Introdução

 

 

 

entre os Doutores da Igreja Latina (Igreja Católica Apostólica Romana) Santo Agostinho se destaca pela metamorfose que resultou no mais extenso mea culpa de que se tem notícia – as Confissões – e através da qual de pecador devasso se tornou iluminado, vivendo e pregando o ascetismo, partindo para a transformação do próximo, com a produção de uma regra monástica destinada a formar santos. Ele originou os Agostinianos Eremitas da Ordo Eremitarum Sancti Augustini (OESA), vindos das congregações de eremitas da Itália central, reunidos como frades mendicantes, no século XII. Depois, a Ordem de Santo Agostinho (OSA). Os princíos essenciais da Regra de Santo Agostinho são: 1º) Conciliação entre a fé e a razão; 2º) Conhecimento natural de Deus; 3º) Negação do Mal; 4º) Indispensabilidade da graça para a salvação do homem; e 5º) Presença das imagens trinitárias no Universo, o que demonstra a sua compreensão sobre a Lei do Triângulo que rege o Universo e na qual se fundamenta o Rosacrucianismo.

 

Dentre os descendentes espirituais de Santo Agostinho, quem mais se destacou foi o monge Martinho Lutero (1483 – 1546), tido por estudiosos da Tradição como o verdadeiro causador do Rosacrucianismo Ocidental. Lutero lutou pela purgação dos males da Igreja ligada ao poder temporal, produzindo importantíssima transformação no Cristianismo, com o Protestantismo. A esse respeito, queiram ler a monografia pública de Illuminates Of Kemet O Pensamento de Lutero – A Reforma da Cristandade pela Rosa e pela Cruz, disponível em formato .pdf (Adobe Acrobat) para leitura on-line e download gratuito em:

http://svmmvmbonvm.org/luterpens.pdf

 

No dia 16 de dezembro de 1243, o Papa Inocêncio IV emitiu a bula Incumbit Nobis conclamando numerosas comunidades eremitas da Toscana a se unirem em uma só ordem religiosa com a Regra e forma de vida determinadas por Santo Agostinho, às comunidades que fundou durante sua vida. Os principais eremitas eram: os Eremitas de Santo Agostinho da Túxia, cujos mosteiros, originariamente independentes, em março de 1244, por decisão da Santa Sé, foram reunidos em uma única organização; os Eremitas de Brettino, pelo nome da localidade; e os Eremitas de São João Bono. No mês de março de 1256, em Roma, na Igreja de Santa Maria do Povo, reuniram-se, por vontade do Papa Alexandre IV, os delegados de todos os mosteiros acima citados e de outros institutos menores, num total de cerca de trezentos e sessenta membros. Na presença do legado papal, Cardeal Ricardo degli Annibaldi, os frades eremitas ouviram e aceitaram a vontade do Pontífice de se reunirem para constituir uma única grande Ordem – a dos Eremitas de Santo Agostinho.

 

Segue-se o texto, simplificado, da Regra de Santo Agostinho, que é observado por muitos dos Frades Pregadores (Dominicanos):

 

1. Antes de tudo, irmãos caríssimos, amemos a Deus e também o próximo, pois estes são os dois principais mandamentos que nos foram dados. É isto que vos mandamos guardar, a vós que viveis no mosteiro.

Em primeiro lugar, foi para isto que vos reunistes em comunidade: para que habiteis unânimes na mesma casa, tende uma só alma e um só coração em Deus. E não digais 'isto me pertence', mas, para vós, tudo seja em comum. O vosso superior distribua a cada um de vós o alimento e a roupa, não de um modo igual para todos – pois não tendes todos forças iguais – mas, antes, a cada um segundo a sua necessidade. Com efeito, ledes nos Atos dos Apóstolos que entre eles tudo era comum, e distribuía-se a cada um conforme a necessidade que tivesse. (At. IV, 32 a 35).

Aqueles que no mundo possuíam alguns bens, ao entrarem no convento punham-nos gostosamente ao serviço de todos. Porém, os que nada possuem não procurem no convento o que fora dele não conseguiram ter. No entanto, em caso de doença, sejam devidamente tratados segundo as suas necessidades, mesmo que, antes de ingressarem no convento, nem sequer do necessário dispusessem. Não se considerem, todavia, felizes por encontrarem no convento o alimento e a roupa que no mundo não haviam conseguido.

Nem tão-pouco se ensoberbeçam por se verem na companhia daqueles de quem antes não se atreviam sequer a aproximar-se. Pelo contrário, levantem o Coração para Deus e não procurem as coisas vãs deste mundo; não aconteça que os conventos comecem a ser úteis aos ricos e não aos pobres, se aqueles se tornam humildes e estes vaidosos.

Aqueles que no mundo se julgavam alguém não desprezem os seus irmãos vindos da pobreza a esta santa sociedade. Antes, esforcem-se por apreciar mais a convivência com os seus irmãos pobres do que a riqueza e a dignidade dos seus pais. E não se envaideçam se entregaram à comunidade parte dos seus bens; nem se ensoberbeçam com as suas riquezas pelo fato de as compartilharem no convento em vez de terem usufruído delas no mundo. Na verdade, qualquer outra malícia conduz à prática de más ações, mas a soberba se infiltra até nas boas obras a fim de as eliminar. E que aproveita distribuir os bens pelos pobres e tornar-se pobre, se a alma miserável se torna mais soberba desprezando as riquezas do que as possuindo? Vivei, portanto, todos em unanimidade e concórdia, e honrai mutuamente a Deus em vós, pois d’Ele sois templos vivos.

2. Sede assíduos na oração nas horas e nos tempos determinados. Ninguém faça nada no oratório, a não ser aquilo para que ele foi destinado, como indica o seu nome. Se alguns irmãos, fora das horas determinadas, porventura, quiserem dedicar o seu tempo livre à oração, não sejam impedidos por quem pensou em fazer ali outra coisa.

Quando orais a Deus com salmos e hinos, senti em vosso Coração o que proferem os vossos lábios. E não canteis senão o que estiver determinado; mas o que não está estabelecido que se cante não se cante.

3. Domai a vossa carne pelos jejuns e a abstinência de comida e bebida, quando a saúde o permita. Quando, porém, alguém não puder jejuar, nem por isso tome algum alimento fora da hora da refeição, a não ser que esteja doente.

Enquanto estiverdes à mesa, ouvi, sem ruído nem contestação, o que, segundo o costume, se lê, a fim de que não só a boca receba o alimento, mas também os ouvidos se alimentem da palavra de Deus.

O fato de os doentes serem tratados de maneira diferente na alimentação não deve parecer mal ou injusto aos que gozam de uma natureza mais forte. Estes, os saudáveis, não considerem os débeis mais felizes por lhes ser dado o que a eles não se dá; regozijem-se, antes, por gozarem de forças que os débeis não possuem. E se àqueles que, de uma vida mais delicada, vieram para o convento, é concedido algum alimento ou vestuário ou roupa de cama que a outros mais resistentes, e, por isto, mais felizes, se não concede, estes devem pensar no desnível a que aqueles se sujeitaram, deixando a sua vida no mundo para abraçar a do convento, muito embora não tivessem ainda atingido a frugalidade dos outros de compleição mais robusta. E não devem todos querer o que só alguns recebem a mais (não para os honrar, mas para os ajudar), a fim de que não aconteça esta detestável perversidade: no convento os ricos trabalhem quanto podem, e os pobres se tornem delicados.

Na verdade, assim como os doentes, por necessidade, têm de comer menos para não piorarem, assim também, após a doença, sejam tratados de forma a depressa se restabelecerem, ainda que tenham vindo de uma extrema pobreza no mundo. É como se a recente doença concedesse a estes o mesmo que aos ricos concedeu o seu anterior estado de vida. Mal, porém, recuperadas as forças perdidas, regressem à sua feliz norma de vida, a qual, para os servos de Deus, é tanto melhor quanto menos necessidades tiverem. Que o prazer do alimento não os retenha onde os colocou a doença. Considerem-se mais felizes os que foram mais fortes vivendo na frugalidade. Com efeito, é melhor precisar de pouco do que possuir muito.

4. Não chameis a atenção pelo vosso porte, nem pretendais agradar pela maneira de vestir, mas, sim, pela maneira de proceder. Quando viajardes, ide juntos; ao chegardes aonde vos dirigíeis, permanecei igualmente juntos. No andar, no estar e em todas as vossas atitudes, nada façais que ofenda os outros, mas em tudo procedei de acordo com a vossa profissão de santidade.

Quando virdes pessoas do outro sexo, em nenhuma delas se fixem os vossos olhos. É verdade que não vos está proibido vê-las quando saís; o que é pecaminoso é desejá-las ou querer ser delas desejado. Não é apenas com o tato e o desejo, mas também com os olhares que a concupiscência se excita. E não digais que tendes o Coração puro, se são impuros os vossos olhos; com efeito, o olhar impuro denuncia a impureza do Coração. E quando os Corações, mesmo que a língua permaneça silenciosa, com olhares mútuos, se revelam impuros e, pela concupiscência carnal, mutuamente se deleitam, ainda que sem a pecaminosa violação dos corpos, desaparece a castidade dos costumes. Aquele que fixa o olhar em uma mulher e deseja que ela nele fixe o seu, não pense, ao proceder deste modo, que ninguém o vê. É sempre visto, e, não poucas vezes, por quem ele menos julga.

Mas, ainda que ninguém o veja, não será visto por Aquele que tudo observa desde o alto, por Aquele de Quem nada permanece oculto? Poderá, porventura, crer que Ele não o vê, pelo fato de o ver com tanta paciência como com sabedoria? Tema, pois, a pessoa consagrada desagradar Àquele que tudo vê, para que não pretenda agradar maldosamente a uma mulher. Para que não deseje olhar com malícia para uma mulher, lembre-se de que Deus tudo vê. Na verdade, é-nos recomendado, de um modo especial nesta matéria, o temor de Deus, onde se disse: É abominação para o Senhor o que fixa maliciosamente o olhar. (Prov. 27, 20).

Portanto, quando estais na igreja ou em qualquer outro lugar onde haja mulheres, protegei mutuamente a vossa castidade; porque Deus, que habita em vós, vos guardará também valendo-Se de vós mesmos.

Se, porém, notardes em algum de vós este atrevimento no olhar de que acabo de vos falar, admoestai-o imediatamente, a fim de que o mal iniciado não progrida, mas se corrija sem demora. Se, no entanto, feita a advertência, virdes de novo, em outro dia qualquer, aquele irmão incorrer na mesma falta, então, quem o vir delate-o, como um ferido, para que seja tratado. Mas, antes participe a outro ou ainda a um terceiro, a fim de que, perante o testemunho de dois ou três, possa ser convencido e castigado com a competente severidade.

E não vos considereis malévolos quando procederdes deste modo. Pelo contrário, sereis culpados se, calando-vos, permitis que vossos irmãos pereçam, quando os poderíeis salvar com uma simples participação. Com efeito, se um irmão vosso tivesse uma ferida no corpo e teimasse em ocultá-la, com medo do tratamento, não seria, da vossa parte, uma crueldade calar, e uma obra de misericórdia dar a conhecer a situação? Com quanto maior razão deveis delatá-lo para que não se corrompa mais o seu Coração!

Mas, se não se quiser corrigir, após haver sido admoestado por vós, o primeiro a quem o deveis comunicar é ao Superior, mesmo antes de o dizerdes a outros para vos ajudarem a convencê-lo e a corrigi-lo; na verdade, é preferível que possa ser corrigido mais discretamente do que levar o fato ao conhecimento de outros. Se, porém, persiste em negar, então tragam à sua presença os outros, mesmo toda a Comunidade, a fim de que, diante de todos, possa ser argüido não apenas por uma testemunha, mas convencido por duas ou três. Uma vez convencido o réu, este deve sofrer a sanção medicinal considerada prudente pelo Superior local, ou até pelo Superior Maior a cuja jurisdição pertença. Se se recusar a receber o castigo, despedi-o da vossa Comunidade, mesmo que ele não queira se retirar. Este procedimento não deve ser considerado uma crueldade, mas, pelo contrário, um ato de misericórdia, visto assim se evitar que muitos outros se percam devido àquele contágio pestilento.

E o que disse quanto ao não fixar o olhar, observe-se fiel e diligentemente, por amor aos homens e ódio aos vícios, quanto ao averiguar, proibir, revelar, convencer e punir os outros pecados. Se, em algum [Irmão], o progresso do mal chegou ao extremo de receber ocultamente cartas ou presentes de alguém, que seja perdoado e que se reze por ele, se espontaneamente o confessa. Se, porém, é descoberto ou convencido, imponha-se-lhe uma punição mais grave, segundo o critério do Superior local ou do Superior Maior.

5. A vossa roupa esteja em comum, ao cuidado de um ou dois ou quantos forem precisos para a limpar e proteger da traça; e, assim como vos alimentais de uma mesma despensa, vesti também de uma mesma rouparia. E, se possível, não sejais vós a determinar que roupa usar segundo as exigências climatéricas, nem se cada um recebe a mesma roupa que usara antes, ou a que já foi usada por outro; importa, sim, é que não se recuse a cada um o que ele necessita.

Se, porém, nesta matéria, surgem discussões e murmurações entre vós e algum reclama por receber alguma peça de roupa inferior à que antes trazia vestida, e se sente envergonhado por vestir como outro irmão, concluí daqui quanto vos falta no santo hábito do Coração se litigais pelo hábito do corpo. No entanto, se, apesar disso, se vos tolera a fraqueza de vestir a mesma roupa que depusestes, colocai-a na rouparia comum e à guarda do respectivo encarregado, de modo que ninguém trabalhe para si mesmo, mas todas as vossas atividades tenham em vista o bem da Comunidade e sejam realizadas ainda com maior esmero e alegria do que se cada um trabalhasse para si próprio. Com efeito, a caridade, da qual está escrito que não busca os próprios interesses (cf. I Cor. 13, 5), entende-se assim: antepõe as coisas comuns às próprias, e não as próprias às comuns. E, assim, quanto melhor cuidardes do bem comum do que do vosso, tanto melhor sabereis que progredistes na virtude; de maneira que, em todas as coisas de que nos servimos nas necessidades transitórias, sobressaia a caridade que permanece para sempre.

Daqui se conclui que, se alguém oferece aos seus filhos, parentes ou amigos, que vivem no convento, alguma peça de roupa ou qualquer outra coisa que consideram necessária, não se aceite às escondidas, mas se coloque à disposição do Superior, a fim de que, como coisa comum, se dê a quem dela necessite. E, se alguém oculta o que lhe deram, seja castigado como réu de furto.

Conforme o critério do Superior, a vossa roupa seja lavada por vós ou por lavadeiras, para que a excessiva preocupação com a sua limpeza não dê origem a manchas na alma. Não se impeça ninguém de tomar banho quando a doença o exija. Cumpra-se, sem recalcitrar, o que o Superior, a conselho do médico, ordene que se faça pela saúde, mesmo que o doente não o queira. Se, porém, este quer alguma coisa que talvez lhe não seja benéfico, ignore-se esta pretensão do enfermo. É que, por vezes, mesmo que seja prejudicial à saúde, julga-se útil o que agrada. Por fim, se um servo de Deus se queixa de alguma dor, ainda que pareça nada sofrer, dê-se-lhe crédito sem hesitar. Se, porém, não existe a certeza de que, para erradicar aquela dor, está indicado o que agrada ao paciente, consulte-se o médico.

A banhos ou a qualquer outro lugar aonde for necessário ir, não vão menos de dois ou três. E aquele que precisar sair a qualquer lado deve ir com quem o Superior mandar.

O cuidado dos doentes, ou dos convalescentes, ou dos que sofrem de algum achaque, mesmo sem febre, deve confiar-se a alguém, que se encarregará de pedir, do comum, o que julgar ser necessário a cada um. Os encarregados da despensa, da rouparia ou da biblioteca sirvam os seus irmãos, sem murmurar. Os livros sejam pedidos, cada dia, a uma hora determinada; não se atenda quem os pedir fora dessa hora. Os encarregados da roupa e do calçado entreguem-nos, sem demora, a quem deles necessita.

6. Não haja entre vós nenhuma disputa, mas, se alguma surgir, terminai-a quanto antes, par que não suceda que a ira se converta em ódio, e que a palha se transforme em trave, tornando a alma homicida. Com efeito, assim ledes: 'Aquele que odeia o seu irmão é um homicida.' (I Jo 3, 15). Se um irmão ofendeu a outro injuriando-o, amaldiçoando-o ou lançando-lhe em rosto algum delito, não tarde em pedir desculpa, e o ofendido seja rápido e amável no perdão. Se, porém, a ofensa foi mútua, também mutuamente se devem perdoar, em virtude das vossas orações, as quais tanto mais santas devem ser, quanto mais freqüentes forem.

Com efeito, é melhor aquele que, embora se irrite com freqüência, se apressa em pedir desculpa a quem ofendeu, do que aquele que poucas vezes se irrita mas tarda a se humilhar pedindo perdão. Aquele que nunca quer pedir perdão ou o não pede de Coração, está a mais no convento, mesmo que não o mandem embora. Abstende-vos, portanto, de palavras duras. Se, todavia, alguma vez as proferirdes, não sintais vergonha de aplicar o remédio com os mesmos lábios que abriram as feridas.

Se, no entanto, alguma vez a necessidade de impor a disciplina vos levar a proferir palavras duras, mesmo que vos pareça haver-vos excedido na correção do culpado, não se vos exige que peçais perdão aos vossos súditos – não suceda que, ao se humilhar demasiadamente perante os súditos, sofra menoscabo a autoridade para governar. Mas deveis pedir perdão ao Senhor de todos, que conhece com quanta benevolência amais aqueles que talvez tenhais repreendido com algum excesso. O amor entre vós não deve ser carnal, mas, sim, espiritual.

7. Obedeça-se ao Superior como a um pai; e muito mais ao Superior Maior, que tem o cuidado de todos vós. Ao Superior local, principalmente, incumbe velar pelo cumprimento de todas estas coisas e, se alguma fica por observar, não se transija negligentemente, mas se tente emendar e corrigir; o que exceder as suas atribuições ou possibilidades apresente-o ao Superior Maior, a máxima autoridade entre vós.

Aquele que preside não se considere feliz por dominar com poder, mas por servir com caridade. Prestai ao prelado a honra devida entre vós; mas ele, por temor perante Deus, esteja prostrado aos vossos pés. Mostre-se a todos modelo de boas obras. Corrija os inquietos, encoraje os pusilânimes, ampare os fracos e seja paciente com todos, mantenha com amor a disciplina e a imponha com temor. E, embora ambas as coisas sejam necessárias, procure mais ser de vós amado do que temido, pensando sempre que há de dar conta de vós a Deus. Por isso, obedecendo-lhe com solicitude, compadecei-vos não só de vós próprios, mas também dele, porque, entre vós, quanto mais elevado é o lugar que se ocupa, tanto maior é o perigo que se corre.

8. Conceda o Senhor que observeis tudo isto com agrado, como amantes da beleza espiritual, exalando em vosso comportamento o bom odor de Cristo, não como servos sob o peso da lei, mas como homens livres sob a força da graça. Mas, para que possais ver-vos neste pequeno livro como em um espelho e nada se deixe de cumprir, por esquecimento, leia-se uma vez por semana. E se vedes que cumpris todas as prescrições aqui apresentadas, dai graças a Deus, distribuidor de todos os bens. Se, porém, algum de vós reparar haver falhado em alguma coisa, lamente o passado, precavenha-se para o futuro, rogando a Deus que lhe perdoe a sua falta e não o deixe cair na tentação. Ámen.

 

O texto original da Regula Sancti Augustini, em Latim, é apresentado pela Ordo Svmmvm Bonvm na seção Special Ancient Public Documents For Rosicrucians Students Appreciation Inside the Holy Spirit School According the Ancient Premise 'Ad Rosam per Crucem + Ad Crucem per Rosam' em:

http://svmmvmbonvm.org/docpub.htm


Sabe-se que o monaquismo nasceu no Oriente. Ele se difundiu no Ocidente primeiramente por intermédio de São Martinho de Tours (316 – 397), nascido em Panônia, atual Hungria, na fronteira latina do Ocidente. O próprio Agostinho conta como descobriu, em Milão, graças a Ponticiano, alguns anacoretas convertidos à vida ascética pela biografia de Santo Antônio Abade (251 – 356), que Santo Atanásio de Alexandria (295 – 373) acabara de escrever, poucos anos depois da morte de Antônio. Essa descoberta, como se sabe, teve um papel importante na vida de Agostinho, que, de volta a Tagaste, organizou os primeiros lugares africanos de vida monástica. Adaptou, posteriormente, esse modo de viver à comunidade que se desenvolveria ao seu redor, quando foi nomeado bispo, dando ao mundo latino sua regra de vida e o exemplo de suas comunidades monásticas pastorais. O Ocidente latino adotou esse exemplo numa parte de sua tradição de vida religiosa comunitária (os agostinianos, os premonstratenses etc.). Especialistas encontram também na Regra de São Bento influências derivadas em particular da Regra de Santo Agostinho, muito embora a Regula Beneticti derive diretamente da Regra do Mestre.


 

 

Breve Biografia
e
Ponderações Metafísicas

 

 

 

Para este estudo, resolvi, para dar início, reproduzir uma excepcional conferência ministrada no curso Los Estilos de la Filosofía, em Madrid, 1999/2000, pelo filósofo espanhol, considerado o principal discípulo do também filósofo espanhol José Ortega y Gasset (Madrid, 9 de maio de 1883 – Madrid, 18 de outubro de 1955) Julián Marías (17 de junho de 1914, Valladolid, Espanha – 15 de dezembro de 2005, Madrid, Espanha). Como a obra de Julián Marías observa e enfoca a Filosofia a partir de uma perspectiva pessoal e biográfica, com uma preocupação centrada na pessoa humana, esta conferência, por ser excelente e profundamente didática, a seguir reproduzida com algumas edições, permite que se fique com uma idéia bastante satisfatória das especulações agostinianas, entre as quais sobressai a questão da intimidade (ou, misticamente: o Deus de nossos Corações). Um exemplo desta intimidade em Santo Agostinho é a afirmação: Instigado a voltar a mim mesmo, entrei em meu íntimo sob Tua guia e o consegui, porque Tu te fizeste meu auxílio. Um segundo exemplo é: Andar por dentro é desejar as coisas de dentro. Andar por fora é desprezar as coisas de dentro e encher-se das de fora. O orgulhoso lança fora o que tem dentro; o humilde o busca com afã. A soberba exila o homem de si mesmo; a humildade o devolve à sua intimidade. Um fato: Santo Agostinho, ao lado de São Tomás de Aquino (Roccasecca, 1225 – Fossanova, 1274), é considerado o pensador mais importante da Idade Média. Para ler on-line a conferência integral de Julián Marías o endereço é:

http://www.hottopos.com/
harvard3/jmagost.htm

 

Antes, porém, reproduzirei um pequeno parágrafo biográfico sobre Santo Agostinho, que se encontra disponibilizado no Website da Ordem dos Agostinianos Descalços (O.A.D.)., cujo endereço eletrônico é:

http://oadbrasil.net/html/
santosagostinianos.html

 

Santo Agostinho nasceu em Tagaste, cidade da Numídia, em 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, e recebeu o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores conseqüências do pecado original. Dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao Maniqueísmo, que atribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a solução do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação para a sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, de onde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual. Entrementes - depois de maduro exame crítico - abandona o maniqueísmo, abraçando a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte, chegara a uma concepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto, a conversão moral demorou ainda, por razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e de alguns discípulos, perto de Milão. Escreve seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade. Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagaste. Vende todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro em uma das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a Igreja de Hipona até a morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos, em 28 de agosto do ano 430. Tinha 75 anos de idade.

 

 

 

Los Estilos de la Filosofía
( Julián Marías)


 

Santo Agostinho [Aurelius Augustinus] nasceu em 354 e morreu em 431. Em Santo Agostinho, encontraremos uma etapa nova da Filosofia. Falamos até agora do pensamento grego, e acrescentamos alguma coisa que está em latim, mas dentro da área do pensamento helênico: Sêneca. E com isso termina uma grande etapa, a primeira etapa do pensamento filosófico, centrada no problema da mudança, do movimento, kinesis em grego, mutação, que faz com que as coisas sejam ou não sejam, cheguem a ser e deixem de ser, mudem de quantidade, de qualidade... Enfim, o problema da instabilidade do real. Este era o grande problema, que se trata de superar mediante a noção de ser, de ente, ón, de Parmênides, em conflito com a outra grande idéia grega: a natureza, a physis, que é justamente mudança, variação. As coisas estão ameaçadas pela mudança, pela variação, e trata-se de buscar aquilo que verdadeiramente é, que é o que é, se possível, de modo permanente. Este é o grande problema central do pensamento antigo.

 

Mas, agora, vamos nos encontrar com uma situação radicalmente diferente. Santo Agostinho foi o primeiro grande filósofo cristão. É evidente que tinha havido preocupação filosófica entre os cristãos nos primeiros séculos, que é o que se chama Patrística1, a obra dos Padres da Igreja, que era, antes de tudo, teológica, religiosa, mas sem dúvida com uma componente, com uma vertente filosófica. Mas o primeiro grande filósofo – o primeiro criador filosófico dentro do Cristianismo – foi Santo Agostinho.

 

E assim sendo, a Filosofia mudou totalmente, porque o problema agora já é outro: o Cristianismo introduz algo muito mais radical do que a mudança, a variação, a kinesis helênica. O cristão pensa que o mundo foi criado; já a idéia de criação é alheia ao pensamento grego. Os gregos, olharão a natureza, a physis, e vão procurar explicá-la, farão cosmogonias, para explicar a origem do mundo, mas a idéia de criação é alheia ao pensamento grego. Existe, inclusive, um caso particularmente elucidativo que é o de Plotino, o grande pensador neoplatônico, que com certeza recebeu influência cristã. Essa influência levou-o a pensar algo que tem certa analogia com a idéia de criação: é o que ele chamará de emanação. Chamará o princípio capital de Uno [Uno-em-Si], mais ou menos o equivalente à divindade, produzindo todo o restante por emanação. Há muitas metáforas, há uma série de imagens, por exemplo, a de uma luz que vai iluminando, que vai se difundindo até que acaba na névoa. Há diferentes formas de entender isso, mas o fundamental é que a emanação é a produção de tudo o que não é o Uno a partir do Uno, que emana Dele.

 

Este é o conceito de emanação, que não é criação. Já o Cristianismo afirma a criação: no princípio Deus criou o céu e a Terra, e criou-os do nada; não de Si próprio, não é a emanação, não é a fabricação do mundo com uma matéria-prima já existente; e, sim, que Deus põe em existência uma realidade nova, diferente d’Ele, por amor efusivo. Este é, digamos, o motivo da ação criadora de Deus, e evidentemente está ameaçado pelo nada, isto é, o problema está em que poderia não haver nada. Não é a mudança de uma coisa para outra, não é o problema da kinesis grega, mas algo bem mais radical: o real está ameaçado pelo nada, pois poderia não haver nada. E Deus pôs o mundo em existência.

 

Isso, com certeza, é um grau de radicalismo maior do que o que se dá no pensamento grego, ou seja, o pensamento grego parte do pressuposto de que as coisas já estão aí. Uma pergunta crucial: por que há algo, e não somente o nada? É a formulação que Leibniz fará, e mais tarde Unamuno, e em terceiro lugar, Heidegger. Em geral, Unamuno é esquecido, mas ele diz isto e muito energicamente.

 

Primeiramente, isso corresponde à atitude que se iniciou com o Cristianismo, no qual o problema radical é justamente a realidade da criatura e do Criador. Não se esqueçam de que é problemático empregarmos – e durante toda a História se emprega – a palavra ser aplicada a Deus e à realidade criada – às coisas, aos homens, aos astros, a tudo o que encontramos. Porque ser criador é radicalmente diferente de ser criatura. Pode-se aplicar a palavra ser também a Deus. Como dizia Aristóteles o ser se diz de muitas maneiras (depois concretiza em quatro maneiras), e há ainda o problema da analogia do ente: o ente se diz de muitas maneiras, mas todas têm uma referência comum, ele vai encontrar precisamente o fundamento da analogia na idéia de substância, da ousia. Ora, falamos do ser criatura, do ser criador e do ser de Deus. A analogia – se é que há a analogia – é enorme. É de um grau de intensidade muito maior do que a analogia que existe entre as diferentes formas do ser, digamos, criado (que para Aristóteles não é criado).

 

Como podem ver, estabelecem-se aqui problemas sumamente graves, problemas muito delicados. Pois bem, Agostinho foi o primeiro filósofo que assume o embasamento geral do Cristianismo, que faz uma Filosofia cristã (quando se fala de Filosofia cristã, não quer dizer que a Filosofia cristã esteja determinada, não há nenhuma Filosofia que seja cristã nesse sentido, o que ocorre é que pode haver várias Filosofias que sejam cristãs, pelo menos podendo ser conciliáveis com o Cristianismo. Eu, quando se discutia sobre Filosofia cristã, dizia sempre: Filosofia cristã é a Filosofia dos cristãos enquanto tais).

 

O cristão tem uma visão da realidade condicionada por sua condição de cristão, e assim, vê coisas que os outros não vêem, interessa-se por questões e problemas que os outros não se interessam. E, naturalmente, dessa situação, dessa instalação do Cristianismo, pode nascer precisamente uma Filosofia, ou uma outra, ou uma terceira ainda. Há muitas Filosofias feitas por cristãos como tais, que nascem da situação em que se encontram, da maneira de ver o real que o cristão tem. E são Filosofias cristãs, e podem ser várias, e bem diferentes uma da outra. Por que não?

 

O primeiro grande filósofo, o primeiro filósofo criativo que assume esses pressupostos, que partiu do Cristianismo, foi Santo Agostinho. Mas as coisas não são assim tão simples, porque Santo Agostinho não começou sendo cristão. Nasceu no Norte da África, perto de Cartago. Seu pai era pagão, sua mãe, Santa Mônica, era cristã, e depois foi canonizada. Santo Agostinho foi pagão durante muitos anos; teve um momento inclusive em que se aproximou das Escrituras, mas encontrou algo pouco interessante e superficial, e não se interessou, não se tornou cristão. O que tinha era uma adesão muito entusiasmada à doutrina de Manes, ao Maniqueísmo. Manes foi uma figura primariamente religiosa, muito complexa, muito complicada. Viajou por diferentes lugares, teve uma vida muito agitada, recolheu elementos de muitas doutrinas, dentre elas o Cristianismo. De certo modo, poderia ter sido uma das muitas heresias do Cristianismo que floresceram na época, mas teve sobretudo uma influência da religião de Zoroastro, da religião que se estabeleceu principalmente na Pérsia, e que era um dualismo, um dualismo energicamente afirmado entre o bem e o mal, a luz e as trevas, Deus e o diabo. Esta dualidade, para Manes, é insuperável. Isso dá, digamos, uma estrutura profundamente dramática à questão do real, o que emocionou Santo Agostinho.

 

E viveu uma fase bastante longa com essa convicção, digamos, muito dramática do real, com esta impressão conflitante da luta entre o bem e o mal; isto deixou uma marca que se fará notar em sua Teologia, mais que em sua Filosofia. Na Teologia, a perspectiva desse caráter dramático não é alheia ao Cristianismo; para o cristão, a vida humana tem um desenlace, isto é: a possibilidade de salvação ou de condenação é uma verdade. O fato de que agora estejam tentando esquecer e liquidar isso é um erro absurdo. Mas, em última análise, o Cristianismo naturalmente afirma a infinita superioridade de Deus; por conseguinte, em última instância, o bem é a realidade suprema, e será sempre triunfante. De modo que há evidentemente um caráter dramático, de maneira tal que o desenlace está aberto às duas possibilidades: de salvação ou de condenação. Como podem ver, a atração exercida por Manes é justificável, é compreensível.

 

Agostinho continuava – estava na Itália: em Roma; e depois em Milão – sem ainda ser cristão, mas seguia as orações e as homilias do bispo Santo Ambrósio [que sempre dizia a respeito de Deus: Adiutor meus et susceptor meus. (Tu és minha ajuda e meu sustento.)], uma figura muito importante da Igreja naquela época. E Agostinho teve um momento de crise, foi quando ouviu uma voz, uma voz de criança, que lhe disse: Tolle, lege (Toma e lê). Então, voltou às Escrituras, abriu o Novo Testamento, encontrou uma passagem, leu e isto lhe causou uma impressão muito profunda, e teve uma forte crise, e daí se aproximou do Cristianismo. Mas ainda demorou algum tempo para ser plenamente cristão. Quis se batizar, e mais tarde acabará sendo o bispo de Hipona e uma grande figura da Igreja. Viveu em um desses territórios romanizados, cristianizados, que depois foram cobertos pela grande onda islâmica e deixaram de ser cristãos e passaram a ser países de língua e de cultura árabe, de religião islâmica. Mas nesse momento era a grande figura da Igreja do Norte da África, mais precisamente de Hipona.

 

Portanto, houve uma evolução. Era um homem que tinha sido pagão, que viu o mundo com olhos pagãos, que viveu no império romano tardio, num momento de profunda crise: a pressão dos bárbaros já ameaçava a destruição de Roma. Viu o mundo com olhos pagãos, foi o último grande homem antigo. Mas, ao mesmo tempo, foi o primeiro grande pensador, o primeiro grande filósofo cristão, que anunciará uma nova era, uma nova época. O contexto histórico de Santo Agostinho é único, absolutamente extraordinário, e, junto com sua personalidade forte e apaixonada, reflete-se em seu pensamento. Era, além do mais, um escritor esplêndido;, a obra de Santo Agostinho, muito copiosa, é extremamente importante.

 

Mas, naturalmente, o que nos interessa aqui é ver como ele viveu essa situação. Ele sente aquela atitude típica de convertido. Há um texto de Santo Agostinho muito expressivo: Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua et tam nova (Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova). Ele tinha consciência de ter amado tarde a Deus, descobriu-O tarde, converteu-se sendo já um homem adulto. Ou seja, é uma atitude de um homem que está, repito, saindo de uma forma de vida, de uma época histórica, e entrando em outra. Essa atitude visceral de súplica é, em Santo Agostinho, fundamental. É ela que o faz descobrir – e é afinal a grande descoberta de Santo Agostinho – a intimidade. O homem grego mal conhecia a intimidade. É claro que houve o oráculo de Delfos, que disse gnothi s’auton (conhece-te a ti mesmo). Isso estará em Sócrates, e aparecerá também em Platão e em Aristóteles. Inclusive, os gregos raramente diziam eu; diziam nós.

 

A grande descoberta, a maior, de Santo Agostinho é a intimidade. E quando ele se questiona, diz: Deum et animam scire cupio (Quero conhecer a Deus e à alma). Nihil aliud, nada mais, absolutamente nada mais. É uma sentença que um grego jamais poderia empregar. A alma é, em última análise, a grande descoberta de Agostinho, a alma entendida como intimidade. E fala justamente do espiritual. Espiritual não quer dizer não-material; há uma tendência muito freqüente de entender o espiritual como aquilo que não é material. E não é disso que se trata, mas de algo muito importante: espiritual é aquela realidade que é capaz de entrar em si mesma, o poder entrar em si mesmo é o que dá a condição de espiritual, não a não-materialidade. A insistência no imaterial ocultou o que é essencial, que é precisamente a capacidade de entrar em si mesmo.

 

Por isso, Santo Agostinho dirá: Noli foras ire, in teipsum redi: in interiore homine habitat veritas. Não vá fora, entra em ti mesmo: no homem interior habita a verdade. Essas palavras são de uma enorme relevância, são até de um extraordinário valor literário. É disso que se trata: do homem interior. A descoberta é a interioridade, a intimidade do homem. E é justamente Santo Agostinho quem vai perceber que quando o homem fica apenas nas coisas exteriores, esvazia-se de si mesmo. Quando entra em si mesmo, quando se recolhe à sua intimidade, quando penetra precisamente naquilo que é o homem interior, o mundo interior – naturalmente existe um mundo exterior também, mas o decisivo é o mundo interior – é justamente aí que Deus se encontra. É aí que se pode encontrá-Lo, e não nas coisas, não imediatamente nas coisas. Primariamente, por experiência, em algo que é justamente sua imagem. Para Santo Agostinho é preciso levar a sério que o homem é imago Dei, imagem de Deus. É evidente que para encontrar a Deus, o primeiro passo, e o mais adequado, será buscar sua imagem, que é o homem como intimidade, o homem interior.

 

Isso é o principal. E toda sua obra terá esse caráter. Um dos livros capitais é As Confissões, que, em um certo sentido, é o mais importante. Então, o que são essas Confissões? É um livro que não existe no mundo antigo, não há nada equivalente. Se os senhores quiserem algo que pudesse ter uma remota semelhança, seriam as Meditações ou Reflexões, de Marco Aurélio. Mas não é um livro de intimidade, é um livro de recordações, um livro de gratidão; ele diz o que deve aos antepassados, aos professores... Essa entrada na intimidade, no mais profundo de si mesmo, em confissão – a palavra é confissão – é uma autobiografia. Esse é precisamente o pensamento de Santo Agostinho: consiste primariamente em mostrar, em descobrir sua própria intimidade. Ele exterioriza em seu livro, em uma manifestação oral, o homem interior, sua própria intimidade. Essa é a grande descoberta, que começa com ele, e naturalmente depois será uma aquisição da Humanidade.

 

É interessante ver como a Humanidade vai adquirindo coisas. Com Santo Agostinho, a Humanidade adquire o sentido da intimidade, o sentido do que é o homem interior, a possibilidade de entrar em si mesmo e aí buscar precisamente a Deus. Por isso, ele tem fórmulas brilhantes, fórmulas de pensamento religioso e ao mesmo tempo filosófico. Como quando diz: credo ut intelligam, creio para entender. A fé, justamente para entender. Os senhores sabem que o Cristianismo é uma religião teológica – outras religiões não são teológicas – o Cristianismo é um conhecer a Deus: quem é, como é... Portanto, requer a compreensão. Um seguidor de Santo Agostinho, Santo Anselmo, fala da operosa fides e da otiosa fides: a fé que não procura entender é uma fé ociosa. A verdadeira fé é uma fé operante, viva, que procura compreender. Credo ut intelligam, creio para entender; fides quaerens intelectum, a fé que procura a inteligência. Portanto, em Agostinho, a grande descoberta foi esta, de ver o mundo e de ver a realidade na perspectiva da intimidade. Do ponto de vista, portanto, de quem eu sou. Nec ego ipse capio totum, quod sum. Nem eu mesmo compreendo tudo aquilo que sou. É uma realidade que não acaba de se manifestar, que é algo no qual sempre se pode aprofundar, que é preciso ir mais além; e, por isso, a forma de se descobrir é precisamente contá-lo, fazer uma autobiografia, uma confissão, pois é nela que aparecerão precisamente as visões da realidade, da realidade que, se basicamente é dele – de Agostinho – é também, do homem em geral, e por meio dele dá acesso a Deus.

 

A Deus, Agostinho dedicará outro livro fundamental, que em um certo sentido é mais o importante: o De Trinitate, Sobre a Trindade. E há um terceiro grande livro, o extraordinário De Civitate Dei, que é o livro no qual levanta o problema da Cidade de Deus e da cidade terrena, no momento da crise do Império Romano, ameaçado pelos bárbaros – por Alarico – que está em plena crise, e que é uma realidade deficiente do ponto de vista cristão, mas grandiosa, extraordinária...

 

Curiosamente, esse entrar em si mesmo, essa relação com a intimidade, o levará à superação do ceticismo. Lembrem que a Academia platônica perdeu seu vigor criador, metafísico, depois de Platão, mas continuava existindo e era uma escola de céticos: os acadêmicos. Ele escreveu um tratado contra os acadêmicos, contra os platonizantes, que não era o mesmo que platonismo. Pois bem, é curioso como ele se opõe justamente a esse ceticismo dominante na Academia, e é extremamente interessante que ele faça um apelo à evidência, e, portanto, ao pensamento: eu penso; eu posso errar; posso me enganar; mas não posso duvidar de que existo, porque se me engano então existo, porque só existindo é que posso me enganar. Isto é, eu não posso duvidar precisamente porque é evidente minha realidade pensante.

 

Isso é exatamente – em termos muito parecidos, embora com outros pressupostos e com um alcance diferente – o que será o núcleo do pensamento de Descartes. Cogito, ergo sum (Penso, logo existo). Sou uma res cogitans, sou uma coisa que pensa. E é curioso que foi precisamente com Descartes que iniciará outra grande época do pensamento. Se dividirmos o pensamento filosófico em grandes épocas, teremos a grega, com sua prolongação romana (que não é original e depende do pensamento grego). Depois, vem o pensamento cristão, que começa em forma plena com Santo Agostinho, e que irá durar até que aparece o pensamento moderno, o Idealismo, a doutrina de Descartes. É curioso que justamente o grande momento inicial do cogito, a operação da evidência, alcançar o que é absolutamente evidente, um fundamento que não só não seja duvidoso, mas também indubitável, algo do qual não se possa duvidar, justamente porque está na própria evidência do pensamento: palavras muito parecidas às de Agostinho em De Civitate Dei (A Cidade de Deus).

 

Outra coincidência curiosa: o livro que dá início à Filosofia moderna é o Discurso do Método, de Descartes, que é também uma autobiografia. É, mais ou menos, um livro autobiográfico; não é um tratado, não é uma exposição de tese, é um relato da própria vida de Descartes. Muito mais curto do que as Confissões de Santo Agostinho, escrito em francês, é justamente uma narração, uma exposição de sua própria vida, apoiando-se em um argumento, que é o cogito, que apareceu de forma diferente, com propósito diferente, mas com um apelo à evidência radical, como em Santo Agostinho.

 

Com isso, se diz que a Filosofia com a qual se inicia uma nova época, a grande época da Filosofia moderna, está assentada, está condicionada pelo agostinismo em dois sentidos: na relação com a evidência do pensamento, por um lado, e, por outro, o caráter autobiográfico, narrativo, porque expositivo da própria vida nas duas grandes obras: as Confissões e o Discurso do Método.

 

Há ainda uma coisa muito importante: Santo Agostinho iniciou esse estilo de filosofar, que deu início a uma nova etapa condicionada pelo Cristianismo como tal, e que terá uma vigência absolutamente espantosa. Santo Agostinho morreu em 430, e foi a grande figura que dominou todo o pensamento cristão, absolutamente todo, até mil e duzentos e tanto, até bem avançado o século XIII.

 

Durante oito séculos, Santo Agostinho foi a maior figura dominadora do pensamento cristão: todos recorriam a ele, todos o respeitavam. Isso tem uma importância particular, porque, claro, temos esse conceito tão usado por Ortega, e também por mim, que é de vigência, que é o vigor. Têm vigência as coisas que devemos ter em conta. Se querem saber se uma determinada realidade de nossa época tem vigência ou não, é muito fácil fazer o teste: se é preciso contar com ela, então tem vigência. Se podemos ignorá-la, se podemos, por exemplo, não opinar sobre ela, então, ela não tem vigência. Pois bem, se consideram o pensamento moderno, a literatura, as formas estilísticas, verão que têm um certo período de vigência. Se uma forma intelectual, artística ou literária tem vigência de séculos, parece algo extraordinário. Santo Agostinho tem oito séculos de vigência; isso é absolutamente espantoso.

 

Mas vejam como é realmente extraordinário, ter uma fecundidade quase inesgotável, o fato de que Santo Agostinho, com suas proposta nova, com esse novo estilo de pensar que inaugura, que nasceu precisamente de uma visão dupla: por um lado viu o mundo com olhos antigos, foi o grande último homem antigo, mas ao mesmo tempo, por outro lado, foi o primeiro pensador que parte da situação criada pelo Cristianismo, condicionada por ele, que vê, portanto, o mundo dessas duas maneiras. Participou da visão pagã, da tentação maniquéia, a que cedeu, evidentemente, com grande entusiasmo – em Santo Agostinho, tudo é especialmente forte – depois é, naturalmente, de um Cristianismo essencial, apaixonado.

 

Essa idéia da intimidade, da personalidade, o levará a dar, por exemplo, um papel extraordinário ao amor, inclusive filosoficamente. Ele diz que se a sabedoria é Deus, ou se Deus é a sabedoria, o verdadeiro filósofo é amante de Deus. Si sapientia Deus est... verus philosophus est amator Dei. Deus é sabedoria, a Filosofia é amor à sabedoria, como já o dizia Aristóteles. Então, para o cristão, o verdadeiro filósofo é aquele que ama Deus. Confunde-se o amor à sabedoria com o amor a Deus. E há um outro texto dele também extremamente enérgico: Non intratur in veritatem, nisi per caritatem. Só se entra na verdade, pela caridade, pelo amor.

 

Isto, naturalmente, leva à afirmação da liberdade. Reparem que essa descoberta do homem interior, do homem íntimo, da capacidade que tem, pela condição espiritual, de entrar em si mesmo, faz com que o homem seja livre. Sua liberdade é absolutamente fundamental, e, claro, está na própria entranha do Cristianismo: a verdade vos fará livres. E ele prosseguirá: ama et quod vis fac, ama e Ama e faz o que quiseres, sentença extremamente enérgica de Santo Agostinho. Ama e faz o que quiseres. Se repararmos bem, não está tão longe de Kant.

 

Ama e faz o que quiseres; o que quiseres, não o capricho, não o teu bel-prazer, mas, sim, o que possas querer, o que possas verdadeiramente querer. Isso está a dois passos da idéia de Kant, para quem o único bem é a boa vontade. É a única coisa que é verdadeiramente valiosa para Kant: o que podemos querer. Não os sentimentos, não o capricho, não, não... Mas o que possas realmente querer. Ama e faz o que quiseres. Se fazes realmente por amor, podes fazer o que quiseres. O que possas querer realmente, o que possas querer amorosamente, por amor. Naturalmente, se se suprime o ama, destrói-se a frase, como é natural. Não é faz o que quiseres, o capricho, ou o que te agrade, ou o que te convenha. Não, não, pelo contrário.

 

Se falarmos de estilos na Filosofia, este é um estilo totalmente novo. A palavra Filosofia, desde Santo Agostinho, quer dizer outra coisa. Os senhores diriam: mas isso estava claro? Não, é muito raro que as coisas estejam claras. Se olharmos as coisas que estão aí, que foram conhecidas, que foram expressas, que foram formuladas, às vezes de modo genial, com um talento como o de Santo Agostinho, veremos que muitas vezes passa-se à margem delas. Dizia Aristóteles que a sabedoria é descoberta e depois esquecida. Sim, e não somente a sabedoria em geral, mas em cada época. Seria interessante explorar isso, sei lá, poder-se-ia escrever um livro extraordinário, só sobre os esquecimentos do homem, sobre as coisas que foram vistas, compreendidas, entendidas, que uma vez o homem as conquistou, e depois as abandonou, as esqueceu...

 

É curioso como a mudança de pensamento, que poderia incluir um acréscimo, um acréscimo constante, uma aquisição, uma incorporação de novas visões, de novas realidades, a inclusão de verdades novas, raramente é assim. Quando aparece algo novo, quase sempre aparece com algumas perdas, com esquecimentos, com falta de algo que já tinha sido conquistado, mas que em certo momento se debilitou, perdeu o vigor, perdeu a vigência, e assim foi abandonado.

 

Não se esqueçam da brevíssima vigência do pensamento mais genial, talvez o maior de toda a história da Filosofia, que é o de Platão e de Aristóteles. Como filósofos, provavelmente sejam os dois cumes da história da Filosofia inteira. Nós lhes devemos uma proporção quase inimaginável do que possuímos, e, no entanto, logo após a morte de Platão, e, depois, logo após a morte de Aristóteles, desapareceu do horizonte essa forma de pensamento, esses dois cumes extraordinários. Partiu-se para um outro nível. Há muito tempo, Ortega disse: a Filosofia é questão de nível. Surpreendi-me quando ouvi esta frase, mas agora vejo que tem um imenso valor. Efetivamente, a Filosofia é uma questão de nível. E cada Filosofia tem o seu nível, e esse nível não é que esteja dado, chega-se a ele, e pode-se perdê-lo. E, de fato, perde-se uma e outra vez.

 

Se a capacidade de visão, se a capacidade de inovação de Santo Agostinho tivesse sido conservada ao longo dos séculos, aonde teria chegado o pensamento, esse pensamento agostiniano, fiel a Santo Agostinho? Às vezes passivamente fiel, talvez sem o impulso criador e inovador que Agostinho tinha, mas foi conservado com bastante fidelidade, com algumas perdas e com certo distanciamento, talvez com esquecimento daquilo que é mais criador, daquilo que era verdadeiramente o fermento de Santo Agostinho.


 

 

Datas Importantes

 

 

 

Santo Agostinho

 

 

 

 

354 - 13 de novembro, nasce em Tagaste, hoje Souk-Ahras, na Argélia (início dos estudos e primeira experiência como professor de gramática; primeiro mosteiro agostiniano).

365 - Inicia os cursos de educação geral em Madaura.

370 - Volta a Tagaste.

371 - Transfere-se para Cartago, a fim de estudar Retórica e Artes Liberais.

372 - Morre o seu pai, Patrício (que não era cristão). Apaixona-se e junta-se a uma mulher.

373 - Lê O Hortênsio, de Cícero. Torna-se maniqueu [Filosofia religiosa, sincrética e dualística ensinada pelo profeta persa Mani (ou Manes), que viveu aproximadamente entre 210 e 276 d.C., e que combinava elementos do Zoroastrismo, do Cristianismo e do Gnosticismo. Esta Filosofia dividia o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria era considerada intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom, ou seja, o Maniqueísmo consistia basicamente em afirmar a existência de um conflito cósmico entre o reino da Luz (o Bem) e o das Sombras (o Mal), em localizar a matéria e a carne no reino das sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever de ajudar à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas, especificamente evitando a procriação e os alimentos de origem animal.] Provável nascimento de Adeodato, seu filho.

374 - Regressa a Tagaste como professor de Gramática.

376 - Morre um amigo íntimo. Agostinho vai de novo a Cartago como professor.

383 - Vai para Roma (capital do Império Romano), onde continua a docência.

385 - Depois de ganhar a Cátedra de Retórica da Casa Imperial, por concurso, vai para Milão. Encontra-se com Santo Ambrósio, Bispo da cidade.

386 - Outono: aos 32 anos, converte-se à fé católica. Passa alguns meses em Cassicíaco (vila perto de Milão).

387 - Noite da Páscoa (24 - 25 de abril), é batizado em Milão. Volta à África e morre sua mãe Mônica (Santa), em Óstia Tiberina, Porto de Roma.

388 - Chega a Cartago e pouco depois a Tagaste. Vende suas posses e funda o primeiro mosteiro.

391 - É ordenado Sacerdote em Hipona, hoje Annaba, na Argélia.

395 - É Sagrado Bispo Auxiliar.

396 - Sucede ao Bispo Valério em Hipona.

400 - Publica as Confissões.

416 - Publica A Trindade.

426 - Publica a Cidade de Deus (escrita entre 413 e 426).

430 - Genserico ataca Numídia e cerca Hipona. Em 28 de agosto, com 75 anos, Agostinho morre em Hipona.

 

 

 

Obras de Santo Agostinho

 

 

Livros


Da Doutrina Cristã
Confissões
A Cidade de Deus
Da Trindade
Enquirídio
Retratações
De Magistro
Conhecendo a si Mesmo

 

Cartas

 

Da Catequese dos não Instruídos
Da Fé e do Credo
Fé Concernente às Coisas que não se Vêem
Do Benefício da Crença
Do Credo: Um Sermão para Catecúmenos
Da Continência
Da Bondade do Casamento
Da Santa Virgindade
Da Bondade da Viuvez
Da Mentira
Para Consêncio: Contra a Mentira
Do Trabalho dos Monges
Da Paciência
Do cuidado de ser tido pelos mortos
Da Moral da Igreja Católica
Da Moral dos Maniqueístas
Das duas Almas, Contra os Maniqueístas
Atos ou Disputa Contra Fortunato, o Maniqueísta
Contra a Epístola de Maniqueu Chamada Fundamental
Resposta a Fausto o Maniqueísta
Concernente à Natureza de Deus, Contra os Maniqueístas
Do Batismo, Contra os Donatistas
Resposta às Cartas de Petiliano, Bispo de Cirta
A Correção dos Donatistas
Méritos e Remissão do Pecado e Batismo de Crianças
Do Espírito e da Carta
Da Natureza e Graça
Da Perfeição e Retidão do Homem
Dos Procedimentos de Pelágio
Da Graça de Cristo, e do Pecado Original
Do Casamento e Concupiscência
Da Alma e sua Origem
Contra duas Cartas dos Pelagianos
Da Graça e Livre-arbítrio
Da Repreensão e Graça
A Predestinação dos Santos/Dom de Perseverança
O Sermão do Monte de Nosso Senhor
A Harmonia dos Evangelhos
Sermões Sobre Lições Selecionadas do Novo Testamento
Tratados Sobre o Evangelho de João
Sermões Sobre a Primeira Epístola de João
Solilóquios
As Enarrações ou Exposições dos Salmos

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

Este estudo, entre outros, teve dois objetivos principais: 1º - divulgar a excelente conferência de Julián Marías, Los Estilos de la Filosofía; e 2º - revisitar o pensamento de Santo Agostinho, basicamente aquele que se encontra em As Confissões, na Cidade de Deus e em A Trindade. Há alguns anos, quando cursava o Doutorado em Filosofia, fiz um trabalho exaustivo sobre as confissões agostinianas (que, como disse o próprio Santo Hiponense, mais do que confessar pecados, confessar-se significa adorar a Deus), mas eu o perdi ou, no meio da minha bagunça, que só eu entendo, não sei onde o coloquei. Fazer o quê? Gostaria, na verdade, de divulgar aquele trabalho, mas como isto não é possível, resolvi, neste passeio espiritual pelo pensamento de Santo Agostinho, garimpar e arrolar algumas de suas melhores reflexões (com ligeiras edições para acomodá-las a este tipo de estudo), e que serão apresentadas a seguir.

 

Por uma questão de honestidade e de esclarecimeto, devo informar que não concordo com todos os excertos que coligi, mas, no que tange ao misticismo agostiniano, subscrevo todas as reflexões do Santo Tagastense. Isto não é um absurdo, porque a visão de Santo Agostinho é religiosa, teológica e fideísta, e a minha é mística, esotérica e iniciática. Mas também não posso deixar de registrar minha admiração por este Santo católico. E quem pensa que há mais discordâncias do que conformidades entre religião e misticismo está redondamente enganado. Cito apenas um exemplo de concordância, uma espécie de décimo primeiro mandamento: não serás um sacanocrata maledíctus explorador dos probres, dos miseráveis e dos desvalidos.

 

 

 

 

Fragmentos do Pensamento
(íntimo e confessional)
de Santo Agostinho

 

 

 


O Batismo de Santo Agostinho
O Batismo de Santo Agostinho
Bento Coelho da Silveira (1706)
Óleo sobre tela (200 cm x 222 cm)

 

 

 

Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu, lá fora, a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo e eu não estava Convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria, se não existisse em Vós. Porém, chamastes-me, com uma Voz tão forte, que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes Perfume: respirei-o, a plenos pulmões, suspirando por Vós. Saboreei-Vos e, agora, tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi, no desejo da Vossa Paz.

 

Deus não é para se compreendido, mas para ser adorado!

 

Recebe, Senhor, o sacrifício destas confissões, por meio desta língua que me destes e que excitas, para que louve o Teu Nome... Louve-Te minha alma, para que possa chegar a amar-Te; que Te confesse todas as Tuas misericórdias e por elas Te louve. Não cessa em Teu louvor, nem cala Teus louvores, a criação inteira; nem as cala o espírito, que fala pela boca de quem se converte a Ti... Permita-me, no entanto, falar ante Tua misericórdia, a mim, que sou pó e cinza; deixa-me falar, pois falo à Tua misericórdia e não a um homem escarnecedor que pode rir-se de mim. Talvez apareça risível ante Teus olhos, mas Tu te voltarás a mim cheio de misericórdia.

 

Deus é, sem dúvida, uma substância ou (se o termo for mais adequado) uma essência, a qual os gregos denominavam de 'ousia'... Outras substâncias ou essências admitem acidentes, causas de pequenas ou grandes mudanças. Deus, porém, não é suscetível de acidentes, e, por isto, Nele existe unicamente uma substância ou essência imutável.

 

Assim como se diz que a Trindade2 é um só Deus grande, bom, eterno, onipotente, pode-se dizer igualmente que ela [a Trindade] é sua própria deidade, grandeza, bondade, eternidade e onipotência.

 

Com a ajuda de Nosso Deus e Senhor e conforme nossa capacidade, empreenderemos a tarefa que nos pedem, e assim demonstraremos que a Trindade é um só e verdadeiro Deus, e quão retamente se diz, se crê e se entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma só e mesma substância ou essência. Assim não poderão afirmar, por assim dizer, que enganamos os adversários com nossas pretensões. Mas que se convençam pela própria experiência de que existe aquele Sumo Bem, só visível às mentes puras. E se eles não podem compreender, é porque o limitado olhar da inteligência humana não é capaz de se fixar nessa Luz sublime, se não for alimentado pela justiça fortalecida pela fé.

 

Duas ou três pessoas não são maiores do que uma delas, afirmação ininteligível para a nossa experiência carnal que somente compreende as realidades criadas. Mas na essência da verdade, que é Deus, ser maior equivale a ser mais verdadeiro. Por conseguinte, onde a grandeza é a mesma verdade, o Pai e o Filho juntos não superam em verdade o Pai e o Filho sozinhos; logo os dois juntos não são maiores do que um só deles em particular. Nos corpos, é possível que este ouro e aquele outro ouro sejam igualmente verdadeiros, e um, ainda assim, ser maior do que o outro, porque neste caso não é a mesma coisa a magnitude e a verdade. O mesmo acontece com a alma humana, onde a grandeza do espírito não se mede pela verdade da alma; e a essência do ouro ou da alma humana não é a essência da verdade, como ocorre com a Santíssima Trindade: um só Deus, grande, verdadeiro, veraz e verdade.

 

Mas quem ama o que desconhece? Pode-se conhecer algo e não o amar; pergunto, porém, se é possível amar algo que se ignora, porque se isso for possível, ninguém é capaz de amar a Deus antes de o conhecer. E o que é conhecer a Deus, senão o contemplar e perceber com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um corpo para que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos corporais.

 

Se procurarmos o que possa existir de superior..., e se investigarmos a verdade, encontraremos que esta verdade é Deus, ou seja, não uma natureza criada, mas criadora.

 

Uma coisa é não ter mais febre; outra é a convalescença da fraqueza provocada pela febre. E ainda, como uma coisa é retirar do corpo uma seta nele cravada, e outra, curar por um bom tratamento o ferimento por ela causado. Assim, também, o primeiro grau de cura da alma é remover a causa do incômodo – o que acontece pela remissão de todos os pecados. O segundo grau será curar o próprio ferimento, o que se faz lentamente com o progresso realizado na renovação da imagem interior.

 

A relação de um para dois tem sua origem no número três. Com efeito, um mais dois são três, mas o total dos ditos números faz-nos chegar a seis, já que um mais dois mais três são seis. Afirma-se que este número [o seis] é perfeito porque é completo em suas partes. Encerra em si as três partes: a sexta e a terceira partes e a metade, e nele não existe outra parte equivalente a estas. Sua sexta parte é a Unidade; e terceira equivale a duas; e a metade, a três. O um, o dois e o três integram o seis.3

 

Que orações dos homens devem os demônios apresentar aos deuses – as mágicas ou as lícitas? Se são as mágicas, eles não as aceitam; se são as lícitas, eles recusam tais intermediários.

 

Prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem.

 

Ainda que fujas do campo para a cidade ou da rua para a tua casa, tua consciência vai sempre contigo. De tua casa só podes fugir para teu Coração. Todavia, para onde fugirás de ti mesmo?

 

Senhor, criaste-nos para Vós, e nosso coração não terá paz enquanto não repousar em Vós.

 

Ó eterna verdade, verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és o meu Deus; por Ti suspiro dia e noite. Desde que Te conheci, Tu me elevaste para ver que quem eu via, era, e eu, que via, ainda não era. E reverberaste sobre a mesquinhez de minha pessoa, irradiando sobre mim com toda a força; e eu tremia de amor e de horror. Vi-me longe de Ti, no país da dessemelhança, como que ouvindo Tua voz lá do alto: — 'Eu sou o alimento dos grandes; cresce e comer-me-ás. Não me mudarás em ti, como o alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim'.

 

O que realça o mérito da virgindade de Maria, não é somente o fato de que Jesus Cristo, tendo nascido dela, tenha sido o seu guardião antes de qualquer contato que viesse a ter com o esposo; o fato é que esta virgindade já havia sido, de sua parte, consagrada a Deus antes que o Salvador a tivesse escolhido como Mãe.

 

A ignorância mais refinada é a ignorância da própria ignorância.

 

Com a corrupção morre o corpo; com a impiedade morre a alma.

 

Geralmente suspeitamos dos demais o que sentimos em nós.

 

Quanto à afirmação de Platão de que filósofo é o que ama a Deus, nada há mais claro nas escrituras.

 

A função da perfeição é fazer com que cada um de nós conheça a sua imperfeição.

 

Quem é bom é livre, ainda que seja escravo. Quem é mau é escravo, ainda que seja livre.

 

Se queres conhecer a uma pessoa, não lhe perguntes o que pensa, mas, sim, o que ela ama.

 

Que é, pois o tempo [clima]? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei.

 

O Pai é espírito e o Filho é espírito; o Pai é santo e o Filho é santo. Todavia, o Espírito Santo é que é propriamente assim chamado como sendo a Santidade substancial e consubstancial [tem a mesma substância, natureza ou essência] de ambos.

 

Ninguém pode ser perfeitamente livre até que todos o sejam.

 

Uma coisa é ter percorrido mais uma vez o caminho; outra, é ter caminhado mais devagar.

 

Não existe natureza alguma – mesmo a do mais vil inseto – que não haja sido criada por Aquele de quem procede toda medida, toda beleza, toda ordem, bases indispensáveis de toda concepção, de todo pensamento.

 

Não te disperses. Concentra-te em tua intimidade. A verdade reside no homem interior.

 

Acontece por isso que, não obstante a enorme variedade dos povos, espalhados por toda Terra, com religiões e costumes tão diversos, diferentes pela multiplicidade das línguas, das armas e dos vestidos, apenas existem duas espécies de sociedades humanas, ou para lhes chamar como na Sagrada Escritura, duas cidades. Uma é constituída pelos homens que querem viver segundo a carne, a outra pelos que querem viver segundo o espírito, cada uma delas na sua paz própria, paz que conseguem quando obtêm aquilo que desejam.

 

Ora, é preciso reconhecer: a alma fica impressionada pela vista de objetos, sejam superiores, sejam inferiores, de tal modo que a vontade racional pode escolher entre os dois lados o que prefere. E será conforme o mérito dessa escolha que se seguirá para ela o infortúnio ou a felicidade.

 

Não podes ser bom amigo dos homens, se primeiro não o fores da verdade.

 

Visto que o demônio se apresentou ao homem como exemplo de orgulho, o Senhor se apresentou a nós como exemplo de humildade e com a promessa de vida eterna.

 

Dois amores fundaram duas cidade, a saber, o amor próprio levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor de Deus levado ao desprezo de si próprio, a celestial... A natureza pervertida pelo pecado engendra os cidadãos da cidade terrena; a graça , que liberta a natureza do pecado, engendra os cidadãos da cidade celeste.

 

O homem é uma alma racional que se serve de um corpo mortal e terrestre.

 

Pois, realmente, aquele que quer, por certo quer alguma coisa. E ele não poderia querer esse intento se não lhe fosse assinalado exteriormente pelos sentidos ou se não tivesse sido apresentado a seu espírito de alguma maneira secreta.

 

Só Deus pode ter o conhecimento do futuro. Nenhuma arte existiria para prevê-lo.

 

Atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e, se agora nada existisse, não teríamos tempo presente.

 

Desde que entramos neste corpo mortal, a morte nunca mais deixou de estar a vir... O tempo que se vive é vida que se corta, e cada dia que passa é menos vida que nos fica. O tempo da nossa vida é caminho para a morte, onde não está previsto um segundo de atraso... Se começarmos a morrer logo que, em nós, começa a atuação da morte, deve se dizer que começamos a morrer logo que começamos a viver... Consumida a vida, está concluída a morte que se vinha realizando, a pouco e pouco. Por isto, o homem nunca está propriamente em vida: é mais um morto do que um vivo – já que não pode estar simultaneamente morto e vivo.

 

É impróprio afirmar que os tempos são três: passado, presente e futuro. Mas, talvez, fosse próprio dizer que os tempos são três: o presente das coisas passadas..., o presente das coisas presentes... e o presente das coisas futuras... Existem, pois, na minha mente, três tempos que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.

 

Que a alma mutável possa se contemplar, comprazer-se de certa maneira em si mesma, na contemplação da suprema sabedoria, a qual sendo imensa não é a própria alma, isso vem de que ela, por não ser igual a Deus, possui entretanto belezas que, depois de Deus, podem encantá-la.

 

Por que... a Igreja não deveria usar de força para compelir seus filhos perdidos a retornar, se os filhos perdidos compelem outros à sua própria destruição?

 

Os Judeus que O assassinaram, e não criam Nele, porque coube a Ele morrer e viver novamente, foram ainda mais miseravelmente assolados pelos romanos, e completamente expulsos de seu reino, onde estrangeiros já tinham dominado sobre eles, e foram dispersos pelas terras, e são, assim, por suas próprias Escrituras, um testemunho para nós de que não forjamos as profecias a respeito de Cristo.

 

Poderão ainda dizer que as estrelas indicam, mas não realizam acontecimentos. É como se a sua posição fosse uma linguagem de predizer o futuro. Não é assim que os astrólogos costumam falar. Não dizem, por exemplo: — Esta posição de marte anuncia um homicida, mas faz um homicida. Concedamos, porém, que eles não falam como devem e que deviam tomar dos filósofos a sua maneira de falar para anunciar os acontecimentos que julgam descobrir na posição dos astros.

 

Não é absolutamente absurdo admitir que mudanças, mas apenas quanto a diferenças do corpo, sejam devidas à influência sideral. Vemos, assim, que o Sol, pela sua aproximação ou afastamento, provoca as estações do ano; a Lua, conforme vai para a crescente ou para a minguante, assim faz crescer ou minguar certas categorias de seres, tais como ouriços do mar e as conchas, e ainda as maravilhosas marés do oceano.

 

Quando tratamos de justificar nossas faltas, obscurecemos ainda mais nossa própria obscuridade.

 

Alguns daqueles, contra os quais defendemos a Cidade de Deus, consideram injusto que, pelos pecados cometidos, por muito graves que sejam, sem dúvida, em um curto espaço de tempo, alguém seja condenado a uma pena eterna – como se a justiça legal vez alguma tomasse isso em consideração, para impor a cada um uma pena proporcional ao tempo que o delito levou a cometer. Escreve Cícero que nas leis há oito gêneros de penas: a multa ('damnum'), a prisão ('vincula'), os açoites ('verbera'), o talião, a ignomínia, o exílio, a morte e a servidão. A não ser a de talião, qual destas é a que restringe a sua duração à brevidade própria de cada delito, de maneira a ser punido durante um tempo estritamente igual àqueles de que se usou para o cometer? Realmente, o talião exige que cada um pague o que fez. Daí a expressão da lei: Olho por olho, dente por dente... Conseqüentemente, quem julga e condena injustamente, se for julgado e condenado justamente, recebe na mesma medida, embora não receba o que deu. Fê-lo, realmente, por um julgamento e, por um julgamento, sofre – embora tenha feito, por condenação, o que é iníquo e por condenação sofrerá o que é justo.

 

Todos os pecados são idênticos em um aspecto: oposição ao permanente e divino e adesão ao incerto e mutável.

 

Há motivos para crer que, se os astrólogos dão tantas respostas surpreendentemente verdadeiras, isso se deve à oculta inspiração de maus espíritos que põem todo o cuidado em infundir nos espíritos humanos essas nocivas opiniões acerca das fatalidades astrais, e de forma nenhuma à arte de examinar os horóscopos. Tal arte não existe.

 

Aprova os bons, tolera os maus e ama a todos.

 

Vós, porém, Senhor – justíssimo organizador de tudo – por meio de um secreto instinto, desconhecido dos consulentes e dos astrólogos, fazeis que cada qual, enquanto consulta, ouça o que lhe convenha ouvir, segundo os merecimentos ocultos da sua alma e segundo os abismos dos vossos incorruptíveis juízos. Que nenhum se atreva a perguntar-Vos: — Que é isto? Para que é isto? Não vo-Lo pergunte, porque é um simples homem.

 

Uma virtude simulada é uma impiedade duplicada: à malícia une-se a falsidade.

 

Como podes amar o Senhor se amas a farsa e o vinho, as pompas do mundo e suas vaidades enganosas? Aprende a não amar para que aprendas a amar; afasta-te, para poderes acercar-te; esvazia-te, para que possas encher-te de verdade.

 

Não se chega à verdade senão através do amor.

 

Dizem que os irmãos do Egito recitam certas orações a intervalos muito breves. São orações curtas e rápidas como flechas disparadas de um arco, a fim de que a atenção, que é a alma da oração, não se dissipe nem adormeça pelo cansaço. Com esta prática, evidenciam que não se deve fustigar a atenção quando esta não se agüenta; tampouco se deve desistir apressadamente quando se pode sustentar. Quando persiste o fervor da atenção, a oração liberta-se de muito palavreado, mas não de muita persistência. Falar demasiadamente ao rezar é realizar um ato necessário com palavras inúteis. Em contrapartida, para instar ao Senhor com empenho, basta suplicar-Lhe com uma longa, contínua e devota elevação do Coração.

 

O supérfluo dos ricos é propriedade dos pobres.

 

É certo que muitas coisas más são pelos maus praticadas contra a vontade de Deus. Mas tão grande é a Sua sabedoria e tamanha é a Sua virtude que tudo, mesmo o que parece contrário à Sua vontade, tende para os fins e resultados que Ele antecipadamente viu como bons e justos. Por isso, quando se diz que Deus muda de vontade, que, por exemplo, fica irado contra aqueles para quem era brando, não foi Ele, mas foram os homens que mudaram e de certo modo o acham mudado nas mudanças que experimentam, tal qual como o Sol muda para os olhos enfermos – de suave torna-se de certa maneira áspero, de deleitosos torna-se molesto, embora ele próprio continue a ser o mesmo que era. Também se chama de Deus a vontade que Ele suscita nos corações dos que obedecem aos seus mandamentos...

 

Muitos clamam a Deus pela saúde dos seus, pela estabilidade de sua casa, pela felicidade material ou por sua saúde, que é o patrimônio dos pobres. Mas quantos clamam ao Senhor por Ele mesmo? Pouquíssimos. Todavia, é injusto desejar qualquer coisa do Senhor e não desejar a Ele mesmo. Pode, acaso, a doação ser preferida ao Doador?

 

Andar por dentro é desejar as coisas de dentro. Andar por fora é desprezar as coisas de dentro e encher-se das de fora. O orgulhoso lança fora o que tem dentro; o humilde o busca com afã. A soberba exila o homem de si mesmo; a humildade o devolve à sua intimidade.

 

Os homens estão sempre dispostos a vasculhar e averiguar sobre as vidas alheias, mas lhes dá preguiça conhecerem-se a si mesmos e corrigirem suas próprias vidas.

 

Por que gostas tanto de falar e tão pouco de ouvir? Andas sempre fora de ti e te recusas a regressar a ti. O que ensina de verdade está dentro; mas, quando tu tratas de ensinar, sais de ti mesmo e andas por fora. Escuta primeiro ao que fala dentro e desde dentro; fala depois aos que estão fora.

 

Ninguém faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.

 

E agora reparo que devo me ocupar dos nossos misericordiosos e pacatamente discutir com aqueles que não querem crer que venha a haver uma pena eterna nem para todos os homens que o mais justo dos juízes julgar merecedores do suplício da Geena nem mesmo, para alguns deles. Julgam que, decorridos certos períodos de tempo, mais longos ou mais breves, conforme a importância do pecado de cada um, serão todos libertados. Nesta questão, o mais misericordioso foi com certeza Orígenes, que acreditou que o próprio Diabo e os seus anjos, após suplícios mais graves e mais prolongados, conforme as suas culpas, devem ser tirados dos seus tormentos e associados aos santos anjos. Mas, não sem razão, a Igreja o condenou por causa disso e por causa de outros casos, principalmente por causa daqueles períodos de felicidade e de desgraça, que se alternam sem cessar, e daquele vaivém sem fim, desta para aquela e daquela para esta, em períodos fixos de séculos. De resto, ele perdeu aquilo que o fazia parecer misericordioso, criando para os santos verdadeiros misérias pelas quais eles sofreriam penas e falsas beatitudes nas quais já não teriam o gozo do bom sempiterno, verdadeiro e seguro, isto é, certo e sem receios. Mas quão diversamente, devido ao sentimento humano, se desencaminha a misericórdia dos que consideram temporais os sofrimentos dos homens condenados por tal juízo, mas eterna a felicidade de todos os que, mais cedo ou mais tarde, foram libertados! Se esta opinião é boa e verdadeira porque é misericordiosa, será tanto melhor e mais verdadeira quanto mais misericordiosa for. Alargue-se, portanto, e torne-se mais funda a fonte desta misericórdia até aos anjos condenados e que sejam libertados das suas penas, pelo menos depois de muitos e larguíssimos séculos, tanto quantos quisermos! Porque ela se derrama por toda a natureza humana e, quando chegar à natureza angélica, logo se estanca? Não ousam, porém, estender a sua compaixão até chegarem à libertação do próprio Diabo. Na verdade, se alguém o ousasse, venceria, sem dúvida, os outros. Todavia, cairia num erro tanto mais exagerado e contrário ao reto sentido da palavra de Deus, quanto maior sentimento de clemência julga ter.

 

Na maioria das vezes, o homem desconhece a si mesmo. Vítima do descuido ou da improvisação, ou presume de suas carências ou desespera de suas possibilidades. Só quando a tentação o prova com um questionamento de urgência, o homem consegue conhecer a verdade sobre si mesmo.

 

Com o Coração se pede. Com o Coração se procura. Com o Coração se bate. E é com o Coração que a Porta se abre.

 

Os homens saem para fazer turismo, para admirar o pico das montanhas, o marulho das ondas dos mares, o fácil e copioso curso dos rios, as revoluções e giros dos astros. Entretanto, não olham para si mesmos!

 

Quereis cantar louvores a Deus? Sede vós mesmos o canto que ides cantar. Vós sereis o seu maior louvor, se viverdes santamente.

 

Tens o que oferecer. Não examines o rebanho, não apresentes navios e não atravesses as mais longínquas regiões em busca de perfumes. Procura em teu Coração aquilo que Deus gosta.

 

O primeiro passo na busca da verdade é a humildade. O segundo, a humildade. O terceiro, a humildade. E o último, a humildade. Naturalmente, isto não significa que a humildade seja a única virtude necessária para o encontro e o gozo da verdade; mas se as demais virtudes não estiverem precedidas, acompanhadas e seguidas da humildade, a soberba abrirá caminho e destruirá todas as boas intenções.

 

Mas eu, adolescente desventurado em extremo, tinha chegado a pedir-Te a castidade dizendo: Senhor, dai-me a castidade e a continência... Mas não agora!

 

A lei, ao proibir o pecado, de alguma forma o reforça. A proibição aumenta o desejo de pecar, quando o amor não é suficientemente forte para superar a atração do desejo pecaminoso.

 

A ignorância mais refinada é a ignorância da própria ignorância.

 

Estou que, com o auxílio de Deus e com esta imensa obra, saldei a dívida contraída. Que me perdoe quem achar que eu disse pouco ou demasiado. E quem estiver satisfeito não dê, agradecido, graças a mim, mas a Deus comigo. Assim seja.

 

 

 



 

 

______

Notas:

1. Patrística é o nome dado à Filosofia Cristã dos primeiros séculos, elaborada pelos Pais da Igreja e pelo escritores escolásticos. Consiste na elaboração doutrinal das verdades de fé do Cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e contra as heresias. Quando o Cristianismo, para se defender de ataques polêmicos, teve de esclarecer os próprios pressupostos, apresentou-se como a expressão terminada da verdade que a Filosofia Grega havia buscado, mas não tinha sido capaz de encontrar plenamente, enquanto a Verdade mesma não tinha ainda se manifestado aos homens, ou seja, enquanto o próprio Deus não havia ainda encarnado e não existia ainda o Senhor. De um lado se procura interpretar o Cristianismo mediante conceitos tomados da Filosofia Grega, do outro reporta-se ao significado que esta última dá ao Cristianismo. A patrística divide-se geralmente em três períodos: 1º) até o ano 200 dedicou-se à defesa do Cristianismo contra seus adversários (padres apologistas, São Justino Mártir); 2º) até o ano 450 é o período em que surgem os primeiros grandes sistemas de Filosofia Cristã (Santo Agostinho, Clemente Alexandrino); e 3º) até o século VIII reelaboram-se as doutrinas já formuladas e de cunho original (Boécio). O legado da Patrística foi passada à Escolástica (linha dentro da Filosofia Medieval, de acentos notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada, então, como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a cristandade).

2. Santo Atanásio assim explicava a Trindade: A fé católica é esta: que veneremos o único Deus na Trindade, e a Trindade na unidade, não confundindo as pessoas, nem separando a substância: pois, uma é a pessoa do Pai, outra, a do Filho, outra, a do Espírito Santo; mas uma só é a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, igual à glória, coeterna à majestade.

3. Na realidade, seis é o Valor Secreto de três. O Valor Secreto de qualquer Número (VSN) pode ser calculado pela fórmula:

VSN = [N x (N + 1)] ÷ 2

na qual N é o Número que se deseja saber qual é o Valor Secreto. É por isso que 666 é o Valor Secreto de 36. O único número que tem por Valor Secreto o próprio número é o 1, ou seja: [1 x (1 + 1)] ÷ 2 = [1 x 2] ÷ 2 = 2 ÷ 2 = 1.

 

Bibliografia:

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

_____. A Cidade de Deus. Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. Volumes I e II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.

_____. A Trindade. Tradução do original latino e introdução por Agustino Belmonte; revisão e notas complementares por Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://www.colcristorei.com.br/
stoagostinho/frases.htm

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Patr%C3%ADstica

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Escol%C3%A1stica

http://oadbrasil.net/
html/santosagostinianos.html

http://www.cristianismo.org.br/m-nsocrt.htm

http://www.fafich.ufmg.br/
~memorandum/artigos07/pacheco01.htm

http://haroldovilhena.multiply.com/
journal/item/10

http://www.cancaonova.com/
portal/canais/formacao/internas.php?id=&e=4159

http://www.pensador.info/
autor/Santo_Agostinho/

http://www.frasesfamosas.com.br/
de/santo-agostinho-de-hipona/pag/6.html

http://www.diocesefranca.org.br/
boletim/ago2006/bd-materia5.html

http://brasiliavirtual.info/
tudo-sobre/de-civitate-dei

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Juli%C3%A1n_Mar%C3%ADas

http://portodoceu.terra.com.br/
filorelig/agostinho.asp

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Agostinho_de_Hipona

http://www.darkrealms.kit.net/
agostinho.htm

http://www.darkrealms.kit.net/
agostinho.htm

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Agostinho_de_Hipona

http://www.csa.com.br/
direcao/santo-agostinho

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Manique%C3%ADsmo

 

Fundo musical:

Concerto Nº 5 in D, mov. 1 (Mozart)

Fonte:

http://www.geocities.com/
Vienna/Strasse/2915/midi.html