RENÉ DESCARTES

(DISCURSO DO MÉTODO)

 

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

Cogito, ergo sum. (René Descartes).
Se duvido, penso; se penso, logo existo.
Descartes concluiu que podia ter certeza
de que existia porque pensava.1

 

 

 

 

Objetivo do Texto

 

 

 

    Este trabalho, como outros que já publiquei anteriormente, nada possui de original. Em um certo sentido, é uma recensão, em outro, não é. O fato é que, há muitos anos, estudei o Discurso do Método (Discours de la Méthode pour bien Conduire sa Raison, et Chercher la Vérité dans les Sciences. Plus la Dioptrique, les Météores et la Géométrie qui Sont les Essais de Cette Méthode) de René Descartes, e resolvi, hoje, escolher e publicar os pontos mais importantes (a meu juízo) deste prefácio, em forma de fragmentos editados, para oferecer a quem se dispuser a examiná-los. Acho esse sistema muito interessante porque exclui comentários laterais e foca apenas os pontos mais importantes do pensamento de um autor. Isso, como já expliquei em outro texto semelhante, não deve dar ensejo a que se leiam os fragmentos como se lê uma obra literária. Não. Cada excerto é um mundo em si, e, por isso, precisa de alguns (ou muitos) minutos de reflexão. Não quero, enfim, ditar nenhuma ordem, mas penso que ficará faltando a um estudante de Misticismo a leitura completa do Discurso, pois esta obra ensina exatamente o que as Fraternidades Místicas ensinam naquilo que concerne, digamos, em aprendermos a não se comer gato por lebre, e a não se crer nas coisas por ouvir dizer. Este rascunho, então, não pode substituir a obra original de Descartes, ainda que, como disse, esse tipo de ensaio em forma de fragmentos – (não original sem ser espúrio ou falso) – seja muito interessante porque subtrai os comentários laterais. Para abrir os poros e estimular o apetite, ele é válido.

    O Discurso do Método foi dividido por Descartes (para quem mente, espírito, alma e razão tinham significados semelhantes) em seis partes. Na primeira, o Autor apresenta diversas considerações relativas às ciências. Na segunda, discute as principais regras do seu Método. Na terceira, especula sobre algumas regras da Moral. Na quarta, apresenta provas da existência de Deus e da alma humana – o fundamento da metafísica cartesiana. Na quinta, aborda algumas questões de Medicina e discute determinadas diferenças que há, a seu juízo, entre a alma humana e a alma dos animais. E, na sexta e última, apresenta as razões que o levaram a escrever a obra, e aquilo que acredita ser necessário para alguém ir mais adiante do que ele próprio conseguiu nas pesquisas que encetou. O texto é, sem qualquer dúvida, um exercício de humildade, o que não poderia ser diferente em um Místico avançado como ele.

    Enfim, para os que não conhecem o filósofo, o físico e o matemático francês, René Descartes (ou Renato Cartesius, como ele assinava em latim) foi um pensador místico do século XVII (*31 de março de 1596, La Haye, Touraine, França – †11 de fevereiro de 1650, Estocolmo, Suécia) e é considerado o fundador da Filosofia e o pai da Matemática modernas. No Discurso do Método, propõe como critério de pesquisa o Ceticismo Metodológico [duvida-se de cada idéia que pode (e deve) ser duvidada], isto é, propõe a dúvida metódica, única via para se poder chegar à certeza (exatamente o oposto do método indutivo de Bacon) o qual abriu caminho para o puro racionalismo. Em resumo: só se pode dizer que alguma coisa existe se puder ser provada sua existência. Fico imaginando alguém chegando para Descartes e jurando que havia visto uma mula-sem-cabeça em uma noite de sexta-feira! O mínimo que certamente ele perguntaria, era de qual padre a mula havia sido namorada quando era mulher e quando estava viva. Bem, tudo se resume ao fato de que ao se pôr em dúvida um conhecimento qualquer, apenas, em princípio, se pode ter certeza que se duvidou e que não se comeu gato por lebre. Então, por mais engraçado ou ridículo que possa parecer, é preciso se provar que não existem (ou que existem) mulas-sem-cabeça, ainda que muita gente acredite piamente (sem nunca tê-las visto) que elas existam. Isso é, mutatis mutandis, como acreditar (ipsis litteris, ipsis verbis) sem ter podido comprovar, que Jonas esteve no ventre de uma baleia três dias e três noites e saiu de lá vivinho da Silva (Mateus XII, 40: Pois, como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim estará o Filho do homem três dias e três noites no seio da Terra.). Será que Mateus viu isso? Não pode ter visto, porque esse relato é simbólico e se refere a uma Iniciação Mística semelhante a que Lázaro passou. Esses exemplos, contudo, representam um dos critérios constitutivos da verdade (a transcendência), ou seja, as coisas são realmente como se pensa que são? Isso Descartes resolveu de uma forma relativamente simples: a solução somente pode estar com e em Deus, Aquele (e o único) que pode garantir que as coisas são realmente como são pensadas. Sinceramente, devo admitir, que para mim, isso é o mistério dos mistérios. Se eu não conhecesse o significado esotérico dos três dias e três noites no ventre do grande peixe, eu morreria de rir dessa estória. Mas, mula-sem-cabeça eu não acredito que exista, e não acreditaria mesmo que visse uma.

    Descartes, como já recordei, nasceu em La Haye, Tourenne, em 31 de março de 1596 e estudou em um dos mais célebres colégios jesuítas da época (Colégio Jesuíta Royal Henry-Le-Grand, em La Flèche), fato que o aborrecia bastante porque, desde cedo, percebeu uma completa ausência de uma metodologia coerente que lhe possibilitasse buscar aquilo que considerava ser a verdade. Como observa Carlos Antonio Fragoso Guimarães, o ensino de filosofia em La Flèche era ministrado tendo por modelo a escolástica medieval [pensamento católico da Idade Média baseado na tentativa de conciliação entre um ideal teológico de racionalidade corporificado específica e principalmente na tradição grega aristotélica – e a experiência de contato direto com a verdade revelada, tal como a concebe a fé católica], que levava o espírito dos estudantes para o passado, freqüentemente lá o deixando pendurado em uma brocha, acrescento eu. Como é possível uma teologia ser racional? Como é possível conciliar um ideal teológico de racionalidade com uma presumida verdade, e pior, revelada? Isso desesperava Descartes, tanto quanto desesperou Albert Einstein com as aulas insossas as quais era obrigado a assistir, quando não as cabulava.

    René Descartes morreu de pneumonia no dia 11 de fevereiro de 1650, em Estocolmo, Suécia. Como um católico em um país protestante, foi enterrado em um cemitério de crianças não batizadas, em Adolf Fredrikskyrkan, Estocolmo. Depois, seus restos mortais foram levados para a França e enterrados na Igreja de São Genevieve-du-Mont em Paris. É preciso que se diga: Descartes era católico por fora, pois se não fosse, em sua época, poderia acabar assado na fogueira; por dentro, era Rosacruz. Segundo consta, Descartes levou anos para encontrar o Movimento Rosacruz na Europa, que em muito pouco se assemelhava às Fraternidades e Ordens Rosacruzes da contemporaneidade. Por isso, Descartes não é desta ou daquela Ordem ou Fraternidade Rosacruz; é de todos nós. Para ir concluindo este item, da Wikipédia recolhi: Durante a Revolução Francesa seus restos foram desenterrados para irem para o Panthéon, ao lado de outros grandes pensadores franceses. A vila no vale Loire, onde ele nasceu, foi renomeada La Haye-Descartes. Em 1667, depois de sua morte, a Igreja Católica Romana colocou suas obras no Índice de Livros Proibidos. Ora, um homem livre que baseava suas especulações em verdades claras, cristalinas e livres não poderia agradar a quem queria meter na goela dos outros o céu, o inferno, o purgatório, o limbo, os pecados mortais e veniais, as indulgências parciais e plenárias e um sistema que tinha como ponto de referência a Terra. Et cetera, porque não é só isso. Naquela época havia dessas coisas. João Paulo II pediu desculpas por tudo isso. Lugar comum: antes tarde do que nunca. Mas, o fato é que tudo aquilo que era proibido naqueles tempos cinzentos podia ser achado muito bem arquivado nos porões fedorentos e bolorentos do Vaticano. Uma das exceções era Aristóteles, que podia; o resto era heresia. Não podia. Porém, o difícil era ter acesso a essas obras. Como hoje.

    Para encerrar definitivamente este moderado circunlóquio, lembro que o dualismo nunca satisfez Descartes. Ele tentou ultrapassar essa dificuldade, porque nunca o agradou a res cogitans (mente) coexistindo com a res extensa (o corpo), sem uma plausibilidade. Disso surgiu o recurso metafísico-cartesiano à glândula pineal para explicar o ponto onde se dá esse encontro (admitido por Descartes) entre a mente e o corpo. Resumindo o que não deve ser resumido (pois tudo que se resume é potencialmente falho), eu ousaria dizer que síntese das especulações cartesianas consiste mesmo em que o ser é uma coisa que pensa (res cogitans): ego sum res cogitans, isto é: sou uma coisa pensante. Finalmente, peço desculpas a Descartes e a todos pelos equívocos cometidos

 

 

Fragmentos Discurso do Método

 

 

Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída do que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer, em qualquer outro aspecto, não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem.

À exceção de nossos pensamentos, não há nada de tão absoluto em nosso poder.

É insuficiente ter o espírito bom; o mais importante é aplicá-lo bem.

As maiores almas são capazes dos maiores vícios como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam.

Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor.

A gentileza das fábulas estimula o espírito.

A leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos... Conversar com os homens de outros séculos é viajar.

As matemáticas têm invenções bastante sutis e podem servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o trabalho dos homens.

É bom saber alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que julguemos os nossos mais justamente e não pensemos que tudo quanto é diferente dos nossos costumes é ridículo e contrário à razão, como soem fazer os que nada viram.

A Filosofia ensina a falar com coerência de todas as coisas e de se fazer admirar pelos que possuem menos erudição.

É bom examinar todas as ciências, até mesmo as mais eivadas de superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o exato valor e evitar ser por elas enganado.

Quando gastamos excessivo tempo em viajar acabamos nos tornando estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos das coisas que se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito ignorantes das que se realizam no presente.

Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus pensamentos com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente o baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse desconhecida.

Eu não alimentava esperança alguma de acertar mais do que os outros. Ao considerar quantas opiniões distintas, defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto, sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso tudo quanto era apenas provável.

Não me sentia de maneira alguma em uma condição que me obrigasse a converter a ciência em um ofício, para o alívio de minha fortuna. Mas, se bem que não desprezasse a glória como um cínico, fazia, contudo, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar obter com falsos títulos.

No que diz respeito às más doutrinas, julgava já conhecer suficientemente o que valiam, para não mais correr o risco de ser enganado nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico e nem pelas artimanhas ou arrogâncias dos que manifestam saber mais do que realmente sabem.

Decidi-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo. Aproveitei o resto de minha juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para freqüentar pessoas de diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências para pôr a mim mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte, para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu pudesse tirar algum proveito delas. (Grifos meus).

Não existe tanta perfeição nas obras formadas de várias peças e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou.

Se Esparta, na Antigüidade, foi muito florescente, não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular, já que muitas eram bastante impróprias e até mesmo contrárias aos bons costumes, mas ao fato de que, havendo sido criadas por um único homem, tendiam todas ao mesmo fim.

Como todos nós fomos crianças antes de sermos adultos, e como por muito tempo foi necessário sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores, que eram com freqüência contrários uns aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhassem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão firmes como seriam se pudéssemos utilizar totalmente a nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela.

Acreditei, com firmeza, que conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se a construísse apenas sobre velhos alicerces e me apoiasse tão-somente sobre princípios a respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros.

A mera decisão de se desfazer de todas as opiniões a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada um deva seguir. O mundo compõe-se quase só de duas espécies de espíritos, aos quais ela não convém de maneira alguma. A saber: 1º) daqueles que, julgando-se mais hábeis do que realmente são, não podem impedir de precipitar seus juízos e nem de ter suficiente paciência para conduzir ordenadamente todos os seus pensamentos: disso decorre que, se tivessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que aceitaram e de se desviar do caminho comum, jamais poderiam se ater à trilha que é necessário tomar para ir mais direito, e permaneceriam perdidos ao longo de toda a existência; e 2º) daqueles que, tendo bastante razão, ou modéstia, para se considerar menos capazes de diferenciar o verdadeiro do falso do que alguns outros, pelos quais podem ser instruídos, devem antes ficar satisfeitos em seguir as opiniões desses outros, do que se esforçar por achar por si mesmos outras melhores.

A pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades um pouco difíceis de descobrir, por ser bastante mais provável que um único homem as tenha encontrado do que todo um povo. Eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outros; por isso, achava-me como que coagido a tentar eu próprio me dirigir.

Grande quantidade de leis fornece com freqüência justificativas aos vícios. Um Estado é mais bem dirigido quando, apesar de possuir muito poucas leis, são estritamente cumpridas.

Preceitos de que se compõe a Lógica:

1º - nunca aceitar algo como verdadeiro que não se conhece claramente como tal, ou seja: evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção. Nada fazer constar do juízo que não se apresente tão clara e distintamente ao espírito que não haja motivo algum de duvidar dele.

2º - repartir cada uma das dificuldades que se analisa em tantas parcelas quantas sejam possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las.

3º - conduzir por ordem os pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

4º - efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais se tenha a certeza de nada omitir.

 

 

 

Todas as coisas com a possibilidade de serem conhecidas pelos homens seguem-se umas às outras, uma vez que nos abstenhamos apenas de aceitar por verdadeira qualquer uma que não o seja, e que observemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras. Desta forma, não pode existir nenhuma delas tão afastada a que não se chegue no final, nem tão escondida que não se descubra.

... meu espírito a se alimentar de verdades e a não se satisfazer com falsas razões.

... existindo somente uma verdade de cada coisa, aquele que a encontrar conhecerá a seu respeito tanto quanto se pode conhecer...

... extirpando de meu espírito todas as más opiniões que nele dera acolhida até então...

Máximas da Moral:

A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me na religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído a partir da infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, de acordo com as opiniões mais moderadas e as mais distantes dos excessos que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de conviver. Portanto, começando desde então a não me valer para nada de minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas a análise, estava convencido de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos... Afigurava-se-me que o mais útil seria orientar-me por aqueles entre os quais teria de viver, e que, para saber quais eram realmente as suas opiniões, devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam... E, entre várias opiniões igualmente aceitas, escolhia somente as moderadas: tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática, e provavelmente as melhores, já que todo excesso costuma ser mau, como também para me desviar menos do verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do que, havendo escolhido um dos extremos, fosse o outro aquele que eu deveria ter seguido.

Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitava nisso os viajantes que, estando perdidos em uma floresta não devem ficar dando voltas, ora para um lado, ora para outro, menos ainda permanecer num local, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por quaisquer motivos, ainda que no início só o acaso talvez haja definido sua escolha. Pois, por este método, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão a algum lugar onde provavelmente estarão melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não suportam às vezes atraso algum, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o distinguir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo que não percebamos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, sem embargo, decidir-nos por algumas a considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e corretas, visto que a razão que a isso nos induziu se apresenta como tal. E isto me consentiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e hesitantes que se deixam levar a praticar, como boas, as coisas que em seguida consideram más.

Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de habituar-me a acreditar que nada existe que esteja completamente em nosso poder, salvo os nossos pensamentos, de maneira que, após termos feito o melhor possível no que se refere às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. E somente isso me parecia suficiente para impossibilitar-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse obter, e, assim, para me tornar contente. Pois, a nossa vontade, tendendo naturalmente para desejar apenas aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis, é certo que, se considerarmos igualmente afastados de nosso poder todos os bens que se encontram fora de nós, não deploraremos mais a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles formos privados sem termos culpa, do que deploramos não possuir os remos da China ou do México; e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ou estar livres, estando presos, do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas para voar como as aves. Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma meditação freqüentemente repetida para nos habituarmos a olhar todas as coisas por este ângulo; e acredito que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos que puderam em outros tempos esquivar-se do império do destino e, apesar das dores e da pobreza, pleitear felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se continuamente em considerar os limites que lhes eram impostos pela natureza, convenceram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava para impossibilitá-los de sentir qualquer afeição por outras coisas; e os utilizavam tão absolutamente que tinham neste caso especial certa razão de se julgar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes do que quaisquer outros homens, os quais, não tendo esta filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pelo destino, nunca são senhores de tudo o que desejam.

Por fim [quarta máxima], para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as diferentes ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor. E, sem pretender dizer nada a respeito das dos outros, achei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me encontrava, ou seja, utilizar toda a minha existência em cultivar minha razão, e progredir o máximo que pudesse no conhecimento da verdade, de acordo com o método que me determinara. Eu sentira tão grande felicidade, a partir do momento em que começara a servir-me deste método, que não acreditava que, nesta vida, se pudessem receber outros mais doces, nem mais inocentes; e, descobrindo todos os dias, por seu intermédio, algumas verdades que me pareciam deveras importantes e geralmente ignoradas pelos outros homens, a satisfação que isso me proporcionava preenchia de tal forma meu espírito que tudo o mais não me atingia. Além do que, as três máximas precedentes se baseavam apenas no meu intento de continuar a me instruir: pois, tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para diferenciar o verdadeiro do falso, não julgaria dever satisfazer-me um único instante com as opiniões dos outros, se não tencionasse utilizar o meu próprio juízo em analisá-las, quando fosse tempo; e não saberia dispensar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não esperasse não perder com isso oportunidade alguma de encontrar outras melhores, caso existissem. E, enfim, não saberia cercear os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse percorrido um caminho pelo qual, julgando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz, pensava estar também, pelo mesmo método, seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que em alguma ocasião se encontrassem ao meu alcance. Tanto mais que, a nossa vontade não estando propensa a seguir ou fugir a qualquer coisa, a não ser se o nosso entendimento a represente como boa ou má, é suficiente bem julgar para bem agir, e julgar o melhor possível para também agir da melhor maneira, ou seja, para adquirir todas as virtudes e, ao mesmo tempo, todos os outros bens que se possam adquirir; e, quando se tem certeza de que é assim, não se pode deixar de ficar contente. (Grifo meu).

Todo o meu propósito propendia apenas a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila.

Da mesma maneira que ocorre ao demolir uma velha casa, conservam-se comumente os entulhos para serem utilizados na construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal alicerçadas, fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que me serviram mais tarde para estabelecer outras mais corretas.

Sem viver de maneira diferente daqueles que, não tendo outra ocupação – exceto levar uma vida suave e inocente – procuram isolar os prazeres dos vícios, e que, para usufruir seus lazeres sem se aborrecer, usam todos os divertimentos que são honestos, não deixava de perseverar em meu intento e de progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se me restringisse a ler livros ou freqüentar homens de letras.

Se contribuí em alguma coisa com meus discursos, deve ter sido por confessar neles aquilo que eu ignorava, com mais ingenuidade do que costumam fazer os que estudaram um pouco, e, é possível, também por mostrar os motivos que tinha de duvidar de muitas coisas que os outros julgam corretas, do que por me vangloriar de qualquer doutrina.

Por desejar me dedicar, apenas, à pesquisa da verdade, achei que deveria... rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável... E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos [paralogismo é o raciocínio falso que se estabelece involuntariamente], rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações.

E, ao notar que esta verdade – eu penso, logo existo – era tão sólida e tão correta, (que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo) julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava. (Grifos meus).

 

 

 

 

Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia. Ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara que fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido. Compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.

 

 

 

 

Se para pensar é preciso existir, concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente.

O conhecer é perfeição maior do que o duvidar...

... para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a respeito de todas as coisas de que encontrava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia Nele, mas que todas as outras existiam. Dessa forma, eu notava que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas parecidas não podiam existir Nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser desprovido delas.

Apesar de presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso, não podia negar, não obstante, que as idéias a respeito não existissem verdadeiramente em meu pensamento; porém, por já haver reconhecido em mim, com bastante clareza, que a natureza inteligente é distinta da corporal, considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a dependência é evidentemente uma falha, julguei a partir disso que não podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, em conseqüência, Ele não o era, mas que, se existiam alguns corpos no mundo, ou então algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem totalmente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal maneira que não pudessem subsistir sem Ele por um único instante.

O que leva muitas pessoas a se convencerem de que é difícil conhecer Deus – e também em conhecer o que é Sua alma é o fato de nunca alçarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma habituadas a nada considerar, exceto na imaginação, que é uma maneira de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível.

A nossa imaginação ou os nossos sentidos jamais poderiam garantir-nos coisa alguma, se o nosso juízo não interviesse.

De onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos?

As coisas que concebemos, bastante evidente e distintamente, são todas verdadeiras, porque Deus é ou existe e é um Ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós se origina Dele. De onde se conclui que as nossas idéias ou noções, por serem coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só podem por isso ser verdadeiras... Se, muitas vezes, temos outras que contêm falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro, porque nisso participam do nada, ou seja, são assim confusas em nós porque nós não somos totalmente perfeitos... Se não soubéssemos, de maneira alguma, que tudo quanto existe em nós de real e verdadeiro provém de um Ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem nossas idéias, não teríamos razão alguma que nos garantisse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras.

Quer estejamos despertos, quer dormindo, jamais devemos nos deixar convencer exceto pela evidência de nossa razão. E deve-se observar que eu digo de nossa razão, de maneira alguma de nossa imaginação ou de nossos sentidos. Porque, apesar de enxergarmos o Sol bastante claramente, não devemos julgar por isso que ele seja do tamanho que o vemos...

A razão não nos sugere que tudo quanto vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas idéias ou noções devem conter algum fundamento de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as tivesse colocado em nós sem isso.

É muito mais provável que, desde o início, Deus tenha criado o mundo tal como devia ser. Mas é certo, e é uma opinião geralmente adotada pelos teólogos, que a ação mediante a qual Ele agora o conserva é exatamente igual àquela mediante a qual o criou. De forma que, apesar de não lhe haver dado, no início, outra forma a não ser a do caos, desde quando, tendo instituído as leis da natureza, tenha lhe prestado Seu concurso, para ela agir assim como costuma, pode-se crer, sem nenhum prejuízo para o milagre da criação, que apenas por isso todas as coisas que são genuinamente materiais poderiam, ao longo do tempo, converter-se em tais como as vemos atualmente. E sua natureza é muito mais fácil de ser compreendida quando as vemos nascer, pouco a pouco, desta forma do que quando já as consideramos totalmente concluídas.

Satisfiz-me em imaginar que Deus formasse o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto no aspecto exterior de seus membros como na conformação interior de seus órgãos, sem compô-lo de outra matéria exceto aquela que eu descrevera, e sem colocar nele, no início, alma racional alguma, nem qualquer outra coisa para servir-lhe de alma vegetativa ou sensitiva, mas, sim, que avivasse em seu coração um desses fogos sem luz que eu já explicara, e que não concebia outra natureza a não ser a que aquece o feno quando o guardam antes de estar seco, ou a que faz ferver os vinhos novos quando fermentam sobre o bagaço.

É também coisa digna de nota que, apesar de haver muitos animais que demonstram mais habilidade do que nós em algumas de suas ações, percebe-se, contudo, que não a demonstram nem um pouco em muitas outras. De forma que, aquilo que fazem melhor do que nós não prova que possuam alma. Pois, por esse critério, tê-la-iam mais do que qualquer um de nós e agiriam melhor em tudo; mas, ao contrário, que não a possuem, e que é a natureza que atua neles conforme a disposição de seus órgãos. [Obviamente um místico contemporâneo não concordará com essa conclusão de Descartes.]

A alma racional não pode ser, de maneira alguma, tirada do poder da matéria...

Não existe outro erro que desvie mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza que a nossa, e que, portanto, nada temos a recear, nem a esperar, depois dessa vida, não mais do que as moscas e as formigas; ao mesmo tempo que, sabendo-se quanto diferem, compreende-se muito mais as razões que provam que a nossa alma é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, conseqüentemente, que não está de maneira alguma sujeita a morrer com ele. Depois, como não se notam outras causas que a destruam, somos naturalmente impelidos a supor por isso que ela é imortal. [Aqui, segundo o conceito Rosacruz (contemporâneo!), Descartes não fez diferença entre Alma e personalidade-alma. A Alma é, certamente, imortal e indestrutível; a personalidade-alma poderá eventualmente ser reciclada.]

Sempre tomei grande cuidado em não dar acolhida a novas opiniões das quais não pudesse demonstrar com muita exatidão, e de não escrever nenhuma que pudesse acarretar prejuízo para qualquer pessoa. [Às vezes pensamos que algo que divulgamos não vá causar embaraço ou prejuízo para qualquer pessoa, mas não é sempre que isso ocorre, até porque, segundo o ditado popular, de bem-intencionados o inferno está cheio. De qualquer maneira, o inferno somos nós que criamos.]

No que se refere aos hábitos, cada qual segue de tal maneira sua própria opinião que se poderia encontrar tantos reformadores quantas são as cabeças, se fosse permitido a outros, além dos que Deus estabeleceu como soberanos dos povos, ou então aos que concedeu suficiente graça e diligência para serem profetas, tentar mudá-los em algo.

... considerei que não podia mantê-las [suas especulações] escondidas sem transgredir a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. [Grifo meu].

É possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, é possível se encontrar uma outra prática mediante a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão claramente como conhecemos os vários ofícios de nossos artífices, poderíamos utilizá-los da mesma forma em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornarmos como senhores e possuidores da Natureza.

A conservação da saúde, é, sem dúvida, o primeiro bem e a base de todos os outros bens desta vida. Pois, mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui, creio que é na medicina que se deve procurá-lo. [Disso decorre que as Fraternidades Iniciáticas, de um modo geral, costumam incluir em seus ensinamentos graus inteiros dedicados ao funcionamento do corpo e à própria saúde.]

Não há dúvida de que se tem mais cuidado com o que pensamos que deva ser visto por muitos, do que com o que se faz apenas para si próprio...

Cada homem deve procurar, no que depende dele, o bem dos outros, e que é propriamente nada valer o não ser útil a ninguém, é verdade também que os nossos cuidados devem estender-se para mais longe do tempo presente, e que convém omitir as coisas que talvez redundem em algum proveito aos que estão vivos, quando é com o propósito de fazer outras que serão mais úteis aos homens do futuro.

É verdadeiramente dar batalhas o procurar vencer todas as dificuldades e os erros que nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder o dar acolhida a qualquer falsa opinião acerca de uma matéria um pouco geral e desimportante.

Não se pode compreender tão bem uma coisa, e torná-la nossa, quando a aprendemos de outrem, como quando nós mesmos a criamos. [Essa máxima é absolutamente inquestionável, mas o magistério não pode ser desprezado.]

O modo de filosofar é muito cômodo para aqueles que possuem espíritos bastante medíocres; pois a falta de clareza das distinções e dos princípios de que se utilizam é causa de que possam falar de todas as coisas tão ousadamente como se as conhecessem, e sustentar tudo o que dizem contra os mais perspicazes e os mais capazes sem que haja meio de persuadi-los. Nisso se me afiguram parecidos com um cego que, para lutar sem ficar em desvantagem com alguém que enxerga, preferisse fazê-lo no fundo de uma adega escura. [Sar Alden, por exemplo, sempre convidou seus detratores para debates públicos, mas, covardemente, como hoje continua a suceder, eles nunca aceitaram. Se fosse em uma adega escura, talvez aceitassem. Hoje, os ataques continuam, e, de certa forma é pior, porque ele não está mais fisicamente entre nós para se defender. Um pouquinho que fosse!]

Se houvesse no mundo alguém de quem se soubesse que seria com certeza capaz de encontrar as maiores coisas e as mais úteis possíveis para o público, e a quem, por esse motivo, os demais homens se esforçassem, por todos os meios, em ajudar na realização de seus intentos, não vejo que pudessem fazer mais por ele além de financiar as despesas nas experiências de que precisasse e, de resto, impedir que seu tempo lhe fosse tomado por pessoas inoportunas.

E se escrevo em francês, que é o idioma de meu país, e não em latim, que é o de meus mestres, é porque espero que aqueles que se servem somente de sua razão natural totalmente pura julgarão melhor minhas opiniões do que aqueles que só acreditam nos livros antigos. E quanto aos que unem o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, tenho certeza de que não serão de maneira alguma tão parciais em favor do latim que recusem ouvir minhas razões porque as explico em língua vulgar.

Minha tendência me afasta tanto de qualquer tipo de outras intenções, especialmente das que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar a outros, que, se algumas circunstâncias me obrigassem a dedicar-me a eles, não acredito que fosse capaz de obter êxito. Faço, então, aqui uma declaração que, tenho plena consciência, não poderá servir para me tornar famoso no mundo, mas tampouco tenho o menor desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais agradecido àqueles em virtude dos quais desfrutarei sem estorvo do meu tempo, do que o seria aos que me oferecessem os mais dignificantes empregos do mundo.

 

A Título de Epílogo

 

    Como afirmei no início, este rascunho nada tem de original, mas eu concordo com a maioria das reflexões cartesianas. Aquelas pessoas que têm acompanhado o que tenho escrito sabem os pontos dos quais discordo. Mas, este epílogo não é para demolir ou desqualificar o edifício cartesiano, até porque nada há para ser demolido, e eu não tenho vocação para demolidor. Seu pensamento é coerente, ainda que hoje se saiba, por exemplo, que o recurso metafísico-cartesiano para explicar ou justificar o ponto onde se dá o encontro (admitido por Descartes) entre a mente (res cogitans) e o corpo (res extensa) não pode ficar restrito à glândula pineal.

    O que eu desejo é ampliar todas estas reflexões com algumas citações de pensadores consagrados, umas concordantes outras discordantes do pensamento cartesiano.

1ª - Pois a dúvida agrada-me não menos do que o saber. Dante, Inferno. (1265-1321).

2ª - O pensamento só começa com a dúvida. Roger Martin Du Gard, Correspondência com André Gide. (1881-1958).

3ª - Duvida tudo pelo menos uma vez, mesmo que seja da sentença: duas vezes dois são quatro. Lichtenberg, Aforismos. (1742-1799).

4ª - Há duas espécies de tolos: os que não duvidam de nada e os que duvidam de tudo. Príncipe de Ligne, Meus Desvios. (1735-1814).

5ª - Ninguém duvida tanto como aquele que mais sabe. Marquês de Maricá, Máximas. (1773-1848).

- Duvidar de tudo ou em tudo crer são duas soluções igualmente cômodas, que nos dispensam, ambas, de refletir. Henri Poincaré, A Ciência e a Hipótese. (1854-1912).

 

 

Rio de Janeiro, 1º de julho de 2006.

 

 

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Nota:

1. Apesar de ter se tornado célebre, a frase 'Cogito ergo sum' parece nunca ter sido pronunciada por Descartes. Na época, quando foi feita a tradução para o francês, foi incluída a palavra 'ergo' no texto cartesiano. Esse vocábulo não é coerente com a filosofia de Descartes na medida em que não faz sentido uma relação de conclusão entre as duas noções 'Pensar' e 'Existir'. Quando o filósofo enuncia o argumento do 'Cogito', ele necessita que estas duas idéias sejam concebidas juntamente para formar o fundamento mais evidente e verdadeiro da filosofia cartesiana. Caso utilizasse a palavra 'logo', Descartes teria de assumir previamente o silogismo artistotélico, o que não era o objetivo do filósofo. Para meditar: Dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum.

Fonte:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cogito_ergo_sum

Bibliografia recomendada:

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martin Claret, 2001.

______. Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma. 5ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1968.

LOGOS - ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE FILOSOFIA. Volume I. Lisboa, São Paulo: Verbo, 1991.

MORA, José Ferrater. Diccionario de filosofia. Volume I (A - D). Madrid: Alianza Editorial, 1990.

Websites consultados:

http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/filosofia/livros/Discurso.htm

http://www.netmarkt.com.br/frases/sabedoria.html

http://www.consciencia.org/moderna/descartes.shtml

http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/descartes.htm

http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes3.htm#A

http://www.geocities.com/Vienna/2809/descartes.html

http://www.liceus.com/cgi-bin/ac/pu/6002.asp

http://pt.wikipedia.org/wiki/Descartes

http://www.ucm.es/info/especulo/numero22/teol_mod.html

http://www.mcescher.com/Gallery/gallery-recogn.htm

http://www.artchive.com/artchive/R/rodin/thinker.jpg.html

 

Música de fundo:

Amen

Fonte:

http://www.gospel2motown.com/midi/pgospel.htm