EXCERTOS ESCOLHIDOS DO
PENSAMENTO DE RUI BARBOSA

Rodolfo Domenico Pizzinga
(http://www.rdpizzinga.pro.br)
Raul Rousso
Fernando César Pimentel Gusmão

Música de fundo: Aquarela do Brasil - Ary Barroso
Fonte: http://www.musicasmaq.com.br/

 

 

        De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.

Rui Barbosa

 

OBJETIVO


     Esta pesquisa pretendeu examinar, ainda que sucintamente, o pensamento social de Rui.

 

Rui Barbosa

 

INTRODUÇÃO

     O presente Trabalho sobre Rui Barbosa (1849-1923) teve por finalidade investigar, de forma sucinta, o pensamento do eminente jurista baiano no que concerne à questão social. Ao término da pesquisa, concordando-se com os pesquisadores consultados, fica evidente que o ponto alto do pensamento de Rui sobre o social, ainda que devedor de uma revisão que não aconteceu, foi alcançado na conferência A Questão Social e Política no Brasil, proferida no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em 20 de Março de 1919, a segunda que pronunciou por ocasião de sua campanha à Presidência da República, campanha que lhe custou, pela segunda vez, a derrota para a suprema magistratura da nação, esta para o candidato Epitácio Pessoa1.

     A pesquisa sobre a ação social de Rui abrangeu diversas fontes. Escolheram-se, para esta investigação, aquelas consideradas mais marcantes, sabendo-se, contudo, estar-se incorrendo, certamente, em um empobrecimento de sua obra. Todavia, sendo ela monumental (totalizando CENTO E VINTE E CINCO volumes), este fato seria inevitável. Os autores esperam, por outro lado, ter correspondido ao pensamento do autor com uma revisitação a mais verossímil possível, e deixar aberta uma vertente para outros pesquisadores interessados nas lucubrações do famoso pensador baiano.

 

Rui Barbosa


BASE JURÍDICA E SOCIAL DO PENSAMENTO DE RUI


     Rui Barbosa foi, além de homem de estado, um pertinaz pesquisador da cultura das idéias acumuladas através dos tempos. Adquiriu em menino e cultivou a vida inteira o hábito de ler e a prática constante de estudar e pesquisar. Hábito e prática, de certa forma, sofrido e dolorosa, pois era prisioneiro de uma hipermetropia, que só viria a ser corrigida anos depois no Rio de Janeiro. Desde os anos verdes, foi educado pelo pai, Dr. João Barbosa de Oliveira, segundo a cartilha do Liberalismo americano, francês e inglês da primeira metade do século XIX2, que acabaria por nortear e balizar sua filosofia jurídica e social e, como pondera Moraes Filho, haveria de orientá-lo até o fim de sua existência. O que se segue foi escrito por volta de 1868 ou 1869, quando Rui era estudante de Direito na Faculdade de São Paulo, e deixa patente sua preocupação com a Democracia e com a liberdade:



     Há diferença profunda entre a democracia socialista de outros tempos, a democracia grega ou romana, e a democracia liberal moderna, a democracia americana ou a suíça. Aquela era a onipotência da multidão, a tirania do número, o absolutismo das maiorias, o aniquilamento do indivíduo. A nossa, a verdadeira democracia, é o governo do povo senhor de si, mas limitado pelo direito, é a representação proporcional das minorias, o reconhecimento de que o direito, ainda que seja de um indivíduo só, não pode sacrificar-se aos interesses, ainda que seja do povo inteiro, é a sagração da propriedade individual, da liberdade da palavra, da liberdade de imprensa, da liberdade de reunião, da liberdade de cultos, da liberdade do Trabalho, da liberdade política. Aquém destas raias o povo é tudo; além delas o povo não pode nada.3



     Observa-se nas convicções esposadas por Rui, que Democracia e liberdade deveriam estar baseadas no homem e, como salienta Moraes Filho, este – o indivíduo – como ilha autônoma, compunha a sua própria esfera da vida.

     Em 1878, com a idade de 29 anos, na qualidade de deputado provincial (em seguida seria eleito deputado geral), pronunciou na sua terra natal longo discurso, repetindo, de certa forma, os mesmos conceitos e posições da época de estudante:


     A liberdade moderna, a liberdade cristã, a liberdade individualista, a verdadeira liberdade, isso de que todo mundo fala, e que bem poucos, neste País, sabem o que é, exclui essa noção perigosa do Estado, que lhe atribui a prerrogativa de intervir em tudo quanto há, de invadir o terreno do direito privado, em nome desse interesse impalpável, dessa mentira que se chama ‘razão de Estado’, ou ‘salvação do povo’. Essa frase funesta sobressaiu sempre no arsenal do despotismo, entre os seus instrumentos de espoliação mais prestadios
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RUI ABOLICIONISTA

 

Rui Barbosa

Fonte:
http://www.ibmcomunidade.com/portinari/galeriadeimagens.htm


     Preliminarmente, quanto a este aspecto, deseja-se ressaltar que Rui formou seu espírito em um ambiente tão profundamente individualista que ainda escravocrata. Apesar de, em 1813, o tráfico de escravos ter sido abolido no papel por lei da Regência de Feijó, era, de certa forma, mais ou menos clandestino e tolerado pelo establishment. Teve Rui, contudo, o exemplo paterno a lhe iluminar o caminho, exaltado no seguinte trecho e reproduzido por Gonçalves:


     ...o que sou, menos o coração em que minha mãe entrou grandemente, dele nasce quase exclusivamente, como a água que corre da água que já correu. Esta palavra que uso, em mim diminuída, era dele, o maior orador que jamais conheci. Esta cabeça que eu tenho, não é mais do que uma apagada sombra da sua. Esta paixão da liberdade, do direito e da justiça, herdou-ma ele, a mais justa das almas, o mais irredutível liberal que eu nunca vi... Ele não morreu: em mim vive, e reviverá, enquanto alguma coisa de mim restar.
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     Soube, portanto, reagir às influências prevalecentes do meio em que nasceu, soerguendo-se muito acima da mentalidade nacional vigente. A escravidão, Rui viu-a de perto, ao mesmo tempo em que pôde sentir, apesar de bem nascido, o sofrimento oriundo das dificuldades financeiras, que sua mãe amenizava com um modesto comércio de doces, auxiliada por um pequeno grupo de escravas, alforriadas, posteriormente, uma a uma, pelo próprio Rui.

     Apesar de não estar incluído entre os maiores expoentes do abolicionismo brasileiro — do qual o mais atuante e uma das figuras mais importantes foi indubitavelmente o advogado, jornalista, monarquista, diplomata, político, orador, poeta e memorialista Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, que chegou a pedir audiência ao Papa Leão XIII, conseguindo do Sumo Pontífice apoio à campanha antiescravagista (nasceu em Recife, PE, em 19 de Agosto de 1849 e faleceu em Washington, EUA, em 17 de Janeiro de 1910) — Rui, nesse particular, recebeu reconhecimento público de seus mais ferrenhos adversários, como é o caso de Raymundo Magalhães Junior, que admitiu ter sido ele sempre um enérgico defensor dos ideais abolicionistas. O próprio Magalhães Junior chegou a afirmar: Um dos momentos mais altos da vida de Rui é a sua participação na campanha abolicionista...6.

 

Joaquim Nabuco

Joaquim Nabuco


     Nove meses antes da libertação total dos escravos, em 28 de Agosto de 1887, em discurso proferido no Teatro Politeama do Rio de Janeiro, Rui afirmou:


     A escravidão é a usura de Shylock; o que ela quer é o coração vivo do homem... Não há direito contra direito; não há propriedade contra liberdade; não há consciência contra consciência. A escravidão é a força; pela força se alojou na lei; pela dialética se desalojará, toda a vez que a mínima falha, imperceptível como um ponto matemático, nos permita cravar-lhe no ferro da coiraça a cunha de um argumento.
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     No artigo 5% Adicionais, de 15 de Maio de 1889, Rui insurgiu-se contra o fisco, por continuar a arrecadar um tributo cuja destinação era a emancipação gradual dos escravos. Tal imposto deveria, há um ano, ter sido suprimido. Em seu lugar, sugeriu Rui a averbação de 5% adicionais em benefício dos libertos, a fim de que pudessem conquistar definitivamente a justa e almejada liberdade. Entendia que a verdadeira emancipação da etnia negra alicerçava-se na posse parcelar da terra, na instrução elementar e nos rudimentos de instrução agronômica, e só a organização de um sistema voltado para esse tríplice aspecto lograria o êxito social reclamado pelas mentes progressistas. Asseverou, ainda, que:


     Declarar abolida a escravidão é dar apenas meia liberdade aos escravos. A parte mais difícil e mais importante da eliminação do jugo servil consiste na redenção intelectual do liberto, na sua educação para o regímen da vida civil pela escola e pelo Trabalho. Instruir essa numerosa classe de cidadãos, e aparelhá-los para o Trabalho inteligente, são duas grandes necessidades, que o Estado não deve confiar exclusivamente à discrição das províncias. Há nessa aspiração elevadas conveniências nacionais, férteis em excelentes resultados.
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     A azáfama de Rui pela abolição da escravatura custou-lhe caro. Acadêmico ainda, estreou na tribuna popular em 12 de Setembro de 1869, com 20 anos incompletos, proferindo, como ele mesmo afirmou, ... a primeira conferência abolicionista, que se ousou em S. Paulo.9 Mais tarde, com o Projeto Dantas, apresentado à Câmara pelo deputado Rodolfo Dantas em 15 de Julho de 1884 (ao qual Rui se referia como meu Projeto) – que encontrou forte oposição e ensejou a dissolução da Câmara em 30 de Julho com convocação de eleições – acabou por conhecer o repúdio de seus pares e o mais profundo ostracismo até o início da República. Só veio a ser reabilitado cinco anos depois, em 15 de Novembro de 1889, quando foi nomeado para o cargo de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda pelo então General Manuel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório.10

     No Trabalho Ruy Barbosa e a Questão Social, publicado na Revista dos Advogados Brasileiros, de dezembro de 1973, Pereira observa que a preocupação de Rui com a situação dos negros não era tão-somente teórica ou acadêmica. Acompanharam-na propostas práticas. Por considerar que a legalidade nacional estragara a etnia escravizada, deixando-a definhar nas senzalas, Rui passou a defender a idéia de uma reforma educacional. Em Pereira está escrito: ... sem negar a importância do humanismo, sugere o ensino diversificado, o ensino objetivo, o ensino profissional, o ensino das ciências exatas, a educação física imprescindível para todos.11

     Sobre o ensino profissional, Rui teve particularmente a oportunidade de se expressar:


     ...a educação industrial representa um dos auxiliares mais eficazes no nivelamento crescente das distinções de classes entre os homens, não deprimindo as superioridades reais, mas destruindo as inferioridades artificiais que alongam dessa eminência as camadas laboriosas do povo, isto é, elevando a um plano cada vez mais alto a ação e o pensamento do operário.
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     Para Rui, o problema acabou por alcançar tal magnitude, que a sociedade estava a dever aos negros, trinta e um anos após o 13 de Maio, uma segunda emancipação. Um dos fundamentos de tal emancipação repousava, segundo ele, em uma reforma educacional, que teve inclusive a oportunidade de propor. Lamentavelmente, tal reforma era incompleta e insuficiente.

     Enfim, no que se possa concordar que Rui tenha padecido do mal filosófico de sua época, que no entender de Oliveira Vianna era o de pensar sobre generalidades13, não se pode deixar de lhe render homenagens por ter ele primacialmente se preocupado e sugerido medidas concretas, todavia insuficientes, para a solução dos problemas sociais do período pós-abolicionista. Nesse sentido, particularmente, Rui não foi um marginal. Sentiu profundamente o sofrimento dos ex-escravos e se solidarizou com eles, propondo um elenco de medidas, que se tivessem sido generosamente ampliadas e fraternalmente implementadas, a posição do negro no Brasil teria tido outro encaminhamento. Reconhece-se, todavia, que, ainda assim, não eram originariamente suficientes.14


RUI E A DEMOCRACIA SOCIAL

 

Rui Barbosa


     Estou, senhores, com a democracia social.15 Afirmação de Rui no Lírico em 20 de Março de 1919. Precedeu-a um posicionamento repelindo o individualismo, exaltando a necessidade de socialização como forma e possibilidade real para se obter a verdadeira igualdade. Ouça-se Rui:


     A concepção individualista dos direitos humanos tem evolvido rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensurável nas noções do individualismo, restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já se não vê na sociedade um meio agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a da coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade humana.
16


     Entretanto, não se pode pretender que, de repente, o Liberalismo econômico e jurídico de Rui se transformasse em um Socialismo radical e revolucionário. Mas, inteligentemente, utilizou na famosa conferência de 20 de Março, o que havia de melhor e mais progressista no Socialismo moderado na pregação das reformas sociais. Justifica suas idéias dizendo: No Socialismo, pois, como em todas as crenças de partido, em todos os sistemas, em todas as teorias, há um fundo verdadeiro com acessórios falsos, ou um fundo errôneo com acidentes justos.17 Todavia, jamais aceitou o igualitarismo. Deixou isso patente em conhecida reflexão de 1920:


     A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. ... atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem ...
[é] blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do Trabalho; e executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do Trabalho, a organização da miséria. Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as suas desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do Trabalho.18

 

     Na conferência do Lírico, com outro enfoque, para que pudesse acontecer e se estabelecer o equilíbrio jurídico no contrato de Trabalho, Rui admitiu a intervenção do Estado em favor da classe operária. E, afirmou, enfaticamente, que com a questão social não se brinca impunemente. Por isso, propôs diversas medidas de profundo alcance social. Ei-las:

     (a) ...seguro obrigatório a todas as indústrias como condição imprescindível à seriedade prática da indenização prometida. (b) ...igualdade dos sexos perante o Trabalho. ... A igual Trabalho salário igual. (c) A lei deve taxar o mínimo à idade operária, assim como ao salário dos menores, e o máximo às suas horas de serviço. (d) A limitação das horas de Trabalho interessa às condições fisiológicas de conservação de classes inteiras, cuja higiene, robustez e vida entendem com a preservação geral da coletividade, com a defesa nacional, com a existência da nacionalidade brasileira. (e) ... urgência de remediar os abusos do Trabalho noturno, com providências, que o vedem, ou o reduzam aos casos de necessidade inevitável, mas sempre debaixo de uma regulamentação restritiva e de uma inspeção real. (f) Segue-se ... a precisão de se atender com sérias medidas a uma das chagas doridas e clamantes da vida industrial: o Trabalho em domicílio, o Trabalho em casa. ... As precauções indicadas, ou adotadas contra esse mal chegam até à proibição absoluta desse regímen de Trabalho. A esta solução me parece que devemos tender. Enganosa creio que seria qualquer outra. (g) ... proteção da operária no mês antecedente e no mês subseqüente ao parto.19

 

     Rui, da mesma forma, expressou sua revolta contra os armazéns de venda, que, estabelecidos para beneficiar a classe trabalhadora, no entender do grande jurista, não passavam de instrumentos de escravização desta às empresas e indústrias nas quais trabalhavam. Apesar de não ter com eles acabado, o Estado, através da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), impôs medidas protetivas ao trabalhador, revelando preocupação com o assunto. Nos anos oitenta, as conquistas trabalhistas, principalmente no perímetro do ABCD paulista, viriam a impor avanços à legislação trabalhista, beneficiando milhões de trabalhadores Brasil afora. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT) tiveram (e têm) relevante papel nestas conquistas.

     Entretanto, deve-se sublinhar e enfatizar, que a Constituição vigente à época de Rui era a Constituição Liberal de 1891, fundamentada nos direitos consagrados no 18º século. As posições adotadas por Rui, e brevemente resumidas anteriormente, suscitaram imediatamente a reprovação de políticos como o senador Soares dos Santos, do Partido Republicano do Rio Grande do Sul e fiel à rígida orientação ortodoxa comtiana agasalhada por Julio de Castilhos, Pinheiro Machado e Borges de Medeiros. Ultraconservador, Soares dos Santos sustentava que contratos bilaterais (os firmados entre patrões e empregados), dispensariam legislação especial para ter validade. Santos argumentava que tais contratos impunham uma revisão da Constituição, para dar poderes ao Legislativo no sentido de adotar as medidas que a classe trabalhadora reclamava. Na aludida Conferência de 1919 Rui mostrou-se francamente revisionista, e afirmou que:

 

     ... as Constituições não podem continuar a ser utilizadas como instrumentos, com que se privem dos seus direitos aqueles mesmos, que elas eram destinadas a proteger e que mais lhe necessitam de proteção. As nossas Constituições... já não correspondem exatamente à consciência jurídica do Universo. A inflexibilidade individualista dessas Cartas, imortais, mas não imutáveis, alguma coisa tem de ceder... ao sopro da socialização, que agita o mundo.20



     Acreditou, também, que o trabalhador brasileiro era favorável a uma revisão constitucional, uma vez que defendia a intervenção da lei nas relações entre o Capital e o Trabalho. Pensava, outrossim, que a revisão da Constituição abriria uma estrada para a união e conciliação nacionais. Enfim, para Rui, só uma ampla reforma constitucional – que só viria a ocorrer em 1926, na qual um dos objetivos foi exatamente o de atender às exigências trabalhistas – poria fim ao que ele denunciou como insalubridade política. Entretanto, nessa ocasião, o Brasil já havia perdido o grande jurisconsulto soteropolitano.

     No que tange ao Capital e ao Trabalho Rui tinha opinião definida. Acreditava que os equívocos do sistema econômico vigente na sua época não eram oriundos do fato de os meios de produção estarem em poder dos detentores de capitais. Os operários não melhorariam, se, em vez de obedecer aos Capitalistas, obedecessem aos funcionários do Estado socializado.21 Para ele, o Capital era a mola propulsora do progresso industrial e do desenvolvimento comercial. Por isso, era mais do que conveniente, era mesmo fundamental, que operários e patrões se entendessem, se aproximassem, de tal sorte que a interferência legislativa se tornasse menos necessária no relacionamento entre as duas classes. Compreendia que Trabalho e Capital não são entidades estranhas uma à outra, que lucrem, de qualquer modo, em se hostilizar mutuamente.22 Enfim, para este binômio, Rui ensinou que, para o sucesso da indústria e para o bem-estar da classe trabalhadora, patrões e operários deveriam formar um agregado indissolúvel, como um organismo cujas partes não podem se separar sem automaticamente se destruírem.

     Também mostrou Rui preocupação com as casas operárias, tema que lhe era caro desde 1892. Invocou a fraternidade humana e o respeito aos direitos humanos, para lembrar que a sociedade não pode permitir que seres humanos vegetem em condições tão indignas. Horrorizava-se que cidades como Rio, Santos e São Paulo agasalhassem favelas, pardieiros e cortiços, pendurados à encosta dos morros e em outros locais, na mais inconcebível promiscuidade que fazia recordar o tráfico de negros. Rui via na moradia dos mais humildes uma grave questão social a ser resolvida pelos filantropos e pelos políticos.

 

Cortiço

 

       Preocupou-se com as finalidades e o alcance social dos projetos para construção de casas para operários, em especial o Projeto no 32, do qual foi relator, em 21 de Outubro de 1892, que isentava de imposto predial os construtores, estimulando, com isso, a construção de casas para os trabalhadores.23 Objetivamente, por considerá-lo inadequado, apesar de, em tese, necessário e bom, apresentou várias emendas para torná-lo mais maleável em sua execução. Sua preocupação, repete-se, era no sentido de evitar o que hoje ainda se vê, e que Pereira assim resumiu: ... vilas operárias em série, construídas de emergência, que transportavam tantas vezes a desumanização das favelas e cortiços para a desumanização dos blocos operários e das vilas sem alma.24

     O referido Projeto era composto de dois artigos. O primeiro isentava de impostos os que construíssem casas operárias com um mínimo de condições de higiene, cujo aluguel mensal não ultrapassasse vinte ou vinte e cinco mil réis. O segundo determinava que se desapropriassem terrenos, num prazo de seis meses, se estes não tivessem sido utilizados para a construção de prédios, e que seriam cedidos aos que se propusessem a contemplar o que determinava o artigo anterior. Rui não hesitou em dar parecer favorável ao Artigo 1º, mas, quanto ao Artigo 2º, considerou-o inadequado, pois determinava a desapropriação, quando, no Brasil estava no nascedouro exatamente o oposto: o processo de apropriação.25

     Finalmente, ainda que não se tenha abordado completamente o pensamento de Rui sobre a questão social, assunto que ele desenvolveu e progrediu tanto em extensão como em profundidade ao longo da vida (ainda que, smj, insatisfatoriamente), deseja-se transcrever um último pensamento do consagrado liberal brasileiro, conclamando todos à conciliação naquele 20 de Março de 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro:


     Mas, para que se consumam providencialmente essas transformações providenciais, cumpre que elas se operem com eqüidade, com bondade, reconstruindo e não destruindo; cumpre que se apóiem, não na cobiça, não na inveja, não no ódio, mas na irmandade, na caridade, na solidariedade, pagando cada camada social, voluntariamente, com sua quota de abnegação, a quota das reparações que às outras camadas se deverem.26

 

     Observa-se, assim, por essas palavras, que Rui, apesar de se constituir em um bravo lutador da causa social, era também, e até se pode dizer principalmente, um conciliador, que, querendo transformações profundas, queria todas elas em um clima de paz, concórdia e fraternidade. Certamente, como previamente já se apontou em algumas notas, há equívocos inconciliáveis em seu pensamento, inquestionavelmente decorrentes de sua afiliação ideológica aos postulados ortodoxos do Liberalismo Clássico, ainda que, sob diversos aspectos importantes, tenha se mostrado, paulatinamente, um moderado progressista e um cientificista em ascensão.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Rui Barbosa

 

     No corpo de sua doutrina liberal Rui foi um ardoroso defensor da liberdade, da Democracia e do respeito à humana dignidade. Lutou – e por isso sofreu inúmeras perseguições políticas – contra a ditadura, contra o arbítrio e os abusos do poder, e foi visceralmente contrário a todas as formas de privilégios. Como lembra Oliveira Vianna, há... o eterno em tudo o que ele praticou e realizou em defesa das liberdades individuais e civis do nosso povo.27 Bateu-se pelo respeito aos direitos humanos, contra a exploração e contra a prepotência. E o ápice de sua compreensão do social foi, indubitavelmente, a conferência do Lírico, já que Rui nunca tinha ido tão longe.

     Enfim, Rui foi um devotado à causa da justiça. Não só no que concerne ao seu ordenamento jurídico – que o colocou, em sua época, como o maior jurisconsulto do Brasil e um dos mais respeitados no mundo – mas também no que hoje se acordou denominar justiça social. Por isso, deixou seu nome inscrito como um dos mais representativos de sua época, e a conferência de 1919 no Teatro Lírico do Rio de Janeiro — na qual conclamou a sociedade a repensar seus deveres para com todos os seus membros — foi, sem dúvida, uma demonstração bela e admirável de sensibilidade e de transformação, ao mesmo tempo em que corajosa e altruísta. A personalidade de Rui não se compatibilizava com a estagnação.

     Quanto ao posicionamento de Rui perante as diversas correntes do Liberalismo no Brasil, Macedo, no Trabalho Os Modelos do Liberalismo no Brasil, classifica-o entre os liberais cientificistas, ao lado de Gaspar Silveira Martins, A. C. Tavares Bastos, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, Sylvio Romero e Clóvis Beviláqua. Segundo o mesmo pesquisador, as nove teses básicas características desses liberais são: 1– Defesa intransigente do Federalismo; 2– Abolicionismo imediato; 3– Convicção da necessidade do progresso baseado em uma transformação reformista não-revolucionária da sociedade; 4– Liberalismo religioso implicando na separação da Igreja do Estado e denúncia do Ultramontanismo; 5– Adoção do Parlamentarismo; 6– Opção pela Democracia como culminação do processo liberal de ampliação do sufrágio; 7– Liberalismo econômico quanto às funções do Estado, importando em comércio livre, e ênfase no valor do Trabalho, da riqueza e da indústria no País; 8– Educação básica como fator de reforma social; e 9– Franqueamento social do Liberalismo aos desamparados.28

     Ao se compararem tais teses com a obra de Rui, observa-se, claramente, todos esses pontos defendidos de forma ardente e apaixonada.

       Este Trabalho-pensamento revisitou apenas rapidamente algumas delas. Talvez, se Rui tivesse alcançado a idade provecta de Barbosa Lima Sobrinho, teria feito revisões em seu pensamento. Possivelmente, teria evoluído para uma forma de Liberalismo Cientificista dissidente, ampliando as idéias sociais que defendeu tão ardorosamente ao longo de seus 74 anos. Para Rui, navegar sempre foi preciso. Para uma pesquisa mais aprofundada sobre o pensamento de Rui informa-se que sua obra completa encontra-se à disposição do pesquisador interessado na Casa de Rui Barbosa. (Consultar o Anexo I).

 

DADOS SOBRE OS AUTORES

 
Fernando César Pimentel Gusmão: Mestre em Educação pela UFRJ. Ex-Diretor de Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. É professor adjunto IV (aposentado) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. Atualmente é Coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento e Diretor Financeiro do Instituto de Desenvolvimento Humano e Gestão Empresarial – IDHGE. Também é consultor em Administração Escolar e Presidente da FUNCEFETEC.

Raul Rousso: Mestre em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ. Doutorando em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ. Ex-Diretor-Geral do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. Atualmente é Presidente do IGRAT da Universidade Iguaçu, Diretor-Geral do Instituto de Desenvolvimento Humano e Gestão Empresarial – IDHGE e Consultor de Empresas. Professor Adjunto IV (aposentado) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca.

Rodolfo Domenico Pizzinga: Mestre em Educação, UFRJ, 1980. Doutor em Filosofia, UGF, 1988. Professor Adjunto IV (aposentado) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. Consultor em Administração Escolar. Presidente do Comitê Editorial da Revista Tecnologia & Cultura do CEFET-RJ. Professor de Metodologia da Ciência e da Pesquisa Científica e Coordenador Acadêmico do Instituto de Desenvolvimento Humano - IDHGE.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 
1. Na sua Memória Sobre a Eleição Presidencial, Rui afirmou que na eleição de 1910, ao invés do resultado oficial que dá ao Presidente eleito Marechal Hermes da Fonseca 402.019 votos contra 149.587 votos atribuídos ao candidato civil (ele), na verdade, o resultado numérico foi outro: Rui, 200.359 votos, Marechal Hermes, 126.392 votos. Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXXVII (1910), tomo II, pp. 332 a 347. Acredita-se que, dada a diferença de votos apurados, para que prevalecesse a denúncia de Rui, a fraude teria que ter sido extraordinária, o que parece inverossímil. Por outro lado, considerando-se os meios disponíveis da época, como pôde Rui compulsar todos os votos válidos existentes e chegar a valores tão discrepantes? É difícil admitir que os políticos da época pudessem dispor de um mecanismo tão sofisticado de burla, para que conseguissem adulterar o resultado de uma eleição presidencial no volume descrito pelo candidato perdedor, e o povo e seus correligionários não pudessem contestar e reverter o resultado. Não se pode esquecer de que Rui candidatou-se duas vezes à Presidência da República e foi derrotado nas duas tentativas.
2. MORAES FILHOS, Evaristo de. Rui Barbosa e a questão social. Rio de Janeiro: edição privada, s.d., p. 4.
3. BARBOSA, Rui. Tribuna do povo: artigo programa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 1, t. 1), pp. 22 e 23.
4. BARBOSA, Rui. Discurso proferido na sessão de 27 de junho: In: BAHIA. Assembléia Legislativa. Annaes da Assembléa Legislativa Provincial da Bahia: Sessões do anno de 1878. Bahia, Typ. Diário da Bahia, 1878, v. 1, apêndice p. 9. Recentemente (2001), ouviu-se no Conselho de Ética do Senado um não menos famoso e ilustre baiano invocar essa deplorável, funesta e despótica razão de Estado, para justificar atos injustificáveis. Para não perder o mandato de senador da República acabou por tardiamente renunciar.
5. GONÇALVES, Silo. A águia de Haia. Rio de Janeiro: Agir, 1947, p. 21.
6. MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Rui: o homem e o mito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 412.
7. BARBOSA, Rui. Questão militar, abolicionismo, Trabalhos jurídicos, Swift. Rio de Janeiro: MEC, 1955 (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 14, t. 1), p. 98.
8. BARBOSA, Rui. 5% Adicionais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. (Obras Completas de Rui Barbosa, vol. 16, t. 3), p. 121.
9. BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil. Conferência pronunciada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1919. São Paulo: LTR-Rio de Janeiro, FCRB, 1983, p. 12.
10. Notável, estranhável mas explicável a participação de Rui no Governo de Deodoro. Certamente deve ter havido resistências à sua nomeação. Não se pode esquecer de que, por essa época, os próceres do Positivismo brasileiro eram figuras do porte de Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), cujas idéias ultra-ortodoxas acabaram, inclusive, por levá-los ao rompimento com o Positivismo francês e seus líderes, nomeadamente Émile Littré (1801-1881) e Pierre Lafitte (1825-1903). Ainda que se possa compartilhar da idéia de Antonio Paim, de que a República não tenha sido um fenômeno eminentemente positivista, os comtistas de então decididamente influíram nos caminhos do recém-nado Governo Provisório e da incipiente República nacional em questões cruciais, como, por exemplo, a inclusão emblemática do lema positivista Ordem e Progresso no lábaro brasileiro e a separação da Igreja do Estado. Em aditamento, há o fato de Rui ter cumulativamente colecionado adversários poderosos ao longo da vida. De qualquer forma, o surrealismo ideológico brasileiro (marca permanente da ciência política nacional) resistiu, mas se permitiu sucumbir habilmente às negociações, e encampou, sem reverência, a investidura indesejada do consagrado jurisconsulto baiano ao primeiro escalão do primeiro governo republicano brasileiro. O fato é que Rui Barbosa, em nenhum momento, foi uma unanimidade nacional. Causava mais mal-estar e inveja do que admiração. Não obstante, tecnicamente fosse mais adequada a nomeação de Rui para a pasta da Justiça, esta provavelmente lhe foi vedada, pois o prestígio (direto ou indireto) de homens do quilate de Luiz Pereira Barreto (1840-1923) no Governo de Deodoro era insuperável. Ainda que Pereira Barreto (principal representante do Positivismo dissidente ou ilustrado nacional, oposto, portanto, à ortodoxia de Miguel Lemos) entendesse que o estado positivo não pudesse ser alcançado pela via do isolamento, e que recomendasse uma aliança com os representantes da metafísica brasileira para derrotar os teólogos remanentes, afirmava que os jurisconsultos são uma classe do período metafísico condenado ao desaparecimento. Rui, metafísico, portanto, só assumiu em virtude daquilo que hoje costuma ser denominado de correlação de forças. Mas, conceder-lhe a pasta da Justiça era arriscado e perigoso demais; já na Fazenda teria menos campo de manobra. Ainda que tímidas e insuficientes, Rui queria mudanças que nem os monarquistas remanescentes nem os republicanos e positivistas de então podiam aceitar. Entretanto, o que é mais curioso, contraditório e surrealista, foi fato de a cúpula ortodoxa positivista tentar preencher o vazio religioso nacional, ao sonhar com a possibilidade de a Igreja Positivista ocupar, na República, o lugar usufruído pela Igreja Católica durante a monarquia. A Religião da Humanidade (o ponto culminante da sociologia positivista é a idéia de Grand-Être, ou seja, a totalidade dos seres humanos), na verdade cada vez mais próxima da teologia católica, nunca teve ascendência cultural de destaque no Brasil, não se podendo, comparativamente, atribuir à sua ação, o êxito relativo alcançado pelo Positivismo, por exemplo, na esfera do Direito, que se consubstanciou em frontal oposição ao autoritarismo republicano. Entretanto, o tempo haveria de mostrar que a influência do Positivismo ilustrado brasileiro seria (como foi), no plano político, derrotada e anulada pelas vertentes autoritárias. (Para melhor e mais amplas informações sobre esses temas, consultar as obras O Apostolado Positivista e a República e Plataforma Política do Positivismo Ilustrado, ambas de 1981, da autoria de Antonio Paim).
11. PEREIRA, Lucilla Maria Ruy Barbosa Baptista. Ruy Barbosa e a questão social. Revista dos Advogados Brasileiros, 7 (41): 29-58, dez., 1973, p. 31.
12. BARBOSA, Rui. Orações do apóstolo. Rio de Janeiro: Edição da Revista de Língua Portuguesa, 1923, pp. 103 e 104.
13. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José. Instituições Políticas Brasileiras. 3ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1974, v. 2, p. 37.
14. Ainda que as propostas de Rui, presumidamente, emancipassem e redimissem os negros, não os transformariam (como não transformaram) efetivamente em cidadãos plenos. A cidadania não pode ser alcançada apenas pela posse parcelar da terra, pela instrução elementar e com os rudimentos de uma instrução agronômica, como preconizou Rui. Cidadão é um indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres. Os párias de hoje e de sempre, os sem-teto, os sem-terra, os sem-Trabalho, os índios, os curumbas e tantos outros, serão estes positivamente cidadãos? Quinhoar desigualmente os desiguais, como viria a proclamar Rui há oitenta e dois anos, pode ser filosoficamente correto, mas é politicamente perigoso e, histórica e socialmente, um desastre. Desde sempre, isto é, da Roma Antiga, por exemplo, às monarquias absolutistas e tirânicas modernas, passando pelas diversas modalidades de ditaduras da contemporaneidade, os déspotas e seus sequazes, qualquer que seja a confissão ideológica que professem, sempre se locupletaram com o poder nem sempre outorgado pelo povo. As leis (?) foram e são elaboradas e promulgadas pelos detentores do poder, para beneficiar, quase exclusivamente, as classes dominantes. O laissez-faire, laissez-passer – do Liberalismo ao Neoliberalismo – acabou, também, por produzir a tão famigerada globalização (por enquanto mera mutação maquilada do imperialismo Capitalista neoliberal), que vem se notabilizando pela ascensional assimetria de suas diretrizes econômico-financeiras, e pela insensibilidade político-fiscal que impõe aos países do Terceiro e do Quarto Mundos, multiplicando geometricamente uma sangria de receitas e de recursos, e avultando uma dívida externa progressiva impossível de ser satisfeita, pelo menos no que concerne ao principal – o que já é em si uma insensatez. Aliás, o que menos desejam os países credores é que os saldos devedores sejam quitados pelos países que se socorrem dos créditos internacionais. Há instrumento de pressão e de persuasão mais poderoso do que uma ação isolada ou combinada sobre países como o Brasil, proprietários de uma dívida externa absurdamente mal adquirida? Entretanto, é claro que a globalização é o caminho – o único caminho – para minimizar as desigualdades sociais mundiais; mas é também óbvio que todos os critérios que a originarem e nos quais ainda está ancorada terão que ser drasticamente redirecionados e reavaliados. A globalização, tal como é praticada, é egoísta, é mesquinha, é interesseira, é falsa, é usurpadora, é ilegítima e é autoritária. É, na realidade, da forma como está estruturada um novo totalitarismo dissimulado, fraudulento, sangradouro e exterminador. Um estudo estratégico divulgado recentemente (2001) pela Agência Central de Inteligência (CIA) concluiu que, se continuarem a prevalecer as diretrizes que atualmente norteiam a economia global, em 2015 as diferenças hoje existentes entre os países ricos e os países pobres serão mais marcantes e inconciliáveis. Algumas das conseqüências apontadas pelo estudo são: três bilhões de seres humanos não terão acesso à água; os atentados e as diversas formas de violência serão incrementados; aumentará o número de famintos, de desempregados e de doentes; as desigualdades sociais e culturais serão mais perversas e mais flagrantes; e, os conflitos internacionais mais freqüentes. A pesquisa informa, ainda, que os EEUU continuarão a ser a primeira superpotência e o país mais rico do mundo. Isto faz lembrar uma outra pesquisa-pilhéria internacional que apresentava a seguinte questão: Por favor, qual a sua opinião sobre a escassez de alimentos no resto do mundo? O resultado foi um fracasso, porque: a) na Argentina, ninguém sabia o que era por favor; b) no Leste Europeu, o que representava opinião; c) na Europa Ocidental, o que significava escassez; d) na África, o que poderiam ser alimentos; e e) nos EEUU, onde se situava o resto do mundo. A Regra da Igualdade tem outras implicações não alcançadas por Rui e muito menos pelos ideólogos e pelos governantes modernos e contemporâneos. Acreditar que os fatos econômicos se desenvolvam eticamente por si sem nenhuma interferência legislativa (ou sob uma legislação privilegiável e anacrônica – o que é mais desapropriado e mais malévolo, pois legaliza a usura) é permitir a gestação e o parto de toda a sorte de rupturas, de desnivelamentos e de impasses. No Brasil, hoje, este tipo de diretiva político-econômica (neoliberal travestida de social-democrata), ameaça, inclusive e principalmente, a própria soberania nacional, ao mesmo tempo em que fragiliza e compromete sua autodeterminação. Talvez, os mais perversos filhotes (entre tantas perversidades) desta desapropriada ideologia, calcada em um Neoliberalismo voraz, insensível e mentiroso, sejam a crescente taxa de desemprego, o endividamento público e privado, a recessão implícita, o empobrecimento nacional e a desesperança do operariado brasileiro, todos derivados dos obscuros e sucessivos ajustes fiscais promovidos e patrocinados pelas elites econômicas brasileiras (cumprindo ordens de fora), que apresentam e veiculam estatísticas manipuladas e vãs, tentando propagandisticamente disseminar informações, justificando que a qualidade de vida tem melhorado porque aumentou o poder aquisitivo da população, e, em conseqüência disto, a estabilidade da moeda deve ser mantida a qualquer preço. Doa a quem doer. Ora, essa tergiversação só pode ser engolida pelos tolos e pelos desinformados. Dentre os vários sofismas instrumentalizados pela atual equipe política e econômica brasileira, podem ser apontados o Fundo de Combate à Pobreza e o valor do salário-mínimo vigente. Com restrições, se aceita uma escala decimal para remunerar o Trabalho. Melhor seria uma escala salarial de sete valores. Países como o Brasil estão sentados sobre uma bomba relógio e não ouvem o seu tique-taque. A Argentina explodiu recentemente. Nada pode justificar, por outro lado, o vagalhão de privatizações a que se assistiu recentemente no Brasil. O Liberalismo Cientificista de Rui não poderia, obviamente, prever o buraco negro em que se meteria a Ilha de Vera Cruz. Como poderia conjeturar o jurista salvadorense, que as dívidas interna e externa do País chegassem aonde chegaram, e que o Brasil acabasse por ficar prisioneiro das políticas econômico-fiscais impostas, principalmente, pelo Fundo Monetário Internacional – FMI e pelo Banco Mundial? Outrossim, sob outro prisma, as proposituras de Rui no campo social ficaram aquém dos anseios justos e legítimos do então seguimento excluído nacional. Não há cidadão de segunda categoria. Cidadão é, antes e acima de tudo, gente. Portanto, em uma sociedade meritocrática, todos têm direito a tudo. Privilégio é outra coisa. Apenas emancipar e/ou redimir, continuava a ser dar meia liberdade aos ex-escravos. A proposta insubstituível seria integrar os despossuídos e humilhados imediatamente na sociedade, não os discriminando pelo passado desumano, insalubre, fedorento e desesperançado que lhes foi imposto. A exclusão social do negro – que ainda acontece maquiada no País – continua sendo uma mácula e uma dívida por resgatar. Neste particular, Rui foi equivocadamente parcimonioso e ingênuo. Talvez, por acreditar que a sociedade não poderia igualar o que a Natureza criou desigual. Talvez, por não se ter integralmente liberto do lado mais tenebroso do liberalismo clássico aprendido na casa paterna. Talvez, por crer que os negros de então eram menos aptos ou capazes do que os outros estamentos sociais. Nessa matéria, portanto, Rui foi, apenas, solidário. Nabuco, ainda que monárquico, foi colossal e incomparável.
15. BARBOSA, Rui. A questão social..., op. cit., p. 19.
16. Op. cit., p. 19.
17. Id.
18. BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Ed. popular anotada por Adriano da Gama Kury, 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: FCRB, 1985, p. 21.
19. BARBOSA, Rui. A questão social..., op. cit., pp. 39 e 43. No que concerne à igualdade dos sexos perante o Trabalho, tal princípio veio a prevalecer na CLT - Decreto-Lei no 5.452, de 1º de Maio de 1943 - transformando-o, posteriormente, em preceito constitucional (Emenda Constitucional no 1, de 1969, Art. 165, inciso III). Hoje, também, o Trabalho do menor acha-se regulamentado. Menores de 12 anos estão, legalmente, impedidos de trabalhar, e é vedado Trabalho noturno e em indústrias insalubres a menores de 18 anos. Quanto à limitação das horas de Trabalho — justa conquista da classe trabalhadora — a jornada, hoje, é de 8 horas. A CLT disciplina, hoje, também, o Trabalho noturno. Há, presentemente, a exigência constitucional de que o Trabalho noturno (que não deixa de ser aniquilador) seja mais bem remunerado do que o diurno. De qualquer forma, é uma escravização. Ao prestador do Trabalho domiciliar, hoje, está assegurado o salário mínimo (ainda que medíocre e totalmente insuficiente), garantido, outrossim, por preceito constitucional. A proteção à empregada gestante encontra-se, hoje, igualmente, disciplinada na CLT, e constitui, bem assim, preceito constitucional. (Mas, quando retornam ao Trabalho, geralmente são despedidas. Mãe não produz!!!). O trabalhador, presentemente, também está segurado contra acidentes de Trabalho. É um seguro de merda, mas é alguma coisa. Em anos recentes, outras medidas foram implementadas no sentido de minimizar os efeitos da voracidade neoliberal, como é o caso do vale-transporte e do vale-refeição. O seguro-saúde é opcional. (Então, a maioria não contempla seus funcionários com este bem). E o seguro-desemprego serve apenas para paliar um modelo econômico equivocado, que continua ainda a privilegiar e a proteger o Capital em detrimento do Trabalho. Este expediente econômico é mais um deus ex machina para encobrir o fracasso do modelo econômico neoliberal brasileiro. Outra pirueta econômica já referida (vide referência 14) da Democracia autoritária a que está hoje sujeito o Brasil foi a recente criação HIPÓCRITA do Fundo de Combate à Pobreza. Os motivos são evidentes demais para serem neste ensaio discutidos.
20. Op. cit., p. 54.
21. Op. cit., p. 52. A questão não se restringe nem a obedecer, nem mesmo a melhorar, mas, por outro lado, perceber e reconhecer o que é política, econômica, ideológica e socialmente mais eqüitativo, mais distributivo e socialmente mais justo. É óbvio e flagrante que o Neoliberalismo de hoje e o Liberalismo de Rui jamais contemplaram tais categorias. Quem abocanha uma jugular não solta jamais.
22. Op. cit., p. 53. O mínimo que se pode comentar nesta oportunidade é que, enquanto os gastos com mão-de-obra forem embutidos nos custos finais dos produtos e a mais-valia não for abolida (eliminada), a conciliação entre Capital e Trabalho será sempre dissimétrica e dolorosa. Aliás, Capital e Trabalho, sob a ótica liberal ou neoliberal, podem até ser conciliáveis, mas, no âmago de suas funções, serão sempre antagônicos e incompatíveis. Este ensaio, entretanto, não se destina a expor ou discutir uma nova teoria econômica, mas, salvo melhor juízo, parece que, universalmente, observam-se esforços – ainda que tímidos – no sentido do alcançamento de uma Paz Perpétua de cariz kantiano, ou de uma possibilidade de paz por todos aceita, defendida, subscrita e respeitada. Entrementes, é preciso se ter como norte de qualquer negociação, que tal Paz só será viável se e quando uma nova ordem econômico-social-jurídico-educacional for estruturada e estabelecida, tanto longitudinal quanto latitudinalmente, tanto na essência quanto na implementação. Aqueles que já se conscientizaram dos perigos dos possíveis e previsíveis resultados oriundos da globalização tal como tem sido implementada e praticada, têm envidado esforços no sentido de corrigir os mecanismos cruéis e egoístas que a têm sustentado. Há, por exemplo, que substantivamente serem repensados os sentidos dos vocábulos legalidade e legitimidade. Pergunta-se: Há legitimidade na legalidade de alguns salários que alcançaram cifras 100, 200, 300 e até 2 000 vezes maiores do que o valor estabelecido para o salário-mínimo vigente no Brasil? Pergunta-se: Os sistemas financeiro e bancário podem continuar a desfrutar os lucros que auferem? A quem interessa o perpétuo pagamento dos serviços das dívidas interna e externa dos países devedores (o Brasil inclusive e primordialmente)? Há, indubitavelmente, outras indignações que não precisam ser recordadas, e que Rui, talvez, não tenha previsto ou se apercebido. O que é certo, porém, é que conciliar patrões e empregados, pode se consubstanciar em uma tratativa eficiente, e até em um pacto eficaz, todavia, jamais será cristalinamente um acordo justo e efetivo. O fato (o nó górdio) inconciliável é que, o que a Natureza oferta gratuitamente não pode ser comprado ou vendido. E a Natureza tudo oferece sem nada pedir em contrapartida. Comprar e vender são pratos de uma mesma balança cujo fiel é a Ética (Universal). O lucro, assim, não pode escravizar, submeter, espoliar ou amesquinhar. A lucratividade não pode estar baseada na mais-valia, nem nas diferenças interpessoais, intersociais e internacionais. A sociedade planetária é um corpo orgânico, uno, e, lucrar, pura e simplesmente, é considerá-la um aglomerado de partículas inorgânicas. Isto, todavia, nem sequer é verdade para os minérios e minerais, que nada mais são do que corpos orgânicos em estado de dormência, cuja vida está latente. Lucrar, assim, só pode ter um significado social, se embutir os conceitos de partilhar e dividir, apoiados em ações efetivas que reflitam, transparentemente, o realizar e o concretizar. O homem é um ser social, encravado em uma sociedade múltipla, todavia, orgânica. A única alternativa de indissolubilidade e de eqüidade social é pela co-participação e pela co-gestão, não só de patrões e empregados (ou entre Capital e Trabalho), mas de toda a sociedade e entre todos os países. A última coisa que a Humanidade haverá de compreender nessa matéria, é que o lucro, tal como hoje concebido, é uma impossibilidade, ainda que legalmente amparado. Se alguém lucra, é porque outrem perde. Se uns têm em excesso, é porque outros têm muito pouco, ou nada têm. A desigualdade social advém exatamente do fato de a sociedade ainda estar desigualmente estruturada e, em conseqüência deste desvario, desigualmente tratar, os que na verdade, pelo sangue, são iguais, como desiguais. Este, talvez, tenha sido o grande equívoco de Rui e do Liberalismo Cientificista que ele maiormente representou em sua época. A Democracia nos moldes em que hoje se apresenta, não pode, como queria Rui, ser a culminação do processo liberal. O Liberalismo econômico é apenas mais um tentáculo ideológico da ignorância e da avareza humanas, e a Democracia, da forma como está estruturada, acabará compulsoriamente por fracassar.
23. BARBOSA, Rui. Casas para operários. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948. (Obras Completas de Rui Barbosa, vol. 19, t. II), pp. 237 a 258.
24. PEREIRA, Lucilla Maria Ruy Barbosa Baptista. Ruy Barbosa..., op. cit., p. 33. De qualquer forma, acredita-se que a simples isenção do recolhimento do imposto predial não solucionaria o problema. Presentemente, a marginalização e exclusão dos despossuídos alastraram-se pandemicamente no mundo e maiormente, por exemplo, na África, na República do Haiti e no Brasil.
25. Esta se acredita, é outra das lacunas de percepção do pensamento ruiano. Ainda que a propriedade privada seja legalmente lícita (quando realmente é, o que é raro), a legislação que sempre permitiu e tolerou a constituição e formação de latifúndios, oligopólios (nacionais e multinacionais), megaempresas, blocos etc., paralelamente, sempre privilegiou o Capital em detrimento das classes trabalhadoras, e, por extensão, da sociedade como um todo orgânico que é. A própria escravidão, que vinha de longe, foi um dos mais malevolentes subprodutos do feudalismo. O grande Aristóteles, lamentavelmente, com ela contemporizou. Aliás, o Estado de subconsciência (ou de semiconsciência) da sociedade pode ser debitado em parte a certas proposituras estabelecidas pelo peripatetismo e pelo tomismo, que exerceram e ainda exercem grande influência no pensamento ocidental. O modelo aristotélico-tomista ainda viceja em certas confrarias. A posse imprópria das terras criava uma relação de dependência entre suseranos e vassalos, cujas moedas de troca eram, particularmente, o Trabalho de Sísifo, a comida e a tortura como instrumento de persuasão. Que finalidade social podem ter áreas urbanas ou rurais não aproveitadas, mal empregadas, ou subutilizadas? A reforma agrária vigente hoje no Brasil (ainda que morosa e mal estruturada) tem desvelado o quão indébito foi o assenhoreamento de terras, e o quanto distraída, desinteressada, incompetente, desinformada, indolente e cúmplice foi a sociedade civil (e a própria Religião Católica), ao ter aceito, durante séculos, as apropriações legais (?) e indevidas que se sucederam e multiplicaram. Por outro lado, reforma agrária sem o respectivo assentamento e o adequado crédito rural torna-se inócua. A própria demarcação das terras indígenas vem se arrastando por décadas a fio. Aliás, curiosamente, o poderoso invade, mata, apodera-se, estupra e depois demarca. Se prevalecessem as súplicas de Rondon... A Humanidade, enfim, haverá, no futuro, de compreender, que a terra (e seus frutos) não podem ser comprados ou vendidos. As ideologias políticas e religiosas que sustentam que o homem (legalmente) deve exigir e tomar posse, porque... é uma deturpação insana e hedionda do próprio sentido da vida, da organização macroscópica universal e da convivência social. Nesse particular, interpretam-se erroneamente os vocábulos direito e privilégio. Direito vincula-se à legalidade e ao que representa a realidade; privilégio submete-se à legitimidade e ao entendimento do que é atualidade. Logo, a apropriação e a lucratividade podem ser legais (nos casos em que realmente são); jamais serão legítimas. A atualidade do Universo não é cartorial. Ainda que parte do conhecimento possa ser adquirida pela indução a verdadeira sabedoria só se instalará paulatinamente no ser pela via dedutiva. Bons frutos colherá aquele que se dispuser a fazer um estudo sistemático e comparativo das obras platônica e aristotélica. O passo posterior será examinar criteriosa e cuidadosamente as Eneadas de Plotino e o pensamento de Francis Bacon, reduzindo o que puder ser reduzido aos planos dianóico e/ou noético. Como disse Alfred North Whitehead, a ciência moderna induziu na Humanidade a necessidade de descrer. Seu progressivo pensamento e sua progressiva tecnologia fizeram da transição pelo tempo, de geração para geração, uma verdadeira migração para um ignoto oceano de aventuras. O próprio benefício da descrença está em que ela é perigosa e requer habilidade para evitar males. Devemos esperar, portanto, que o futuro revele perigos... Portanto, só pelo aprofundamento das reflexões sobre a Filosofia da Ciência poderá o homem compreender o Universo, a sociedade e a si próprio. Os autores não estão, neste ensaio, levando em consideração o Processo Iniciático. Assim, ao serem descobertos os padrões dos eventos, estes devem ser interpretados; mas só a Filosofia poderá unificar as diversas descobertas da ciência em uma ordem compreensível. Na asserção, estavam (e estão) certos os positivistas; a razão (filosófica), todavia, era por eles rejeitada. Progresso sem ordem é caos. Acrescenta-se: ordem baseada principalmente na indução poderá gerar o supremo caos. Talvez, um dia, se descubra que o Sol é azul e não amarelo, e se aprenda o significado universal do número 111 (cento e onze)!
26. BARBOSA, Rui. A questão social..., op. cit., p. 55.
27. OLIVEIRA VIANNA, op. cit., p. 59.
28. MACEDO, Ubiratan Borges de. Os modelos do liberalismo no Brasil. Rio de Janeiro: edição privada, 1986, p. 5.

 
SITES CONSULTADOS

http://www.projetomemoria.art.br/RuiBarbosa/periodo3/lamina17/
http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=1217
http://www.ibmcomunidade.com/portinari/galeriadeimagens.htm
http://www.utopia.com.br/isabel/prosas.html
http://www.camara.gov.br/internet/camara180/280703.asp
http://www.casaruibarbosa.gov.br/
http://www.vivabrazil.com/rui_barbosa.htm
http://www.culturabrasil.pro.br/nabuco.htm

 

 

ANEXO I

RUI BARBOSA (Textos Escolhidos)
Fonte: http://www.academia.org.br/cads/10/rui.gif
Acesso: 30/12/2003

 

     Rui Barbosa, advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador, nasceu em Salvador, BA, em 5 de Novembro de 1849, e faleceu em Petrópolis, RJ, em 1° de Março de 1923. Membro fundador da Academia, escolheu Evaristo da Veiga como patrono da Cadeira n° 10 da Academia Brasileira de Letras.

     O pai, João Barbosa de Oliveira, foi um homem voltado para os problemas da educação e da cultura. Durante anos, dirigiu a Instrução Pública de sua província. Foi ele a principal influência na formação do filho, orientando-o no amor à leitura dos clássicos e no respeito à documentação em suas pesquisas.

     Depois dos estudos preparatórios na província natal, Rui foi fazer o curso jurídico em Recife. Conforme a tradição da época, transferiu-se, em 1868, para a Faculdade de Direito de São Paulo. Lá, foi proposto sócio, juntamente com Castro Alves, do Ateneu Paulistano, então sob a presidência de Joaquim Nabuco. Em sessões cívicas organizadas pelo Ateneu, recita poemas seus. Antes do fim de seu segundo ano do curso, já era jornalista conhecido. Após a formatura, em 1870, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde iniciou a carreira na tribuna e na imprensa, abraçando como causa inicial a abolição da escravatura. Deputado Provincial, e depois Geral, preconizou, juntamente com Joaquim Nabuco, a defesa do sistema federativo. Convidado para Ministro do Gabinete Afonso Celso, pouco antes da Proclamação da República, Rui Barbosa recusou o cargo, porque este era, no momento, incompatível com suas idéias federativas. Proclamada a República, Rui foi escolhido para Ministro da Fazenda do Governo Provisório, e respondeu, durante algum tempo, pela pasta da Justiça. Eleito Senador pela Bahia à Assembléia Constituinte, seus conselhos prevaleceram nas reformas principais e a sua cultura modelou as linhas fundamentais da Carta de 24 de Fevereiro de 1891. Discordando do golpe que levou Floriano Peixoto ao Governo, requereu habeas-corpus em favor dos cidadãos presos pelo governo ditatorial de Peixoto. Como redator-chefe do Jornal do Brasil, abriu campanha contra a situação florianista. Em 1893, foi obrigado a se exilar. Dirigiu-se, em primeiro lugar, para Buenos Aires, depois para Lisboa, onde alguns incidentes levaram-no a escolher Londres. Escreveu, então, as famosas Cartas da Inglaterra para o Jornal do Commercio. Foi a primeira voz no mundo a levantar-se contra o Processo Dreyfus.

     Restaurada a ordem no Brasil, em 1895 Rui Barbosa regressou do exílio. Tomou assento no Senado, no qual se conservaria até à morte, sucessivamente reeleito. Destacam-se os seus trabalhos na redação do Código Civil. Epitácio Pessoa, então Ministro da Justiça, havia entregue essa tarefa a um jovem jurista pernambucano, Clóvis Beviláqua. Rui se opôs à pressa com que o Governo realizara a obra. Depois de revisto por várias comissões, foi o projeto ao Senado, em 3 de Abril de 1902, e Rui Barbosa escreveu, em poucos dias, o seu “Parecer”, que o levaria a uma polêmica, durante a qual sua “Réplica” se tornaria famosa. Em 1905, a Bahia levantou sua candidatura à Presidência da República, mas Rui abriu mão da mesma para decidir a favor de Afonso Pena.

     Quando, em 1907, o Tzar da Rússia convocou a 2ª Conferência da Paz, em Haia, o Barão do Rio Branco, no Ministério das Relações Exteriores, escolheu primeiramente Joaquim Nabuco para chefiar a delegação brasileira, mas a imprensa e a opinião pública lançaram o nome de Rui Barbosa. Joaquim Nabuco recusou o lugar e dispôs-se a ajudar, com informações de toda a espécie, o trabalho de Rui Barbosa, investido de uma categoria diplomática não desfrutada até então por nenhum país da América Latina.

     Seu papel em Haia foi de grande importância. Bateu-se sobretudo pelo princípio da igualdade jurídica das nações soberanas, enfrentando irredutíveis preconceitos das chamadas grandes potências. Além de nomeado Presidente de Honra da Primeira Comissão, teve seu nome colocado entre os Sete Sábios de Haia. Os outros eram: o Barão Marshall, Nelidoff, Choate, Kapos Meye, Léon Bourgeois e o Conde Tornielli. De volta ao Brasil, interveio no início da sucessão presidencial. Apresentada a candidatura do Marechal Hermes da Fonseca, a ela se opôs, lançando-se em sua campanha civilista, de grande repercussão em todo o País. Em 21 de Julho de 1910, contestou, perante o Senado, a eleição do Marechal.

     Em 1913, fundou o Partido Liberal, sendo mais uma vez indicado para a Presidência da República, candidatura de que desistiu. No ano seguinte, combateu o estado de sítio numa série de discursos no Senado. Durante a I Guerra Mundial, tomou o partido dos aliados e produziu discursos lapidares de execração à tirania e ao imperialismo. Nomeado Embaixador Especial para as festas centenárias da Independência argentina (1916), pronunciou notável conferência sobre as Modernas concepções do Direito Internacional, definindo os deveres dos países neutros. Em 1918, o Brasil comemorou o jubileu cívico de Rui Barbosa e quase o mundo inteiro associou-se a essa consagração. Convidado pelo Presidente Rodrigues Alves para representar o Brasil na Conferência da Paz de Versalhes, recusou a embaixada, expondo em famosa carta, dirigida ao Chefe da Nação, as razões da incompatibilidade. Em 1919, foi novamente levantada sua candidatura à Presidência da República, e ele percorreu vários Estados em campanha contra a decadência dos nossos costumes políticos. A vitória da campanha foi anulada pela intervenção militar. Por divergências daí resultantes com o Governo Epitácio Pessoa, em 1920, recusou a representação do Brasil na Liga das Nações. Dentro das comemorações do seu jubileu jurídico, como paraninfo dos bacharelandos de São Paulo, escreveu e proferiu a Oração dos Moços. Em 1921, foi eleito juiz da Corte Internacional de Justiça, como o mais votado, recebendo as mais significativas homenagens do Brasil e de todo o mundo. Em 1922, proferiu o último discurso no Senado, concedendo o estado de sítio ao governo para dominar o movimento revolucionário. A notícia do seu falecimento, em 1° de Março de 1923, foi comentada no mundo inteiro. O Times, de Londres, dedicou-lhe um espaço nunca antes concedido a qualquer estrangeiro.

     Na produção imensa de Rui Barbosa, as obras puramente literárias não ocupam a primazia. Ele próprio questionou se teria sido um escritor por ocasião do seu jubileu cívico, a que alguns quiseram chamar literário. Em um discurso em resposta a Constâncio Alves, destacou de sua obra as páginas que poderiam ser consideradas literárias: O elogio do Poeta (Castro Alves), a oração do Centenário do Marquês de Pombal, o ensaio Swift, a crítica do livro de Balfour, incluída nas Cartas de Inglaterra, o discurso do Liceu de Artes e Ofícios sobre o desenho aplicado à arte industrial, o discurso do Colégio Anchieta, o discurso do Instituto dos Advogados, o Parecer e a Réplica acerca do Código Civil, as traduções de poemas de Leopardi e das Lições de coisas de Calkins, e alguns artigos esparsos de jornais. A esta relação, Américo Jacobina Lacombe acrescentou alguns dos discursos que Rui proferiu nos últimos cinco anos de vida, como os do jubileu cívico e a Oração aos Moços, as outras produções reunidas em Cartas de Inglaterra, o discurso a Anatole France, e o discurso de adeus a Machado de Assis. A produção jornalística puramente literária, a que Rui se referiu genericamente como alguns artigos esparsos de jornais, daria alguns alentados volumes.

     Obras: Alexandre Herculano, discurso (1877); Castro Alves, discurso (1881); Reforma do Ensino Secundário e Superior, pareceres (1882); O Marquês de Pombal, discurso (1882); Reforma do Ensino Primário, pareceres (1883); Swift, ensaio (1887); Cartas da Inglaterra, ensaios (1896); Parecer e Réplica Acerca da Redação do Código Civil, filologia (1904); Discursos e Conferências (1907); Anatole France, discurso (1909); Páginas Literárias, ensaios (1918); Cartas Políticas e Lterárias, epístolas (1919); Oração aos Moços, discurso (1920); editado em livro em 1921); Queda do Império, história, 2 vols. (1921); Orações do Apóstolo, discursos (1923); Obras completas, organizadas pela Casa de Rui Barbosa, 125 vols.

 

ANEXO II

RUI BARBOSA
Mário Brockmann Machado
Presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa


Rui Barbosa

 

 

     Rui Barbosa foi, sem dúvida, um dos mais importantes personagens da História do Brasil.

     Rui era dotado não apenas de inteligência privilegiada, mas também de grande capacidade de Trabalho. Essas duas características permitiram-lhe deixar marcas profundas em várias áreas de atividade profissional: no campo do direito - seja como advogado, seja como jurista - do jornalismo, da diplomacia e da política.

     Foi deputado, senador, ministro e candidato à Presidência de República em duas ocasiões, tendo realizado campanhas memoráveis. Seu comportamento sempre revelou sólidos princípios éticos e grande independência política.

     Participou de todas as grandes questões de sua época, entre as quais a Campanha Abolicionista, a defesa da Federação, a própria fundação da República, e a Campanha Civilista.

     Mesmo admirando a cultura francesa, como todos os intelectuais de sua época, Rui conhecia também a fundo o pensamento político constitucional anglo-americano, que, por seu intermédio, tanto influenciou a nossa primeira Constituição republicana. Era um liberal, e foi sempre um defensor incansável de todas as liberdades.

     Orador imbatível e estudioso da língua portuguesa, foi presidente da Academia Brasileira de Letras em substituição ao grande Machado de Assis.

     Sua produção intelectual é vastíssima. Basta dizer que a Fundação já publicou mais de 137 tomos de suas obras completas, e ainda temos material para novas edições.

     Rui representou o Brasil com brilhantismo na Segunda Conferência Internacional da Paz, em Haia e, já no final de sua vida, foi eleito Juiz da Corte Internacional de Haia, um cargo de enorme prestígio.

     Em suma, Rui foi um cidadão exemplar, e ainda hoje sua memória é fonte de inspiração para um grande número de brasileiros.


 

ANEXO III

O JUSTO E A JUSTIÇA POLÍTICA
(Rui Barbosa)

 

     Para os que vivemos a pregar à república o culto da justiça como o supremo elemento preservativo do regímen, a história da paixão, que hoje se consuma, é como que a interferência do testemunho de Deus no nosso curso de educação constitucional. O quadro da ruína moral daquele mundo parece condensar-se no espetáculo da sua justiça, degenerada, invadida pela política, joguete da multidão, escrava de César. Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos do dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz.

     Aos olhos dos seus julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais que bastem para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados.

     Grande era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção da divindade do papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade afastava do seio de Israel a presença do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas por uma hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era na função de julgar que tinha a sua habitação entre os israelitas a majestade divina. Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados quando o homem lhes perde o sentimento, que exatamente no processo do justo por excelência, daquele em cuja memória todas as gerações até hoje adoram por excelência o justo, não houve no código de Israel norma, que escapasse à prevaricação dos seus magistrados.

     No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de Quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da Sexta-feira subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de formação judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do direito.

     O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir; e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas. Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes houver dito. Era apelo às instituições hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores não poderia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juizes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal: Se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates?

     Anás, desorientado, remete o peso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, ainda assim, não, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo. Perante este já muito antes descobrira o genro de Anás a sua perversidade política, aconselhando a morte a Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a efeito a sua própria malignidade, "cujo resultado foi a perdição do povo, que ele figurava salvar, e a salvação do mundo, em que jamais pensou".

     A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem, lhe não acharam a culpa que buscavam. Jesus calava. Jesus autem tacebat. Vão perder os juizes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele, que a não renegara, vê-se declarar culpado de crime Capital: Reus est mortis. Blasfemou! Que necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia. Ao que clamaram os circunstantes: é réu de morte.

     Repontava a manhã, quando à sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juizes legais. Mas juizes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunais que se conchavam de véspera nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.

     Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis. Não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livres, para condenar, ou absorver. Que acusação trazeis contra este homem? assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra civilizada. Se não fosse um malfeitor, não to teríamos trazido, foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo de que não conhecera, pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: Tomai-o, e julgai-o segundo a vossa lei. Mas, replicam os judeus, bem sabes que nos não é lícito dar a morte a ninguém. O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.

     Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, senão de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que se inculca filho de Deus: é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. Ao mundo vim, diz ele, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade, há de escutar a minha voz. A verdade? Mas que é a verdade? pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a da inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde reina o poder absoluto das trevas. Não acho delito a este homem, disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.

     Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão da sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde Galiléia. Ora, acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetrarca da Galiléia, Heródes Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Heródes, lisonjeando-lhe com essa homenagem a vaidade. Desde aquele dia, um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici erant ad invicem. Assim se reconciliam os tiranos sobre os despojos da justiça.

     Mas Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullam causam inveni in homine isto ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba recrudesce. Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a Quarta defesa de Jesus: Que ma fez esse ele? Quid enim mali fecit iste? Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta ainda: Crucificareis o vosso rei? A resposta da multidão em grita foi o raio, que desarmou as evasivas de Pilatos. Não conhecemos outro rei, senão César. A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador da província romana. O monstro de Cáprea, traído, consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo: Sou inocente do sangue deste justo.

     E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça que se não compromete. A história premiou dignamente esse modelo da suprema cobardia na justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do justo.

     De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pela facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do atentado, que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz cobarde.

 

Dez Cruzados

 

 

PAZ PROFUNDA