Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

alguns têm dois, três, quatro bens ao luar... muitos, em muitos lugares do mundo, não têm onde morar.

 

alguns têm dois, três, quatro meios de locomoção... muitos, em muitos lugares do mundo, só se locomovem a pé.

 

alguns têm dezenas, centenas, de roupas, de sapatos etc.... muitos, em muitos lugares do mundo, andam descalços e só têm a roupa do corpo para se proteger da inclemência do tempo.

 

alguns gastam fortunas em almoços e jantares em restaurantes de luxo... muitos, em muitos lugares do mundo, não têm um prato de comida para comer.

 

alguns países gastam quilhões em armamentos... zilhões, em diversas partes do mundo, não têm acesso à educação, à saúde, a um lar, ao saneamento básico, à uma alimentação adequada, a um mínimo de lazer, enfim, ao minimum minimorum que dignifique a vida. Quando conseguem conquistar esse minimum, ele est nihilo proximum.

 

muitos políticos corruptos enriquecem e se locupletam da confiança do povão... uma parte do povão vai perdendo a esperança e desavergonhadamente vai armando seus próprios esquemas para sobreviver.

 

alguns religiosos pedem em suas orações bênçãos especias e privilégios pessoais... muitos, em muitos lugares do mundo, já se cansaram de orar e de pedir.

 

 

 

 

A dignidade humana, a cada momento se torna menos atingível, seja pelas crueldades cotidianas que a esfacelam, seja pela crescente falta de respaldo teórico para seu exercício. Como o ser humano foi isolado do cosmos, da Terra, do ambiente e do outro, já não há mais base crível para assentar o conceito de dignidade humana.

O ser humano é digno por que? Se ele é uma excrescência do cosmos, uma falta de higiene da crosta terrestre, não tendo qualquer significação a não ser na interioridade de sua espécie, que valor têm sua vida, seu corpo, sua integridade e sua liberdade? Nesse sentido, o máximo a que se pode chegar é à tolerância, isto é, uma forma de viver suportável entre adversários, um armistício precário entre animais carnívoros. Dignidade intrínseca do ser humano é uma perfumaria metafísica que não serve para nada.

Ser digno significa ser merecedor, ser respeitável, mas essa respeitabilidade e merecimento só podem ter sentido se forem ligados à natureza do ser de quem isso é atribuído. Se o sentido desse ser for desprezível, se à sua existência pouco ou nenhum valor é dado, se esse ser for um epifenômeno descartável, que respeito teremos dele, que dignidade ele pode portar?

A dignidade do ser humano não pode ser atribuída pelo fato de ele ser um fruto de uma divindade ou divindades, nem pode ser entendida como decorrência de sua racionalidade ou sociabilidade. Essa questão é complexa e deve ser vista sob vários ângulos.

O ser humano tem uma peculiar função nos mundos conhecidos: ele dá significação às coisas e ele, pelo conhecimento, tematiza criticamente o próprio conhecimento. De certa forma, ele é o universo que fala, o cosmos que se autodesvela e se auto-refere. Para desempenhar esse papel o ser humano apresenta várias facetas.

Ele expressa a história mineral, vegetal e animal do cosmos, apresentando em sua constituição heranças e estruturas advindas dessas camadas da história do cosmos e da Terra. Ele traz em sua memória inconsciente partilhada as condutas animais, suas técnicas de sobrevivência, sua agressividade e ternura, suas garras e dentes e seus instintos acrescidos de toda a história humana, todas as experiências, medos dominações, soluções e criações que a temporalidade da espécie propiciou. Ele traz a entropia e a superação presentes em sua condição.

Em termos individuais, ele carrega, ainda, sua história pessoal marcada pelos grupos familiais a que pertence, pelas pertinências maiores ou menores existentes em seus grupos sociais, além dos sentimentos, desejos, perspectivas e projetos históricos diversos, que tocam sua individualidade. Ele ainda constrói, sem saber conscientemente, uma história escondida e velada formada pelos seus desejos não atingidos, seus sentimentos proibidos, suas afeições e desafeições.

Outra marca desse ser é a sua capacidade de modificação produtiva, de criar novas relações com a natureza, perversas ou não, de elaborar um mundo no qual as riquezas são otimizadas e a pobreza aumentada, superando o “estado de natureza” e implantando um mundo que pode se autodestruir, justamente pela negação da dignidade da natureza e da dignidade humana. Essas formas de produzir e os relacionamentos daí decorrentes informam e influenciam o modo de ser dos humanos de tal forma que ainda existem os que julgam que essa relação é uma determinação necessária.

Esse ser tem a capacidade de elaborar um mundo simbólico, que procura expressar as suas existências, explicar e compreender os fenômenos e dar conta das vidas de cada um pelas crenças, pressupostos e sonhos. Esse papel de “falador” do Universo dá a ele a dignidade de ser o único porta-voz conhecido do Cosmos, o único, até agora, que faz o Universo infletir sobre si mesmo e se autodesvelar, o único que cria culturalmente suas normas éticas [prefiro morais] , suas estruturas de poder, sua arte, tudo isso, dentro de uma clave de aposta entre a dissolução e a construção rumo a sínteses mais complexas, vale dizer, entre o desrespeito e o respeito à sua própria dignidade.

A crise de aplicação dos direitos humanos, formalmente reconhecidos em quase todas as constituições do mundo, está baseada nesse pressuposto de negação da dignidade, pois um ser sem significado não merece respeito, no máximo indiferença, pois ele é banal, e banal é a violência exercida sobre ele. Assim, por razões étnicas, culturais, religiosas, econômicas ou políticas ele é massacrado, morto, torturado, esfomeado, estuprado e violentado, tudo em nome de abstrações, tendo como agentes ativos ou passivos seus iguais, isto é, aqueles que acreditam na insignificância humana e por isso não têm pejo de matar, de deixar morrer, já que a vida humana nada mais é do que uma presença ou uma ausência dentro de quadros estatísticos, que cada ser humano é apenas um produtor ou um desempregado potencial, que a Humanidade só terá sentido quando se submeter à lógica perversa de dominação de poucos grupos que acreditam, ou dizem acreditar, que a salvação do mundo está na otimização de seus lucros, na concentração de seus saberes e na eliminação de seus inimigos e daqueles que não têm capacidade de se enquadrar nessa ordem totalitária e desumanizadora.

As práticas políticas e suas doutrinas justificadoras aceitam esses mesmos pressupostos desumanizadores. A política é a guerra, é a disputa entre interesses colidentes, é internacional economicamente e nacional na interioridade dos Estados. A soberania tão decantada é uma ilusão: os países são mais ou menos soberanos em função de sua capacidade bélica, de sua força econômica e de seu saber concentrado. A soberania é um atributo distribuído desigualmente, o que a torna mero constructo ideológico sem força em termos das relações entre desiguais.

A dignidade humana impõe o entendimento da reformulação do eixo da política, de um sentido de guerra para um sentido de paz, de uma representação baseada em interesses para a participação real dos diferentes sob a égide da solidariedade, que não é mera chamada moral para as pessoas melhorarem, mas um imperativo de sobrevivência da própria Humanidade e de seu meio a partir da admissão do papel e do merecimento do ser humano e do papel e do significação do meio ambiente com seus objetos naturais e quase naturais.

 

 

 

 

Websites consultados:

http://www.newvictheatre.org.uk/press/
pressreleases/misery.html

http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/
robertoaguiar/dignidadehumana.html

http://www.hauntedfog.com/Pop%20Ups
/Morbid/Masks/misery_mask.htm

Música de fundo:

Minuet In G (Johann Sebastian Bach)

Fonte:

http://www.abcmusical.com.br/midi.html