O
texto original da Regula Sancti Augustini, em Latim, é apresentado
pela Ordo Svmmvm Bonvm na seção Special Ancient Public Documents
For Rosicrucians Students Appreciation Inside the Holy Spirit School According
the Ancient Premise 'Ad Rosam per Crucem + Ad Crucem per Rosam'
em:
http://svmmvmbonvm.org/docpub.htm
Sabe-se que o monaquismo nasceu no
Oriente. Ele se difundiu no Ocidente primeiramente por intermédio
de São Martinho de Tours (316 – 397), nascido em Panônia,
atual Hungria, na fronteira latina do Ocidente. O próprio Agostinho
conta como descobriu, em Milão, graças a Ponticiano, alguns
anacoretas convertidos à vida ascética pela biografia de Santo
Antônio Abade (251 – 356), que Santo Atanásio de Alexandria
(295 – 373) acabara de escrever, poucos anos depois da morte de Antônio.
Essa descoberta, como se sabe, teve um papel importante na vida de Agostinho,
que, de volta a Tagaste, organizou os primeiros lugares africanos de vida
monástica. Adaptou, posteriormente, esse modo de viver à comunidade
que se desenvolveria ao seu redor, quando foi nomeado bispo, dando ao mundo
latino sua regra de vida e o exemplo de suas comunidades monásticas
pastorais. O Ocidente latino adotou esse exemplo numa parte de sua tradição
de vida religiosa comunitária (os agostinianos, os premonstratenses
etc.). Especialistas encontram também na Regra de São Bento
influências derivadas em particular da Regra de Santo Agostinho, muito
embora a Regula Beneticti derive diretamente da Regra do Mestre.
Breve
Biografia
e
Ponderações Metafísicas
Para
este estudo, resolvi, para dar início, reproduzir uma excepcional
conferência ministrada no curso Los Estilos de la Filosofía,
em Madrid, 1999/2000, pelo filósofo espanhol, considerado o principal
discípulo do também filósofo espanhol José Ortega
y Gasset (Madrid, 9 de maio de 1883 – Madrid, 18 de outubro de 1955)
Julián Marías (17 de junho de 1914, Valladolid, Espanha –
15 de dezembro de 2005, Madrid, Espanha). Como a obra de Julián Marías
observa e enfoca a Filosofia a partir de uma perspectiva pessoal e biográfica,
com uma preocupação centrada na pessoa humana, esta conferência,
por ser excelente e profundamente didática, a seguir reproduzida
com algumas edições, permite que se fique com uma idéia
bastante satisfatória das especulações agostinianas,
entre as quais sobressai a questão da intimidade (ou, misticamente:
o Deus de nossos Corações). Um exemplo desta intimidade em
Santo Agostinho é a afirmação: Instigado
a voltar a mim mesmo, entrei em meu íntimo sob Tua guia e o consegui,
porque Tu te fizeste meu auxílio. Um segundo exemplo
é: Andar por dentro
é desejar as coisas de dentro. Andar por fora é desprezar
as coisas de dentro e encher-se das de fora. O orgulhoso lança fora
o que tem dentro; o humilde o busca com afã. A soberba exila o homem
de si mesmo; a humildade o devolve à sua intimidade.
Um fato: Santo Agostinho, ao lado de São Tomás de Aquino (Roccasecca,
1225 – Fossanova, 1274), é considerado o pensador mais importante
da Idade Média. Para ler on-line a conferência integral
de Julián Marías o endereço é:
http://www.hottopos.com/
harvard3/jmagost.htm
Antes,
porém, reproduzirei um pequeno parágrafo biográfico
sobre Santo Agostinho, que se encontra disponibilizado no Website
da Ordem dos Agostinianos Descalços (O.A.D.)., cujo endereço
eletrônico é:
http://oadbrasil.net/html/
santosagostinianos.html
Santo Agostinho nasceu em Tagaste,
cidade da Numídia, em 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício,
era pagão, e recebeu o batismo pouco antes de morrer; sua mãe,
Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e
exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo
para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados
na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade,
que, segundo ele, é uma das maiores conseqüências do pecado
original. Dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que
aderisse ao Maniqueísmo, que atribuía realidade substancial
tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a solução
do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação
para a sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago,
de onde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente
do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde
e, mais ainda, por razões de ordem espiritual. Entrementes - depois
de maduro exame crítico - abandona o maniqueísmo, abraçando
a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus
e a negatividade do mal. Destarte, chegara a uma concepção
cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto, a conversão
moral demorou ainda, por razões de luxúria. Finalmente, como
por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão
moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia
inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se,
durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia
da mãe, do filho e de alguns discípulos, perto de Milão.
Escreve seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do
ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu
o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja
doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão.
Tinha trinta e três anos de idade. Depois da conversão, Agostinho
abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para
Tagaste. Vende todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os
pobres, funda um mosteiro em uma das suas propriedades alienadas. Ordenado
padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a Igreja de Hipona até
a morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos,
em 28 de agosto do ano 430. Tinha 75 anos de idade.
Los
Estilos de la Filosofía
( Julián Marías)
Santo
Agostinho [Aurelius Augustinus] nasceu em 354 e morreu em 431. Em Santo
Agostinho, encontraremos uma etapa nova da Filosofia. Falamos até
agora do pensamento grego, e acrescentamos alguma coisa que está
em latim, mas dentro da área do pensamento helênico: Sêneca.
E com isso termina uma grande etapa, a primeira etapa do pensamento filosófico,
centrada no problema da mudança, do movimento, kinesis em
grego, mutação, que faz com que as coisas sejam ou não
sejam, cheguem a ser e deixem de ser, mudem de quantidade, de qualidade...
Enfim, o problema da instabilidade do real. Este era o grande problema,
que se trata de superar mediante a noção de ser, de ente,
ón, de Parmênides, em conflito com a outra grande
idéia grega: a natureza, a physis, que é justamente
mudança, variação. As coisas estão ameaçadas
pela mudança, pela variação, e trata-se de buscar aquilo
que verdadeiramente é, que é o que é, se possível,
de modo permanente. Este é o grande problema central do pensamento
antigo.
Mas,
agora, vamos nos encontrar com uma situação radicalmente diferente.
Santo Agostinho foi o primeiro grande filósofo cristão. É
evidente que tinha havido preocupação filosófica entre
os cristãos nos primeiros séculos, que é o que se chama
Patrística1, a obra dos Padres da Igreja, que era, antes
de tudo, teológica, religiosa, mas sem dúvida com uma componente,
com uma vertente filosófica. Mas o primeiro grande filósofo
– o primeiro criador filosófico dentro do Cristianismo –
foi Santo Agostinho.
E
assim sendo, a Filosofia mudou totalmente, porque o problema agora já
é outro: o Cristianismo introduz algo muito mais radical do que a
mudança, a variação, a kinesis helênica.
O cristão pensa que o mundo foi criado; já a idéia
de criação é alheia ao pensamento grego. Os gregos,
olharão a natureza, a physis, e vão procurar explicá-la,
farão cosmogonias, para explicar a origem do mundo, mas a idéia
de criação é alheia ao pensamento grego. Existe, inclusive,
um caso particularmente elucidativo que é o de Plotino, o grande
pensador neoplatônico, que com certeza recebeu influência cristã.
Essa influência levou-o a pensar algo que tem certa analogia com a
idéia de criação: é o que ele chamará
de emanação. Chamará o princípio capital de
Uno [Uno-em-Si], mais ou menos o equivalente à divindade, produzindo
todo o restante por emanação. Há muitas metáforas,
há uma série de imagens, por exemplo, a de uma luz que vai
iluminando, que vai se difundindo até que acaba na névoa.
Há diferentes formas de entender isso, mas o fundamental é
que a emanação é a produção de tudo o
que não é o Uno a partir do Uno, que emana Dele.
Este
é o conceito de emanação, que não é criação.
Já o Cristianismo afirma a criação: no princípio
Deus criou o céu e a Terra, e criou-os do nada; não de Si
próprio, não é a emanação, não
é a fabricação do mundo com uma matéria-prima
já existente; e, sim, que Deus põe em existência uma
realidade nova, diferente d’Ele, por amor efusivo. Este é,
digamos, o motivo da ação criadora de Deus, e evidentemente
está ameaçado pelo nada, isto é, o problema está
em que poderia não haver nada. Não é a mudança
de uma coisa para outra, não é o problema da kinesis
grega, mas algo bem mais radical: o real está ameaçado pelo
nada, pois poderia não haver nada. E Deus pôs o mundo em existência.
Isso,
com certeza, é um grau de radicalismo maior do que o que se dá
no pensamento grego, ou seja, o pensamento grego parte do pressuposto de
que as coisas já estão aí. Uma pergunta crucial: por
que há algo, e não somente o nada? É a formulação
que Leibniz fará, e mais tarde Unamuno, e em terceiro lugar, Heidegger.
Em geral, Unamuno é esquecido, mas ele diz isto e muito energicamente.
Primeiramente,
isso corresponde à atitude que se iniciou com o Cristianismo, no
qual o problema radical é justamente a realidade da criatura e do
Criador. Não se esqueçam de que é problemático
empregarmos – e durante toda a História se emprega –
a palavra ser aplicada a Deus e à realidade criada –
às coisas, aos homens, aos astros, a tudo o que encontramos. Porque
ser criador é radicalmente diferente de ser criatura. Pode-se aplicar
a palavra ser também a Deus. Como dizia Aristóteles
o ser se diz de muitas maneiras (depois concretiza em quatro maneiras),
e há ainda o problema da analogia do ente: o ente se diz de muitas
maneiras, mas todas têm uma referência comum, ele vai encontrar
precisamente o fundamento da analogia na idéia de substância,
da ousia. Ora, falamos do ser criatura, do ser
criador e do ser de Deus. A analogia – se é que há
a analogia – é enorme. É de um grau de intensidade muito
maior do que a analogia que existe entre as diferentes formas do ser,
digamos, criado (que para Aristóteles não é criado).
Como
podem ver, estabelecem-se aqui problemas sumamente graves, problemas muito
delicados. Pois bem, Agostinho foi o primeiro filósofo que assume
o embasamento geral do Cristianismo, que faz uma Filosofia cristã
(quando se fala de Filosofia cristã, não quer dizer que a
Filosofia cristã esteja determinada, não há nenhuma
Filosofia que seja cristã nesse sentido, o que ocorre é que
pode haver várias Filosofias que sejam cristãs, pelo menos
podendo ser conciliáveis com o Cristianismo. Eu, quando se discutia
sobre Filosofia cristã, dizia sempre: Filosofia cristã é
a Filosofia dos cristãos enquanto tais).
O
cristão tem uma visão da realidade condicionada por sua condição
de cristão, e assim, vê coisas que os outros não vêem,
interessa-se por questões e problemas que os outros não se
interessam. E, naturalmente, dessa situação, dessa instalação
do Cristianismo, pode nascer precisamente uma Filosofia, ou uma outra, ou
uma terceira ainda. Há muitas Filosofias feitas por cristãos
como tais, que nascem da situação em que se encontram, da
maneira de ver o real que o cristão tem. E são Filosofias
cristãs, e podem ser várias, e bem diferentes uma da outra.
Por que não?
O
primeiro grande filósofo, o primeiro filósofo criativo que
assume esses pressupostos, que partiu do Cristianismo, foi Santo Agostinho.
Mas as coisas não são assim tão simples, porque Santo
Agostinho não começou sendo cristão. Nasceu no Norte
da África, perto de Cartago. Seu pai era pagão, sua mãe,
Santa Mônica, era cristã, e depois foi canonizada. Santo Agostinho
foi pagão durante muitos anos; teve um momento inclusive em que se
aproximou das Escrituras, mas encontrou algo pouco interessante e superficial,
e não se interessou, não se tornou cristão. O que tinha
era uma adesão muito entusiasmada à doutrina de Manes, ao
Maniqueísmo. Manes foi uma figura primariamente religiosa, muito
complexa, muito complicada. Viajou por diferentes lugares, teve uma vida
muito agitada, recolheu elementos de muitas doutrinas, dentre elas o Cristianismo.
De certo modo, poderia ter sido uma das muitas heresias do Cristianismo
que floresceram na época, mas teve sobretudo uma influência
da religião de Zoroastro, da religião que se estabeleceu principalmente
na Pérsia, e que era um dualismo, um dualismo energicamente afirmado
entre o bem e o mal, a luz e as trevas, Deus e o diabo. Esta dualidade,
para Manes, é insuperável. Isso dá, digamos, uma estrutura
profundamente dramática à questão do real, o que emocionou
Santo Agostinho.
E
viveu uma fase bastante longa com essa convicção, digamos,
muito dramática do real, com esta impressão conflitante da
luta entre o bem e o mal; isto deixou uma marca que se fará notar
em sua Teologia, mais que em sua Filosofia. Na Teologia, a perspectiva desse
caráter dramático não é alheia ao Cristianismo;
para o cristão, a vida humana tem um desenlace, isto é: a
possibilidade de salvação ou de condenação é
uma verdade. O fato de que agora estejam tentando esquecer e liquidar isso
é um erro absurdo. Mas, em última análise, o Cristianismo
naturalmente afirma a infinita superioridade de Deus; por conseguinte, em
última instância, o bem é a realidade suprema, e será
sempre triunfante. De modo que há evidentemente um caráter
dramático, de maneira tal que o desenlace está aberto às
duas possibilidades: de salvação ou de condenação.
Como podem ver, a atração exercida por Manes é justificável,
é compreensível.
Agostinho
continuava – estava na Itália: em Roma; e depois em Milão
– sem ainda ser cristão, mas seguia as orações
e as homilias do bispo Santo Ambrósio [que sempre dizia a respeito
de Deus: Adiutor meus et susceptor meus. (Tu és minha ajuda
e meu sustento.)], uma figura muito importante da Igreja naquela época.
E Agostinho teve um momento de crise, foi quando ouviu uma voz, uma voz
de criança, que lhe disse: Tolle, lege (Toma e lê).
Então, voltou às Escrituras, abriu o Novo Testamento,
encontrou uma passagem, leu e isto lhe causou uma impressão muito
profunda, e teve uma forte crise, e daí se aproximou do Cristianismo.
Mas ainda demorou algum tempo para ser plenamente cristão. Quis se
batizar, e mais tarde acabará sendo o bispo de Hipona e uma grande
figura da Igreja. Viveu em um desses territórios romanizados, cristianizados,
que depois foram cobertos pela grande onda islâmica e deixaram de
ser cristãos e passaram a ser países de língua e de
cultura árabe, de religião islâmica. Mas nesse momento
era a grande figura da Igreja do Norte da África, mais precisamente
de Hipona.
Portanto,
houve uma evolução. Era um homem que tinha sido pagão,
que viu o mundo com olhos pagãos, que viveu no império romano
tardio, num momento de profunda crise: a pressão dos bárbaros
já ameaçava a destruição de Roma. Viu o mundo
com olhos pagãos, foi o último grande homem antigo. Mas, ao
mesmo tempo, foi o primeiro grande pensador, o primeiro grande filósofo
cristão, que anunciará uma nova era, uma nova época.
O contexto histórico de Santo Agostinho é único, absolutamente
extraordinário, e, junto com sua personalidade forte e apaixonada,
reflete-se em seu pensamento. Era, além do mais, um escritor esplêndido;,
a obra de Santo Agostinho, muito copiosa, é extremamente importante.
Mas,
naturalmente, o que nos interessa aqui é ver como ele viveu essa
situação. Ele sente aquela atitude típica de convertido.
Há um texto de Santo Agostinho muito expressivo: Sero te amavi,
pulchritudo tam antiqua et tam nova (Tarde te amei, ó beleza
tão antiga e tão nova). Ele tinha consciência de ter
amado tarde a Deus, descobriu-O tarde, converteu-se sendo já um homem
adulto. Ou seja, é uma atitude de um homem que está, repito,
saindo de uma forma de vida, de uma época histórica, e entrando
em outra. Essa atitude visceral de súplica é, em Santo Agostinho,
fundamental. É ela que o faz descobrir – e é afinal
a grande descoberta de Santo Agostinho – a intimidade. O homem grego
mal conhecia a intimidade. É claro que houve o oráculo de
Delfos, que disse gnothi s’auton (conhece-te a ti mesmo).
Isso estará em Sócrates, e aparecerá também
em Platão e em Aristóteles. Inclusive, os gregos raramente
diziam eu; diziam nós.
A
grande descoberta, a maior, de Santo Agostinho é a intimidade. E
quando ele se questiona, diz: Deum et animam scire cupio (Quero
conhecer a Deus e à alma). Nihil aliud, nada mais, absolutamente
nada mais. É uma sentença que um grego jamais poderia empregar.
A alma é, em última análise, a grande descoberta de
Agostinho, a alma entendida como intimidade. E fala justamente do espiritual.
Espiritual não quer dizer não-material; há uma tendência
muito freqüente de entender o espiritual como aquilo que não
é material. E não é disso que se trata, mas de algo
muito importante: espiritual é aquela realidade que é capaz
de entrar em si mesma, o poder entrar em si mesmo é o que dá
a condição de espiritual, não a não-materialidade.
A insistência no imaterial ocultou o que é essencial, que é
precisamente a capacidade de entrar em si mesmo.
Por
isso, Santo Agostinho dirá: Noli foras ire, in teipsum redi:
in interiore homine habitat veritas. Não vá fora, entra
em ti mesmo: no homem interior habita a verdade. Essas palavras são
de uma enorme relevância, são até de um extraordinário
valor literário. É disso que se trata: do homem interior.
A descoberta é a interioridade, a intimidade do homem. E é
justamente Santo Agostinho quem vai perceber que quando o homem fica apenas
nas coisas exteriores, esvazia-se de si mesmo. Quando entra em si mesmo,
quando se recolhe à sua intimidade, quando penetra precisamente naquilo
que é o homem interior, o mundo interior – naturalmente existe
um mundo exterior também, mas o decisivo é o mundo interior
– é justamente aí que Deus se encontra. É aí
que se pode encontrá-Lo, e não nas coisas, não imediatamente
nas coisas. Primariamente, por experiência, em algo que é justamente
sua imagem. Para Santo Agostinho é preciso levar a sério que
o homem é imago Dei, imagem de Deus. É evidente que
para encontrar a Deus, o primeiro passo, e o mais adequado, será
buscar sua imagem, que é o homem como intimidade, o homem interior.
Isso
é o principal. E toda sua obra terá esse caráter. Um
dos livros capitais é As Confissões, que, em um certo
sentido, é o mais importante. Então, o que são essas
Confissões? É um livro que não existe no mundo antigo,
não há nada equivalente. Se os senhores quiserem algo que
pudesse ter uma remota semelhança, seriam as Meditações
ou Reflexões, de Marco Aurélio. Mas não é
um livro de intimidade, é um livro de recordações,
um livro de gratidão; ele diz o que deve aos antepassados, aos professores...
Essa entrada na intimidade, no mais profundo de si mesmo, em confissão
– a palavra é confissão – é uma autobiografia.
Esse é precisamente o pensamento de Santo Agostinho: consiste primariamente
em mostrar, em descobrir sua própria intimidade. Ele exterioriza
em seu livro, em uma manifestação oral, o homem interior,
sua própria intimidade. Essa é a grande descoberta, que começa
com ele, e naturalmente depois será uma aquisição da
Humanidade.
É
interessante ver como a Humanidade vai adquirindo coisas. Com Santo Agostinho,
a Humanidade adquire o sentido da intimidade, o sentido do que é
o homem interior, a possibilidade de entrar em si mesmo e aí buscar
precisamente a Deus. Por isso, ele tem fórmulas brilhantes, fórmulas
de pensamento religioso e ao mesmo tempo filosófico. Como quando
diz: credo ut intelligam, creio para entender. A fé, justamente
para entender. Os senhores sabem que o Cristianismo é uma religião
teológica – outras religiões não são teológicas
– o Cristianismo é um conhecer a Deus: quem é, como
é... Portanto, requer a compreensão. Um seguidor de Santo
Agostinho, Santo Anselmo, fala da operosa fides e da otiosa
fides: a fé que não procura entender é uma fé
ociosa. A verdadeira fé é uma fé operante, viva, que
procura compreender. Credo ut intelligam, creio para entender;
fides quaerens intelectum, a fé que procura a inteligência.
Portanto, em Agostinho, a grande descoberta foi esta, de ver o mundo e de
ver a realidade na perspectiva da intimidade. Do ponto de vista, portanto,
de quem eu sou. Nec ego ipse capio totum, quod sum. Nem eu mesmo
compreendo tudo aquilo que sou. É uma realidade que não acaba
de se manifestar, que é algo no qual sempre se pode aprofundar, que
é preciso ir mais além; e, por isso, a forma de se descobrir
é precisamente contá-lo, fazer uma autobiografia, uma confissão,
pois é nela que aparecerão precisamente as visões da
realidade, da realidade que, se basicamente é dele – de Agostinho
– é também, do homem em geral, e por meio dele dá
acesso a Deus.
A
Deus, Agostinho dedicará outro livro fundamental, que em um certo
sentido é mais o importante: o De Trinitate, Sobre a Trindade.
E há um terceiro grande livro, o extraordinário De Civitate
Dei, que é o livro no qual levanta o problema da Cidade de Deus
e da cidade terrena, no momento da crise do Império Romano, ameaçado
pelos bárbaros – por Alarico – que está em plena
crise, e que é uma realidade deficiente do ponto de vista cristão,
mas grandiosa, extraordinária...
Curiosamente,
esse entrar em si mesmo, essa relação com a intimidade, o
levará à superação do ceticismo. Lembrem que
a Academia platônica perdeu seu vigor criador, metafísico,
depois de Platão, mas continuava existindo e era uma escola de céticos:
os acadêmicos. Ele escreveu um tratado contra os acadêmicos,
contra os platonizantes, que não era o mesmo que platonismo. Pois
bem, é curioso como ele se opõe justamente a esse ceticismo
dominante na Academia, e é extremamente interessante que ele faça
um apelo à evidência, e, portanto, ao pensamento: eu penso;
eu posso errar; posso me enganar; mas não posso duvidar de que existo,
porque se me engano então existo, porque só existindo é
que posso me enganar. Isto é, eu não posso duvidar precisamente
porque é evidente minha realidade pensante.
Isso
é exatamente – em termos muito parecidos, embora com outros
pressupostos e com um alcance diferente – o que será o núcleo
do pensamento de Descartes. Cogito, ergo sum (Penso, logo existo).
Sou uma res cogitans, sou uma coisa que pensa. E é curioso
que foi precisamente com Descartes que iniciará outra grande época
do pensamento. Se dividirmos o pensamento filosófico em grandes épocas,
teremos a grega, com sua prolongação romana (que não
é original e depende do pensamento grego). Depois, vem o pensamento
cristão, que começa em forma plena com Santo Agostinho, e
que irá durar até que aparece o pensamento moderno, o Idealismo,
a doutrina de Descartes. É curioso que justamente o grande momento
inicial do cogito, a operação da evidência,
alcançar o que é absolutamente evidente, um fundamento que
não só não seja duvidoso, mas também indubitável,
algo do qual não se possa duvidar, justamente porque está
na própria evidência do pensamento: palavras muito parecidas
às de Agostinho em De Civitate Dei (A Cidade de Deus).
Outra
coincidência curiosa: o livro que dá início à
Filosofia moderna é o Discurso do Método, de Descartes,
que é também uma autobiografia. É, mais ou menos, um
livro autobiográfico; não é um tratado, não
é uma exposição de tese, é um relato da própria
vida de Descartes. Muito mais curto do que as Confissões
de Santo Agostinho, escrito em francês, é justamente uma narração,
uma exposição de sua própria vida, apoiando-se em um
argumento, que é o cogito, que apareceu de forma diferente,
com propósito diferente, mas com um apelo à evidência
radical, como em Santo Agostinho.
Com
isso, se diz que a Filosofia com a qual se inicia uma nova época,
a grande época da Filosofia moderna, está assentada, está
condicionada pelo agostinismo em dois sentidos: na relação
com a evidência do pensamento, por um lado, e, por outro, o caráter
autobiográfico, narrativo, porque expositivo da própria vida
nas duas grandes obras: as Confissões e o Discurso do
Método.
Há
ainda uma coisa muito importante: Santo Agostinho iniciou esse estilo de
filosofar, que deu início a uma nova etapa condicionada pelo Cristianismo
como tal, e que terá uma vigência absolutamente espantosa.
Santo Agostinho morreu em 430, e foi a grande figura que dominou todo o
pensamento cristão, absolutamente todo, até mil e duzentos
e tanto, até bem avançado o século XIII.
Durante
oito séculos, Santo Agostinho foi a maior figura dominadora do pensamento
cristão: todos recorriam a ele, todos o respeitavam. Isso tem uma
importância particular, porque, claro, temos esse conceito tão
usado por Ortega, e também por mim, que é de vigência,
que é o vigor. Têm vigência as coisas que devemos ter
em conta. Se querem saber se uma determinada realidade de nossa época
tem vigência ou não, é muito fácil fazer o teste:
se é preciso contar com ela, então tem vigência. Se
podemos ignorá-la, se podemos, por exemplo, não opinar sobre
ela, então, ela não tem vigência. Pois bem, se consideram
o pensamento moderno, a literatura, as formas estilísticas, verão
que têm um certo período de vigência. Se uma forma intelectual,
artística ou literária tem vigência de séculos,
parece algo extraordinário. Santo Agostinho tem oito séculos
de vigência; isso é absolutamente espantoso.
Mas
vejam como é realmente extraordinário, ter uma fecundidade
quase inesgotável, o fato de que Santo Agostinho, com suas proposta
nova, com esse novo estilo de pensar que inaugura, que nasceu precisamente
de uma visão dupla: por um lado viu o mundo com olhos antigos, foi
o grande último homem antigo, mas ao mesmo tempo, por outro lado,
foi o primeiro pensador que parte da situação criada pelo
Cristianismo, condicionada por ele, que vê, portanto, o mundo dessas
duas maneiras. Participou da visão pagã, da tentação
maniquéia, a que cedeu, evidentemente, com grande entusiasmo –
em Santo Agostinho, tudo é especialmente forte – depois é,
naturalmente, de um Cristianismo essencial, apaixonado.
Essa
idéia da intimidade, da personalidade, o levará a dar, por
exemplo, um papel extraordinário ao amor, inclusive filosoficamente.
Ele diz que se a sabedoria é Deus, ou se Deus é a sabedoria,
o verdadeiro filósofo é amante de Deus. Si sapientia Deus
est... verus philosophus est amator Dei. Deus é sabedoria, a
Filosofia é amor à sabedoria, como já o dizia Aristóteles.
Então, para o cristão, o verdadeiro filósofo é
aquele que ama Deus. Confunde-se o amor à sabedoria com o amor a
Deus. E há um outro texto dele também extremamente enérgico:
Non intratur in veritatem, nisi per caritatem. Só se entra
na verdade, pela caridade, pelo amor.
Isto,
naturalmente, leva à afirmação da liberdade. Reparem
que essa descoberta do homem interior, do homem íntimo, da capacidade
que tem, pela condição espiritual, de entrar em si mesmo,
faz com que o homem seja livre. Sua liberdade é absolutamente fundamental,
e, claro, está na própria entranha do Cristianismo: a
verdade vos fará livres. E ele prosseguirá: ama et
quod vis fac, ama e Ama e faz o que quiseres, sentença extremamente
enérgica de Santo Agostinho. Ama e faz o que quiseres. Se repararmos
bem, não está tão longe de Kant.
Ama
e faz o que quiseres; o que quiseres, não o capricho, não
o teu bel-prazer, mas, sim, o que possas querer, o que possas verdadeiramente
querer. Isso está a dois passos da idéia de Kant, para quem
o único bem é a boa vontade. É a única coisa
que é verdadeiramente valiosa para Kant: o que podemos querer. Não
os sentimentos, não o capricho, não, não... Mas o que
possas realmente querer. Ama e faz o que quiseres. Se fazes realmente por
amor, podes fazer o que quiseres. O que possas querer realmente, o que possas
querer amorosamente, por amor. Naturalmente, se se suprime o ama,
destrói-se a frase, como é natural. Não é faz
o que quiseres, o capricho, ou o que te agrade, ou o que te convenha.
Não, não, pelo contrário.
Se
falarmos de estilos na Filosofia, este é um estilo totalmente novo.
A palavra Filosofia, desde Santo Agostinho, quer dizer outra coisa. Os senhores
diriam: mas isso estava claro? Não, é muito raro que as coisas
estejam claras. Se olharmos as coisas que estão aí, que foram
conhecidas, que foram expressas, que foram formuladas, às vezes de
modo genial, com um talento como o de Santo Agostinho, veremos que muitas
vezes passa-se à margem delas. Dizia Aristóteles que a sabedoria
é descoberta e depois esquecida. Sim, e não somente a sabedoria
em geral, mas em cada época. Seria interessante explorar isso, sei
lá, poder-se-ia escrever um livro extraordinário, só
sobre os esquecimentos do homem, sobre as coisas que foram vistas, compreendidas,
entendidas, que uma vez o homem as conquistou, e depois as abandonou, as
esqueceu...
É
curioso como a mudança de pensamento, que poderia
incluir um acréscimo, um acréscimo constante, uma aquisição,
uma incorporação de novas visões, de novas realidades,
a inclusão de verdades novas, raramente é assim. Quando aparece
algo novo, quase sempre aparece com algumas perdas, com esquecimentos, com
falta de algo que já tinha sido conquistado, mas que em certo momento
se debilitou, perdeu o vigor, perdeu a vigência, e assim foi abandonado.
Não
se esqueçam da brevíssima vigência do pensamento mais
genial, talvez o maior de toda a história da Filosofia, que é
o de Platão e de Aristóteles. Como filósofos, provavelmente
sejam os dois cumes da história da Filosofia inteira. Nós
lhes devemos uma proporção quase inimaginável do que
possuímos, e, no entanto, logo após a morte de Platão,
e, depois, logo após a morte de Aristóteles, desapareceu do
horizonte essa forma de pensamento, esses dois cumes extraordinários.
Partiu-se para um outro nível. Há muito tempo, Ortega disse:
a Filosofia é questão de nível. Surpreendi-me
quando ouvi esta frase, mas agora vejo que tem um imenso valor. Efetivamente,
a Filosofia é uma questão de nível. E cada Filosofia
tem o seu nível, e esse nível não é que esteja
dado, chega-se a ele, e pode-se perdê-lo. E, de fato, perde-se uma
e outra vez.
Se
a capacidade de visão, se a capacidade de inovação
de Santo Agostinho tivesse sido conservada ao longo dos séculos,
aonde teria chegado o pensamento, esse pensamento agostiniano, fiel a Santo
Agostinho? Às vezes passivamente fiel, talvez sem o impulso criador
e inovador que Agostinho tinha, mas foi conservado com bastante fidelidade,
com algumas perdas e com certo distanciamento, talvez com esquecimento daquilo
que é mais criador, daquilo que era verdadeiramente o fermento de
Santo Agostinho.
Datas
Importantes
354
- 13 de novembro, nasce em Tagaste, hoje Souk-Ahras, na Argélia (início
dos estudos e primeira experiência como professor de gramática;
primeiro mosteiro agostiniano).
365
- Inicia os cursos de educação geral em Madaura.
370
- Volta a Tagaste.
371
- Transfere-se para Cartago, a fim de estudar Retórica e Artes Liberais.
372
- Morre o seu pai, Patrício (que não era cristão).
Apaixona-se e junta-se a uma mulher.
373
- Lê O Hortênsio, de Cícero. Torna-se maniqueu
[Filosofia religiosa, sincrética e dualística ensinada pelo
profeta persa Mani (ou Manes), que viveu aproximadamente entre 210 e 276
d.C., e que combinava elementos do Zoroastrismo, do Cristianismo e do Gnosticismo.
Esta Filosofia dividia o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo. A
matéria era considerada intrinsecamente má, e o espírito,
intrinsecamente bom, ou seja, o Maniqueísmo consistia basicamente
em afirmar a existência de um conflito cósmico entre o reino
da Luz (o Bem) e o das Sombras (o Mal), em localizar a matéria e
a carne no reino das sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever
de ajudar à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas,
especificamente evitando a procriação e os alimentos de origem
animal.] Provável nascimento de Adeodato, seu filho.
374
- Regressa a Tagaste como professor de Gramática.
376
- Morre um amigo íntimo. Agostinho vai de novo a Cartago como professor.
383
- Vai para Roma (capital do Império Romano), onde continua a docência.
385
- Depois de ganhar a Cátedra de Retórica da Casa Imperial,
por concurso, vai para Milão. Encontra-se com Santo Ambrósio,
Bispo da cidade.
386
- Outono: aos 32 anos, converte-se à fé católica. Passa
alguns meses em Cassicíaco (vila perto de Milão).
387
- Noite da Páscoa (24 - 25 de abril), é batizado em Milão.
Volta à África e morre sua mãe Mônica (Santa),
em Óstia Tiberina, Porto de Roma.
388
- Chega a Cartago e pouco depois a Tagaste. Vende suas posses e funda o
primeiro mosteiro.
391
- É ordenado Sacerdote em Hipona, hoje Annaba, na Argélia.
395
- É Sagrado Bispo Auxiliar.
396
- Sucede ao Bispo Valério em Hipona.
400
- Publica as Confissões.
416
- Publica A Trindade.
426
- Publica a Cidade de Deus (escrita entre 413 e 426).
430
- Genserico ataca Numídia e cerca Hipona. Em 28 de agosto, com 75
anos, Agostinho morre em Hipona.
Obras
de Santo Agostinho
Livros
Da Doutrina Cristã
Confissões
A Cidade de Deus
Da Trindade
Enquirídio
Retratações
De Magistro
Conhecendo a si Mesmo
Cartas
Da
Catequese dos não Instruídos
Da Fé e do Credo
Fé Concernente às Coisas que não se Vêem
Do Benefício da Crença
Do Credo: Um Sermão para Catecúmenos
Da Continência
Da Bondade do Casamento
Da Santa Virgindade
Da Bondade da Viuvez
Da Mentira
Para Consêncio: Contra a Mentira
Do Trabalho dos Monges
Da Paciência
Do cuidado de ser tido pelos mortos
Da Moral da Igreja Católica
Da Moral dos Maniqueístas
Das duas Almas, Contra os Maniqueístas
Atos ou Disputa Contra Fortunato, o Maniqueísta
Contra a Epístola de Maniqueu Chamada Fundamental
Resposta a Fausto o Maniqueísta
Concernente à Natureza de Deus, Contra os Maniqueístas
Do Batismo, Contra os Donatistas
Resposta às Cartas de Petiliano, Bispo de Cirta
A Correção dos Donatistas
Méritos e Remissão do Pecado e Batismo de Crianças
Do Espírito e da Carta
Da Natureza e Graça
Da Perfeição e Retidão do Homem
Dos Procedimentos de Pelágio
Da Graça de Cristo, e do Pecado Original
Do Casamento e Concupiscência
Da Alma e sua Origem
Contra duas Cartas dos Pelagianos
Da Graça e Livre-arbítrio
Da Repreensão e Graça
A Predestinação dos Santos/Dom de Perseverança
O Sermão do Monte de Nosso Senhor
A Harmonia dos Evangelhos
Sermões Sobre Lições Selecionadas do Novo Testamento
Tratados Sobre o Evangelho de João
Sermões Sobre a Primeira Epístola de João
Solilóquios
As Enarrações ou Exposições dos Salmos
Objetivo
do Estudo
Este
estudo, entre outros, teve dois objetivos principais: 1º - divulgar
a excelente conferência de Julián Marías, Los Estilos
de la Filosofía; e 2º - revisitar o pensamento de Santo
Agostinho, basicamente aquele que se encontra em As Confissões,
na Cidade de Deus e em A Trindade. Há alguns anos,
quando cursava o Doutorado em Filosofia, fiz um trabalho exaustivo sobre
as confissões agostinianas (que, como disse o próprio Santo
Hiponense, mais do que confessar
pecados, confessar-se significa adorar a Deus), mas eu o perdi
ou, no meio da minha bagunça, que só eu entendo, não
sei onde o coloquei. Fazer o quê? Gostaria, na verdade, de divulgar
aquele trabalho, mas como isto não é possível, resolvi,
neste passeio espiritual pelo pensamento de Santo Agostinho, garimpar e
arrolar algumas de suas melhores reflexões (com ligeiras edições
para acomodá-las a este tipo de estudo), e que serão apresentadas
a seguir.
Por
uma questão de honestidade e de esclarecimeto, devo informar que
não concordo com todos os excertos que coligi, mas, no que tange
ao misticismo agostiniano, subscrevo todas as reflexões do Santo
Tagastense. Isto não é um absurdo, porque a visão de
Santo Agostinho é religiosa, teológica e fideísta,
e a minha é mística, esotérica e iniciática.
Mas também não posso deixar de registrar minha admiração
por este Santo católico. E quem pensa que há mais discordâncias
do que conformidades entre religião e misticismo está redondamente
enganado. Cito apenas um exemplo de concordância, uma espécie
de décimo primeiro mandamento: não serás um sacanocrata
maledíctus explorador dos probres, dos miseráveis
e dos desvalidos.
Fragmentos
do Pensamento
(íntimo e confessional)
de Santo Agostinho
|
O
Batismo de Santo Agostinho
Bento Coelho da Silveira (1706)
Óleo sobre tela (200 cm x 222 cm) |
Tarde
Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde Vos
amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu, lá fora, a procurar-Vos!
Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis
comigo e eu não estava Convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo
que não existiria, se não existisse em Vós. Porém,
chamastes-me, com uma Voz tão forte, que rompestes a minha surdez!
Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes
Perfume: respirei-o, a plenos pulmões, suspirando por Vós.
Saboreei-Vos e, agora, tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi,
no desejo da Vossa Paz.
Deus
não é para se compreendido, mas para ser adorado!
Recebe, Senhor, o sacrifício
destas confissões, por meio desta língua que me destes e que
excitas, para que louve o Teu Nome... Louve-Te minha alma, para que possa
chegar a amar-Te; que Te confesse todas as Tuas misericórdias e por
elas Te louve. Não cessa em Teu louvor, nem cala Teus louvores, a
criação inteira; nem as cala o espírito, que fala pela
boca de quem se converte a Ti... Permita-me, no entanto, falar ante Tua
misericórdia, a mim, que sou pó e cinza; deixa-me falar, pois
falo à Tua misericórdia e não a um homem escarnecedor
que pode rir-se de mim. Talvez apareça risível ante Teus olhos,
mas Tu te voltarás a mim cheio de misericórdia.
Deus
é, sem dúvida, uma substância ou (se o termo for mais
adequado) uma essência, a qual os gregos denominavam de 'ousia'...
Outras substâncias ou essências admitem acidentes, causas de
pequenas ou grandes mudanças. Deus, porém, não é
suscetível de acidentes, e, por isto, Nele existe unicamente uma
substância ou essência imutável.
Assim
como se diz que a Trindade2
é um só Deus grande, bom, eterno, onipotente, pode-se dizer
igualmente que ela [a
Trindade]
é sua própria deidade, grandeza, bondade, eternidade e onipotência.
Com
a ajuda de Nosso Deus e Senhor e conforme nossa capacidade, empreenderemos
a tarefa que nos pedem, e assim demonstraremos que a Trindade é um
só e verdadeiro Deus, e quão retamente se diz, se crê
e se entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma só
e mesma substância ou essência. Assim não poderão
afirmar, por assim dizer, que enganamos os adversários com nossas
pretensões. Mas que se convençam pela própria experiência
de que existe aquele Sumo Bem, só visível às mentes
puras. E se eles não podem compreender, é porque o limitado
olhar da inteligência humana não é capaz de se fixar
nessa Luz sublime, se não for alimentado pela justiça fortalecida
pela fé.
Duas
ou três pessoas não são maiores do que uma delas, afirmação
ininteligível para a nossa experiência carnal que somente compreende
as realidades criadas. Mas na essência da verdade, que é Deus,
ser maior equivale a ser mais verdadeiro. Por conseguinte, onde a grandeza
é a mesma verdade, o Pai e o Filho juntos não superam em verdade
o Pai e o Filho sozinhos; logo os dois juntos não são maiores
do que um só deles em particular. Nos corpos, é possível
que este ouro e aquele outro ouro sejam igualmente verdadeiros, e um, ainda
assim, ser maior do que o outro, porque neste caso não é a
mesma coisa a magnitude e a verdade. O mesmo acontece com a alma humana,
onde a grandeza do espírito não se mede pela verdade da alma;
e a essência do ouro ou da alma humana não é a essência
da verdade, como ocorre com a Santíssima Trindade: um só Deus,
grande, verdadeiro, veraz e verdade.
Mas
quem ama o que desconhece? Pode-se conhecer algo e não o amar; pergunto,
porém, se é possível amar algo que se ignora, porque
se isso for possível, ninguém é capaz de amar a Deus
antes de o conhecer. E o que é conhecer a Deus, senão o contemplar
e perceber com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um
corpo para que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos
corporais.
Se
procurarmos o que possa existir de superior..., e se investigarmos a verdade,
encontraremos que esta verdade é Deus, ou seja, não uma natureza
criada, mas criadora.
Uma
coisa é não ter mais febre; outra é a convalescença
da fraqueza provocada pela febre. E ainda, como uma coisa é retirar
do corpo uma seta nele cravada, e outra, curar por um bom tratamento o ferimento
por ela causado. Assim, também, o primeiro grau de cura da alma é
remover a causa do incômodo – o que acontece pela remissão
de todos os pecados. O segundo grau será curar o próprio ferimento,
o que se faz lentamente com o progresso realizado na renovação
da imagem interior.
A
relação de um para dois tem sua origem no número três.
Com efeito, um mais dois são três, mas o total dos ditos números
faz-nos chegar a seis, já que um mais dois mais três são
seis. Afirma-se que este número [o
seis]
é perfeito porque é completo em suas partes. Encerra em si
as três partes: a sexta e a terceira partes e a metade, e nele não
existe outra parte equivalente a estas. Sua sexta parte é a Unidade;
e terceira equivale a duas; e a metade, a três. O um, o dois e o três
integram o seis.3
Que
orações dos homens devem os demônios apresentar aos
deuses – as mágicas ou as lícitas? Se são as
mágicas, eles não as aceitam; se são as lícitas,
eles recusam tais intermediários.
Prefiro
os que me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem.
Ainda que fujas do campo para a cidade
ou da rua para a tua casa, tua consciência vai sempre contigo. De
tua casa só podes fugir para teu Coração. Todavia,
para onde fugirás de ti mesmo?
Senhor,
criaste-nos para Vós, e nosso coração não terá
paz enquanto não repousar em Vós.
Ó eterna verdade, verdadeira
caridade e cara eternidade! Tu és o meu Deus; por Ti suspiro dia
e noite. Desde que Te conheci, Tu me elevaste para ver que quem eu via,
era, e eu, que via, ainda não era. E reverberaste sobre a mesquinhez
de minha pessoa, irradiando sobre mim com toda a força; e eu tremia
de amor e de horror. Vi-me longe de Ti, no país da dessemelhança,
como que ouvindo Tua voz lá do alto: — 'Eu sou o alimento dos
grandes; cresce e comer-me-ás. Não me mudarás em ti,
como o alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim'.
O
que realça o mérito da virgindade de Maria, não é
somente o fato de que Jesus Cristo, tendo nascido dela, tenha sido o seu
guardião antes de qualquer contato que viesse a ter com o esposo;
o fato é que esta virgindade já havia sido, de sua parte,
consagrada a Deus antes que o Salvador a tivesse escolhido como Mãe.
A
ignorância mais refinada é a ignorância da própria
ignorância.
Com
a corrupção morre o corpo; com a impiedade morre a alma.
Geralmente
suspeitamos dos demais o que sentimos em nós.
Quanto
à afirmação de Platão de que filósofo
é o que ama a Deus, nada há mais claro nas escrituras.
A
função da perfeição é fazer com que cada
um de nós conheça a sua imperfeição.
Quem é bom é livre,
ainda que seja escravo. Quem é mau é escravo, ainda que seja
livre.
Se
queres conhecer a uma pessoa, não lhe perguntes o que pensa, mas,
sim, o que ela ama.
Que
é, pois o tempo [clima]?
Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem
me pede, não sei.
O Pai é espírito e
o Filho é espírito; o Pai é santo e o Filho é
santo. Todavia, o Espírito Santo é que é propriamente
assim chamado como sendo a Santidade substancial e consubstancial [tem
a mesma substância, natureza ou essência] de ambos.
Ninguém
pode ser perfeitamente livre até que todos o sejam.
Uma
coisa é ter percorrido mais uma vez o caminho; outra, é ter
caminhado mais devagar.
Não
existe natureza alguma – mesmo a do mais vil inseto – que não
haja sido criada por Aquele de quem procede toda medida, toda beleza, toda
ordem, bases indispensáveis de toda concepção, de todo
pensamento.
Não
te disperses. Concentra-te em tua intimidade. A verdade reside no homem
interior.
Acontece
por isso que, não obstante a enorme variedade dos povos, espalhados
por toda Terra, com religiões e costumes tão diversos, diferentes
pela multiplicidade das línguas, das armas e dos vestidos, apenas
existem duas espécies de sociedades humanas, ou para lhes chamar
como na Sagrada Escritura, duas cidades. Uma é constituída
pelos homens que querem viver segundo a carne, a outra pelos que querem
viver segundo o espírito, cada uma delas na sua paz própria,
paz que conseguem quando obtêm aquilo que desejam.
Ora,
é preciso reconhecer: a alma fica impressionada pela vista de objetos,
sejam superiores, sejam inferiores, de tal modo que a vontade racional pode
escolher entre os dois lados o que prefere. E será conforme o mérito
dessa escolha que se seguirá para ela o infortúnio ou a felicidade.
Não
podes ser bom amigo dos homens, se primeiro não o fores da verdade.
Visto
que o demônio se apresentou ao homem como exemplo de orgulho, o Senhor
se apresentou a nós como exemplo de humildade e com a promessa de
vida eterna.
Dois
amores fundaram duas cidade, a saber, o amor próprio levado ao desprezo
de Deus, a terrena; o amor de Deus levado ao desprezo de si próprio,
a celestial... A natureza pervertida pelo pecado engendra os cidadãos
da cidade terrena; a graça , que liberta a natureza do pecado, engendra
os cidadãos da cidade celeste.
O
homem é uma alma racional que se serve de um corpo mortal e terrestre.
Pois, realmente, aquele que quer,
por certo quer alguma coisa. E ele não poderia querer esse intento
se não lhe fosse assinalado exteriormente pelos sentidos ou se não
tivesse sido apresentado a seu espírito de alguma maneira secreta.
Só
Deus pode ter o conhecimento do futuro. Nenhuma arte existiria para prevê-lo.
Atrevo-me
a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse,
não haveria tempo futuro, e, se agora nada existisse, não
teríamos tempo presente.
Desde
que entramos neste corpo mortal, a morte nunca mais deixou de estar a vir...
O tempo que se vive é vida que se corta, e cada dia que passa é
menos vida que nos fica. O tempo da nossa vida é caminho para a morte,
onde não está previsto um segundo de atraso... Se começarmos
a morrer logo que, em nós, começa a atuação
da morte, deve se dizer que começamos a morrer logo que começamos
a viver... Consumida a vida, está concluída a morte que se
vinha realizando, a pouco e pouco. Por isto, o homem nunca está propriamente
em vida: é mais um morto do que um vivo – já que não
pode estar simultaneamente morto e vivo.
É
impróprio afirmar que os tempos são três: passado, presente
e futuro. Mas, talvez, fosse próprio dizer que os tempos são
três: o presente das coisas passadas..., o presente das coisas presentes...
e o presente das coisas futuras... Existem, pois, na minha mente, três
tempos que não vejo em outra parte: lembrança presente das
coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança
presente das coisas futuras.
Que
a alma mutável possa se contemplar, comprazer-se de certa maneira
em si mesma, na contemplação da suprema sabedoria, a qual
sendo imensa não é a própria alma, isso vem de que
ela, por não ser igual a Deus, possui entretanto belezas que, depois
de Deus, podem encantá-la.
Por
que... a Igreja não deveria usar de força para compelir seus
filhos perdidos a retornar, se os filhos perdidos compelem outros à
sua própria destruição?
Os
Judeus que O assassinaram, e não criam Nele, porque coube a Ele morrer
e viver novamente, foram ainda mais miseravelmente assolados pelos romanos,
e completamente expulsos de seu reino, onde estrangeiros já tinham
dominado sobre eles, e foram dispersos pelas terras, e são, assim,
por suas próprias Escrituras, um testemunho para nós de que
não forjamos as profecias a respeito de Cristo.
Poderão ainda dizer que as
estrelas indicam, mas não realizam acontecimentos. É como
se a sua posição fosse uma linguagem de predizer o futuro.
Não é assim que os astrólogos costumam falar. Não
dizem, por exemplo: — Esta posição de marte anuncia
um homicida, mas faz um homicida. Concedamos, porém, que eles não
falam como devem e que deviam tomar dos filósofos a sua maneira de
falar para anunciar os acontecimentos que julgam descobrir na posição
dos astros.
Não é absolutamente
absurdo admitir que mudanças, mas apenas quanto a diferenças
do corpo, sejam devidas à influência sideral. Vemos, assim,
que o Sol, pela sua aproximação ou afastamento, provoca as
estações do ano; a Lua, conforme vai para a crescente ou para
a minguante, assim faz crescer ou minguar certas categorias de seres, tais
como ouriços do mar e as conchas, e ainda as maravilhosas marés
do oceano.
Quando
tratamos de justificar nossas faltas, obscurecemos ainda mais nossa própria
obscuridade.
Alguns
daqueles, contra os quais defendemos a Cidade de Deus, consideram injusto
que, pelos pecados cometidos, por muito graves que sejam, sem dúvida,
em um curto espaço de tempo, alguém seja condenado a uma pena
eterna – como se a justiça legal vez alguma tomasse isso em
consideração, para impor a cada um uma pena proporcional ao
tempo que o delito levou a cometer. Escreve Cícero que nas leis há
oito gêneros de penas: a multa ('damnum'), a prisão ('vincula'),
os açoites ('verbera'), o talião, a ignomínia, o exílio,
a morte e a servidão. A não ser a de talião, qual destas
é a que restringe a sua duração à brevidade
própria de cada delito, de maneira a ser punido durante um tempo
estritamente igual àqueles de que se usou para o cometer? Realmente,
o talião exige que cada um pague o que fez. Daí a expressão
da lei: Olho por olho, dente por dente... Conseqüentemente, quem julga
e condena injustamente, se for julgado e condenado justamente, recebe na
mesma medida, embora não receba o que deu. Fê-lo, realmente,
por um julgamento e, por um julgamento, sofre – embora tenha feito,
por condenação, o que é iníquo e por condenação
sofrerá o que é justo.
Todos
os pecados são idênticos em um aspecto: oposição
ao permanente e divino e adesão ao incerto e mutável.
Há
motivos para crer que, se os astrólogos dão tantas respostas
surpreendentemente verdadeiras, isso se deve à oculta inspiração
de maus espíritos que põem todo o cuidado em infundir nos
espíritos humanos essas nocivas opiniões acerca das fatalidades
astrais, e de forma nenhuma à arte de examinar os horóscopos.
Tal arte não existe.
Aprova
os bons, tolera os maus e ama a todos.
Vós,
porém, Senhor – justíssimo organizador de tudo –
por meio de um secreto instinto, desconhecido dos consulentes e dos astrólogos,
fazeis que cada qual, enquanto consulta, ouça o que lhe convenha
ouvir, segundo os merecimentos ocultos da sua alma e segundo os abismos
dos vossos incorruptíveis juízos. Que nenhum se atreva a perguntar-Vos:
— Que é isto? Para que é isto? Não vo-Lo pergunte,
porque é um simples homem.
Uma
virtude simulada é uma impiedade duplicada: à malícia
une-se a falsidade.
Como
podes amar o Senhor se amas a farsa e o vinho, as pompas do mundo e suas
vaidades enganosas? Aprende a não amar para que aprendas a amar;
afasta-te, para poderes acercar-te; esvazia-te, para que possas encher-te
de verdade.
Não
se chega à verdade senão através do amor.
Dizem que os irmãos do Egito
recitam certas orações a intervalos muito breves. São
orações curtas e rápidas como flechas disparadas de
um arco, a fim de que a atenção, que é a alma da oração,
não se dissipe nem adormeça pelo cansaço. Com esta
prática, evidenciam que não se deve fustigar a atenção
quando esta não se agüenta; tampouco se deve desistir apressadamente
quando se pode sustentar. Quando persiste o fervor da atenção,
a oração liberta-se de muito palavreado, mas não de
muita persistência. Falar demasiadamente ao rezar é realizar
um ato necessário com palavras inúteis. Em contrapartida,
para instar ao Senhor com empenho, basta suplicar-Lhe com uma longa, contínua
e devota elevação do Coração.
O
supérfluo dos ricos é propriedade dos pobres.
É
certo que muitas coisas más são pelos maus praticadas contra
a vontade de Deus. Mas tão grande é a Sua sabedoria e tamanha
é a Sua virtude que tudo, mesmo o que parece contrário à
Sua vontade, tende para os fins e resultados que Ele antecipadamente viu
como bons e justos. Por isso, quando se diz que Deus muda de vontade, que,
por exemplo, fica irado contra aqueles para quem era brando, não
foi Ele, mas foram os homens que mudaram e de certo modo o acham mudado
nas mudanças que experimentam, tal qual como o Sol muda para os olhos
enfermos – de suave torna-se de certa maneira áspero, de deleitosos
torna-se molesto, embora ele próprio continue a ser o mesmo que era.
Também se chama de Deus a vontade que Ele suscita nos corações
dos que obedecem aos seus mandamentos...
Muitos clamam a Deus pela saúde
dos seus, pela estabilidade de sua casa, pela felicidade material ou por
sua saúde, que é o patrimônio dos pobres. Mas quantos
clamam ao Senhor por Ele mesmo? Pouquíssimos. Todavia, é injusto
desejar qualquer coisa do Senhor e não desejar a Ele mesmo. Pode,
acaso, a doação ser preferida ao Doador?
Andar
por dentro é desejar as coisas de dentro. Andar por fora é
desprezar as coisas de dentro e encher-se das de fora. O orgulhoso lança
fora o que tem dentro; o humilde o busca com afã. A soberba exila
o homem de si mesmo; a humildade o devolve à sua intimidade.
Os
homens estão sempre dispostos a vasculhar e averiguar sobre as vidas
alheias, mas lhes dá preguiça conhecerem-se a si mesmos e
corrigirem suas próprias vidas.
Por
que gostas tanto de falar e tão pouco de ouvir? Andas sempre fora
de ti e te recusas a regressar a ti. O que ensina de verdade está
dentro; mas, quando tu tratas de ensinar, sais de ti mesmo e andas por fora.
Escuta primeiro ao que fala dentro e desde dentro; fala depois aos que estão
fora.
Ninguém
faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.
E
agora reparo que devo me ocupar dos nossos misericordiosos
e pacatamente discutir com aqueles que não querem crer que venha
a haver uma pena eterna nem para todos os homens que o mais justo dos juízes
julgar merecedores do suplício da Geena nem mesmo, para alguns deles.
Julgam que, decorridos certos períodos de tempo, mais longos ou mais
breves, conforme a importância do pecado de cada um, serão
todos libertados. Nesta questão, o mais misericordioso foi com certeza
Orígenes, que acreditou que o próprio Diabo e os seus anjos,
após suplícios mais graves e mais prolongados, conforme as
suas culpas, devem ser tirados dos seus tormentos e associados aos santos
anjos. Mas, não sem razão, a Igreja o condenou por causa disso
e por causa de outros casos, principalmente por causa daqueles períodos
de felicidade e de desgraça, que se alternam sem cessar, e daquele
vaivém sem fim, desta para aquela e daquela para esta, em períodos
fixos de séculos. De resto, ele perdeu aquilo que o fazia parecer
misericordioso, criando para os santos verdadeiros misérias pelas
quais eles sofreriam penas e falsas beatitudes nas quais já não
teriam o gozo do bom sempiterno, verdadeiro e seguro, isto é, certo
e sem receios. Mas quão diversamente, devido ao sentimento humano,
se desencaminha a misericórdia dos que consideram temporais os sofrimentos
dos homens condenados por tal juízo, mas eterna a felicidade de todos
os que, mais cedo ou mais tarde, foram libertados! Se esta opinião
é boa e verdadeira porque é misericordiosa, será tanto
melhor e mais verdadeira quanto mais misericordiosa for. Alargue-se, portanto,
e torne-se mais funda a fonte desta misericórdia até aos anjos
condenados e que sejam libertados das suas penas, pelo menos depois de muitos
e larguíssimos séculos, tanto quantos quisermos! Porque ela
se derrama por toda a natureza humana e, quando chegar à natureza
angélica, logo se estanca? Não ousam, porém, estender
a sua compaixão até chegarem à libertação
do próprio Diabo. Na verdade, se alguém o ousasse, venceria,
sem dúvida, os outros. Todavia, cairia num erro tanto mais exagerado
e contrário ao reto sentido da palavra de Deus, quanto maior sentimento
de clemência julga ter.
Na
maioria das vezes, o homem desconhece a si mesmo. Vítima do descuido
ou da improvisação, ou presume de suas carências ou
desespera de suas possibilidades. Só quando a tentação
o prova com um questionamento de urgência, o homem consegue conhecer
a verdade sobre si mesmo.
Com
o Coração se pede. Com o Coração se procura.
Com o Coração se bate. E é com o Coração
que a Porta se abre.
Os
homens saem para fazer turismo, para admirar o pico das montanhas, o marulho
das ondas dos mares, o fácil e copioso curso dos rios, as revoluções
e giros dos astros. Entretanto, não olham para si mesmos!
Quereis cantar louvores a Deus? Sede
vós mesmos o canto que ides cantar. Vós sereis o seu maior
louvor, se viverdes santamente.
Tens
o que oferecer. Não examines o rebanho, não apresentes navios
e não atravesses as mais longínquas regiões em busca
de perfumes. Procura em teu Coração aquilo que Deus gosta.
O
primeiro passo na busca da verdade é a humildade. O segundo, a humildade.
O terceiro, a humildade. E o último, a humildade. Naturalmente, isto
não significa que a humildade seja a única virtude necessária
para o encontro e o gozo da verdade; mas se as demais virtudes não
estiverem precedidas, acompanhadas e seguidas da humildade, a soberba abrirá
caminho e destruirá todas as boas intenções.
Mas
eu, adolescente desventurado em extremo, tinha chegado a pedir-Te a castidade
dizendo: Senhor, dai-me a castidade e a continência... Mas não
agora!
A
lei, ao proibir o pecado, de alguma forma o reforça. A proibição
aumenta o desejo de pecar, quando o amor não é suficientemente
forte para superar a atração do desejo pecaminoso.
A
ignorância mais refinada é a ignorância da própria
ignorância.
Estou
que, com o auxílio de Deus e com esta imensa obra, saldei a dívida
contraída. Que me perdoe quem achar que eu disse pouco ou demasiado.
E quem estiver satisfeito não dê, agradecido, graças
a mim, mas a Deus comigo. Assim seja.
______
Notas:
1. Patrística
é o nome dado à Filosofia Cristã dos primeiros séculos,
elaborada pelos Pais da Igreja e pelo escritores escolásticos. Consiste
na elaboração doutrinal das verdades de fé do Cristianismo
e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e contra as
heresias. Quando o Cristianismo, para se defender de ataques polêmicos,
teve de esclarecer os próprios pressupostos, apresentou-se como a
expressão terminada da verdade que a Filosofia Grega havia buscado,
mas não tinha sido capaz de encontrar plenamente, enquanto a Verdade
mesma não tinha ainda se manifestado aos homens, ou seja, enquanto
o próprio Deus não havia ainda encarnado e não existia
ainda o Senhor. De um lado se procura interpretar o Cristianismo mediante
conceitos tomados da Filosofia Grega, do outro reporta-se ao significado
que esta última dá ao Cristianismo. A patrística divide-se
geralmente em três períodos: 1º) até o ano 200
dedicou-se à defesa do Cristianismo contra seus adversários
(padres apologistas, São Justino Mártir); 2º) até
o ano 450 é o período em que surgem os primeiros grandes sistemas
de Filosofia Cristã (Santo Agostinho, Clemente Alexandrino); e 3º)
até o século VIII reelaboram-se as doutrinas já formuladas
e de cunho original (Boécio). O legado da Patrística foi passada
à Escolástica (linha dentro da Filosofia Medieval, de acentos
notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às
exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada, então,
como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a cristandade).
2. Santo
Atanásio assim explicava a Trindade: A fé católica
é esta: que veneremos o único Deus na Trindade, e a Trindade
na unidade, não confundindo as pessoas, nem separando a substância:
pois, uma é a pessoa do Pai, outra, a do Filho, outra, a do Espírito
Santo; mas uma só é a divindade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, igual à glória, coeterna à majestade.
3.
Na realidade, seis é o Valor Secreto de três. O Valor Secreto
de qualquer Número (VSN) pode ser calculado pela fórmula:
VSN
= [N x (N + 1)] ÷ 2
na qual
N é o Número que se deseja saber qual é o Valor Secreto.
É por isso que 666 é o Valor Secreto de 36. O único
número que tem por Valor Secreto o próprio número é
o 1, ou seja: [1 x (1 + 1)] ÷ 2 = [1 x 2] ÷ 2 = 2 ÷
2 = 1.
Bibliografia:
SANTO
AGOSTINHO. Confissões. Coleção Os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural, 1973.
_____.
A Cidade de Deus. Tradução, prefácio, nota
biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. Volumes
I e II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
_____.
A Trindade. Tradução do original latino e introdução
por Agustino Belmonte; revisão e notas complementares por Nair de
Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994.
Páginas
da Internet consultadas:
http://www.colcristorei.com.br/
stoagostinho/frases.htm
http://pt.wikipedia.org/
wiki/Patr%C3%ADstica
http://pt.wikipedia.org/
wiki/Escol%C3%A1stica
http://oadbrasil.net/
html/santosagostinianos.html
http://www.cristianismo.org.br/m-nsocrt.htm
http://www.fafich.ufmg.br/
~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
http://haroldovilhena.multiply.com/
journal/item/10
http://www.cancaonova.com/
portal/canais/formacao/internas.php?id=&e=4159
http://www.pensador.info/
autor/Santo_Agostinho/
http://www.frasesfamosas.com.br/
de/santo-agostinho-de-hipona/pag/6.html
http://www.diocesefranca.org.br/
boletim/ago2006/bd-materia5.html
http://brasiliavirtual.info/
tudo-sobre/de-civitate-dei
http://pt.wikipedia.org/
wiki/Juli%C3%A1n_Mar%C3%ADas
http://portodoceu.terra.com.br/
filorelig/agostinho.asp
http://pt.wikipedia.org/
wiki/Agostinho_de_Hipona
http://www.darkrealms.kit.net/
agostinho.htm
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http://pt.wikipedia.org/
wiki/Agostinho_de_Hipona
http://www.csa.com.br/
direcao/santo-agostinho
http://pt.wikipedia.org/
wiki/Manique%C3%ADsmo
Fundo
musical:
Concerto
Nº 5 in D, mov. 1 (Mozart)
Fonte:
http://www.geocities.com/
Vienna/Strasse/2915/midi.html