JOSÉ SARAMAGO
(Reflexões e Pensamentos)

 

 

 

 

José Saramago

José Saramago

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo do Texto

 

 

 

Se você, porventura, é um espiritualista ou um místico que põe de lado pensadores ateus, particularmente não faça isto com José Saramago; tenho certeza de que alguma coisa que ele tenha dito ou escrito mexerá com você. E será para melhor.

 

Este texto recorta algumas reflexões e alguns pensamentos deste escritor, roteirista, jornalista, dramaturgo e poeta português conhecido mundialmente pelo seu ateísmo e pelo seu iberismo – movimento político e cultural que defende a abordagem e o melhoramento das relações, em todos os níveis, entre Portugal e Espanha e, finalmente, a unidade política dos mesmos. Em entrevista ao Diário de Notícias, em julho de 2007, Saramago afirmou: Portugal deveria ser província de Espanha e integrar um País que se chamaria Ibéria, para não ofender o brio dos portugueses.

 

 

 

Breve Biografia de Saramago

 

 

 

José Saramago

José Saramago

 

 

José Saramago nasceu na aldeia ribatejana de Azinhaga, concelho de Golegã, no dia 16 de novembro de 1922, embora o registo oficial mencione o dia 18. Seus pais emigraram para Lisboa quando ele ainda não perfizera três anos de idade. Toda a sua vida tem decorrido na capital, embora até ao princípio da idade madura tivessem sido numerosas e às vezes prolongadas as suas estadas na aldeia natal. Fez estudos secundários (liceal e técnico) que não pôde continuar por dificuldades econômicas.

 

No seu primeiro emprego foi serralheiro mecânico, tendo depois exercido diversas outras profissões, a saber: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, editor, tradutor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance (Terra do Pecado), em 1947, tendo estado depois sem publicar até 1966. Trabalhou durante doze anos numa editora, onde exerceu funções de direção literária e de produção. Colaborou como crítico literário na Revista Seara Nova.

 

Em 1972 e 1973, fez parte da redação do Jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante alguns meses, o suplemento cultural daquele vespertino. Pertenceu à primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores. Entre abril e novembro de 1975, foi diretor-adjunto do Diário de Notícias. Desde 1976, vive exclusivamente do seu trabalho literário.

 

José Saramago foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa. Saramago é considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

 

 

 

Reflexões e Pensamentos Saramagianos

 

 

 

 

 

 

O Fator Deus

José Saramago

Fonte: Folha de São Paulo, 19/09/2001

 

 

 

 

 


Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia, um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá “ver” cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.

 

Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro.

 

Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à marteladas os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras.

 

Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, seqüestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo, um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

 

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara; as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York, tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mais limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez “aqui estou” quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagazaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos, em sinal de respeito pela vida, devíamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia, e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca, prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos, a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

 

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu, nem existirá nunca, inocente de haver criado um Universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “fator deus”, esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um Deus, mas o “fator Deus” o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, e não a outra...) a bênção divina. E foi no “fator Deus” em que o Deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um Deus andou a semear ventos e que outro Deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres Deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

 

Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com Ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “fator Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

 

 

 

 

Um escritor é um homem como os outros: sonha.

 

O Deus da Bíblia não é de fiar: é vingativo e má pessoa. Sobre o livro sagrado, eu costumo dizer: lê a Bíblia e perde a fé.

 

Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros, e que, para a maioria, é só um dia mais.

 

Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

 

Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute.

 

Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.

 

Eu, no fundo, não invento nada. Sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros.

 

Para temperamentos nostálgicos, em geral quebradiços, pouco flexíveis, viver sozinho é um duríssimo castigo.

 

Eu luminoso não sou. Nem sei que haja
Um poço mais remoto, e habitado
De cegas criaturas, de histórias e assombros.
Se, no fundo poço, que é o mundo
Secreto e intratável das águas interiores,
Uma roda de céu ondulando se alarga,
Digamos que é o mar: como o rápido canto
Ou apenas o eco, desenha no vazio irrespirável
O movimento de asas. O musgo é um silêncio,
E as cobras-d'água dobram rugas no céu,
Enquanto, devagar, as aves se recolhem.

 

O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.

 

Estamos usando nosso cérebro de maneira excessivamente disciplinada, pensando só o que é preciso pensar, o que se nos permite pensar.

 

Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo.

 

Sobre o novo acordo ortográfico: Não vou me sentar outra vez no banco da escola primária.

 

Nossa maior tragédia é não saber o que fazer com a vida.

 

O que as vitórias têm de mau é que não são definitivas. O que as derrotas têm de bom é que também não são definitivas.

 

Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.
Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.
Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro Sol.
Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.
Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.
Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.

 

Por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o mais horrendo e cruel.

 

Dizem-se representantes de Deus na Terra (nunca O viram e não têm a menor prova da Sua existência) e passeiam pelo mundo suando hipocrisia por todos os poros.

 

O espelho e os sonhos são coisas semelhantes: é como a imagem do homem diante de si próprio.

 

Por que, para que e, a mais importante, para quem, são as três perguntas fundamentais que deveríamos fazer ao primeiro-ministro, ao professor, ao pai, ao filho, quase a propósito de tudo o que ocorre. O problema é que isso dá um pouco de trabalho.

 

De que adianta falar de motivos? Às vezes basta um só;às vezes nem juntando todos.

 

Se começássemos a dizer claramente que a Democracia é uma piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira, talvez pudéssemos nos entender melhor.

 

Escrevo para tentar entender, e porque não tenho nada melhor para fazer.

 

Os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e os provérbios, tudo pode aparecer como novidade. A questão está só em saber manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois.

 

O Universo não tem notícia da nossa existência.

 

Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo.

 

Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o Universo? Só para que num planeta pequeníssimo de uma galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?

 

Fisicamente, habitamos um espaço; mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.

 

O trabalho que deixou de ser o que havia sido, e nós, que só podemos ser o que fomos, de repente percebemos que já não somos necessários no mundo...

 

Há ocasiões que é mil vezes preferível fazer de menos do que fazer de mais; entrega-se o assunto ao governamento da sensibilidade, ela, melhor do que a inteligência racional, saberá proceder segundo o que mais convenha à perfeição dos instantes seguintes.

 

Nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe.

 

Quem acredita levianamente tem um Coração leviano.

 

Duas fraquezas não fazem uma fraqueza maior; fazem uma força nova.

 

A vida é assim: faz-se muito de coisas que acabam. Também se faz coisas que principiam; nunca são as mesmas.

 

Independência absoluta não existe. Vivemos em uma sociedade de interdependências que se expandem em progressão geométrica.

 

 

 

 

Perder tempo a explicar porque gosta seria pouco menos que inútil. Há coisas na vida que se definem por si mesmas; um certo homem, uma certa mulher, uma certa palavra, um certo momento, bastaria que assim o tivéssemo as enunciado para que toda a gente percebesse de que se tratava. Mas outras coisas há, e que até poderão ser o mesmo homem e a mesma mulher, a mesma palavra e o mesmo momento, que, olhadas de um ângulo diferente, a uma luz diferente, passam a determinar dúvidas e perplexidades, sinais inquietos, uma insólita palpitação...

 

... enquanto houver vida, haverá esperança. Sim, é certo. Por mais espessas e negras que estejam as nuvens sobre nossas cabeças, o céu lá por cima estará permanentemente azul, mas a chuva, o granizo e os coriscos é sempre para baixo que vêm. Em verdade, não sabe uma pessoa o que pensar quando tem de se fazer entender com uma ciência dessas.

 

Obrigado por teres posto a tua mão sobre a minha.

 

As coisas que parecem ter passado são as que nunca acabam de passar.

 

Ainda que te possa parecer estranha a comparação, os gestos, para mim, são mais do que gestos; são como desenhos feitos pelo corpo de um no corpo de outro.

 

Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.

 

O momento das carícias voltou a entrar no quarto, pediu desculpa por se ter demorado tanto lá fora. Não encontrava o caminho, justificou-se, e, de repente, como aos momentos algumas vezes acontece, tornou-se eterno.

 

Costuma-se dizer que as paredes têm ouvidos. Imagine-se o tamanho que terão as orelhas das estrelas.

 

A pena pior, minha filha, não é a que se sente no momento; é a que se vai sentir depois, quando já não houver remédio, Diz-se que o tempo tudo cura. Não vivemos bastante para tirar a prova.

 

A virtude – quem o ignorará ainda sempre encontra escolhos no duríssimo caminho da perfeição; mas o pecado e o vício são tão favorecidos da fortuna que foi ela chegar e abrirem-se-lhe as portas do elevador.

 

... assim é que a vida deve ser: quando um desanima, o outro se agarra às próprias tripas e faz delas coração.

 

Não se pode trabalhar num esgoto sem cheirar a esgoto.

 

Com pesos duvidosos me sujeito à balança até hoje recusada de saber o que mais vale: se julgar, assistir ou ser julgado. Ponho no prato raso quanto sou.

 

Foi trabalhoso abrir a cova. A terra estava dura, calcada, havia raízes a um palmo do chão. Cavaram à vez o motorista, os dois policiais e o primeiro cego. Perante a morte, o que se espera da Natureza é que percam os rancores a força e o veneno. É certo que se diz que o ódio velho não cansa, e disso não faltam provas na literatura e na vida, mas isto aqui, a bem dizer, não era ódio, e de velho nada, pois que vale um roubo de um automóvel ao lado do morto que o tinha roubado, e menos ainda no mísero estado em que se encontra, que não são precisos olhos para cavar mais fundo que três palmos.

 

Cegueira também é isto: viver em um mundo onde se tenha acabado a esperança.

 

O tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar.

 

Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos, façamos tudo para não viver inteiramente como animais.

 

Que diabo de Deus é esse que para enaltecer Abel despreza Caim?

 

Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse. Pode ser que a Humanidade venha a conseguir viver sem olhos, mas, então, deixará de ser Humanidade.

 

O mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou. Agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos.

 

A maior dificuldade para chegar a viver razoavelmente no inferno é o cheiro que lá há.

 

Perguntar de que morreu alguém é estúpido; com o tempo, a causa esquece, só uma palavra fica – morreu.

 

Na morte, a cegueira é igual para todos.

 

Quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.

 

O costume de cair endurece o corpo. Ter chegado ao chão, só por si, já é um alívio, Daqui não passarei.

 

Dentro de nós há uma coisa que não tem nome; essa coisa somos nós.

 

Aqui, cada um com seu desgosto e todos com a mesma pena.

 

... é o que as palavras simples têm de simpático: não sabem enganar.

 

O código genético disso a que, sem pensar muito, nos temos contentado em chamar natureza humana, não se esgota na hélice orgânica do ácido desoxirribonucleico ou DNA. Tem muito mais que se lhe diga e muito mais para nos contar; mas essa, por dizê-lo de maneira figurada, é a espiral complementar que ainda não conseguimos fazer sair do jardim de infância, apesar de multidões de psicólogos e analistas das mais diversas escolas e calibres que têm partido as unhas a tentar abrir-lhe os ferrolhos.

 

 

Código Genético

Código Genético
(Tabela Circular)

 

 

É ainda possível chorar sobre as páginas de um livro; mas não se pode derramar lágrimas sobre um disco rígido.

 

Em profunda escuridão se procuraram, nus, sôfrego entrou nela, ela o recebeu ansiosa. Depois a sofreguidão dela, a ânsia dele, enfim os corpos encontrados, os movimentos, a voz que vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o grito nascido, prolongado, interrompido, o soluço seco, a lágrima inesperada, e a máquina a tremer, a vibrar, porventura não está já na Terra, rasgou a cortina de silvas e enleios, pairou no alto da noite, entre as nuvens, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos pesam sobre a Terra, afinal estão aqui, foram e voltaram.

 

Quando Baltasar entra em casa, ouve o murmúrio que vem da cozinha, é a voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma, ora outra, mal se conhecem e tem tanto pra dizer, é a grande interminável conversa das mulheres. Parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do Planeta.

 

Enferrujam-se os arames e os ferros, cobrem-se os panos de mofo, detrança-se o vime ressequido, obra que em meio ficou não precisa envelhecer para ser ruína.

 

Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem um coroa de luas; por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu.

 

Talvez as lágrimas não sejam mais do que isso: o alívio de uma ofensa.

 

Voando a máquina, todo o céu será música.

 

Abençoem-se um ao outro, é quanto basta, pudessem todas as bênçãos como essa ser.

 

Não há nada mais triste que uma ausência (...), só fica uma pungente melancolia, esta que faz (...) sentar ao cravo e tocar um pouco, quase nada, apenas passando os dedos pelas teclas como se estivessem olhando um rosto quando já as palavras foram ditas ou são de menos.

 

José Anaiço está ao lado de Joana Carda, mas não lhe toca, compreende que não deve tocar-lhe, ela compreende-o também. Há momentos em que mesmo o amor deve conformar-se com a sua insignificância, perdoai que assim reduzamos o extremo dos afetos a quase nada, ele que, em outras ocasiões, é quase tudo.

 

Dificílimo ato é o de escrever, responsabilidade das maiores...

 

Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias...

 

As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como uma libertação. Não foi o que nos habituaram a ouvir. Algo teríamos que dizer para tornar atrativa a mercadoria. Isso quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna. Fazemos de conta.

 

Com as palavras, todo cuidado é pouco; mudam de opinião como as pessoas. Porque as palavras, se não o sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixaram de estar, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados.

 

Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberá como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais que isso: os nomes que lhes deste.

 

A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.

 

A morte conhece tudo a nosso respeito, e, talvez por isso, seja triste.

 

A prudência só serve para adiar o inevitável; mais cedo ou mais tarde acaba por se render.

 

De Deus e da morte não se tem contado senão histórias.

 

O corpo que sonha é real, portanto, salvo opinião mais autorizada, também tem de ser real o sonho que ele estiver a sonhar.

 

... como se o tempo houvesse encolhido todo, de trás para diante e de diante para trás, comprimido em um instante compacto...

 

O tempo pusera-se a contar os dias desde o princípio, agora usando a tábua de multiplicação para tirar o atraso... O tempo, ainda que os relógios nos queiram convencer do contrário, não é o mesmo para toda gente.

 

O efeito da queda poderia ser acabar-se-lhe a vida, o que, sem dúvida, teria a sua importância de um ponto de vista estatístico e pessoal. Mas o que representa isso, perguntamos nós, se, sendo a vida biologicamente a mesma, quer dizer, o mesmo ser, as mesmas células, as mesmas feições, a mesma estatura, o mesmo modo aparente de olhar, ver e reparar, e sem que a estatística se tivesse podido aperceber da mudança, essa vida passou a ser outra vida, e outra pessoa essa pessoa.

 

A Democracia é uma realidade que não existe. Quem verdadeiramente manda são instituições que não têm nada de democráticas, como é o caso do Fundo Monetário Internacional, as fábricas de armas e as multinacionais farmacêuticas.

 

Em rigor, não tomamos decisões; são as decisões que nos tomam a nós.

 

O acaso não escolhe, propõe.

 

A estupidez não escolhe entre cegos e não-cegos. É uma manifestação de mau humor, assente sobre coisa nenhuma e pronto, acabou. Nada mais.

 

O que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e que é preciso andar muito para alcançar o que está perto.

 

Para ela, vá lá entender a alma humana, o fato de não ver as paredes do cárcere, as próximas e as distantes, era o mesmo que se elas tivessem deixado de estar ali. Era como se o espaço se tivesse alargado, livre, até ao infinito; como se as pedras não fossem mais do que o mineral inerte de que são feitas; como se a água fosse simplesmente a razão da lama; como se o sangue corresse só dentro das suas veias, e não fora delas.

 

Homem, não tenhas medo. A escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo.

 

O tempo psicológico não corresponde ao tempo matemático... A efetiva impossibilidade de medir esse tempo a que chamamos de alma...

 

Não creio que haja maior respeito que chorar por alguém que não se conheceu.

 

Aproximou-se duma sepultura e tomou a atitude de alguém que estivesse a meditar profundamente na irremissível precariedade da existência, na vacuidade de todos os sonhos e de todas as esperanças, na fragilidade absoluta das glórias mundanas e divinas.

 

Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter; ter deve ser a pior maneira de gostar.

 

Quero encontrar a ilha desconhecida; quero saber quem sou quando nela estiver.

 

Aprender com a experiência dos outros é menos penoso do que aprender com a própria.

 

Não sou um ateu total. Todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro.

 

Deus não cobra juros.

 

Perguntou-se a José Saramago: — Como podem homens sem Deus serem bons?
Sua resposta foi:
Como podem homens com Deus serem tão maus?
Insistiu o entrevistador:
O senhor ainda sente necessidades de ajustar contas com Deus, mesmo acreditando que Ele só existe na cabeça das pessoas?
Sua resposta foi: Deus não existe fora da cabeça das pessoas que Nele crêem.

 

Há uma tendência autoritária em muitos países. Nada restou dos ideais. A esquerda sofre uma espécie de tentação maligna que é a fragmentação. Não vejo nada mais estúpido do que a esquerda. Uns enfrentam os outros, por grupos, por partidos, por opções.

 

Se antes de cada ato nosso, puséssemos prever todas as conseqüências dele, e pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar.

 

O homem deixou de respeitar a si mesmo quando perdeu o respeito por seu semelhante.1

 

Hoje em dia, os nomes já não possuem significado. O que importa são os números: o número da conta, da identidade, do passaporte. São eles que contam.

 

De repente, o futuro tornou-se curto.

 

Nós estamos todos cegos. Cegos da razão. A razão não se comporta racionalmente, o que é uma forma de cegueira.

 

A lucidez é um luxo que nem todos se podem permitir.

 

A sabedoria diz que o erro é inseparável da ação justa, que a mentira é inseparável da sua verdade, que o homem é inseparável da sua negação.

 

Vá cada um aonde possa pelos seus próprios meios: guias e gurus são más companhias.2

 

Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e esta não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro.

 

Sem política não se organiza uma sociedade. O problema é que a sociedade está nas mãos de políticos profissionais.

 

Tudo o que fiz foi com plena consciência de um ser humano que busca relatar sua identidade. Preciso indagar que diabos estou fazendo aqui, na vida, na sociedade e na história.

 

Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma maneira bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratularmo-nos ou para pedir perdão. Aliás, há quem diga que é isto a imortalidade de que tanto se fala.

 

O Socialismo não produziu socialistas.3

 

Toda verdade instalada – mesmo aquela a que aderi é suspeita.4

 

No interior da grande cidade de todos está a cidade pequena em que realmente vivemos.5

 

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
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Notas:

1. Aqui, penso que seja exatamente o contrário: O homem deixou de respeitar o seu semelhante quando perdeu o respeito por si mesmo.

2. O que o ateu Saramago quis dizer é que em nosso Coração há um Deus, e isto basta.

3. E por que não? Simplesmente porque o verdadeiro Socialismo não é político; é Místico.

4. Só um grande pensador pode, com humildade, afirmar isto, porque isto é reconhecer que toda verdade, sem qualquer exceção, é relativa. Entretanto, Bertrand Arthur William Russell, III Conde Russell (Ravenscroft, País de Gales, 18 de maio de 1872 – Penrhyndeudraeth, País de Gales, 2 de fevereiro de 1970), afirmou: Há um tipo de gente presunçosa que gosta de afirmar que ‘tudo é relativo’. Isto é claramente um absurdo, pois se tudo fosse relativo, seria relativo em relação a quê? É possível, porém, sem incorrer em absurdos metafísicos, sustentar que tudo no mundo físico é relativo a um observador. Mas esta idéia, quer ela seja verdadeira ou não, não é a que a ‘Teoria da Relatividade’ adota. Talvez o nome ‘Teoria da Relatividade’ seja infeliz; não há dúvida de que ele levou filósofos e pessoas pouco instruídas a confusões. Eles imaginam que a nova Teoria prova que tudo no mundo físico é relativo, quando, ao contrário, ela está inteiramente empenhada em excluir o que é relativo e chegar a uma formulação das leis físicas que não dependa de maneira alguma das circunstâncias do observador. É verdade que se descobriu que estas circunstâncias têm mais efeito sobre o que aparece para o observador do que outrora se pensava, mas, ao mesmo tempo, a ‘Teoria da Relatividade’ mostra como desconsiderar esse efeito por completo. Essa é a fonte de quase tudo que ela tem de surpreendente. Tudo bem, caro Bertrand; mas presunçoso eu não sou, porque não me suponho melhor, mais bonito, superior, mais inteligente, mais capaz, mais isto ou mais aquilo do que ninguém. Mais livre do que muitas pessoas, isto eu sei que eu sou. Só isto. Mas, um dia, eu acreditei que se eu jogasse areia mágica na cabeça e recitasse areia da grossa, areia da fina, areia me faça ficar pequenino, como ensinava a Laura Jane, eu diminuiria de tamanho. Bolas, hoje eu não acredito mais. E também não estou mais apaixonado por Diana Palmer – a eterna noiva do Fantasma. Isto passou. Bolas de novo! Há mais relatividade nas coisas do que pode conceber nossa vã filosofia!

 

 

 

 

5. Esta Cidade, misticamente, é o Santo Silêncio do nosso Coração.

6. Napalm (que foi desenvolvido em 1942 durante a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos por uma equipe de químicos da Universidade Harvard liderada por Louis Frieser) é um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento militar. O napalm é na realidade o agente espessante de tais líquidos, que quando misturado com gasolina a transforma em um gel pegajoso e incendiário. O nome napalm deriva do acrônimo dos nomes dos seus componentes originais, sais de alumínio co-precipitados dos ácidos nafténico e palmítico. Estes sais eram adicionados a substâncias inflamáveis para serem gelificadas. O napalm moderno é composto por benzeno e poliestireno, e é conhecido por Napalm-B. Em 1980, o uso de armas incendiárias (tais como o Napalm) contra civis foi proibido pelo Protocolo III da Convenção sobre Proibições e Restrições ao Uso de Certas Armas Convencionais que Podem Ser Consideradas como Excessivamente Lesivas ou Geradoras de Efeitos Indiscriminados (Convenção da ONU sobre Armas Convencionais). Entretanto, a Convenção não proíbe o uso de tais armas contra objetivos militares, desde que observadas precauções com vistas a evitar danos colaterais em populações ou bens civis.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://www.toonpool.com/cartoons/
Jose%20Saramago_2355

http://www.biology.lsu.edu/heydrjay/
1201/1201index.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Napalm

http://www.revista.agulha.nom.br/
1saramago.html#espaco

http://www.netmarkt.com.br/
frases/josesaramago.html

http://www.sitequente.com/
frasesde/josesaramago.html

http://www.frazz.com.br/autor.html/
Jose_Saramago-899

http://www.sabado.pt/

http://frase-frases.blogs.sapo.pt/5586.html

http://www.ronaud.com/
frases-pensamentos-citacoes-de/jose-saramago

http://www.pensador.info/saramago_frases/2/

http://www.pensador.info/saramago_frases/

http://pt.wikipedia.org/wiki/Iberismo

http://www.caleida.pt/
saramago/biografia.html

http://ateus.net/ebooks/

http://pt.wikiquote.org/wiki/
Jos%C3%A9_Saramago

 

Música de fundo:

Fria Claridade
Música: José Marques do Amaral
Poema: Pedro Homem de Melo
Intérprete: Amália Rodrigues

Fonte:

http://www.umnovoencontromusical.com/
portuguesas.htm

 

No meio da claridade,
Daquele tão triste dia,
Grande, grande era a cidade,
E ninguém me conhecia!

Então passaram por mim
Dois olhos lindos, depois,
Julguei sonhar, vendo enfim,
Dois olhos, como há só dois?

Em todos os meus sentidos,
Tive presságios de Deus.
E aqueles olhos tão lindos
Afastaram-se dos meus!

Acordei, a claridade
Fez-se maior e mais fria.
Grande, grande era a cidade,
E ninguém me conhecia!