EXCERTOS
ESCOLHIDOS DO
PENSAMENTO DE RUI BARBOSA
Rodolfo
Domenico Pizzinga
(http://www.rdpizzinga.pro.br)
Raul Rousso
Fernando César Pimentel Gusmão
Música
de fundo: Aquarela do Brasil - Ary Barroso
Fonte: http://www.musicasmaq.com.br/
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De
tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se
os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar
da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.
Rui
Barbosa
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OBJETIVO
Esta
pesquisa pretendeu examinar, ainda que sucintamente, o pensamento social
de Rui.
INTRODUÇÃO
O
presente Trabalho sobre Rui Barbosa (1849-1923) teve por finalidade
investigar, de forma sucinta, o pensamento do eminente jurista baiano
no que concerne à questão social. Ao término da
pesquisa, concordando-se com os pesquisadores consultados, fica evidente
que o ponto alto do pensamento de Rui sobre o social, ainda que devedor
de uma revisão que não aconteceu, foi alcançado
na conferência A Questão Social e Política no
Brasil, proferida no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em
20 de Março de 1919, a segunda que pronunciou por ocasião
de sua campanha à Presidência da República, campanha
que lhe custou, pela segunda vez, a derrota para a suprema magistratura
da nação, esta para o candidato Epitácio Pessoa1.
A pesquisa sobre a ação
social de Rui abrangeu diversas fontes. Escolheram-se, para esta investigação,
aquelas consideradas mais marcantes, sabendo-se, contudo, estar-se incorrendo,
certamente, em um empobrecimento de sua obra. Todavia, sendo ela monumental
(totalizando CENTO E VINTE E CINCO volumes), este fato seria inevitável.
Os autores esperam, por outro lado, ter correspondido ao pensamento
do autor com uma revisitação a mais verossímil
possível, e deixar aberta uma vertente para outros pesquisadores
interessados nas lucubrações do famoso pensador baiano.
BASE JURÍDICA E SOCIAL DO PENSAMENTO DE RUI
Rui Barbosa foi, além de homem
de estado, um pertinaz pesquisador da cultura das idéias acumuladas
através dos tempos. Adquiriu em menino e cultivou a vida inteira
o hábito de ler e a prática constante de estudar e pesquisar.
Hábito e prática, de certa forma, sofrido e dolorosa,
pois era prisioneiro de uma hipermetropia, que só viria a ser
corrigida anos depois no Rio de Janeiro. Desde os anos verdes, foi educado
pelo pai, Dr. João Barbosa de Oliveira, segundo a cartilha
do Liberalismo americano, francês e inglês da primeira metade
do século XIX2, que acabaria por nortear e balizar sua filosofia
jurídica e social e, como pondera Moraes Filho, haveria de orientá-lo
até o fim de sua existência. O que se segue foi escrito
por volta de 1868 ou 1869, quando Rui era estudante de Direito na Faculdade
de São Paulo, e deixa patente sua preocupação com
a Democracia e com a liberdade:
Há diferença profunda
entre a democracia socialista de outros tempos, a democracia grega
ou romana, e a democracia liberal moderna, a democracia americana
ou a suíça. Aquela era a onipotência da multidão,
a tirania do número, o absolutismo das maiorias, o aniquilamento
do indivíduo. A nossa, a verdadeira democracia, é
o governo do povo senhor de si, mas limitado pelo direito, é
a representação proporcional das minorias, o reconhecimento
de que o direito, ainda que seja de um indivíduo só,
não pode sacrificar-se aos interesses, ainda que seja do
povo inteiro, é a sagração da propriedade individual,
da liberdade da palavra, da liberdade de imprensa, da liberdade
de reunião, da liberdade de cultos, da liberdade do Trabalho,
da liberdade política. Aquém destas raias o povo é
tudo; além delas o povo não pode nada.3
Observa-se nas convicções
esposadas por Rui, que Democracia e liberdade deveriam estar baseadas
no homem e, como salienta Moraes Filho, este – o indivíduo
– como ilha autônoma, compunha a sua própria
esfera da vida.
Em 1878, com a idade de 29 anos, na qualidade
de deputado provincial (em seguida seria eleito deputado geral), pronunciou
na sua terra natal longo discurso, repetindo, de certa forma, os mesmos
conceitos e posições da época de estudante:
A liberdade moderna, a liberdade cristã,
a liberdade individualista, a verdadeira liberdade, isso de que
todo mundo fala, e que bem poucos, neste País, sabem o que
é, exclui essa noção perigosa do Estado, que
lhe atribui a prerrogativa de intervir em tudo quanto há,
de invadir o terreno do direito privado, em nome desse interesse
impalpável, dessa mentira que se chama ‘razão
de Estado’, ou ‘salvação do povo’.
Essa frase funesta sobressaiu sempre no arsenal do despotismo, entre
os seus instrumentos de espoliação mais prestadios.4
RUI ABOLICIONISTA
Fonte: http://www.ibmcomunidade.com/portinari/galeriadeimagens.htm
Preliminarmente, quanto a este aspecto,
deseja-se ressaltar que Rui formou seu espírito em um ambiente
tão profundamente individualista que ainda escravocrata. Apesar
de, em 1813, o tráfico de escravos ter sido abolido no papel
por lei da Regência de Feijó, era, de certa forma, mais
ou menos clandestino e tolerado pelo establishment. Teve Rui,
contudo, o exemplo paterno a lhe iluminar o caminho, exaltado no seguinte
trecho e reproduzido por Gonçalves:
...o que sou, menos o coração
em que minha mãe entrou grandemente, dele nasce quase exclusivamente,
como a água que corre da água que já correu.
Esta palavra que uso, em mim diminuída, era dele, o maior
orador que jamais conheci. Esta cabeça que eu tenho, não
é mais do que uma apagada sombra da sua. Esta paixão
da liberdade, do direito e da justiça, herdou-ma ele, a mais
justa das almas, o mais irredutível liberal que eu nunca
vi... Ele não morreu: em mim vive, e reviverá, enquanto
alguma coisa de mim restar.5
Soube, portanto,
reagir às influências prevalecentes do meio em que nasceu,
soerguendo-se muito acima da mentalidade nacional vigente. A
escravidão, Rui viu-a de perto, ao mesmo tempo em que pôde
sentir, apesar de bem nascido, o sofrimento oriundo das dificuldades
financeiras, que sua mãe amenizava com um modesto comércio
de doces, auxiliada por um pequeno grupo de escravas, alforriadas, posteriormente,
uma a uma, pelo próprio Rui.
Apesar de não estar incluído
entre os maiores expoentes do abolicionismo brasileiro — do qual
o mais atuante e uma das figuras mais importantes foi indubitavelmente
o advogado, jornalista, monarquista, diplomata, político, orador,
poeta e memorialista Joaquim Aurélio Barreto
Nabuco de Araújo, que chegou a pedir audiência
ao Papa Leão XIII, conseguindo do Sumo Pontífice apoio
à campanha antiescravagista (nasceu em Recife, PE, em 19 de Agosto
de 1849 e faleceu em Washington, EUA, em 17 de Janeiro de 1910) —
Rui, nesse particular, recebeu reconhecimento público de seus
mais ferrenhos adversários, como é o caso de Raymundo
Magalhães Junior, que admitiu ter sido ele sempre um enérgico
defensor dos ideais abolicionistas. O próprio Magalhães
Junior chegou a afirmar: Um dos momentos mais altos da vida de Rui
é a sua participação na campanha abolicionista...6.
Joaquim
Nabuco
Nove meses antes da libertação
total dos escravos, em 28 de Agosto de 1887, em discurso proferido no
Teatro Politeama do Rio de Janeiro, Rui afirmou:
A escravidão é a usura
de Shylock; o que ela quer é o coração vivo
do homem... Não há direito contra direito; não
há propriedade contra liberdade; não há consciência
contra consciência. A escravidão é a força;
pela força se alojou na lei; pela dialética se desalojará,
toda a vez que a mínima falha, imperceptível como
um ponto matemático, nos permita cravar-lhe no ferro da coiraça
a cunha de um argumento.7
No artigo 5% Adicionais, de 15
de Maio de 1889, Rui insurgiu-se contra o fisco, por continuar a arrecadar
um tributo cuja destinação era a emancipação
gradual dos escravos. Tal imposto deveria, há um ano, ter sido
suprimido. Em seu lugar, sugeriu Rui a averbação de 5%
adicionais em benefício dos libertos, a fim de que pudessem conquistar
definitivamente a justa e almejada liberdade. Entendia que a verdadeira
emancipação da etnia negra alicerçava-se na posse
parcelar da terra, na instrução elementar e nos rudimentos
de instrução agronômica, e só a organização
de um sistema voltado para esse tríplice aspecto lograria o êxito
social reclamado pelas mentes progressistas. Asseverou, ainda, que:
Declarar abolida a escravidão
é dar apenas meia liberdade aos escravos. A parte mais difícil
e mais importante da eliminação do jugo servil consiste
na redenção intelectual do liberto, na sua educação
para o regímen da vida civil pela escola e pelo Trabalho.
Instruir essa numerosa classe de cidadãos, e aparelhá-los
para o Trabalho inteligente, são duas grandes necessidades,
que o Estado não deve confiar exclusivamente à discrição
das províncias. Há nessa aspiração elevadas
conveniências nacionais, férteis em excelentes resultados.8
A azáfama de Rui pela abolição
da escravatura custou-lhe caro. Acadêmico ainda, estreou na tribuna
popular em 12 de Setembro de 1869, com 20 anos incompletos, proferindo,
como ele mesmo afirmou, ... a primeira conferência abolicionista,
que se ousou em S. Paulo.9 Mais tarde, com o Projeto
Dantas, apresentado à Câmara pelo deputado Rodolfo Dantas
em 15 de Julho de 1884 (ao qual Rui se referia como meu Projeto)
– que encontrou forte oposição e ensejou a dissolução
da Câmara em 30 de Julho com convocação de eleições
– acabou por conhecer o repúdio de seus pares e o mais
profundo ostracismo até o início da República.
Só veio a ser reabilitado cinco anos depois, em 15 de Novembro
de 1889, quando foi nomeado para o cargo de Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios da Fazenda pelo então General Manuel
Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório.10
No Trabalho Ruy Barbosa e a Questão
Social, publicado na Revista dos Advogados Brasileiros, de dezembro
de 1973, Pereira observa que a preocupação de Rui com
a situação dos negros não era tão-somente
teórica ou acadêmica. Acompanharam-na propostas práticas.
Por considerar que a legalidade nacional estragara a etnia escravizada,
deixando-a definhar nas senzalas, Rui passou a defender a idéia
de uma reforma educacional. Em Pereira está escrito: ...
sem negar a importância do humanismo, sugere o ensino diversificado,
o ensino objetivo, o ensino profissional, o ensino das ciências
exatas, a educação física imprescindível
para todos.11
Sobre o ensino profissional, Rui teve
particularmente a oportunidade de se expressar:
...a educação industrial
representa um dos auxiliares mais eficazes no nivelamento crescente
das distinções de classes entre os homens, não
deprimindo as superioridades reais, mas destruindo as inferioridades
artificiais que alongam dessa eminência as camadas laboriosas
do povo, isto é, elevando a um plano cada vez mais alto a
ação e o pensamento do operário.12
Para Rui, o problema acabou por alcançar
tal magnitude, que a sociedade estava a dever aos negros, trinta e um
anos após o 13 de Maio, uma segunda emancipação.
Um dos fundamentos de tal emancipação repousava, segundo
ele, em uma reforma educacional, que teve inclusive a oportunidade de
propor. Lamentavelmente, tal reforma era incompleta e insuficiente.
Enfim, no que se possa concordar que Rui
tenha padecido do mal filosófico de sua época, que no
entender de Oliveira Vianna era o de pensar sobre generalidades13,
não se pode deixar de lhe render homenagens por ter ele primacialmente
se preocupado e sugerido medidas concretas, todavia insuficientes, para
a solução dos problemas sociais do período pós-abolicionista.
Nesse sentido, particularmente, Rui não foi um marginal. Sentiu
profundamente o sofrimento dos ex-escravos e se solidarizou com eles,
propondo um elenco de medidas, que se tivessem sido generosamente ampliadas
e fraternalmente implementadas, a posição do negro no
Brasil teria tido outro encaminhamento. Reconhece-se, todavia, que,
ainda assim, não eram originariamente suficientes.14
RUI E A DEMOCRACIA SOCIAL
Estou, senhores, com a democracia
social.15 Afirmação de Rui no Lírico
em 20 de Março de 1919. Precedeu-a um posicionamento repelindo
o individualismo, exaltando a necessidade de socialização
como forma e possibilidade real para se obter a verdadeira igualdade.
Ouça-se Rui:
A concepção individualista
dos direitos humanos tem evolvido rapidamente, com os tremendos
sucessos deste século, para uma transformação
incomensurável nas noções do individualismo,
restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos
direitos sociais. Já se não vê na sociedade
um meio agregado, uma justaposição de unidades individuais,
acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma
entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo
tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a da coletividade.
O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à
associação, o egoísmo à solidariedade
humana.16
Entretanto, não se pode pretender
que, de repente, o Liberalismo econômico e jurídico de
Rui se transformasse em um Socialismo radical e revolucionário.
Mas, inteligentemente, utilizou na famosa conferência de 20 de
Março, o que havia de melhor e mais progressista no Socialismo
moderado na pregação das reformas sociais. Justifica suas
idéias dizendo: No Socialismo, pois, como em todas as crenças
de partido, em todos os sistemas, em todas as teorias, há um
fundo verdadeiro com acessórios falsos, ou um fundo errôneo
com acidentes justos.17 Todavia, jamais aceitou o igualitarismo.
Deixou isso patente em conhecida reflexão de 1920:
A regra da igualdade não consiste
senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em
que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à
desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade...
Tratar com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade, seria
desigualdade flagrante, e não igualdade real. ... atribuir
o mesmo a todos, como se todos se equivalessem ... [é]
blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização
e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada
em nome dos direitos do Trabalho; e executada, não faria
senão inaugurar, em vez da supremacia do Trabalho, a organização
da miséria. Mas, se a sociedade não pode igualar os
que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia
moral, pode reagir sobre as suas desigualdades nativas, pela educação,
atividade e perseverança. Tal a missão do Trabalho.18
Na conferência do Lírico,
com outro enfoque, para que pudesse acontecer e se estabelecer o equilíbrio
jurídico no contrato de Trabalho, Rui admitiu a intervenção
do Estado em favor da classe operária. E, afirmou, enfaticamente,
que com a questão social não se brinca impunemente. Por
isso, propôs diversas medidas de profundo alcance social. Ei-las:
(a)
...seguro obrigatório a todas as indústrias como condição
imprescindível à seriedade prática da indenização
prometida. (b) ...igualdade dos sexos perante o Trabalho. ... A
igual Trabalho salário igual. (c) A lei deve taxar o mínimo
à idade operária, assim como ao salário dos
menores, e o máximo às suas horas de serviço.
(d) A limitação das horas de Trabalho interessa às
condições fisiológicas de conservação
de classes inteiras, cuja higiene, robustez e vida entendem com
a preservação geral da coletividade, com a defesa
nacional, com a existência da nacionalidade brasileira. (e)
... urgência de remediar os abusos do Trabalho noturno, com
providências, que o vedem, ou o reduzam aos casos de necessidade
inevitável, mas sempre debaixo de uma regulamentação
restritiva e de uma inspeção real. (f) Segue-se ...
a precisão de se atender com sérias medidas a uma
das chagas doridas e clamantes da vida industrial: o Trabalho em
domicílio, o Trabalho em casa. ... As precauções
indicadas, ou adotadas contra esse mal chegam até à
proibição absoluta desse regímen de Trabalho.
A esta solução me parece que devemos tender. Enganosa
creio que seria qualquer outra. (g) ... proteção da
operária no mês antecedente e no mês subseqüente
ao parto.19
Rui, da mesma forma, expressou sua revolta
contra os armazéns de venda, que, estabelecidos para beneficiar
a classe trabalhadora, no entender do grande jurista, não passavam
de instrumentos de escravização desta às empresas
e indústrias nas quais trabalhavam. Apesar de não ter
com eles acabado, o Estado, através da Consolidação
das Leis Trabalhistas (CLT), impôs medidas protetivas ao trabalhador,
revelando preocupação com o assunto. Nos anos oitenta,
as conquistas trabalhistas, principalmente no perímetro do ABCD
paulista, viriam a impor avanços à legislação
trabalhista, beneficiando milhões de trabalhadores Brasil afora.
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores
(PT) tiveram (e têm) relevante papel nestas conquistas.
Entretanto, deve-se sublinhar e enfatizar,
que a Constituição vigente à época de Rui
era a Constituição Liberal de 1891, fundamentada nos direitos
consagrados no 18º século. As posições adotadas
por Rui, e brevemente resumidas anteriormente, suscitaram imediatamente
a reprovação de políticos como o senador Soares
dos Santos, do Partido Republicano do Rio Grande do Sul e fiel à
rígida orientação ortodoxa comtiana agasalhada
por Julio de Castilhos, Pinheiro Machado e Borges de Medeiros. Ultraconservador,
Soares dos Santos sustentava que contratos bilaterais (os firmados entre
patrões e empregados), dispensariam legislação
especial para ter validade. Santos argumentava que tais contratos impunham
uma revisão da Constituição, para dar poderes ao
Legislativo no sentido de adotar as medidas que a classe trabalhadora
reclamava. Na aludida Conferência de 1919 Rui mostrou-se francamente
revisionista, e afirmou que:
...
as Constituições não podem continuar a ser
utilizadas como instrumentos, com que se privem dos seus direitos
aqueles mesmos, que elas eram destinadas a proteger e que mais lhe
necessitam de proteção. As nossas Constituições...
já não correspondem exatamente à consciência
jurídica do Universo. A inflexibilidade individualista dessas
Cartas, imortais, mas não imutáveis, alguma coisa
tem de ceder... ao sopro da socialização, que agita
o mundo.20
Acreditou,
também, que o trabalhador brasileiro era favorável a uma
revisão constitucional, uma vez que defendia a intervenção
da lei nas relações entre o Capital e o Trabalho.
Pensava, outrossim, que a revisão da Constituição
abriria uma estrada para a união e conciliação
nacionais. Enfim, para Rui, só uma ampla reforma constitucional
– que só viria a ocorrer em 1926, na qual um dos objetivos
foi exatamente o de atender às exigências trabalhistas
– poria fim ao que ele denunciou como insalubridade política.
Entretanto, nessa ocasião, o Brasil já havia perdido o
grande jurisconsulto soteropolitano.
No que tange ao Capital e ao Trabalho
Rui tinha opinião definida. Acreditava que os equívocos
do sistema econômico vigente na sua época não eram
oriundos do fato de os meios de produção estarem em poder
dos detentores de capitais. Os operários não melhorariam,
se, em vez de obedecer aos Capitalistas, obedecessem aos funcionários
do Estado socializado.21 Para ele, o Capital era a mola
propulsora do progresso industrial e do desenvolvimento comercial. Por
isso, era mais do que conveniente, era mesmo fundamental, que operários
e patrões se entendessem, se aproximassem, de tal sorte que a
interferência legislativa se tornasse menos necessária
no relacionamento entre as duas classes. Compreendia que Trabalho
e Capital não são entidades estranhas uma à outra,
que lucrem, de qualquer modo, em se hostilizar mutuamente.22
Enfim, para este binômio, Rui ensinou que, para o sucesso da indústria
e para o bem-estar da classe trabalhadora, patrões e operários
deveriam formar um agregado indissolúvel, como um organismo cujas
partes não podem se separar sem automaticamente se destruírem.
Também mostrou Rui preocupação
com as casas operárias, tema que lhe era caro desde 1892. Invocou
a fraternidade humana e o respeito aos direitos humanos, para lembrar
que a sociedade não pode permitir que seres humanos vegetem em
condições tão indignas. Horrorizava-se que cidades
como Rio, Santos e São Paulo agasalhassem favelas, pardieiros
e cortiços, pendurados à encosta dos morros e em outros
locais, na mais inconcebível promiscuidade que fazia recordar
o tráfico de negros. Rui via na moradia dos mais humildes uma
grave questão social a ser resolvida pelos filantropos e pelos
políticos.
Preocupou-se
com as finalidades e o alcance social dos projetos para construção
de casas para operários, em especial o Projeto no 32, do qual
foi relator, em 21 de Outubro de 1892, que isentava de imposto predial
os construtores, estimulando, com isso, a construção de
casas para os trabalhadores.23 Objetivamente, por considerá-lo
inadequado, apesar de, em tese, necessário e bom, apresentou
várias emendas para torná-lo mais maleável em sua
execução. Sua preocupação, repete-se, era
no sentido de evitar o que hoje ainda se vê, e que Pereira assim
resumiu: ... vilas operárias em série, construídas
de emergência, que transportavam tantas vezes a desumanização
das favelas e cortiços para a desumanização dos
blocos operários e das vilas sem alma.24
O referido Projeto era composto de dois
artigos. O primeiro isentava de impostos os que construíssem
casas operárias com um mínimo de condições
de higiene, cujo aluguel mensal não ultrapassasse vinte ou vinte
e cinco mil réis. O segundo determinava que se desapropriassem
terrenos, num prazo de seis meses, se estes não tivessem sido
utilizados para a construção de prédios, e que
seriam cedidos aos que se propusessem a contemplar o que determinava
o artigo anterior. Rui não hesitou em dar parecer favorável
ao Artigo 1º, mas, quanto ao Artigo 2º, considerou-o inadequado,
pois determinava a desapropriação, quando, no Brasil estava
no nascedouro exatamente o oposto: o processo de apropriação.25
Finalmente, ainda que não se tenha
abordado completamente o pensamento de Rui sobre a questão social,
assunto que ele desenvolveu e progrediu tanto em extensão como
em profundidade ao longo da vida (ainda que, smj, insatisfatoriamente),
deseja-se transcrever um último pensamento do consagrado liberal
brasileiro, conclamando todos à conciliação naquele
20 de Março de 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro:
Mas, para que se consumam providencialmente
essas transformações providenciais, cumpre que elas
se operem com eqüidade, com bondade, reconstruindo e não
destruindo; cumpre que se apóiem, não na cobiça,
não na inveja, não no ódio, mas na irmandade,
na caridade, na solidariedade, pagando cada camada social, voluntariamente,
com sua quota de abnegação, a quota das reparações
que às outras camadas se deverem.26
Observa-se, assim, por essas palavras,
que Rui, apesar de se constituir em um bravo lutador da causa social,
era também, e até se pode dizer principalmente, um conciliador,
que, querendo transformações profundas, queria todas elas
em um clima de paz, concórdia e fraternidade. Certamente, como
previamente já se apontou em algumas notas, há equívocos
inconciliáveis em seu pensamento, inquestionavelmente decorrentes
de sua afiliação ideológica aos postulados ortodoxos
do Liberalismo Clássico, ainda que, sob diversos aspectos importantes,
tenha se mostrado, paulatinamente, um moderado progressista e um cientificista
em ascensão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No
corpo de sua doutrina liberal Rui foi um ardoroso defensor da liberdade,
da Democracia e do respeito à humana dignidade. Lutou –
e por isso sofreu inúmeras perseguições políticas
– contra a ditadura, contra o arbítrio e os abusos do poder,
e foi visceralmente contrário a todas as formas de privilégios.
Como lembra Oliveira Vianna, há... o eterno em tudo o que
ele praticou e realizou em defesa das liberdades individuais e civis
do nosso povo.27 Bateu-se pelo respeito aos direitos
humanos, contra a exploração e contra a prepotência.
E o ápice de sua compreensão do social foi, indubitavelmente,
a conferência do Lírico, já que Rui nunca tinha
ido tão longe.
Enfim, Rui foi um devotado à causa
da justiça. Não só no que concerne ao seu ordenamento
jurídico – que o colocou, em sua época, como o maior
jurisconsulto do Brasil e um dos mais respeitados no mundo – mas
também no que hoje se acordou denominar justiça social.
Por isso, deixou seu nome inscrito como um dos mais representativos
de sua época, e a conferência de 1919 no Teatro Lírico
do Rio de Janeiro — na qual conclamou a sociedade a repensar seus
deveres para com todos os seus membros — foi, sem dúvida,
uma demonstração bela e admirável de sensibilidade
e de transformação, ao mesmo tempo em que corajosa e altruísta.
A personalidade de Rui não se compatibilizava com a estagnação.
Quanto ao posicionamento de Rui perante
as diversas correntes do Liberalismo no Brasil, Macedo, no Trabalho
Os Modelos do Liberalismo no Brasil, classifica-o entre os
liberais cientificistas, ao lado de Gaspar Silveira Martins, A. C. Tavares
Bastos, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, Sylvio Romero e Clóvis
Beviláqua. Segundo o mesmo pesquisador, as nove teses básicas
características desses liberais são: 1– Defesa intransigente
do Federalismo; 2– Abolicionismo imediato; 3– Convicção
da necessidade do progresso baseado em uma transformação
reformista não-revolucionária da sociedade; 4– Liberalismo
religioso implicando na separação da Igreja do Estado
e denúncia do Ultramontanismo; 5– Adoção
do Parlamentarismo; 6– Opção pela Democracia como
culminação do processo liberal de ampliação
do sufrágio; 7– Liberalismo econômico quanto às
funções do Estado, importando em comércio livre,
e ênfase no valor do Trabalho, da riqueza e da indústria
no País; 8– Educação básica como fator
de reforma social; e 9– Franqueamento social do Liberalismo aos
desamparados.28
Ao se compararem tais teses com a obra
de Rui, observa-se, claramente, todos esses pontos defendidos de forma
ardente e apaixonada.
Este
Trabalho-pensamento revisitou apenas rapidamente algumas delas. Talvez,
se Rui tivesse alcançado a idade provecta de Barbosa Lima Sobrinho,
teria feito revisões em seu pensamento. Possivelmente, teria
evoluído para uma forma de Liberalismo Cientificista dissidente,
ampliando as idéias sociais que defendeu tão ardorosamente
ao longo de seus 74 anos. Para Rui, navegar sempre foi preciso. Para
uma pesquisa mais aprofundada sobre o pensamento de Rui informa-se que
sua obra completa encontra-se à disposição do pesquisador
interessado na Casa de Rui Barbosa. (Consultar o Anexo I).
DADOS
SOBRE OS AUTORES
Fernando
César Pimentel Gusmão: Mestre em Educação
pela UFRJ. Ex-Diretor de Ensino do Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. É professor adjunto
IV (aposentado) do Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca. Atualmente é Coordenador de Pesquisa
e Desenvolvimento e Diretor Financeiro do Instituto de Desenvolvimento
Humano e Gestão Empresarial – IDHGE. Também é
consultor em Administração Escolar e Presidente da FUNCEFETEC.
Raul Rousso: Mestre em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ.
Doutorando em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ.
Ex-Diretor-Geral do Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca. Atualmente é Presidente do IGRAT da
Universidade Iguaçu, Diretor-Geral do Instituto de Desenvolvimento
Humano e Gestão Empresarial – IDHGE e Consultor de Empresas.
Professor Adjunto IV (aposentado) do Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca.
Rodolfo
Domenico Pizzinga: Mestre em Educação, UFRJ, 1980. Doutor
em Filosofia, UGF, 1988. Professor Adjunto IV (aposentado) do Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca. Consultor em Administração Escolar. Presidente
do Comitê Editorial da Revista Tecnologia & Cultura do CEFET-RJ.
Professor de Metodologia da Ciência e da Pesquisa Científica
e Coordenador Acadêmico do Instituto de Desenvolvimento Humano
- IDHGE.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1.
Na sua Memória Sobre a Eleição Presidencial, Rui
afirmou que na eleição de 1910, ao invés do resultado
oficial que dá ao Presidente eleito Marechal Hermes da Fonseca
402.019 votos contra 149.587 votos atribuídos ao candidato civil
(ele), na verdade, o resultado numérico foi outro: Rui, 200.359
votos, Marechal Hermes, 126.392 votos. Obras Completas de Rui Barbosa,
vol. XXXVII (1910), tomo II, pp. 332 a 347. Acredita-se que, dada a
diferença de votos apurados, para que prevalecesse a denúncia
de Rui, a fraude teria que ter sido extraordinária, o que parece
inverossímil. Por outro lado, considerando-se os meios disponíveis
da época, como pôde Rui compulsar todos os votos válidos
existentes e chegar a valores tão discrepantes? É difícil
admitir que os políticos da época pudessem dispor de um
mecanismo tão sofisticado de burla, para que conseguissem adulterar
o resultado de uma eleição presidencial no volume descrito
pelo candidato perdedor, e o povo e seus correligionários não
pudessem contestar e reverter o resultado. Não se pode esquecer
de que Rui candidatou-se duas vezes à Presidência da República
e foi derrotado nas duas tentativas.
2. MORAES FILHOS, Evaristo de. Rui Barbosa e a questão social.
Rio de Janeiro: edição privada, s.d., p. 4.
3. BARBOSA, Rui. Tribuna do povo: artigo programa. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde, 1951. (Obras
Completas de Rui Barbosa, v. 1, t. 1), pp. 22 e 23.
4. BARBOSA, Rui. Discurso proferido na sessão de 27 de junho:
In: BAHIA. Assembléia Legislativa. Annaes da Assembléa
Legislativa Provincial da Bahia: Sessões do anno de
1878. Bahia, Typ. Diário da Bahia, 1878, v. 1, apêndice
p. 9. Recentemente (2001), ouviu-se no Conselho de Ética do Senado
um não menos famoso e ilustre baiano invocar essa deplorável,
funesta e despótica razão de Estado, para justificar atos
injustificáveis. Para não perder o mandato de senador
da República acabou por tardiamente renunciar.
5. GONÇALVES, Silo. A águia de Haia. Rio de Janeiro:
Agir, 1947, p. 21.
6. MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Rui: o homem e o mito.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 412.
7. BARBOSA, Rui. Questão militar, abolicionismo, Trabalhos
jurídicos, Swift. Rio de Janeiro: MEC, 1955 (Obras Completas
de Rui Barbosa, v. 14, t. 1), p. 98.
8. BARBOSA, Rui. 5% Adicionais. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação e Saúde, 1947. (Obras Completas
de Rui Barbosa, vol. 16, t. 3), p. 121.
9. BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil.
Conferência pronunciada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro,
em 20 de março de 1919. São Paulo: LTR-Rio de Janeiro,
FCRB, 1983, p. 12.
10. Notável, estranhável mas explicável a participação
de Rui no Governo de Deodoro. Certamente deve ter havido resistências
à sua nomeação. Não se pode esquecer de
que, por essa época, os próceres do Positivismo brasileiro
eram figuras do porte de Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira
Mendes (1855-1927), cujas idéias ultra-ortodoxas acabaram, inclusive,
por levá-los ao rompimento com o Positivismo francês e
seus líderes, nomeadamente Émile Littré (1801-1881)
e Pierre Lafitte (1825-1903). Ainda que se possa compartilhar da idéia
de Antonio Paim, de que a República não tenha sido um
fenômeno eminentemente positivista, os comtistas de então
decididamente influíram nos caminhos do recém-nado Governo
Provisório e da incipiente República nacional em questões
cruciais, como, por exemplo, a inclusão emblemática do
lema positivista Ordem e Progresso no lábaro brasileiro e a separação
da Igreja do Estado. Em aditamento, há o fato de Rui ter cumulativamente
colecionado adversários poderosos ao longo da vida. De qualquer
forma, o surrealismo ideológico brasileiro (marca permanente
da ciência política nacional) resistiu, mas se permitiu
sucumbir habilmente às negociações, e encampou,
sem reverência, a investidura indesejada do consagrado jurisconsulto
baiano ao primeiro escalão do primeiro governo republicano brasileiro.
O fato é que Rui Barbosa, em nenhum momento, foi uma unanimidade
nacional. Causava mais mal-estar e inveja do que admiração.
Não obstante, tecnicamente fosse mais adequada a nomeação
de Rui para a pasta da Justiça, esta provavelmente lhe foi vedada,
pois o prestígio (direto ou indireto) de homens do quilate de
Luiz Pereira Barreto (1840-1923) no Governo de Deodoro era insuperável.
Ainda que Pereira Barreto (principal representante do Positivismo dissidente
ou ilustrado nacional, oposto, portanto, à ortodoxia de Miguel
Lemos) entendesse que o estado positivo não pudesse ser alcançado
pela via do isolamento, e que recomendasse uma aliança com os
representantes da metafísica brasileira para derrotar os teólogos
remanentes, afirmava que os jurisconsultos são uma classe do
período metafísico condenado ao desaparecimento. Rui,
metafísico, portanto, só assumiu em virtude daquilo que
hoje costuma ser denominado de correlação de forças.
Mas, conceder-lhe a pasta da Justiça era arriscado e perigoso
demais; já na Fazenda teria menos campo de manobra. Ainda que
tímidas e insuficientes, Rui queria mudanças que nem os
monarquistas remanescentes nem os republicanos e positivistas de então
podiam aceitar. Entretanto, o que é mais curioso, contraditório
e surrealista, foi fato de a cúpula ortodoxa positivista tentar
preencher o vazio religioso nacional, ao sonhar com a possibilidade
de a Igreja Positivista ocupar, na República, o lugar usufruído
pela Igreja Católica durante a monarquia. A Religião da
Humanidade (o ponto culminante da sociologia positivista é a
idéia de Grand-Être, ou seja, a totalidade dos seres humanos),
na verdade cada vez mais próxima da teologia católica,
nunca teve ascendência cultural de destaque no Brasil, não
se podendo, comparativamente, atribuir à sua ação,
o êxito relativo alcançado pelo Positivismo, por exemplo,
na esfera do Direito, que se consubstanciou em frontal oposição
ao autoritarismo republicano. Entretanto, o tempo haveria de mostrar
que a influência do Positivismo ilustrado brasileiro seria (como
foi), no plano político, derrotada e anulada pelas vertentes
autoritárias. (Para melhor e mais amplas informações
sobre esses temas, consultar as obras O Apostolado Positivista
e a República e Plataforma Política do Positivismo
Ilustrado, ambas de 1981, da autoria de Antonio Paim).
11. PEREIRA, Lucilla Maria Ruy Barbosa Baptista. Ruy Barbosa e a
questão social. Revista dos Advogados Brasileiros, 7 (41):
29-58, dez., 1973, p. 31.
12. BARBOSA, Rui. Orações do apóstolo.
Rio de Janeiro: Edição da Revista de Língua Portuguesa,
1923, pp. 103 e 104.
13. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José. Instituições
Políticas Brasileiras. 3ª ed. Rio de Janeiro/São
Paulo: Record, 1974, v. 2, p. 37.
14. Ainda que as propostas de Rui, presumidamente, emancipassem e redimissem
os negros, não os transformariam (como não transformaram)
efetivamente em cidadãos plenos. A cidadania não pode
ser alcançada apenas pela posse parcelar da terra, pela instrução
elementar e com os rudimentos de uma instrução agronômica,
como preconizou Rui. Cidadão é um indivíduo no
gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho
de seus deveres. Os párias de hoje e de sempre, os sem-teto,
os sem-terra, os sem-Trabalho, os índios, os curumbas e tantos
outros, serão estes positivamente cidadãos? Quinhoar
desigualmente os desiguais, como viria a proclamar Rui há
oitenta e dois anos, pode ser filosoficamente correto, mas é
politicamente perigoso e, histórica e socialmente, um desastre.
Desde sempre, isto é, da Roma Antiga, por exemplo, às
monarquias absolutistas e tirânicas modernas, passando pelas diversas
modalidades de ditaduras da contemporaneidade, os déspotas e
seus sequazes, qualquer que seja a confissão ideológica
que professem, sempre se locupletaram com o poder nem sempre outorgado
pelo povo. As leis (?) foram e são elaboradas e promulgadas pelos
detentores do poder, para beneficiar, quase exclusivamente, as classes
dominantes. O laissez-faire, laissez-passer – do Liberalismo
ao Neoliberalismo – acabou, também, por produzir a tão
famigerada globalização (por enquanto mera mutação
maquilada do imperialismo Capitalista neoliberal), que vem se notabilizando
pela ascensional assimetria de suas diretrizes econômico-financeiras,
e pela insensibilidade político-fiscal que impõe aos países
do Terceiro e do Quarto Mundos, multiplicando geometricamente uma sangria
de receitas e de recursos, e avultando uma dívida externa progressiva
impossível de ser satisfeita, pelo menos no que concerne ao principal
– o que já é em si uma insensatez. Aliás,
o que menos desejam os países credores é que os saldos
devedores sejam quitados pelos países que se socorrem dos créditos
internacionais. Há instrumento de pressão e de persuasão
mais poderoso do que uma ação isolada ou combinada sobre
países como o Brasil, proprietários de uma dívida
externa absurdamente mal adquirida? Entretanto, é claro que a
globalização é o caminho – o único
caminho – para minimizar as desigualdades sociais mundiais; mas
é também óbvio que todos os critérios que
a originarem e nos quais ainda está ancorada terão que
ser drasticamente redirecionados e reavaliados. A globalização,
tal como é praticada, é egoísta, é mesquinha,
é interesseira, é falsa, é usurpadora, é
ilegítima e é autoritária. É, na realidade,
da forma como está estruturada um novo totalitarismo dissimulado,
fraudulento, sangradouro e exterminador. Um estudo estratégico
divulgado recentemente (2001) pela Agência Central de Inteligência
(CIA) concluiu que, se continuarem a prevalecer as diretrizes que atualmente
norteiam a economia global, em 2015 as diferenças hoje existentes
entre os países ricos e os países pobres serão
mais marcantes e inconciliáveis. Algumas das conseqüências
apontadas pelo estudo são: três bilhões de seres
humanos não terão acesso à água; os atentados
e as diversas formas de violência serão incrementados;
aumentará o número de famintos, de desempregados e de
doentes; as desigualdades sociais e culturais serão mais perversas
e mais flagrantes; e, os conflitos internacionais mais freqüentes.
A pesquisa informa, ainda, que os EEUU continuarão a ser a primeira
superpotência e o país mais rico do mundo. Isto faz lembrar
uma outra pesquisa-pilhéria internacional que apresentava a seguinte
questão: Por favor, qual a sua opinião sobre a escassez
de alimentos no resto do mundo? O resultado foi um fracasso, porque:
a) na Argentina, ninguém sabia o que era por favor;
b) no Leste Europeu, o que representava opinião;
c) na Europa Ocidental, o que significava escassez;
d) na África, o que poderiam ser alimentos;
e e) nos EEUU, onde se situava o resto do mundo. A
Regra da Igualdade tem outras implicações não alcançadas
por Rui e muito menos pelos ideólogos e pelos governantes modernos
e contemporâneos. Acreditar que os fatos econômicos se desenvolvam
eticamente por si sem nenhuma interferência legislativa (ou sob
uma legislação privilegiável e anacrônica
– o que é mais desapropriado e mais malévolo, pois
legaliza a usura) é permitir a gestação e o parto
de toda a sorte de rupturas, de desnivelamentos e de impasses. No Brasil,
hoje, este tipo de diretiva político-econômica (neoliberal
travestida de social-democrata), ameaça, inclusive e principalmente,
a própria soberania nacional, ao mesmo tempo em que fragiliza
e compromete sua autodeterminação. Talvez, os mais perversos
filhotes (entre tantas perversidades) desta desapropriada ideologia,
calcada em um Neoliberalismo voraz, insensível e mentiroso, sejam
a crescente taxa de desemprego, o endividamento público e privado,
a recessão implícita, o empobrecimento nacional e a desesperança
do operariado brasileiro, todos derivados dos obscuros e sucessivos
ajustes fiscais promovidos e patrocinados pelas elites econômicas
brasileiras (cumprindo ordens de fora), que apresentam e veiculam estatísticas
manipuladas e vãs, tentando propagandisticamente disseminar informações,
justificando que a qualidade de vida tem melhorado porque aumentou o
poder aquisitivo da população, e, em conseqüência
disto, a estabilidade da moeda deve ser mantida a qualquer preço.
Doa a quem doer. Ora, essa tergiversação só pode
ser engolida pelos tolos e pelos desinformados. Dentre os vários
sofismas instrumentalizados pela atual equipe política e econômica
brasileira, podem ser apontados o Fundo de Combate à Pobreza
e o valor do salário-mínimo vigente. Com restrições,
se aceita uma escala decimal para remunerar
o Trabalho. Melhor seria uma escala salarial de sete valores.
Países como o Brasil estão sentados sobre uma bomba relógio
e não ouvem o seu tique-taque. A Argentina explodiu recentemente.
Nada pode justificar, por outro lado, o vagalhão de privatizações
a que se assistiu recentemente no Brasil. O Liberalismo Cientificista
de Rui não poderia, obviamente, prever o buraco negro em que
se meteria a Ilha de Vera Cruz. Como poderia conjeturar o jurista salvadorense,
que as dívidas interna e externa do País chegassem aonde
chegaram, e que o Brasil acabasse por ficar prisioneiro das políticas
econômico-fiscais impostas, principalmente, pelo Fundo Monetário
Internacional – FMI e pelo Banco Mundial? Outrossim, sob outro
prisma, as proposituras de Rui no campo social ficaram aquém
dos anseios justos e legítimos do então seguimento excluído
nacional. Não há cidadão de segunda categoria.
Cidadão é, antes e acima de tudo, gente. Portanto, em
uma sociedade meritocrática, todos têm direito a tudo.
Privilégio é outra coisa. Apenas emancipar e/ou redimir,
continuava a ser dar meia liberdade aos ex-escravos. A proposta insubstituível
seria integrar os despossuídos e humilhados imediatamente na
sociedade, não os discriminando pelo passado desumano, insalubre,
fedorento e desesperançado que lhes foi imposto. A exclusão
social do negro – que ainda acontece maquiada no País –
continua sendo uma mácula e uma dívida por resgatar. Neste
particular, Rui foi equivocadamente parcimonioso e ingênuo. Talvez,
por acreditar que a sociedade não poderia igualar o que a Natureza
criou desigual. Talvez, por não se ter integralmente liberto
do lado mais tenebroso do liberalismo clássico aprendido na casa
paterna. Talvez, por crer que os negros de então eram menos aptos
ou capazes do que os outros estamentos sociais. Nessa matéria,
portanto, Rui foi, apenas, solidário. Nabuco, ainda que monárquico,
foi colossal e incomparável.
15. BARBOSA, Rui. A questão social..., op. cit., p.
19.
16. Op. cit., p. 19.
17. Id.
18. BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Ed.
popular anotada por Adriano da Gama Kury, 2ª ed. rev. Rio de Janeiro:
FCRB, 1985, p. 21.
19. BARBOSA, Rui. A questão social..., op. cit., pp.
39 e 43. No que concerne à igualdade dos sexos perante o Trabalho,
tal princípio veio a prevalecer na CLT - Decreto-Lei no 5.452,
de 1º de Maio de 1943 - transformando-o, posteriormente, em preceito
constitucional (Emenda Constitucional no 1, de 1969, Art. 165, inciso
III). Hoje, também, o Trabalho do menor acha-se regulamentado.
Menores de 12 anos estão, legalmente, impedidos de trabalhar,
e é vedado Trabalho noturno e em indústrias insalubres
a menores de 18 anos. Quanto à limitação das horas
de Trabalho — justa conquista da classe trabalhadora — a
jornada, hoje, é de 8 horas. A CLT disciplina, hoje, também,
o Trabalho noturno. Há, presentemente, a exigência constitucional
de que o Trabalho noturno (que não deixa de ser aniquilador)
seja mais bem remunerado do que o diurno. De qualquer forma, é
uma escravização. Ao prestador do Trabalho domiciliar,
hoje, está assegurado o salário mínimo (ainda que
medíocre e totalmente insuficiente), garantido, outrossim, por
preceito constitucional. A proteção à empregada
gestante encontra-se, hoje, igualmente, disciplinada na CLT, e constitui,
bem assim, preceito constitucional. (Mas, quando retornam ao Trabalho,
geralmente são despedidas. Mãe não produz!!!).
O trabalhador, presentemente, também está segurado contra
acidentes de Trabalho. É um seguro de merda, mas é alguma
coisa. Em anos recentes, outras medidas foram implementadas no sentido
de minimizar os efeitos da voracidade neoliberal, como é o caso
do vale-transporte e do vale-refeição. O seguro-saúde
é opcional. (Então, a maioria não contempla seus
funcionários com este bem). E o seguro-desemprego serve apenas
para paliar um modelo econômico equivocado, que continua ainda
a privilegiar e a proteger o Capital em detrimento do Trabalho. Este
expediente econômico é mais um deus ex machina
para encobrir o fracasso do modelo econômico neoliberal brasileiro.
Outra pirueta econômica já referida (vide referência
14) da Democracia autoritária a que está hoje sujeito
o Brasil foi a recente criação HIPÓCRITA
do Fundo de Combate à Pobreza. Os motivos são evidentes
demais para serem neste ensaio discutidos.
20. Op. cit., p. 54.
21. Op. cit., p. 52. A questão não se restringe nem a
obedecer, nem mesmo a melhorar, mas, por outro lado, perceber e reconhecer
o que é política, econômica, ideológica e
socialmente mais eqüitativo, mais distributivo e socialmente mais
justo. É óbvio e flagrante que o Neoliberalismo de hoje
e o Liberalismo de Rui jamais contemplaram tais categorias. Quem abocanha
uma jugular não solta jamais.
22. Op. cit., p. 53. O mínimo que se pode
comentar nesta oportunidade é que, enquanto os gastos com mão-de-obra
forem embutidos nos custos finais dos produtos e a mais-valia não
for abolida (eliminada), a conciliação entre Capital e
Trabalho será sempre dissimétrica e dolorosa. Aliás,
Capital e Trabalho, sob a ótica liberal ou neoliberal, podem
até ser conciliáveis, mas, no âmago de suas funções,
serão sempre antagônicos e incompatíveis. Este ensaio,
entretanto, não se destina a expor ou discutir uma nova teoria
econômica, mas, salvo melhor juízo, parece que, universalmente,
observam-se esforços – ainda que tímidos –
no sentido do alcançamento de uma Paz Perpétua de cariz
kantiano, ou de uma possibilidade de paz por todos aceita, defendida,
subscrita e respeitada. Entrementes, é preciso se ter como norte
de qualquer negociação, que tal Paz só será
viável se e quando uma nova ordem econômico-social-jurídico-educacional
for estruturada e estabelecida, tanto longitudinal quanto latitudinalmente,
tanto na essência quanto na implementação. Aqueles
que já se conscientizaram dos perigos dos possíveis e
previsíveis resultados oriundos da globalização
tal como tem sido implementada e praticada, têm envidado esforços
no sentido de corrigir os mecanismos cruéis e egoístas
que a têm sustentado. Há, por exemplo, que substantivamente
serem repensados os sentidos dos vocábulos legalidade e legitimidade.
Pergunta-se: Há legitimidade na legalidade de alguns salários
que alcançaram cifras 100, 200, 300 e até 2 000 vezes
maiores do que o valor estabelecido para o salário-mínimo
vigente no Brasil? Pergunta-se: Os sistemas financeiro e bancário
podem continuar a desfrutar os lucros que auferem? A quem interessa
o perpétuo pagamento dos serviços das dívidas interna
e externa dos países devedores (o Brasil inclusive e primordialmente)?
Há, indubitavelmente, outras indignações que não
precisam ser recordadas, e que Rui, talvez, não tenha previsto
ou se apercebido. O que é certo, porém, é que conciliar
patrões e empregados, pode se consubstanciar em uma tratativa
eficiente, e até em um pacto eficaz, todavia, jamais será
cristalinamente um acordo justo e efetivo. O fato (o nó górdio)
inconciliável é que, o que a Natureza oferta gratuitamente
não pode ser comprado ou vendido. E a Natureza tudo oferece sem
nada pedir em contrapartida. Comprar e vender são pratos de uma
mesma balança cujo fiel é a Ética (Universal).
O lucro, assim, não pode escravizar, submeter, espoliar ou amesquinhar.
A lucratividade não pode estar baseada na mais-valia, nem nas
diferenças interpessoais, intersociais e internacionais. A sociedade
planetária é um corpo orgânico, uno, e, lucrar,
pura e simplesmente, é considerá-la um aglomerado de partículas
inorgânicas. Isto, todavia, nem sequer é verdade para os
minérios e minerais, que nada mais são do que corpos orgânicos
em estado de dormência, cuja vida está latente. Lucrar,
assim, só pode ter um significado social, se embutir os conceitos
de partilhar e dividir, apoiados em ações efetivas que
reflitam, transparentemente, o realizar e o concretizar. O homem é
um ser social, encravado em uma sociedade múltipla, todavia,
orgânica. A única alternativa de indissolubilidade e de
eqüidade social é pela co-participação e pela
co-gestão, não só de patrões e empregados
(ou entre Capital e Trabalho), mas de toda a sociedade e entre todos
os países. A última coisa que a Humanidade haverá
de compreender nessa matéria, é que o lucro, tal como
hoje concebido, é uma impossibilidade, ainda que legalmente amparado.
Se alguém lucra, é porque outrem perde.
Se uns têm em excesso, é porque outros têm
muito pouco, ou nada têm. A desigualdade
social advém exatamente do fato de a sociedade ainda estar desigualmente
estruturada e, em conseqüência deste desvario, desigualmente
tratar, os que na verdade, pelo sangue, são iguais, como desiguais.
Este, talvez, tenha sido o grande equívoco de Rui e do Liberalismo
Cientificista que ele maiormente representou em sua época. A
Democracia nos moldes em que hoje se apresenta, não pode, como
queria Rui, ser a culminação do processo liberal. O Liberalismo
econômico é apenas mais um tentáculo ideológico
da ignorância e da avareza humanas, e a Democracia, da forma como
está estruturada, acabará compulsoriamente por fracassar.
23. BARBOSA, Rui. Casas para operários. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde, 1948. (Obras
Completas de Rui Barbosa, vol. 19, t. II), pp. 237 a 258.
24. PEREIRA, Lucilla Maria Ruy Barbosa Baptista. Ruy Barbosa...,
op. cit., p. 33. De qualquer forma, acredita-se que a simples isenção
do recolhimento do imposto predial não solucionaria o problema.
Presentemente, a marginalização e exclusão dos
despossuídos alastraram-se pandemicamente no mundo e maiormente,
por exemplo, na África, na República do Haiti e no Brasil.
25. Esta se acredita, é outra das lacunas de percepção
do pensamento ruiano. Ainda que a propriedade privada seja legalmente
lícita (quando realmente é, o que é raro), a legislação
que sempre permitiu e tolerou a constituição e formação
de latifúndios, oligopólios (nacionais e multinacionais),
megaempresas, blocos etc., paralelamente, sempre privilegiou o Capital
em detrimento das classes trabalhadoras, e, por extensão, da
sociedade como um todo orgânico que é. A própria
escravidão, que vinha de longe, foi um dos mais malevolentes
subprodutos do feudalismo. O grande Aristóteles, lamentavelmente,
com ela contemporizou. Aliás, o Estado de subconsciência
(ou de semiconsciência) da sociedade pode ser debitado em parte
a certas proposituras estabelecidas pelo peripatetismo e pelo tomismo,
que exerceram e ainda exercem grande influência no pensamento
ocidental. O modelo aristotélico-tomista ainda viceja em certas
confrarias. A posse imprópria das terras criava uma relação
de dependência entre suseranos e vassalos, cujas moedas de troca
eram, particularmente, o Trabalho de Sísifo, a comida e a tortura
como instrumento de persuasão. Que finalidade social podem ter
áreas urbanas ou rurais não aproveitadas, mal empregadas,
ou subutilizadas? A reforma agrária vigente hoje no Brasil (ainda
que morosa e mal estruturada) tem desvelado o quão indébito
foi o assenhoreamento de terras, e o quanto distraída, desinteressada,
incompetente, desinformada, indolente e cúmplice foi a sociedade
civil (e a própria Religião Católica), ao ter aceito,
durante séculos, as apropriações legais (?) e indevidas
que se sucederam e multiplicaram. Por outro lado, reforma agrária
sem o respectivo assentamento e o adequado crédito rural torna-se
inócua. A própria demarcação das terras
indígenas vem se arrastando por décadas a fio. Aliás,
curiosamente, o poderoso invade, mata, apodera-se, estupra e depois
demarca. Se prevalecessem as súplicas de Rondon... A Humanidade,
enfim, haverá, no futuro, de compreender, que a terra (e seus
frutos) não podem ser comprados ou vendidos. As ideologias políticas
e religiosas que sustentam que o homem (legalmente) deve exigir e tomar
posse, porque... é uma deturpação insana e hedionda
do próprio sentido da vida, da organização macroscópica
universal e da convivência social. Nesse particular, interpretam-se
erroneamente os vocábulos direito e privilégio. Direito
vincula-se à legalidade e ao que representa a realidade; privilégio
submete-se à legitimidade e ao entendimento do que é atualidade.
Logo, a apropriação e a lucratividade podem ser legais
(nos casos em que realmente são); jamais serão legítimas.
A atualidade do Universo não é cartorial. Ainda que parte
do conhecimento possa ser adquirida pela indução a verdadeira
sabedoria só se instalará paulatinamente no ser pela via
dedutiva. Bons frutos colherá aquele que se dispuser a fazer
um estudo sistemático e comparativo das obras platônica
e aristotélica. O passo posterior será examinar criteriosa
e cuidadosamente as Eneadas de Plotino e o pensamento de Francis
Bacon, reduzindo o que puder ser reduzido aos planos dianóico
e/ou noético. Como disse Alfred North Whitehead, a ciência
moderna induziu na Humanidade a necessidade de descrer. Seu
progressivo pensamento e sua progressiva tecnologia fizeram da transição
pelo tempo, de geração para geração, uma
verdadeira migração para um ignoto oceano de aventuras.
O próprio benefício da descrença está em
que ela é perigosa e requer habilidade para evitar males. Devemos
esperar, portanto, que o futuro revele perigos... Portanto, só
pelo aprofundamento das reflexões sobre a Filosofia da Ciência
poderá o homem compreender o Universo, a sociedade e a si próprio.
Os autores não estão, neste ensaio, levando em consideração
o Processo Iniciático. Assim, ao serem descobertos os padrões
dos eventos, estes devem ser interpretados; mas só a Filosofia
poderá unificar as diversas descobertas da ciência em uma
ordem compreensível. Na asserção, estavam (e estão)
certos os positivistas; a razão (filosófica), todavia,
era por eles rejeitada. Progresso sem ordem é caos. Acrescenta-se:
ordem baseada principalmente na indução poderá
gerar o supremo caos. Talvez, um dia, se descubra que o Sol é
azul e não amarelo, e se aprenda o significado universal do número
111 (cento e onze)!
26. BARBOSA, Rui. A questão social..., op. cit., p.
55.
27. OLIVEIRA VIANNA, op. cit., p. 59.
28. MACEDO, Ubiratan Borges de. Os modelos do liberalismo no Brasil.
Rio de Janeiro: edição privada, 1986, p. 5.
SITES CONSULTADOS
http://www.projetomemoria.art.br/RuiBarbosa/periodo3/lamina17/
http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=1217
http://www.ibmcomunidade.com/portinari/galeriadeimagens.htm
http://www.utopia.com.br/isabel/prosas.html
http://www.camara.gov.br/internet/camara180/280703.asp
http://www.casaruibarbosa.gov.br/
http://www.vivabrazil.com/rui_barbosa.htm
http://www.culturabrasil.pro.br/nabuco.htm
ANEXO
I
RUI BARBOSA (Textos Escolhidos)
Fonte: http://www.academia.org.br/cads/10/rui.gif
Acesso: 30/12/2003
Rui Barbosa, advogado, jornalista, jurista,
político, diplomata, ensaísta e orador, nasceu em Salvador,
BA, em 5 de Novembro de 1849, e faleceu em Petrópolis, RJ, em
1° de Março de 1923. Membro fundador da Academia, escolheu
Evaristo da Veiga como patrono da Cadeira n° 10 da Academia Brasileira
de Letras.
O pai, João Barbosa de Oliveira,
foi um homem voltado para os problemas da educação e da
cultura. Durante anos, dirigiu a Instrução Pública
de sua província. Foi ele a principal influência na formação
do filho, orientando-o no amor à leitura dos clássicos
e no respeito à documentação em suas pesquisas.
Depois dos estudos preparatórios
na província natal, Rui foi fazer o curso jurídico em
Recife. Conforme a tradição da época, transferiu-se,
em 1868, para a Faculdade de Direito de São Paulo. Lá,
foi proposto sócio, juntamente com Castro Alves, do Ateneu Paulistano,
então sob a presidência de Joaquim Nabuco. Em sessões
cívicas organizadas pelo Ateneu, recita poemas seus. Antes do
fim de seu segundo ano do curso, já era jornalista conhecido.
Após a formatura, em 1870, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde
iniciou a carreira na tribuna e na imprensa, abraçando como causa
inicial a abolição da escravatura. Deputado Provincial,
e depois Geral, preconizou, juntamente com Joaquim Nabuco, a defesa
do sistema federativo. Convidado para Ministro do Gabinete Afonso Celso,
pouco antes da Proclamação da República, Rui Barbosa
recusou o cargo, porque este era, no momento, incompatível com
suas idéias federativas. Proclamada a República, Rui foi
escolhido para Ministro da Fazenda do Governo Provisório, e respondeu,
durante algum tempo, pela pasta da Justiça. Eleito Senador pela
Bahia à Assembléia Constituinte, seus conselhos prevaleceram
nas reformas principais e a sua cultura modelou as linhas fundamentais
da Carta de 24 de Fevereiro de 1891. Discordando do golpe que levou
Floriano Peixoto ao Governo, requereu habeas-corpus em favor
dos cidadãos presos pelo governo ditatorial de Peixoto. Como
redator-chefe do Jornal do Brasil, abriu campanha contra a situação
florianista. Em 1893, foi obrigado a se exilar. Dirigiu-se, em primeiro
lugar, para Buenos Aires, depois para Lisboa, onde alguns incidentes
levaram-no a escolher Londres. Escreveu, então, as famosas Cartas
da Inglaterra para o Jornal do Commercio. Foi a primeira voz no mundo
a levantar-se contra o Processo Dreyfus.
Restaurada a ordem no Brasil, em 1895
Rui Barbosa regressou do exílio. Tomou assento no Senado, no
qual se conservaria até à morte, sucessivamente reeleito.
Destacam-se os seus trabalhos na redação do Código
Civil. Epitácio Pessoa, então Ministro da Justiça,
havia entregue essa tarefa a um jovem jurista pernambucano, Clóvis
Beviláqua. Rui se opôs à pressa com que o Governo
realizara a obra. Depois de revisto por várias comissões,
foi o projeto ao Senado, em 3 de Abril de 1902, e Rui Barbosa escreveu,
em poucos dias, o seu “Parecer”, que o levaria a uma polêmica,
durante a qual sua “Réplica” se tornaria famosa.
Em 1905, a Bahia levantou sua candidatura à Presidência
da República, mas Rui abriu mão da mesma para decidir
a favor de Afonso Pena.
Quando, em 1907, o Tzar da Rússia
convocou a 2ª Conferência da Paz, em Haia, o Barão
do Rio Branco, no Ministério das Relações Exteriores,
escolheu primeiramente Joaquim Nabuco para chefiar a delegação
brasileira, mas a imprensa e a opinião pública lançaram
o nome de Rui Barbosa. Joaquim Nabuco recusou o lugar e dispôs-se
a ajudar, com informações de toda a espécie, o
trabalho de Rui Barbosa, investido de uma categoria diplomática
não desfrutada até então por nenhum país
da América Latina.
Seu papel em Haia foi de grande importância.
Bateu-se sobretudo pelo princípio da igualdade jurídica
das nações soberanas, enfrentando irredutíveis
preconceitos das chamadas grandes potências. Além de nomeado
Presidente de Honra da Primeira Comissão, teve seu nome colocado
entre os Sete Sábios de Haia. Os outros eram: o Barão
Marshall, Nelidoff, Choate, Kapos Meye, Léon Bourgeois e o Conde
Tornielli. De volta ao Brasil, interveio no início da sucessão
presidencial. Apresentada a candidatura do Marechal Hermes da Fonseca,
a ela se opôs, lançando-se em sua campanha civilista, de
grande repercussão em todo o País. Em 21 de Julho de 1910,
contestou, perante o Senado, a eleição do Marechal.
Em 1913, fundou o Partido Liberal, sendo
mais uma vez indicado para a Presidência da República,
candidatura de que desistiu. No ano seguinte, combateu o estado de sítio
numa série de discursos no Senado. Durante a I Guerra Mundial,
tomou o partido dos aliados e produziu discursos lapidares de execração
à tirania e ao imperialismo. Nomeado Embaixador Especial para
as festas centenárias da Independência argentina (1916),
pronunciou notável conferência sobre as Modernas concepções
do Direito Internacional, definindo os deveres dos países neutros.
Em 1918, o Brasil comemorou o jubileu cívico de Rui Barbosa e
quase o mundo inteiro associou-se a essa consagração.
Convidado pelo Presidente Rodrigues Alves para representar o Brasil
na Conferência da Paz de Versalhes, recusou a embaixada, expondo
em famosa carta, dirigida ao Chefe da Nação, as razões
da incompatibilidade. Em 1919, foi novamente levantada sua candidatura
à Presidência da República, e ele percorreu vários
Estados em campanha contra a decadência dos nossos costumes políticos.
A vitória da campanha foi anulada pela intervenção
militar. Por divergências daí resultantes com o Governo
Epitácio Pessoa, em 1920, recusou a representação
do Brasil na Liga das Nações. Dentro das comemorações
do seu jubileu jurídico, como paraninfo dos bacharelandos de
São Paulo, escreveu e proferiu a Oração dos Moços.
Em 1921, foi eleito juiz da Corte Internacional de Justiça, como
o mais votado, recebendo as mais significativas homenagens do Brasil
e de todo o mundo. Em 1922, proferiu o último discurso no Senado,
concedendo o estado de sítio ao governo para dominar o movimento
revolucionário. A notícia do seu falecimento, em 1°
de Março de 1923, foi comentada no mundo inteiro. O Times, de
Londres, dedicou-lhe um espaço nunca antes concedido a qualquer
estrangeiro.
Na produção imensa de Rui
Barbosa, as obras puramente literárias não ocupam a primazia.
Ele próprio questionou se teria sido um escritor por ocasião
do seu jubileu cívico, a que alguns quiseram chamar literário.
Em um discurso em resposta a Constâncio Alves, destacou de sua
obra as páginas que poderiam ser consideradas literárias:
O elogio do Poeta (Castro Alves), a oração do Centenário
do Marquês de Pombal, o ensaio Swift, a crítica do livro
de Balfour, incluída nas Cartas de Inglaterra, o discurso do
Liceu de Artes e Ofícios sobre o desenho aplicado à arte
industrial, o discurso do Colégio Anchieta, o discurso do Instituto
dos Advogados, o Parecer e a Réplica acerca do Código
Civil, as traduções de poemas de Leopardi e das Lições
de coisas de Calkins, e alguns artigos esparsos de jornais. A esta relação,
Américo Jacobina Lacombe acrescentou alguns dos discursos que
Rui proferiu nos últimos cinco anos de vida, como os do jubileu
cívico e a Oração aos Moços, as outras produções
reunidas em Cartas de Inglaterra, o discurso a Anatole France, e o discurso
de adeus a Machado de Assis. A produção jornalística
puramente literária, a que Rui se referiu genericamente como
alguns artigos esparsos de jornais, daria alguns alentados volumes.
Obras: Alexandre Herculano,
discurso (1877); Castro Alves, discurso (1881); Reforma do Ensino Secundário
e Superior, pareceres (1882); O Marquês de Pombal, discurso (1882);
Reforma do Ensino Primário, pareceres (1883); Swift, ensaio (1887);
Cartas da Inglaterra, ensaios (1896); Parecer e Réplica Acerca
da Redação do Código Civil, filologia (1904); Discursos
e Conferências (1907); Anatole France, discurso (1909); Páginas
Literárias, ensaios (1918); Cartas Políticas e Lterárias,
epístolas (1919); Oração aos Moços, discurso
(1920); editado em livro em 1921); Queda do Império, história,
2 vols. (1921); Orações do Apóstolo, discursos
(1923); Obras completas, organizadas pela Casa de Rui Barbosa, 125 vols.
ANEXO
II
RUI BARBOSA
Mário Brockmann Machado
Presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa
Rui
Barbosa foi, sem dúvida, um dos mais importantes personagens
da História do Brasil.
Rui
era dotado não apenas de inteligência privilegiada, mas
também de grande capacidade de Trabalho. Essas duas características
permitiram-lhe deixar marcas profundas em várias áreas
de atividade profissional: no campo do direito - seja como advogado,
seja como jurista - do jornalismo, da diplomacia e da política.
Foi
deputado, senador, ministro e candidato à Presidência de
República em duas ocasiões, tendo realizado campanhas
memoráveis. Seu comportamento sempre revelou sólidos princípios
éticos e grande independência política.
Participou
de todas as grandes questões de sua época, entre as quais
a Campanha Abolicionista, a defesa da Federação, a própria
fundação da República, e a Campanha Civilista.
Mesmo
admirando a cultura francesa, como todos os intelectuais de sua época,
Rui conhecia também a fundo o pensamento político constitucional
anglo-americano, que, por seu intermédio, tanto influenciou a
nossa primeira Constituição republicana. Era um liberal,
e foi sempre um defensor incansável de todas as liberdades.
Orador
imbatível e estudioso da língua portuguesa, foi presidente
da Academia Brasileira de Letras em substituição ao grande
Machado de Assis.
Sua
produção intelectual é vastíssima. Basta
dizer que a Fundação já publicou mais de 137 tomos
de suas obras completas, e ainda temos material para novas edições.
Rui
representou o Brasil com brilhantismo na Segunda Conferência Internacional
da Paz, em Haia e, já no final de sua vida, foi eleito Juiz da
Corte Internacional de Haia, um cargo de enorme prestígio.
Em
suma, Rui foi um cidadão exemplar, e ainda hoje sua memória
é fonte de inspiração para um grande número
de brasileiros.
ANEXO
III
O JUSTO E A JUSTIÇA POLÍTICA
(Rui Barbosa)
Para
os que vivemos a pregar à república o culto da justiça
como o supremo elemento preservativo do regímen, a história
da paixão, que hoje se consuma, é como que a interferência
do testemunho de Deus no nosso curso de educação constitucional.
O quadro da ruína moral daquele mundo parece condensar-se no
espetáculo da sua justiça, degenerada, invadida pela política,
joguete da multidão, escrava de César. Por seis julgamentos
passou Cristo, três às mãos do dos judeus, três
às dos romanos, e em nenhum teve um juiz.
Aos
olhos dos seus julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência
divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga.
Não há tribunais que bastem para abrigar o direito, quando
o dever se ausenta da consciência dos magistrados.
Grande
era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção
da divindade do papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença
contrária à verdade afastava do seio de Israel a presença
do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas
por uma hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era
na função de julgar que tinha a sua habitação
entre os israelitas a majestade divina. Tampouco valem, porém,
leis e livros sagrados quando o homem lhes perde o sentimento, que exatamente
no processo do justo por excelência, daquele em cuja memória
todas as gerações até hoje adoram por excelência
o justo, não houve no código de Israel norma, que escapasse
à prevaricação dos seus magistrados.
No
julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma
hora talvez antes da meia-noite de Quinta-feira, tudo quanto se fez
até ao primeiro alvorecer da Sexta-feira subseqüente, foi
tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos
hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim,
foi o primeiro simulacro de formação judicial, o primeiro
ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade,
porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo
que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações
o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos,
que faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do
direito.
O
próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade
judicial o interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência,
como na maneira de inquirir; e a resignação de Jesus ao
martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: Tenho
falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo,
a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas.
Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses
sabem o que eu lhes houver dito. Era apelo às instituições
hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas
singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade
nos depoimentos criminadores não poderia haver condenação.
O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria
em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno
jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juizes,
logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice.
Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se
no ponto de vista legal: Se mal falei, traze o testemunho do mal;
se bem, por que me bates?
Anás,
desorientado, remete o peso a Caifás. Este era o sumo sacerdote
do ano. Mas, ainda assim, não, não tinha a jurisdição,
que era privativa do conselho supremo. Perante este já muito
antes descobrira o genro de Anás a sua perversidade política,
aconselhando a morte a Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe
agora levar a efeito a sua própria malignidade, "cujo
resultado foi a perdição do povo, que ele figurava salvar,
e a salvação do mundo, em que jamais pensou".
A
ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não
admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o
escândalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo próprio
juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído
como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos
que promovessem, lhe não acharam a culpa que buscavam. Jesus
calava. Jesus autem tacebat. Vão perder os juizes prevaricadores
a segunda partida, quando a astúcia do sumo sacerdote lhes sugere
o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás
em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não
podia resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a
se confessar, aquele, que a não renegara, vê-se declarar
culpado de crime Capital: Reus est mortis. Blasfemou! Que necessidade
temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia. Ao que clamaram
os circunstantes: é réu de morte.
Repontava
a manhã, quando à sua primeira claridade se congrega o
sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho
inteiro. In universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava
a primeira satisfação às garantias judiciais. Com
o raiar do dia se observava a condição da publicidade.
Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito
da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses
eram os juizes legais. Mas juizes, que tinham comprado testemunhas contra
o réu, não podiam representar senão uma infame
hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados para condenar, deixando
ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses
tribunais que se conchavam de véspera nas trevas, para simular
mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.
Saía
Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim
não tinha o jus sanguinis. Não podia pronunciar
a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo veredictum,
porém, antes opinião jurídica do que julgado, não
obrigava os juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos
livres, para condenar, ou absorver. Que acusação trazeis
contra este homem? assim fala por sua boca a justiça do
povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra civilizada.
Se não fosse um malfeitor, não to teríamos
trazido, foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos,
não querendo ser executor num processo de que não conhecera,
pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: Tomai-o,
e julgai-o segundo a vossa lei. Mas, replicam os judeus, bem
sabes que nos não é lícito dar a morte a ninguém.
O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada
justiça dos perseguidores.
Aqui
já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia
contra a lei sagrada que se trata, senão de atentado contra a
lei política. Jesus já não é o impostor
que se inculca filho de Deus: é o conspirador, que se coroa rei
da Judéia. A resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém,
a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não
ameaçava, pois, a segurança das instituições
nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. Ao mundo vim,
diz ele, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da
verdade, há de escutar a minha voz. A verdade? Mas que
é a verdade? pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos.
Não cria na verdade; mas a da inocência de Cristo penetrava
irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde reina
o poder absoluto das trevas. Não acho delito a este homem,
disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.
Devia
estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública
faz questão da sua vítima. Jesus tinha agitado o povo,
não ali só, no território de Pilatos, mas desde
Galiléia. Ora, acontecia achar-se presente em Jerusalém
o tetrarca da Galiléia, Heródes Antipas, com quem estava
de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente
ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao
mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada pelos
príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum originis
do Nazareno. Pilatos envia o réu a Heródes, lisonjeando-lhe
com essa homenagem a vaidade. Desde aquele dia, um e outro se fizeram
amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatus
in ipsa die; nam antea inimici erant ad invicem. Assim se reconciliam
os tiranos sobre os despojos da justiça.
Mas
Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus,
e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos que
reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira
vez que a magistratura romana a proclamava. Nullam causam inveni
in homine isto ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba
recrudesce. Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a
Quarta defesa de Jesus: Que ma fez esse ele? Quid enim mali fecit
iste? Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares. Então
o procônsul lhes pergunta ainda: Crucificareis o vosso rei?
A resposta da multidão em grita foi o raio, que desarmou as evasivas
de Pilatos. Não conhecemos outro rei, senão César.
A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma
do governador da província romana. O monstro de Cáprea,
traído, consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado
da lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo
era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita de infidelidade
era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as
mãos em presença do povo: Sou inocente do sangue deste
justo.
E
entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça que
se não compromete. A história premiou dignamente esse
modelo da suprema cobardia na justiça. Foi justamente sobre a
cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua
infâmia o sangue do justo.
De
Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas
as deserções da justiça, corrompida pela facções,
pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua inocência,
a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a
crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas,
de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi
como agitador do povo e subversor das instituições que
se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar
um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos,
um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei,
um educador do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto,
que renasce, para exculpar as transações dos juízes
tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como
Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão
derramar, do atentado, que vão cometer. Medo, venalidade, paixão
partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito
conservador, interpretação restritiva, razão de
estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação
judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos!
O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação
para o juiz cobarde.
PAZ
PROFUNDA