Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

Socrates autem primus philosophiam revocavit e cælo et in urbibus collocavit et in domos etiam introducit et cöegit de vita et moribus rebusque bonis et malis quærere. [Cícero, Tusculanæ Disputationes, 5.10]. Sócrates foi o primeiro que tirou a filosofia do céu e a colocou nas cidades e nas casas, e obrigou a indagar sobre a vida, os costumes e as coisas boas e más.


 

 

A questão da relação entre a fé e a razão tem sido discutida, analisada e observada, sob ângulos distintos, desde os primórdios da filosofia cristã. Os Iniciados, de uma maneira geral, sempre evitaram entrar nessas agumentações escolásticas (treinos de argumentação).

Para Clemente de Alexandria (150-215), a razão exerce uma função propedêutica, funcionando, assim, a serviço da fé, não tendo se esgotado com o surgimento da religião cristã. Citando Stromata I, c. 5 nº 28, Mondin reproduz o seguinte pensamento: Antes da vinda de Cristo, a filosofia era indispensável aos gregos para conduzi-los à justiça; agora ela é útil para conduzi-los ao culto de Deus.

Com Anselmo de Aosta (1033-1109), a questão permanece inalterada eis que, como assevera o autor acima citado, as verdades religiosas e morais não podem ser apreendidas a não ser pela fé.

Já com Abelardo (1079-1142), considerado como o pai da teologia escolástica, o binômio razão e fé tem outro enfoque. Pode-se mesmo admitir que houve um salto; entretanto, não sem condenação da Igreja. Ainda em vida, teve Abelardo a decepção de ver, por inspiração de São Bernardo, dezenove das suas teses – como o conceito de fé, a sua doutrina trinitária, bem assim algumas doutrinas morais – serem condenados em dois concílios: o de Soisson, em 1121, e o de Sens, em 1141. Para Abelardo, a razão assume uma posição crítica em relação à fé. Nesse particular, novamente consultando Mondin, lê-se:

 

... a dúvida, levantada pelas teses opostas, devia estimular a pesquisa pessoal em busca da solução. De fato, porém, o método do ‘sic et non’ [de Abelardo] leva a razão para uma atitude de independência e de crítica incompatível com a doutrina anselmiana (a tradicional), das relações entre a fé e razão. A razão de Abelardo não é mais, como a de Anselmo, humilde intérprete da fé, mas dela se separa para tratá-la como igual.

 

Em Santo Agostinho, a Verdade não poderia ser alcançada sem o concurso de fé, que não é, todavia, cega, mas iluminada e iluminadora. Mas, nada tem de irracional ou de absurda. Como ensina Ferrater Mora: Não é tampouco fé em algo particular: nos sentidos, na razão, em uma autoridade temporal e efêmera. A fé para o Santo Doutor de Hipona, sendo fé em Jesus e em Deus, é iluminante, e por transcender toda e qualquer inteligência torna-a possível. Para o Hiponense, a fé está intimamente ligada, além da razão, à caridade, isto é: ...não se entra na Verdade a não ser pela caridade. Mora comenta que Santo Agostinho acreditava que ... não se pode provar a fé; só se pode provar na fé... A fé é uma crença amante, descobridora de valores, uma crença da qual brota, como uma luz, a inteligência.

Nove séculos depois, Santo Tomás de Aquino1 retoma, de forma mais completa e sistemática, a questão das relações entre razão e fé. Assim, ao escrever a Súmula Contra os Gentios, teve por meta ... expor a verdade professada pela fé católica e refutar os erros contrários.

 

 

Santo Tomás de Aquino
Santo Tomás de Aquino

 

Mas, talvez, para exemplificar o que pode representar a fé, a sua força e o seu poder, em Lucas 8, 22-25, tem-se, provavelmente, uma das passagens históricas mais didáticas do ministério de Jesus, o Cristo na Terra, relacionada com essa matéria. Certa feita, dia de Sol, estava Jesus alegre, e convidou seus discípulos a passear de barco. Os que com Ele estavam aceitaram o convite. O tempo era bom, o vento calmo e favorável e as ondas suaves facilitavam a travessia. Mas, ao chegar o barco no meio do lago, o tempo virou. O vento calmo cede lugar a uma ventania violenta e as ondas suaves transformam-se em vagas gigantescas, ameaçando afundar a pequena embarcação. Tranqüilo, Jesus dormia. Preocupados e temerosos, os discípulos lutavam pela vida. Ao se darem conta de que Jesus dormia, apelam:

Mestre, nos perecemos.

Jesus, então, atendendo ao apelo, ordenou à borrasca que amainasse. Quando veio a bonança, dirigiu-se aos discípulos e perguntou:

Onde está a vossa fé?

A lição a ser extraída desse episódio bíblico é que, sem a existência da fé (interior e verdadeira, alcançada pelo Conhecimento e por comprovação pessoal; não uma fidelidade estrita com base em crenças escolásticas sem fundamento em argumentos racionais ou em experiência pessoal) as realizações humanas ficam comprometidas e subordinadas. E isso ocorre no exato instante em que o conhecimento científico perde o seu alcance. A ciência pura e simples é limitada. Conhecer além da ciência, in Corde, assim, é preciso. Fundamentar a fé além da ciência, in Corde, portanto, é preciso. Viver misticamente, in Corde, nesse contexto, é mais do que preciso, é necessário. Sim, é mais do que preciso... É necessário... Para aqueles que compreenderam que isso é preciso, e que aprenderam a confiar no Mestre-Deus de seus Corações construído in Corde.

Entretanto, Santo Tomás parte de uma idéia teológica fundamental: Deus existe e há um só Deus. Apesar de o homem ser incapaz de apreender a essência íntima de Deus, Nele crê, pois apesar de os objetos sensíveis não possibilitarem ao homem ter acesso a essa Essência, uma vez que há uma dessemelhança entre os efeitos e o poder próprio da coisa, tais objetos facilitam e facultam a convicção interior, segundo Tomás, de que Ele existe. Por isso, o Aquinate diz: ... existem em Deus verdades inteligíveis, as quais são acessíveis à razão humana; em contrapartida, outras há que superam totalmente as forças da razão humana.

Relativamente a essa questão, de forma bastante simples e didática, porém rigorosamente exata, o Doutor Angélico estabelece uma comparação entre o Conhecimento ou Inteligência de Deus, e as mesmas qualidades no homem e nos anjos. Para o Santo, a inteligência de Deus ultrapassa as inteligências dos anjos e dos homens. E os anjos, por sua vez, superam em inteligência os homens. Portanto, o homem, superado em sua capacidade e inteligência por Deus e pelos anjos, não pode descobrir completamente todas as realidades inteligíveis da Essência Divina. Como especulação meramente teológica, isto é irredutível e incontestável. Por isso, Santo Tomás ensina que tanto as verdades acessíveis à humana inteligência, como as que o homem não consegue alcançar, devem ser objetos de fé. Apresenta o Santo um conjunto de três inconvenientes, caso as verdades a respeito de Deus dependessem exclusivamente da razão. Resumindo seu pensamento, tem-se que:

 

O primeiro inconveniente está em que poucos homens desfrutariam do conhecimento de Deus. Pois, para chegar a tal conhecimento, exige-se uma longa e laboriosa busca, o que é impossível para a maior parte dos homens, por três motivos. Primeiramente, certas pessoas são afastadas dessa busca por más disposições do seu próprio temperamento, que as desviam do Saber. Para outros o obstáculo é constituído pelos afazeres materiais. Para outros, enfim, o obstáculo é a preguiça.

O segundo inconveniente consistiria no seguinte: os homens que chegassem à descoberta de tais verdades só o conseguiriam com dificuldade e após muito tempo de busca.

O terceiro grande inconveniente fundamenta-se em que as pesquisas da razão humana estariam, na maioria dos casos, eivadas de erros, em razão da fraqueza conatural da nossa inteligência, em razão também da mistura das imagens.

 

Portanto, no que concerne às coisas de Deus, no tomismo, a verdade só pode ser obtida pela via da fé. E o Santo de Aquino admite, de forma substantiva, a confirmação da fé pela observação ou pela participação direta em milagres. Exemplifica com todos os atos praticados por Jesus (como o milagre da diminuição da força do vento citado acima) e pelo comportamento ilibado dos Santos da Igreja Católica.

Outro aspecto marcante do entendimento de Santo Tomás é a não-contradição entre as verdades da razão natural e a verdade por ele denominada de sobrenatural. Por isso, conclui: ... é impossível que a verdade da fé seja contrária aos princípios que a razão humana conhece em virtude das suas forças naturais. E adiciona: Tudo o que a Revelação Divina nos manda crer é impossível que contrarie o conhecimento natural.

Enfim, a doutrina das relações entre a razão e a fé desenvolvida por Santo Tomás de Aquino tem os seguintes consabidos contornos filosófico-teológicos: (a) razão e fé são maneiras distintas de se alcançar a verdade, portanto de se obter a aproximação de Deus; (b) a verdade conseguida pelo exercício da razão não pode contraditar a Revelação; (c) pelo uso exclusivo da razão não se pode penetrar completamente na posse da Verdade; e (d) a razão, quando bem utilizada, fortalece e favorece a fé, preambulando, opondo-se e elucidando.

Uma palavra final se impõe. No que se possa concordar ou discordar das posições assumidas e ensinadas pelo Santo Doutor de Aquino e por outros próceres do Catolicismo, as discordâncias, certamente, ficam mais por conta do aspecto didático-fideísta do que propriamente pela filosofia/teologia em si por eles preconizadas. Há, em muitos aspectos, uma coerência simpática e efetiva de natureza religioso-teológica necessária a tantos quantos ainda não conheceram a Iniciação. O que, apenas, deseja-se aditar, é que o homem deve buscar sempre. Deve ser e comportar-se como um ponto de interrogação permanente, como procedem todos os Rosa-Cruzes, que não engolem nada que não possam comprovar.

Como sugeriu Santo Hilário no livro Sobre a Trindade, citado por Santo Tomás, o homem deve empreender, progredir e se esforçar permanentemente. Admite-se, portanto, em concordância com Santo Hilário, que a fé deva estimular a razão a buscar sempre mais conhecimento, para que, um dia, possa se tornar desnecessária. Afinal, de que serviria a vida se o homem fosse um conformado? De que serviria a vida se ele considerasse tudo pronto e acabado? Enfim, acredita-se que antes de representarem uma antinomia, razão e fé, temporariamente, se completam. Mas, é apenas pelo Conhecimento – que somente advém por esforço pessoal – que o homem poderá renunciar à sua identidade pessoal egoístico-individualista e se tornar uno com o Mestre-Deus de seu Coração. Enquanto a inverdade tolher e iludir o homem, a Verdade (ainda que sempre relativa e atualizável) não poderá prevalecer. Por isso, estagnar na fé, em qualquer fé, exclusivamente, poderá produzir a intolerância, que se opõe à caridade agostiniana e à própria humildade antoniana. Nesse sentido, progredir é necessário. O homem não pode, jamais, estar satisfeito. Bendita insatisfação que o impele para frente e para o alto. Por isso, finalizando, crê-se firmemente que a fé não pode ser passiva e submissa. Deve-se, enquanto forças houver, perseguir a LLuz até o ilimitado infinito, e se e quando o homem for banhado por seus primeiros raios, deverá lembrar-se de que nessa caminhada não está só nem desamparado. Deverá, enfim, também ser sempre solidário. E, se num instante for conveniente e necessário, deverá até renunciar em prol de seus semelhantes. Nessa esfera, a fé é iluminadora, fraterna e criativa, mas, acima de tudo, impessoalmente amorosa.

Seja como for, um dia a fé (qualquer que seja a fé) será superada pela plena convicção – que só pode ser adquirida pela Iniciação. In Corde. Para quem já viveu essa experiência (incipiente ou plena) ou se e quando isto vier a acontecer, tudo o que está escrito acima passa a não valer absolutamente nada. Palavras (lectiones, repetitiones e disputationes) não explicam mais nada e todas as especulações desaparecem; foram substituídas pela certeza ad semper! In Corde.


 

 

 

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Nota:

1. Tomás de Aquino nasceu em 1225, no Castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal dos Condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue à família imperial e às Famílias Reais da França, da Sicília e de Aragão. Recebeu a primeira educação no grande Mosteiro de Montecassino, passando a mocidade em Nápoles como aluno daquela Universidade. Depois de ter estudado as artes liberais, entrou na Ordem Dominicana, renunciando a tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por parte de sua família; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se dedicou ao estudo assíduo da Teologia, tendo como mestre Alberto Magno (1193 ou 1206-1280), primeiro na Universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia. Também Alberto, filho da nobre família de Duques de Bollstädt, abandonou o mundo e entrou na Ordem Dominicana. Ensinou em Colônia, Friburgo e Estrasburgo; lecionou Teologia na Universidade de Paris, onde teve, dentre os seus discípulos, também Tomás de Aquino, que o acompanhou à Colônia, onde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua Ordem. A atividade científica de Alberto Magno é vastíssima: trinta e oito volumes tratando dos assuntos mais variados — Ciências Naturais, Filosofia, Teologia, Exegese, Ascética. Em 1252, Tomás voltou para a Universidade de Paris onde ensinou até 1269, quando regressou à Itália, chamado à Corte Papal. No mesmo ano, voltou à Universidade de Paris onde lutou contra o Averroísmo de Siger de Brabante. Em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou Teologia. Dois anos depois, viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por ordem de Gregório X, faleceu em 7 de Março de 1274, no Mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade. Tomás foi declarado Santo em 1323, apenas 50 anos após sua morte.

O Hino Pange Lingua foi escrito por São Tomás de Aquino como um convite para a adoração do Mistério da Eucaristia. As duas estrofes finais (Tantum ergo e Genitori, Genitoque) são cantadas dentro da capela durante a incensação final que conclui o ato. Este Hino é considerado o mais bonito dos hinos compostos pelo Aquinate e um dos sete grandes hinos da Igreja Católica.

 

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi com a colaboração de Maurice Cunio et al. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J. e A. Ambrósio de Pina, S.J. 4ª ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1952.

BIBLIA. Bíblia Sagrada. 9ª ed. São Paulo: Ed. Paulinas, 1958.

MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Tradução de Benôni Lemos; revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo: Edições Paulinas, 1983, v. 1.

_____. Curso de Filosofia. Tradução de Benôni Lemos; revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo: Edições Paulinas, 1983, v. 3.

_____. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. Tradução de J. Renard; revisão técnica de Danilo Morales: revisão literária de Luiz Antonio Miranda. São Paulo: Edições Paulinas, 1983.

MORA, José Ferrater. Diccionário de filosofia. 5ª ed. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1965. v. 1.

SELEÇÃO DE TEXTOS/Sto. Tomás de Aquino, Dante Alighiere, John Duns Scot, William of Ockham. Traduções de Luiz João Baraúna et al. 3ª ed. São Paulo: Abril, 1985. Os Pensadores.