Socrates
autem primus philosophiam revocavit e cælo et in urbibus collocavit
et in domos etiam introducit et cöegit de vita et moribus rebusque
bonis et malis quærere. [Cícero, Tusculanæ
Disputationes, 5.10]. Sócrates foi o primeiro que tirou
a filosofia do céu e a colocou nas cidades e nas casas, e obrigou
a indagar sobre a vida, os costumes e as coisas boas e más.
A
questão da relação entre a fé e a razão
tem sido discutida, analisada e observada, sob ângulos distintos,
desde os primórdios da filosofia cristã. Os Iniciados, de
uma maneira geral, sempre evitaram entrar nessas agumentações
escolásticas (treinos de argumentação).
Para
Clemente de Alexandria (150-215), a razão exerce uma função
propedêutica, funcionando, assim, a serviço da fé, não
tendo se esgotado com o surgimento da religião cristã. Citando
Stromata I, c. 5 nº 28, Mondin reproduz o seguinte pensamento:
Antes da vinda de Cristo, a filosofia era indispensável aos gregos
para conduzi-los à justiça; agora ela é útil
para conduzi-los ao culto de Deus.
Com
Anselmo de Aosta (1033-1109), a questão permanece inalterada eis
que, como assevera o autor acima citado, as verdades religiosas e morais
não podem ser apreendidas a não ser pela fé.
Já
com Abelardo (1079-1142), considerado como o pai da teologia escolástica,
o binômio razão e fé tem outro enfoque. Pode-se mesmo
admitir que houve um salto; entretanto, não sem condenação
da Igreja. Ainda em vida, teve Abelardo a decepção de ver,
por inspiração de São Bernardo, dezenove das suas teses
– como o conceito de fé, a sua doutrina trinitária,
bem assim algumas doutrinas morais – serem condenados em dois concílios:
o de Soisson, em 1121, e o de Sens, em 1141. Para Abelardo, a razão
assume uma posição crítica em relação
à fé. Nesse particular, novamente consultando Mondin, lê-se:
...
a dúvida, levantada pelas teses opostas, devia estimular a pesquisa
pessoal em busca da solução. De fato, porém, o método
do ‘sic et non’ [de Abelardo] leva a razão para
uma atitude de independência e de crítica incompatível
com a doutrina anselmiana (a tradicional), das relações entre
a fé e razão. A razão de Abelardo não é
mais, como a de Anselmo, humilde intérprete da fé, mas dela
se separa para tratá-la como igual.
Em
Santo Agostinho, a Verdade não poderia ser alcançada sem o
concurso de fé, que não é, todavia, cega, mas iluminada
e iluminadora. Mas, nada tem de irracional ou de absurda. Como ensina Ferrater
Mora: Não é tampouco fé em algo particular: nos
sentidos, na razão, em uma autoridade temporal e efêmera. A
fé para o Santo Doutor de Hipona, sendo fé em Jesus e em Deus,
é iluminante, e por transcender toda e qualquer inteligência
torna-a possível. Para o Hiponense, a fé está intimamente
ligada, além da razão, à caridade, isto é:
...não se entra na Verdade a não ser pela caridade. Mora
comenta que Santo Agostinho acreditava que ... não se pode provar
a fé; só se pode provar na fé... A fé
é uma crença amante, descobridora de valores, uma crença
da qual brota, como uma luz, a inteligência.
Nove
séculos depois, Santo Tomás de Aquino1 retoma,
de forma mais completa e sistemática, a questão das relações
entre razão e fé. Assim, ao escrever a Súmula Contra
os Gentios, teve por meta ... expor a verdade professada pela fé
católica e refutar os erros contrários.
Mas,
talvez, para exemplificar o que pode representar a fé, a sua força
e o seu poder, em Lucas 8, 22-25, tem-se, provavelmente, uma das
passagens históricas mais didáticas do ministério de
Jesus, o Cristo na Terra, relacionada com essa matéria. Certa
feita, dia de Sol, estava Jesus alegre, e convidou seus discípulos
a passear de barco. Os que com Ele estavam aceitaram o convite. O tempo
era bom, o vento calmo e favorável e as ondas suaves facilitavam
a travessia. Mas, ao chegar o barco no meio do lago, o tempo virou. O vento
calmo cede lugar a uma ventania violenta e as ondas suaves transformam-se
em vagas gigantescas, ameaçando afundar a pequena embarcação.
Tranqüilo, Jesus dormia. Preocupados e temerosos, os discípulos
lutavam pela vida. Ao se darem conta de que Jesus dormia, apelam:
—
Mestre, nos perecemos.
Jesus,
então, atendendo ao apelo, ordenou à borrasca que amainasse.
Quando veio a bonança, dirigiu-se aos discípulos e perguntou:
—
Onde está a vossa fé?
A
lição a ser extraída desse episódio bíblico
é que, sem a existência da fé (interior e verdadeira,
alcançada pelo Conhecimento e por comprovação pessoal;
não uma fidelidade estrita com base em crenças escolásticas
sem fundamento em argumentos racionais ou em experiência pessoal)
as realizações humanas ficam comprometidas e subordinadas.
E isso ocorre no exato instante em que o conhecimento científico
perde o seu alcance. A ciência pura e simples é limitada. Conhecer
além da ciência, in Corde, assim, é preciso.
Fundamentar a fé além da ciência, in Corde,
portanto, é preciso. Viver misticamente, in Corde, nesse
contexto, é mais do que preciso, é necessário. Sim,
é mais do que preciso... É necessário... Para aqueles
que compreenderam que isso é preciso, e que aprenderam a confiar
no Mestre-Deus de seus Corações construído in Corde.
Entretanto,
Santo Tomás parte de uma idéia teológica fundamental:
Deus existe e há um só Deus. Apesar de o homem ser incapaz
de apreender a essência íntima de Deus, Nele crê, pois
apesar de os objetos sensíveis não possibilitarem ao homem
ter acesso a essa Essência, uma vez que há uma dessemelhança
entre os efeitos e o poder próprio da coisa, tais objetos facilitam
e facultam a convicção interior, segundo Tomás, de
que Ele existe. Por isso, o Aquinate diz: ... existem em Deus verdades
inteligíveis, as quais são acessíveis à razão
humana; em contrapartida, outras há que superam totalmente as forças
da razão humana.
Relativamente
a essa questão, de forma bastante simples e didática, porém
rigorosamente exata, o Doutor Angélico estabelece uma comparação
entre o Conhecimento ou Inteligência de Deus, e as mesmas qualidades
no homem e nos anjos. Para o Santo, a inteligência de Deus ultrapassa
as inteligências dos anjos e dos homens. E os anjos, por sua vez,
superam em inteligência os homens. Portanto, o homem, superado em
sua capacidade e inteligência por Deus e pelos anjos, não pode
descobrir completamente todas as realidades inteligíveis da Essência
Divina. Como especulação meramente teológica, isto
é irredutível e incontestável. Por
isso, Santo Tomás ensina que tanto as verdades acessíveis
à humana inteligência, como as que o homem não consegue
alcançar, devem ser objetos de fé. Apresenta o Santo um conjunto
de três inconvenientes, caso as verdades a respeito de Deus dependessem
exclusivamente da razão. Resumindo seu pensamento, tem-se que:
O
primeiro inconveniente está em que poucos homens desfrutariam do
conhecimento de Deus. Pois, para chegar a tal conhecimento, exige-se uma
longa e laboriosa busca, o que é impossível para a maior
parte dos homens, por três motivos. Primeiramente,
certas pessoas são afastadas dessa busca por más disposições
do seu próprio temperamento, que as desviam do Saber. Para
outros o obstáculo é constituído pelos afazeres materiais.
Para outros, enfim, o obstáculo é a preguiça.
O
segundo inconveniente consistiria no seguinte: os homens que chegassem
à descoberta de tais verdades só o conseguiriam com dificuldade
e após muito tempo de busca.
O
terceiro grande inconveniente fundamenta-se em que as pesquisas da razão
humana estariam, na maioria dos casos, eivadas de erros, em razão
da fraqueza conatural da nossa inteligência, em razão também
da mistura das imagens.
Portanto,
no que concerne às coisas de Deus, no tomismo, a verdade só
pode ser obtida pela via da fé. E o Santo de Aquino admite, de forma
substantiva, a confirmação da fé pela observação
ou pela participação direta em milagres. Exemplifica com todos
os atos praticados por Jesus (como o milagre da diminuição
da força do vento citado acima) e pelo comportamento ilibado dos
Santos da Igreja Católica.
Outro
aspecto marcante do entendimento de Santo Tomás é a não-contradição
entre as verdades da razão natural e a verdade por ele denominada
de sobrenatural. Por isso, conclui: ... é impossível que
a verdade da fé seja contrária aos princípios que a
razão humana conhece em virtude das suas forças naturais.
E adiciona: Tudo o que a Revelação Divina nos manda crer
é impossível que contrarie o conhecimento natural.
Enfim,
a doutrina das relações entre a razão e a fé
desenvolvida por Santo Tomás de Aquino tem os seguintes consabidos
contornos filosófico-teológicos: (a) razão e fé
são maneiras distintas de se alcançar a verdade, portanto
de se obter a aproximação de Deus; (b) a verdade conseguida
pelo exercício da razão não pode contraditar a Revelação;
(c) pelo uso exclusivo da razão não se pode penetrar completamente
na posse da Verdade; e (d) a razão, quando bem utilizada, fortalece
e favorece a fé, preambulando, opondo-se e elucidando.
Uma
palavra final se impõe. No que se possa concordar ou discordar das
posições assumidas e ensinadas pelo Santo Doutor de Aquino
e por outros próceres do Catolicismo, as discordâncias, certamente,
ficam mais por conta do aspecto didático-fideísta do que propriamente
pela filosofia/teologia em si por eles preconizadas. Há, em muitos
aspectos, uma coerência simpática e efetiva de natureza religioso-teológica
necessária a tantos quantos ainda não conheceram a Iniciação.
O que, apenas, deseja-se aditar, é que o homem deve buscar sempre.
Deve ser e comportar-se como um ponto de interrogação permanente,
como procedem todos os Rosa-Cruzes, que não engolem nada que não
possam comprovar.
Como
sugeriu Santo Hilário no livro Sobre a Trindade, citado
por Santo Tomás, o homem deve empreender, progredir e se esforçar
permanentemente. Admite-se, portanto, em concordância com Santo Hilário,
que a fé deva estimular a razão a buscar sempre mais conhecimento,
para que, um dia, possa se tornar desnecessária. Afinal, de que serviria
a vida se o homem fosse um conformado? De que serviria a vida se ele considerasse
tudo pronto e acabado? Enfim, acredita-se que antes de representarem uma
antinomia, razão e fé, temporariamente, se completam. Mas,
é apenas pelo Conhecimento – que somente advém por esforço
pessoal – que o homem poderá renunciar à sua identidade
pessoal egoístico-individualista e se tornar uno com o Mestre-Deus
de seu Coração. Enquanto a inverdade tolher e iludir o homem,
a Verdade (ainda que sempre relativa e atualizável) não poderá
prevalecer. Por isso, estagnar na fé, em qualquer fé, exclusivamente,
poderá produzir a intolerância, que se opõe à
caridade agostiniana e à própria humildade antoniana. Nesse
sentido, progredir é necessário. O homem não pode,
jamais, estar satisfeito. Bendita insatisfação que o impele
para frente e para o alto. Por isso, finalizando, crê-se firmemente
que a fé não pode ser passiva e submissa. Deve-se, enquanto
forças houver, perseguir a LLuz até o ilimitado infinito,
e se e quando o homem for banhado por seus primeiros raios, deverá
lembrar-se de que nessa caminhada não está só nem desamparado.
Deverá, enfim, também ser sempre solidário. E, se num
instante for conveniente e necessário, deverá até renunciar
em prol de seus semelhantes. Nessa esfera, a fé é iluminadora,
fraterna e criativa, mas, acima de tudo, impessoalmente amorosa.
Seja
como for, um dia a fé (qualquer que seja a fé) será
superada pela plena convicção – que só pode ser
adquirida pela Iniciação. In Corde. Para quem já
viveu essa experiência (incipiente ou plena) ou se e quando isto vier
a acontecer, tudo o que está escrito acima passa a não valer
absolutamente nada. Palavras (lectiones, repetitiones
e disputationes) não explicam mais nada e todas as especulações
desaparecem; foram substituídas pela certeza ad semper!
In Corde.
_____
Nota:
1.
Tomás de Aquino nasceu em 1225, no Castelo de Roccasecca, na Campânia,
da família feudal dos Condes de Aquino. Era unido pelos laços
de sangue à família imperial e às Famílias Reais
da França, da Sicília e de Aragão. Recebeu a primeira
educação no grande Mosteiro de Montecassino, passando a mocidade
em Nápoles como aluno daquela Universidade. Depois de ter estudado
as artes liberais, entrou na Ordem Dominicana, renunciando a tudo, salvo
à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação
por parte de sua família; entretanto, Tomás triunfou da oposição
e se dedicou ao estudo assíduo da Teologia, tendo como mestre Alberto
Magno (1193 ou 1206-1280), primeiro na Universidade de Paris (1245-1248)
e depois em Colônia. Também Alberto, filho da nobre família
de Duques de Bollstädt, abandonou o mundo e entrou na Ordem Dominicana.
Ensinou em Colônia, Friburgo e Estrasburgo; lecionou Teologia na Universidade
de Paris, onde teve, dentre os seus discípulos, também Tomás
de Aquino, que o acompanhou à Colônia, onde Alberto foi chamado
para lecionar no estudo geral de sua Ordem. A atividade científica
de Alberto Magno é vastíssima: trinta e oito volumes tratando
dos assuntos mais variados — Ciências Naturais, Filosofia, Teologia,
Exegese, Ascética. Em 1252, Tomás voltou para a Universidade
de Paris onde ensinou até 1269, quando regressou à Itália,
chamado à Corte Papal. No mesmo ano, voltou à Universidade
de Paris onde lutou contra o Averroísmo de Siger de Brabante. Em
1272, voltou a Nápoles, onde lecionou Teologia. Dois anos depois,
viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por ordem de
Gregório X, faleceu em 7 de Março de 1274, no Mosteiro de
Fossanova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos
de idade. Tomás foi declarado Santo em 1323, apenas 50 anos após
sua morte.
O
Hino Pange Lingua foi escrito por São Tomás de Aquino
como um convite para a adoração do Mistério da Eucaristia.
As duas estrofes finais (Tantum ergo e Genitori, Genitoque)
são cantadas dentro da capela durante a incensação
final que conclui o ato. Este Hino é considerado o mais bonito dos
hinos compostos pelo Aquinate e um dos sete grandes hinos da Igreja Católica.
Bibliografia
ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução
de Alfredo Bosi com a colaboração de Maurice Cunio et
al. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira
Santos, S.J. e A. Ambrósio de Pina, S.J. 4ª ed. Porto: Livraria
Apostolado da Imprensa, 1952.
BIBLIA.
Bíblia Sagrada. 9ª ed. São Paulo: Ed. Paulinas,
1958.
MONDIN,
Battista. Curso de Filosofia. Tradução de Benôni
Lemos; revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. São
Paulo: Edições Paulinas, 1983, v. 1.
_____.
Curso de Filosofia. Tradução de Benôni Lemos;
revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo:
Edições Paulinas, 1983, v. 3.
_____.
Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores,
obras. Tradução de J. Renard; revisão técnica
de Danilo Morales: revisão literária de Luiz Antonio Miranda.
São Paulo: Edições Paulinas, 1983.
MORA,
José Ferrater. Diccionário de filosofia. 5ª
ed. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1965. v. 1.
SELEÇÃO
DE TEXTOS/Sto. Tomás de Aquino, Dante Alighiere, John Duns Scot,
William of Ockham. Traduções de Luiz João Baraúna
et al. 3ª ed. São Paulo: Abril, 1985. Os Pensadores.