A
dignidade humana, a cada momento se torna menos atingível,
seja pelas crueldades cotidianas que a esfacelam, seja pela crescente
falta de respaldo teórico para seu exercício. Como o
ser humano foi isolado do cosmos, da Terra, do ambiente e do outro,
já não há mais base crível para assentar
o conceito de dignidade humana.
O
ser humano é digno por que? Se ele é
uma excrescência do cosmos, uma falta de higiene da crosta terrestre,
não tendo qualquer significação a não
ser na interioridade de sua espécie, que valor têm sua
vida, seu corpo, sua integridade e sua liberdade? Nesse sentido, o
máximo a que se pode chegar é à tolerância,
isto é, uma forma de viver suportável entre adversários,
um armistício precário entre animais carnívoros.
Dignidade intrínseca do ser humano é uma perfumaria
metafísica que não serve para nada.
Ser
digno significa ser merecedor, ser respeitável, mas essa respeitabilidade
e merecimento só podem ter sentido se forem ligados à
natureza do ser de quem isso é atribuído. Se o sentido
desse ser for desprezível, se à sua existência
pouco ou nenhum valor é dado, se esse ser for um epifenômeno
descartável, que respeito teremos dele, que dignidade ele pode
portar?
A
dignidade do ser humano não pode ser atribuída
pelo fato de ele ser um fruto de uma divindade ou divindades, nem
pode ser entendida como decorrência de sua racionalidade ou
sociabilidade. Essa questão é complexa e deve ser vista
sob vários ângulos.
O
ser humano tem uma peculiar função nos
mundos conhecidos: ele dá significação às
coisas e ele, pelo conhecimento, tematiza criticamente o próprio
conhecimento. De certa forma, ele é o universo que fala, o
cosmos que se autodesvela e se auto-refere. Para desempenhar esse
papel o ser humano apresenta várias facetas.
Ele
expressa a história mineral, vegetal e animal do cosmos, apresentando
em sua constituição heranças e estruturas advindas
dessas camadas da história do cosmos e da Terra. Ele traz em
sua memória inconsciente partilhada as condutas animais, suas
técnicas de sobrevivência, sua agressividade e ternura,
suas garras e dentes e seus instintos acrescidos de toda a história
humana, todas as experiências, medos dominações,
soluções e criações que a temporalidade
da espécie propiciou. Ele traz a entropia e a superação
presentes em sua condição.
Em
termos individuais, ele carrega, ainda, sua história pessoal
marcada pelos grupos familiais a que pertence, pelas pertinências
maiores ou menores existentes em seus grupos sociais, além
dos sentimentos, desejos, perspectivas e projetos históricos
diversos, que tocam sua individualidade. Ele ainda constrói,
sem saber conscientemente, uma história escondida e velada
formada pelos seus desejos não atingidos, seus sentimentos
proibidos, suas afeições e desafeições.
Outra
marca desse ser é a sua capacidade de modificação
produtiva, de criar novas relações com a natureza, perversas
ou não, de elaborar um mundo no qual as riquezas são
otimizadas e a pobreza aumentada, superando o “estado de natureza”
e implantando um mundo que pode se autodestruir, justamente pela negação
da dignidade da natureza e da dignidade humana. Essas formas de produzir
e os relacionamentos daí decorrentes informam e influenciam
o modo de ser dos humanos de tal forma que ainda existem os que julgam
que essa relação é uma determinação
necessária.
Esse
ser tem a capacidade de elaborar um mundo simbólico, que procura
expressar as suas existências, explicar e compreender os fenômenos
e dar conta das vidas de cada um pelas crenças, pressupostos
e sonhos. Esse papel de “falador” do Universo dá
a ele a dignidade de ser o único porta-voz conhecido do Cosmos,
o único, até agora, que faz o Universo infletir sobre
si mesmo e se autodesvelar, o único que cria culturalmente
suas normas éticas [prefiro
morais] , suas estruturas de poder, sua arte, tudo isso, dentro
de uma clave de aposta entre a dissolução e a construção
rumo a sínteses mais complexas, vale dizer, entre o desrespeito
e o respeito à sua própria dignidade.
A
crise de aplicação dos direitos humanos, formalmente
reconhecidos em quase todas as constituições do mundo,
está baseada nesse pressuposto de negação da
dignidade, pois um ser sem significado não merece respeito,
no máximo indiferença, pois ele é banal, e banal
é a violência exercida sobre ele. Assim, por razões
étnicas, culturais, religiosas, econômicas ou políticas
ele é massacrado, morto, torturado, esfomeado, estuprado e
violentado, tudo em nome de abstrações, tendo como agentes
ativos ou passivos seus iguais, isto é, aqueles que acreditam
na insignificância humana e por isso não têm pejo
de matar, de deixar morrer, já que a vida humana nada mais
é do que uma presença ou uma ausência dentro de
quadros estatísticos, que cada ser humano é apenas um
produtor ou um desempregado potencial, que a Humanidade só
terá sentido quando se submeter à lógica perversa
de dominação de poucos grupos que acreditam, ou dizem
acreditar, que a salvação do mundo está na otimização
de seus lucros, na concentração de seus saberes e na
eliminação de seus inimigos e daqueles que não
têm capacidade de se enquadrar nessa ordem totalitária
e desumanizadora.
As
práticas políticas e suas doutrinas justificadoras aceitam
esses mesmos pressupostos desumanizadores. A política é
a guerra, é a disputa entre interesses colidentes, é
internacional economicamente e nacional na interioridade dos Estados.
A soberania tão decantada é uma ilusão: os países
são mais ou menos soberanos em função de sua
capacidade bélica, de sua força econômica e de
seu saber concentrado. A soberania é um atributo distribuído
desigualmente, o que a torna mero constructo ideológico sem
força em termos das relações entre desiguais.
A
dignidade humana impõe o entendimento da reformulação
do eixo da política, de um sentido de guerra para um sentido
de paz, de uma representação baseada em interesses para
a participação real dos diferentes sob a égide
da solidariedade, que não é mera chamada moral para
as pessoas melhorarem, mas um imperativo de sobrevivência da
própria Humanidade e de seu meio a partir da admissão
do papel e do merecimento do ser humano e do papel e do significação
do meio ambiente com seus objetos naturais e quase naturais.