de ronda. De repente, segundo ele me contou, um dos jogadores acusou um outro de roubo. O que foi acusado de estar roubando se levantou calmamente, sacou um 38 e matou o acusador com um tiro na cabeça. Deu um único tiro e disse: — Otário que me chama de ladrão morre. E foi embora.

 

 

Desengonçado, um palito de fósforos no canto da boca, Fuzila – jogador de sinuca da melhor qualidade e malandro profissional – foi o primeiro a chegar naquela sexta-feira aparentemente promissora. Era feriado, e não há dia melhor do que feriado para um malandro de sinuca. Por isso ele sabia que não iria demorar muito para aquilo começar a fervilhar de pregos.

 

 

Ele estava com o aluguel da cabeça-de-porco (que ele chamava de pensão) atrasado e precisava arrumar algum. A dona da bira havia dado prazo até aquela noite: ou ele levava o dinheiro do aluguer, ou iria dormir na rua. — Traz a grana, Fuzila, que dessa vez eu não perdôo — ameaçou D. Aurora, a dona da bira.

 

 

Por isso ele havia madrugado no bilhar. Fuzila estava durinho e a situação era desesperadora. O último dinheirinho que sobrara fora gasto com um almoço de malandro fracassado – uma média com pão e manteiga que ele comera no boteco do Seu António, um português que, lá uma vez ou outra, vendia fiado para ele. Evidentemente, nunca recebeu. O pior é que aquele 7 de Setembro estava chovendo e fazia muito frio! Ele tinha que arrumar alguma grana, nem que tivesse que fazer um trinta e um ou um mole. Dormir na rua ia ser uma desgraça.

 

 

Lá pela uma hora da tarde o salão já estava em pleno funcionamento. Só havia uma mesa vazia. Era exatamente a mesa dois e que o Fuzila mandara reservar se responsabilizando pelo tempo. Ele só jogava naquela mesa Tujague, pois conhecia todas as descaídas e todos os defeitos. Se ele não formasse um jogo teria que pendurar mais uma vez aquele tempo. Os preguinhos que haviam chegado não queriam jogo com ele. Ele oferecia partidos absurdos, mas ninguém estava disposto a encarar. O homem era o melhor do bilhar e uma fera.

À uma e quinze entrou no Esperança um homem muito bem trajado, jeitão de caipira e anel de chuveirinho com não sei quantos brilhantes no dedo mindinho esquerdo. Aparentava ter aproximadamente uns quarenta anos e carregava uma mala tipo 007 – que ninguém jamais soube o que havia ali dentro.

 

 

Aquela figura nunca havia aparecido por ali e ninguém conhecia o homem. Mas carne fresca todo mundo bota o olho e dá uma sacada tentando advinhar não sei o quê. O Fuzila foi logo avisando: — Ninguém tasca. Esse aí eu vi primeiro. O homem se dirigiu para o bar e pediu um cafezinho. O Fuzila foi logo se aproximando e, com toda a simpatia, convidou: — Vamos brincar umas partidinhas parceiro? O caipira argumentou que não jogava nada, mas que se ele desse um partidinho poderia até experimentar. Depois de completadas as negociações, o jogo foi armado com o Fuzila dando 15 na 3 de partido para o caipira da mala 007. Aparentemente o jogo era mais do que roubado, e logo apareceu um patrão para patroar a armação. Todo o mundo queria levar no jogo, e o Fuzila deixou dois desocupados levarem uma mixaria. Pra torcer!

 

 

O caipira escolheu um taco na taqueira e rolou o taco pela mesa. O taco estava meio empenado, mas ele se conformou e não escolheu outro. Começou o jogo com aquele taco mesmo. O jogo foi combinado a R$ 20,00 a partida e sem limite de tempo, isto é, só acabaria quando alguém desistisse. E não valia cheque, só grana viva. Quem quisesse poderia também pagar em dollar. Esses foram os acertos preliminares.

O caipira perdeu as duas primeiras partidas, ganhou a terceira, perdeu a quarta, e depois de uma hora o jogo estava empatado. Com duas horas de jogo o caipira já ganhava três partidas e o Fuzila propôs: — Vamos dobrar? O caipira topou e cada partida passou a valer R$ 40,00. Mas, com três horas de jogo o Fuzila já perdia seis partidas, e chorou: — Parceiro. Eu não posso dar esse partido. O jogo prosseguiu com o malandro dando agora 12 na 3 para o preguinho da mala 007. O tempo foi passando e o caipira não parava de ganhar. Estava com uma sorte das arábias. De vez em quando fazia umas jogadas de profissional e dizia que estava mesmo com muita sorte. Em uma das partidas o Fuzila havia deixado o bobo no golpe dos 27 com a sete colada – tinha 25 pontos de vantagem na seis e na sete. Não conseguiu botar a seis na boca e acabou levando uma sinuca de bico infernal da qual não conseguiu sair. O caipira matou a seis descolando a sete e deu o golpe dos 27 pois fez 26 pontos. Ganhou aquela partida por um ponto! Parecia mágica! A certa altura do massacre que se anunciava, o partido – que já havia diminuído para 10, 7 e 5 na 3 era de 2 na 3, e já estavam comentando que o caipira não era prego coisa nenhuma e que estava cozinhando o Fuzila. O Fuzila tinha entrado mesmo numa fria!

O jogo seguia – agora a R$ 100,00 a partida – com todo o sindicato se cotizando para bancar o Fuzila, pois o preguinho já ganhava R$ 960,00 e o patrão havia caído duro. E o partido havia diminuído para 1 na 3. Algum tempo depois o jogo já estava no pau e o Fuzila não parava de perder. Depois de seis horas de jogo, o Fuzila colocou o taco na mesa e, meio encabulado, falou: — Parceiro, não dá. Você joga muito e eu só continuo se você me der um partido. Negocia daqui, negocia dali, e o caipira matador concordou em dar 5 na 3, mas disse que iria até o carro para pegar seu próprio taco. Agora que ele iria dar partido não poderia continuar jogando com taco de taqueira. O Fuzila concordou. Algum tempo depois o caipira voltou com uma maletinha preta da qual tirou um taco de tarraxa espetacular. Parecia taco importado! Atarraxou as duas metades e o jogo recomeçou. Alguém comentou: — O Fuzila tá em cana. Esse cara é 'profiça'. Olha só o taco dele!

 

 

O tempo foi passando, o partido foi aumentando e o Fuzila não conseguia mais ganhar partida alguma. Nove horas se passaram e o prejuízo já chegava a R$ 2.000,00 quando o Fuzila falou: — Parei parceiro! O caipira meneou a cabeça e começou a desatarraxar o taco de tarraxa. Então o Fuzila falou: — Qual é a estia? O caipira – que de caipira não tinha nada – lhe deu R$ 200,00 – o equivalente a 10% do que ele havia perdido. O Fuzila então propôs: — Vamos jogar a estia numa partida só. O homem olhou para ele alguns segundos, atarraxou o taco de novo e deu a partida. O Fuzila se preparou para defender, mas repicou e deixou a bola 3 na boca. — Tá em 'cana' falou baixinho um dos malandros que estava assistindo ao jogo. À essa altura da desgraça, ele já estava levando 26 na 3 – onze pontos a mais do que o partido inicial que ele próprio dera ao homem da mala 007 e que usava um anel de chuveirinho com não sei quantos brilhantes no dedo mindinho esquerdo. O homem do taco de tarraxa não disse uma palavra, acariciou o anel de chuveirinho com o polegar e o indicador da mão direita, se abaixou e começou a matar as bolas: 3... 4... 4... 5... 5... 6... 6... O jogo ficou pela 7 para o empate para o Fuzila. Havia um fio de esperança! Defende daqui, defende dali, e o Fuzila conseguiu colar a preta na tabela perto da marca da 3. Alívio geral! Mas... O homem do taco de tarraxa parou perto da bola, examinou a situação detalhadamente e então cantou a tacada pela primeira vez. Ele não havia dito uma única palavra durante as nove horas de jogo sobre as jogadas que iria fazer. Nem precisava, pois o jogo não era cantado. Quando muito, dizia que estava com sorte. Mas dava cada dublé incrível. Entretanto, todo mundo, e o Fuzila também, há muito tempo, já havia percebido que não havia sorte alguma nas jogadas que ele fazia. Mas, o Fuzila estava grampeado; tinha que entubar aquela derrota até o fim. Malandro só desiste morto ou duro. O homem da mala 007 do taco de tarraxa que parecia um prego caipira – mas que estava longe de ser um prego e um caipira – comportara-se durante todo o desenrolar do jogo como um gentleman. Educada e conscientemente do que iria fazer, acariciou de novo o anel de chuveirinho e falou: — Bola 7 no fundo com três tabelas. Ele não precisava cantar a jogada porque, como já expliquei, o jogo não era com bola cantada. Mas, eu acho que ele quis botar uma pá-de-cal naquele confronto e fechar o jogo com chave de ouro. À essa altura da carnificina, essa vaidadezinha de somenos passou despercebida dos malandros. Primeira tabela... Segunda tabela... Terceira tabela... E suavemente a bola 7 morreu no fundo na caçapa esquerda ao lado da marca da sete. O bilhar parecia um velório. Todo mundo respirava devagarinho enquanto o homem do taco de tarraxa desatarraxava e guardava definitivamente o taco na maletinha preta. O jogo havia acabado. Não havia mais ninguém com dinheiro no bilhar para continuar a bancar o jogo. E quem tinha disse que não tinha. O Fuzila já entrara derrotado naquela parada sem saber.

 

A  Última  Tacada

 

O Fuzila ficou meio abobalhado com o que vira. Parecia que havia sido fulminado por um raio ou atropelado por uma carreta de 40 tonelados. Então, se virou para o homem do taco de tarraxa e perguntou: — Como foi mesmo que você disse que se chamava? O homem do taco-mala de tarraxa-007 acariciou o anel de chuveirinho e respondeu: — Eu não disse parceiro, mas o meu nome é Lincoln. Então, pagou calmamente a despesa, pegou a mala modelo 007 que pedira para guardar e foi embora.

 

 

Naquela noite fria e chuvosa daquele 7 de Setembro o Fuzila dormiu na rua. No dia seguinte, sábado, chegou mais cedo ao bilhar. Às 10 horas da manhã já estava de prontidão à espera de um preguinho para atracar. Parecia que nada havia acontecido na véspera. Afinal, dinheiro dele mesmo ele não perdeu nenhum. Quem quebrou mesmo foi o patrão. E depois o sindicato. Fuzila não aprendeu a lição. Mas... Fazer o quê? Aprender como? Seu ofício é jogar sinuca e malhar os bobocas. Um dia...

E nunca mais ninguém viu ou ouviu falar do homem da mala 007 do taco de tarraxa espetacular e de anel de chuveirinho com não sei quantos brilhantes no dedo mindinho esquerdo que se chamava Lincoln. Será que aqueles brilhantes eram de vidro?

 

 

 

 

DEDICATÓRIA

 

Dedico esta crônica a todos os malandros de sinuca, meus irmãos, que são parte Daquilo do qual eu e todos nós também somos parte. Não pode haver paz e reintegração para um ou para alguns; enquanto um ser do Universo estiver desgarrado, sofrendo e nas trevas, todos nós estaremos e seremos incompletos. Todos somos UM.