Inexiste
no mundo coisa
mais bem distribuída do que o bom senso, visto que cada indivíduo
acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis
de satisfazer, em qualquer outro aspecto, não costumam desejar possuí-lo
mais do que já possuem.
À
exceção de nossos pensamentos, não
há nada de tão absoluto em nosso poder.
É
insuficiente ter o espírito bom; o mais importante é aplicá-lo
bem.
As
maiores almas são capazes dos maiores vícios como também
das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar
bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm
e dele se afastam.
Sei
como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também
nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são
a nosso favor.
A
gentileza das fábulas estimula o espírito.
A
leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação
com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram
seus autores, e até uma conversação premeditada, na
qual eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos... Conversar com
os homens de outros séculos é viajar.
As
matemáticas têm invenções bastante sutis e podem
servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas
as artes e reduzir o trabalho dos homens.
É
bom saber alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que
julguemos os nossos mais justamente e não pensemos que tudo quanto
é diferente dos nossos costumes é ridículo e contrário
à razão, como soem fazer os que nada viram.
A
Filosofia ensina a falar com coerência de todas as coisas e de se
fazer admirar pelos que possuem menos erudição.
É
bom examinar todas as ciências, até mesmo as mais eivadas de
superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o exato
valor e evitar ser por elas enganado.
Quando
gastamos excessivo tempo em viajar acabamos nos tornando estrangeiros em
nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos das coisas
que se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito
ignorantes das que se realizam no presente.
Aqueles
cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus pensamentos
com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem
convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente
o baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. E aqueles
cujas invenções são mais agradáveis e que as
sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade não deixariam
de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse desconhecida.
Eu
não alimentava esperança alguma de acertar mais do que os
outros. Ao considerar quantas opiniões distintas, defendidas por
homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto, sem que possa
haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso tudo quanto
era apenas provável.
Não
me sentia de maneira alguma em uma condição que me obrigasse
a converter a ciência em um ofício, para o alívio de
minha fortuna. Mas, se bem que não desprezasse a glória como
um cínico, fazia, contudo, muito pouca questão daquela que
eu só podia esperar obter com falsos títulos.
No
que diz respeito às más doutrinas, julgava já conhecer
suficientemente o que valiam, para não mais correr o risco de ser
enganado nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições
de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico e nem pelas
artimanhas ou arrogâncias dos que manifestam saber mais do que realmente
sabem.
Decidi-me
a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia
encontrar em mim mesmo, ou então no
grande livro do mundo. Aproveitei o resto de minha juventude
para viajar, para ver cortes e exércitos, para freqüentar pessoas
de diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências
para pôr a mim mesmo à prova nos reencontros que o destino
me propunha e, por toda parte, para refletir a respeito das coisas que se
me apresentavam, a fim de que eu pudesse tirar algum proveito delas. (Grifos
meus).
Não
existe tanta perfeição nas obras formadas de várias
peças e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas
em que um só trabalhou.
Se
Esparta, na Antigüidade, foi muito florescente, não o deveu
à bondade de cada uma de suas leis em particular, já que muitas
eram bastante impróprias e até mesmo contrárias aos
bons costumes, mas ao fato de que, havendo sido criadas por um único
homem, tendiam todas ao mesmo fim.
Como
todos nós fomos crianças antes de sermos adultos, e como por
muito tempo foi necessário sermos governados por nossos apetites
e nossos preceptores, que eram com freqüência contrários
uns aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhassem
o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam
tão puros ou tão firmes como seriam se pudéssemos utilizar
totalmente a nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos
sido guiados senão por ela.
Acreditei,
com firmeza, que conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se
a construísse apenas sobre velhos alicerces e me apoiasse tão-somente
sobre princípios a respeito dos quais me deixara convencer em minha
juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros.
A
mera decisão de se desfazer de todas as opiniões
a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada
um deva seguir. O mundo compõe-se quase só de duas espécies
de espíritos, aos quais ela não convém de maneira alguma.
A saber: 1º) daqueles que, julgando-se mais hábeis do que realmente
são, não podem impedir de precipitar seus juízos e
nem de ter suficiente paciência para conduzir ordenadamente todos
os seus pensamentos: disso decorre que, se tivessem tomado uma vez a liberdade
de duvidar dos princípios que aceitaram e de se desviar do caminho
comum, jamais poderiam se ater à trilha que é necessário
tomar para ir mais direito, e permaneceriam perdidos ao longo de toda a
existência; e 2º) daqueles que, tendo bastante razão,
ou modéstia, para se considerar menos capazes de diferenciar o verdadeiro
do falso do que alguns outros, pelos quais podem ser instruídos,
devem antes ficar satisfeitos em seguir as opiniões desses outros,
do que se esforçar por achar por si mesmos outras melhores.
A
pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades
um pouco difíceis de descobrir, por ser bastante mais provável
que um único homem as tenha encontrado do que todo um povo. Eu não
podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever
ser preferidas às de outros; por isso, achava-me como que coagido
a tentar eu próprio me dirigir.
Grande
quantidade de leis fornece com freqüência justificativas aos
vícios. Um Estado é mais bem dirigido quando, apesar de possuir
muito poucas leis, são estritamente cumpridas.
Preceitos
de que se compõe a Lógica:
1º
- nunca aceitar algo como verdadeiro que não se conhece claramente
como tal, ou seja: evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção.
Nada fazer constar do juízo que não se apresente tão
clara e distintamente ao espírito que não haja motivo algum
de duvidar dele.
2º
- repartir cada uma das dificuldades que se analisa em tantas parcelas quantas
sejam possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las.
3º
- conduzir por ordem os pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples
e mais fáceis de conhecer, para elevar, pouco a pouco, como galgando
degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até
mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos
outros.
4º
- efetuar em toda parte relações metódicas tão
completas e revisões tão gerais nas quais se tenha a certeza
de nada omitir.
Todas
as coisas com a possibilidade de serem conhecidas pelos homens seguem-se
umas às outras, uma vez que nos abstenhamos apenas de aceitar por
verdadeira qualquer uma que não o seja, e que observemos sempre a
ordem necessária para deduzi-las umas das outras. Desta forma, não
pode existir nenhuma delas tão afastada a que não se chegue
no final, nem tão escondida que não se descubra.
...
meu espírito a se alimentar
de verdades e a não se satisfazer com falsas razões.
...
existindo somente uma verdade de
cada coisa, aquele que a encontrar conhecerá a seu respeito tanto
quanto se pode conhecer...
...
extirpando de meu espírito
todas as más opiniões que nele dera acolhida até então...
Máximas
da Moral:
A
primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país,
mantendo-me na religião na qual Deus me concedera a graça
de ser instruído a partir da infância, e conduzindo-me, em
tudo o mais, de acordo com as opiniões mais moderadas e as mais distantes
dos excessos que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos daqueles com
os quais teria de conviver. Portanto, começando desde então
a não me valer para nada de minhas próprias opiniões,
porque eu as queria submeter todas a análise, estava convencido de
que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos... Afigurava-se-me
que o mais útil seria orientar-me por aqueles entre os quais teria
de viver, e que, para saber quais eram realmente as suas opiniões,
devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam...
E, entre várias opiniões igualmente aceitas, escolhia somente
as moderadas: tanto porque são sempre as mais cômodas para
a prática, e provavelmente as melhores, já que todo excesso
costuma ser mau, como também para me desviar menos do verdadeiro
caminho, caso eu falhasse, do que, havendo escolhido um dos extremos, fosse
o outro aquele que eu deveria ter seguido.
Minha
segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido
possível em minhas ações, e em não seguir menos
constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas,
sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitava nisso os viajantes que,
estando perdidos em uma floresta não devem ficar dando voltas, ora
para um lado, ora para outro, menos ainda permanecer num local, mas caminhar
sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo
por quaisquer motivos, ainda que no início só o acaso talvez
haja definido sua escolha. Pois, por este método, se não vão
exatamente aonde desejam, ao menos chegarão a algum lugar onde provavelmente
estarão melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações
da vida não suportam às vezes atraso algum, é uma verdade
muito certa que, quando não está em nosso poder o distinguir
as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis;
e mesmo que não percebamos em umas mais probabilidades do que em
outras, devemos, sem embargo, decidir-nos por algumas a considerá-las
depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com
a prática, mas como muito verdadeiras e corretas, visto que a razão
que a isso nos induziu se apresenta como tal. E isto me consentiu, desde
então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam
agitar as consciências desses espíritos fracos e hesitantes
que se deixam levar a praticar, como boas, as coisas que em seguida consideram
más.
Minha
terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a
mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos
do que a ordem do mundo; e, em geral, a de habituar-me a acreditar que nada
existe que esteja completamente em nosso poder, salvo os nossos pensamentos,
de maneira que, após termos feito o melhor possível no que
se refere às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos
de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente
impossível. E somente isso me parecia suficiente para impossibilitar-me,
no futuro, de desejar algo que eu não pudesse obter, e, assim, para
me tornar contente. Pois, a nossa vontade, tendendo naturalmente para desejar
apenas aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma
como possíveis, é certo que, se considerarmos igualmente afastados
de nosso poder todos os bens que se encontram fora de nós, não
deploraremos mais a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento,
quando deles formos privados sem termos culpa, do que deploramos não
possuir os remos da China ou do México; e que fazendo, como se diz,
da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando
doentes, ou estar livres, estando presos, do que desejamos ter agora corpos
de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes,
ou asas para voar como as aves. Mas confesso que é preciso um longo
adestramento e uma meditação freqüentemente repetida
para nos habituarmos a olhar todas as coisas por este ângulo; e acredito
que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos
que puderam em outros tempos esquivar-se do império do destino e,
apesar das dores e da pobreza, pleitear felicidade aos seus deuses. Pois,
ocupando-se continuamente em considerar os limites que lhes eram impostos
pela natureza, convenceram-se tão perfeitamente de que nada estava
em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava
para impossibilitá-los de sentir qualquer afeição por
outras coisas; e os utilizavam tão absolutamente que tinham neste
caso especial certa razão de se julgar mais ricos, mais poderosos,
mais livres e mais felizes do que quaisquer outros homens, os quais, não
tendo esta filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pelo
destino, nunca são senhores de tudo o que desejam.
Por
fim [quarta
máxima],
para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as diferentes
ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar
escolher a melhor. E, sem pretender dizer nada a respeito das dos outros,
achei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me encontrava,
ou seja, utilizar toda a minha existência em cultivar minha razão,
e progredir o máximo que pudesse no conhecimento da verdade, de acordo
com o método que me determinara. Eu sentira tão grande felicidade,
a partir do momento em que começara a servir-me deste método,
que não acreditava que, nesta vida, se pudessem receber outros mais
doces, nem mais inocentes; e, descobrindo todos os dias, por seu intermédio,
algumas verdades que me pareciam deveras importantes e geralmente ignoradas
pelos outros homens, a satisfação que isso me proporcionava
preenchia de tal forma meu espírito que tudo o mais não me
atingia. Além do que, as três máximas precedentes se
baseavam apenas no meu intento de continuar a me instruir: pois, tendo Deus
concedido a cada um de nós alguma luz para diferenciar o verdadeiro
do falso, não julgaria dever satisfazer-me um único
instante com as opiniões dos outros, se não tencionasse
utilizar o meu próprio juízo em analisá-las, quando
fosse tempo; e não saberia dispensar-me de escrúpulos, ao
segui-las, se não esperasse não perder com isso oportunidade
alguma de encontrar outras melhores, caso existissem. E, enfim, não
saberia cercear os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse
percorrido um caminho pelo qual, julgando estar seguro da aquisição
de todos os conhecimentos de que fosse capaz, pensava estar também,
pelo mesmo método, seguro da aquisição de todos os
verdadeiros bens que em alguma ocasião se encontrassem ao meu alcance.
Tanto mais que, a nossa vontade não estando propensa a seguir ou
fugir a qualquer coisa, a não ser se o nosso entendimento a represente
como boa ou má, é suficiente bem julgar para bem agir, e julgar
o melhor possível para também agir da melhor maneira, ou seja,
para adquirir todas as virtudes e, ao mesmo tempo, todos os outros bens
que se possam adquirir; e, quando se tem certeza de que é assim,
não se pode deixar de ficar contente. (Grifo
meu).
Todo
o meu propósito propendia apenas a me certificar e remover a terra
movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila.
Da
mesma maneira que ocorre ao demolir uma velha casa, conservam-se comumente
os entulhos para serem utilizados na construção de outra nova,
assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal alicerçadas,
fazia diversas observações e adquiria muitas experiências,
que me serviram mais tarde para estabelecer outras mais corretas.
Sem
viver de maneira diferente daqueles que, não tendo outra ocupação
– exceto levar uma vida suave e inocente – procuram isolar os
prazeres dos vícios, e que, para usufruir seus lazeres sem se aborrecer,
usam todos os divertimentos que são honestos, não deixava
de perseverar em meu intento e de progredir no conhecimento da verdade,
mais talvez do que se me restringisse a ler livros ou freqüentar homens
de letras.
Se
contribuí em alguma coisa com meus discursos, deve ter sido por confessar
neles aquilo que eu ignorava, com mais ingenuidade do que costumam fazer
os que estudaram um pouco, e, é possível, também por
mostrar os motivos que tinha de duvidar de muitas coisas que os outros julgam
corretas, do que por me vangloriar de qualquer doutrina.
Por
desejar me dedicar, apenas, à pesquisa da verdade, achei que deveria...
rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor
dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria
algo em meu crédito que fosse completamente incontestável...
E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere
às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos
[paralogismo
é o raciocínio falso que se estabelece involuntariamente],
rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer
outro, todas as razões que eu tomara até então por
demonstrações.
E,
ao notar que esta verdade – eu penso, logo existo
– era tão sólida e tão correta, (que as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam
capazes de lhe causar abalo) julguei que podia considerá-la, sem
escrúpulo algum, o primeiro princípio
da filosofia que eu procurava. (Grifos meus).
Mais
tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia
presumir que não possuía corpo algum e que não havia
mundo algum ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor
que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu
pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência
e certeza que eu existia. Ao passo que, se somente tivesse parado de pensar,
apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara que fosse verdadeiro,
já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse
existido. Compreendi, então, que eu era uma substância cuja
essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não
necessita de lugar algum nem depende de qualquer coisa material. De maneira
que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é
completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil
de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria
de ser tudo o que é.
Se
para pensar é preciso existir, concluí que poderia tomar por
regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são
todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais
são as que concebemos distintamente.
O
conhecer é perfeição maior do que o duvidar...
...
para conhecer a natureza
de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a
respeito de todas as coisas de que encontrava em mim qualquer idéia,
se era ou não perfeição possuí-las, e tinha
certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição
existia Nele, mas que todas as outras existiam. Dessa forma, eu notava que
a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas parecidas não
podiam existir Nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser desprovido delas.
Apesar
de presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso,
não podia negar, não obstante, que as idéias a respeito
não existissem verdadeiramente em meu pensamento; porém, por
já haver reconhecido em mim, com bastante clareza, que a natureza
inteligente é distinta da corporal, considerando que toda a composição
testemunha dependência, e que a dependência é evidentemente
uma falha, julguei a partir disso que não podia ser uma perfeição
em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, em conseqüência,
Ele não o era, mas que, se existiam alguns corpos no mundo, ou então
algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem
totalmente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal
maneira que não pudessem subsistir sem Ele por um único instante.
O
que leva muitas pessoas a se convencerem de que é difícil
conhecer Deus – e também em conhecer o que é Sua alma
–
é o fato de nunca alçarem o espírito
além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma habituadas
a nada considerar, exceto na imaginação, que é uma
maneira de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto
não é imaginável lhes parece não ser inteligível.
A
nossa imaginação ou os nossos sentidos jamais poderiam garantir-nos
coisa alguma, se o nosso juízo não interviesse.
De
onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos
verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqüência, não
são menos vivos e nítidos?
As
coisas que concebemos, bastante evidente e distintamente, são todas
verdadeiras, porque Deus é ou existe e é um Ser perfeito,
e
porque
tudo o que existe em nós se origina Dele. De onde se conclui que
as nossas idéias ou noções, por serem coisas reais
e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só
podem por isso ser verdadeiras... Se, muitas vezes, temos outras que contêm
falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro,
porque nisso participam do nada, ou seja, são assim confusas em nós
porque nós não somos totalmente perfeitos... Se não
soubéssemos, de maneira alguma, que tudo quanto existe em nós
de real e verdadeiro provém de um Ser perfeito e infinito, por claras
e distintas que fossem nossas idéias, não teríamos
razão alguma que nos garantisse que elas possuem a perfeição
de serem verdadeiras.
Quer
estejamos despertos, quer dormindo, jamais devemos nos deixar convencer
exceto pela evidência de nossa razão. E deve-se observar que
eu digo de nossa razão, de maneira alguma de nossa imaginação
ou de nossos sentidos. Porque, apesar de enxergarmos o Sol bastante claramente,
não devemos julgar por isso que ele seja do tamanho que o vemos...
A
razão não nos sugere que tudo quanto vemos ou imaginamos seja
verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas idéias ou
noções devem conter algum fundamento de verdade; pois não
seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico,
as tivesse colocado em nós sem isso.
É
muito mais provável que, desde o início, Deus tenha criado
o mundo tal como devia ser. Mas é certo, e é uma opinião
geralmente adotada pelos teólogos, que a ação mediante
a qual Ele agora o conserva é exatamente igual àquela mediante
a qual o criou. De forma que, apesar de não lhe haver dado, no início,
outra forma a não ser a do caos, desde quando, tendo instituído
as leis da natureza, tenha lhe prestado Seu concurso, para ela agir assim
como costuma, pode-se crer, sem nenhum prejuízo para o milagre da
criação, que apenas por isso todas as coisas que são
genuinamente materiais poderiam, ao longo do tempo, converter-se em tais
como as vemos atualmente. E sua natureza é muito mais fácil
de ser compreendida quando as vemos nascer, pouco a pouco, desta forma do
que quando já as consideramos totalmente concluídas.
Satisfiz-me
em imaginar que Deus formasse o corpo de um homem inteiramente semelhante
a um dos nossos, tanto no aspecto exterior de seus membros como na conformação
interior de seus órgãos, sem compô-lo de outra matéria
exceto aquela que eu descrevera, e sem colocar nele, no início, alma
racional alguma, nem qualquer outra coisa para servir-lhe de alma vegetativa
ou sensitiva, mas, sim, que avivasse em seu coração um desses
fogos sem luz que eu já explicara, e que não concebia outra
natureza a não ser a que aquece o feno quando o guardam antes de
estar seco, ou a que faz ferver os vinhos novos quando fermentam sobre o
bagaço.
É
também coisa digna de nota que, apesar de haver muitos animais que
demonstram mais habilidade do que nós em algumas de suas ações,
percebe-se, contudo, que não a demonstram nem um pouco em muitas
outras. De forma que, aquilo que fazem melhor do que nós não
prova que possuam alma. Pois, por esse critério, tê-la-iam
mais do que qualquer um de nós e agiriam melhor em tudo; mas, ao
contrário, que não a possuem, e que é a natureza que
atua neles conforme a disposição de seus órgãos.
[Obviamente um místico contemporâneo não concordará
com essa conclusão de Descartes.]
A
alma racional não pode ser, de maneira alguma, tirada
do poder da matéria...
Não
existe outro erro que desvie mais os espíritos fracos do caminho
reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza
que a nossa, e que, portanto, nada temos a recear, nem a esperar, depois
dessa vida, não mais do que as moscas e as formigas; ao mesmo tempo
que, sabendo-se quanto diferem, compreende-se muito mais as razões
que provam que a nossa alma é de uma natureza inteiramente independente
do corpo e, conseqüentemente, que não está de maneira
alguma sujeita a morrer com ele. Depois, como não se notam outras
causas que a destruam, somos naturalmente impelidos a supor por isso que
ela é imortal. [Aqui, segundo o conceito Rosacruz (contemporâneo!),
Descartes não fez diferença entre Alma e personalidade-alma.
A Alma é, certamente, imortal e indestrutível; a personalidade-alma
poderá eventualmente
ser reciclada.]
Sempre tomei grande
cuidado em não dar acolhida
a novas opiniões das quais não pudesse demonstrar com muita
exatidão, e de não escrever nenhuma que pudesse acarretar
prejuízo para qualquer pessoa. [Às vezes pensamos que
algo que divulgamos não vá causar embaraço ou prejuízo
para qualquer pessoa, mas não
é sempre que isso ocorre, até porque, segundo o ditado popular,
de bem-intencionados o inferno está cheio. De qualquer maneira, o
inferno somos nós que criamos.]
No
que se refere aos hábitos, cada qual segue de tal maneira sua própria
opinião que se poderia encontrar tantos reformadores quantas são
as cabeças, se fosse permitido a outros, além dos que Deus
estabeleceu como soberanos dos povos, ou então aos que concedeu suficiente
graça e diligência para serem profetas, tentar mudá-los
em algo.
...
considerei que não podia
mantê-las [suas especulações] escondidas sem
transgredir a lei que nos obriga a procurar, no que depende de
nós, o bem geral de todos os homens. [Grifo meu].
É
possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à
vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas,
é possível se encontrar uma outra prática mediante
a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água,
do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam,
tão claramente como conhecemos os vários ofícios de
nossos artífices, poderíamos utilizá-los da mesma forma
em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornarmos
como senhores e possuidores da Natureza.
A
conservação da saúde, é, sem
dúvida, o primeiro bem e a base de todos os outros bens desta vida.
Pois, mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição
dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar
algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis
do que foram até aqui, creio que é na medicina que se deve
procurá-lo. [Disso decorre que as Fraternidades Iniciáticas,
de um modo geral, costumam incluir em seus ensinamentos graus inteiros dedicados
ao funcionamento do corpo e à própria saúde.]
Não
há dúvida de que se tem mais cuidado com o que pensamos que
deva ser visto por muitos, do que com o que se faz apenas para si próprio...
Cada
homem deve procurar, no que depende dele, o bem dos outros, e que é
propriamente nada valer o não ser útil a ninguém, é
verdade também que os nossos cuidados devem estender-se para mais
longe do tempo presente, e que convém omitir as coisas que talvez
redundem em algum proveito aos que estão vivos, quando é com
o propósito de fazer outras que serão mais úteis aos
homens do futuro.
É
verdadeiramente dar batalhas o procurar vencer todas as
dificuldades e os erros que nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade,
e é perder o dar acolhida a qualquer falsa opinião acerca
de uma matéria um pouco geral e desimportante.
Não
se pode compreender tão bem uma coisa, e torná-la nossa, quando
a aprendemos de outrem, como quando nós mesmos a criamos. [Essa
máxima é absolutamente inquestionável, mas o magistério
não pode ser desprezado.]
O
modo de filosofar é muito cômodo para aqueles que possuem espíritos
bastante medíocres; pois a falta de clareza das distinções
e dos princípios de que se utilizam é causa de que possam
falar de todas as coisas tão ousadamente como se as conhecessem,
e sustentar tudo o que dizem contra os mais perspicazes e os mais capazes
sem que haja meio de persuadi-los. Nisso se me afiguram parecidos com um
cego que, para lutar sem ficar em desvantagem com alguém que enxerga,
preferisse fazê-lo no fundo de uma adega escura. [Sar Alden,
por exemplo, sempre convidou seus detratores para debates públicos,
mas, covardemente, como hoje continua a suceder, eles nunca aceitaram. Se
fosse em uma adega escura, talvez aceitassem. Hoje, os ataques continuam,
e, de certa forma é pior, porque ele não está mais
fisicamente entre nós para se defender. Um pouquinho que fosse!]
Se
houvesse no mundo alguém de quem se soubesse que seria com certeza
capaz de encontrar as maiores coisas e as mais úteis possíveis
para o público, e a quem, por esse motivo, os demais homens se esforçassem,
por todos os meios, em ajudar na realização de seus intentos,
não vejo que pudessem fazer mais por ele além de financiar
as despesas nas experiências de que precisasse e, de resto, impedir
que seu tempo lhe fosse tomado por pessoas inoportunas.
E
se escrevo em francês, que é o idioma de meu país, e
não em latim, que é o de meus mestres, é porque espero
que aqueles que se servem somente de sua razão natural totalmente
pura julgarão melhor minhas opiniões do que aqueles que só
acreditam nos livros antigos. E quanto aos que unem o bom senso ao estudo,
os únicos que desejo para meus juízes, tenho certeza de que
não serão de maneira alguma tão parciais em favor do
latim que recusem ouvir minhas razões porque as explico em língua
vulgar.
Minha
tendência me afasta tanto de qualquer tipo de outras intenções,
especialmente das que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar
a outros, que, se algumas circunstâncias me obrigassem a dedicar-me
a eles, não acredito que fosse capaz de obter êxito. Faço,
então, aqui uma declaração que, tenho plena consciência,
não poderá servir para me tornar famoso no mundo, mas tampouco
tenho o menor desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais agradecido àqueles
em virtude dos quais desfrutarei sem estorvo do meu tempo, do que o seria
aos que me oferecessem os mais dignificantes empregos do mundo.
A
Título de Epílogo
Como
afirmei no início, este rascunho nada tem de original, mas eu concordo
com a maioria das reflexões cartesianas. Aquelas pessoas que têm
acompanhado o que tenho escrito sabem os pontos dos quais discordo. Mas,
este epílogo não é para demolir ou desqualificar o
edifício cartesiano, até porque nada há para ser demolido,
e eu não tenho vocação para demolidor. Seu pensamento
é coerente, ainda que hoje se saiba, por exemplo, que o recurso metafísico-cartesiano
para explicar ou justificar o ponto onde se dá o encontro (admitido
por Descartes) entre a mente (res cogitans) e o corpo (res
extensa) não pode ficar restrito à glândula pineal.
O
que eu desejo é ampliar todas estas reflexões com algumas
citações de pensadores consagrados, umas concordantes outras
discordantes do pensamento cartesiano.
1ª
- Pois a dúvida agrada-me não menos do que o saber.
Dante, Inferno. (1265-1321).
2ª
- O pensamento só começa com a dúvida. Roger
Martin Du Gard, Correspondência com André Gide. (1881-1958).
3ª
- Duvida tudo pelo menos uma vez, mesmo que seja da sentença:
duas vezes dois são quatro. Lichtenberg, Aforismos.
(1742-1799).
4ª
- Há duas espécies de tolos: os que não duvidam
de nada e os que duvidam de tudo. Príncipe de Ligne, Meus
Desvios. (1735-1814).
5ª
- Ninguém duvida tanto como aquele que mais sabe. Marquês
de Maricá, Máximas. (1773-1848).
6ª
- Duvidar
de tudo ou em tudo crer são duas soluções igualmente
cômodas, que nos dispensam, ambas, de refletir. Henri Poincaré,
A Ciência e a Hipótese. (1854-1912).
Rio
de Janeiro, 1º de julho de 2006.
_____
Nota:
1. Apesar
de ter se tornado célebre, a frase 'Cogito ergo sum' parece nunca
ter sido pronunciada por Descartes. Na época, quando foi feita a
tradução para o francês, foi incluída a palavra
'ergo' no texto cartesiano. Esse vocábulo não é coerente
com a filosofia de Descartes na medida em que não faz sentido uma
relação de conclusão entre as duas noções
'Pensar' e 'Existir'. Quando o filósofo enuncia o argumento do 'Cogito',
ele necessita que estas duas idéias sejam concebidas juntamente para
formar o fundamento mais evidente e verdadeiro da filosofia cartesiana.
Caso utilizasse a palavra 'logo', Descartes teria de assumir previamente
o silogismo artistotélico, o que não era o objetivo do filósofo.
Para meditar: Dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum.
Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cogito_ergo_sum
Bibliografia
recomendada:
DESCARTES,
René. Discurso do Método. São Paulo: Martin
Claret, 2001.
______.
Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma.
5ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1968.
LOGOS
- ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE FILOSOFIA. Volume I. Lisboa, São
Paulo: Verbo, 1991.
MORA,
José Ferrater. Diccionario de filosofia. Volume I (A - D).
Madrid: Alianza Editorial, 1990.
Websites
consultados:
http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/filosofia/livros/Discurso.htm
http://www.netmarkt.com.br/frases/sabedoria.html
http://www.consciencia.org/moderna/descartes.shtml
http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/descartes.htm
http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes3.htm#A
http://www.geocities.com/Vienna/2809/descartes.html
http://www.liceus.com/cgi-bin/ac/pu/6002.asp
http://pt.wikipedia.org/wiki/Descartes
http://www.ucm.es/info/especulo/numero22/teol_mod.html
http://www.mcescher.com/Gallery/gallery-recogn.htm
http://www.artchive.com/artchive/R/rodin/thinker.jpg.html
Música
de fundo:
Amen
Fonte:
http://www.gospel2motown.com/midi/pgospel.htm