RAMALHO ORTIGÃO
(Suas Melhores Migalhas)

 

 

 

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

Não sei se consegui, mas este alegrante estudo pretendeu reunir as melhores migalhas literárias de José Duarte Ramalho Ortigão, parente distante, segundo me foi dito, de José de Barros Ramalho Ortigão Junior (um querido amigo que tive nos meus anos verdes) e de Luiz Maria Ramalho Ortigão de Oliveira Sampaio (meu primeiro professor de Química na Escola Técnica Rezende-Rammel, em mil novecentos e me esqueci, porque foi há muito tempo, que, entre outras coisas interessantes, mas que disto não me esqueci, me ensinou o funcionamento de uma bureta automática). O ator e comediante brasileiro Rolando Lero – Rogério Cardoso Furtado (Mococa, 7 de março de 1937 – Rio de Janeiro, 24 de julho de 2003) – adoraria saber como funciona uma bureta automática, que nada tem a ver – claro! – com o romance de amor entre a Rita – que é peixeira – e o Chico – que é pescador – nem, muito menos, com a confa mítica que envolve Vulcano, Epimeteu, Prometeu, Zeus, a boceta da Pandora e sei lá mais quem! Bem, para arrematar, só faltou dizer uma coisa: José de Barros Ramalho Ortigão Junior era primo de Luiz Maria Ramalho Ortigão de Oliveira Sampaio, mas, segundo sei, não guardavam qualquer parentesco (nem por afinidade, próxima ou milenária) com Vulcano, Epimeteu, Prometeu, Zeus e madame Pandora. Agora, não falta dizer nada.

 

Bem, quanto a José Duarte Ramalho Ortigão – que nasceu na mesma Cidade que minha mãe, só que quase um século antes – acho que você vai gostar dos fragmentos que colecionei para compor este estudo, ainda que alguns saibam um pouquito a fel.

 

 

 

Bureta Automática

Bureta Automática

 

 

 

Breve Biografia de Ramalho

 

 

 

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto em 24 de outubro de 1836. Os primeiros anos da infância passou-os no campo, em casa da avó materna. Freqüentou o curso de Direito, em Coimbra, que não concluiu. De regresso à sua cidade natal, lecionou francês, durante alguns anos, no Colégio da Lapa, dirigido por seu pai, onde teve como aluno o jovem Eça de Queirós.

 

A partir de 1862, dedicou-se ao jornalismo. Foi crítico literário do Jornal do Porto e colaborou na Revista Contemporânea e na Gazeta Literária. Iniciou-se no jornalismo e na literatura no momento em que a segunda geração romântica dominava as letras portuguesas. Por este motivo, não é de estranhar que tenha participado na célebre polêmica conhecida por Questão Coimbrã (o primeiro sinal de renovação ideológica do século XIX entre os defensores do statu quo, desatualizados em relação à cultura européia, e um grupo de jovens escritores estudantes em Coimbra, que tinham assimilado as idéias novas), com o texto Literatura de Hoje (1866), defendendo António Feliciano de Castilho dos ataques que lhe eram dirigidos. Esta atitude acabou por levá-lo a enfrentar Antero de Quental em duelo.

 

Apesar disso, anos mais tarde, vamos encontrá-lo ao lado dos jovens da Geração de 70 (ou Geração de Coimbra, foi um movimento acadêmico de Coimbra, do século XIX, que veio revolucionar várias dimensões da cultura portuguesa, da política à literatura, onde a renovação se manifestou com a introdução do Realismo). Foi nessa altura que escreveu, em colaboração com Eça de Queirós, o Mistério da Estrada de Sintra (1871) e as primeiras Farpas. Quando Eça ingressou na carreira diplomática e foi nomeado cônsul em Havana (Cuba), Ramalho continuou sozinho a redação das Farpas.

 

Em 1870, tinha sido admitido como funcionário da Academia das Ciências, o que lhe permitiu se instalar definitivamente em Lisboa e se dedicar, paralelamente, ao jornalismo e à literatura. Anos mais tarde, em 1895, viria a ser nomeado bibliotecário do Palácio da Ajuda.

 

Com Eça de Queirós no estrangeiro, Ramalho aproximou-se de Teófilo Braga e organizou com ele as comemorações do tricentenário da morte de Camões.

 

Na fase inicial das Farpas, mostrou-se um observador atento e crítico da vida portuguesa. No espírito da Geração de 70, e recorrendo a um estilo irônico, pretendia aproximar Portugal das sociedades modernas de então. A partir de 1872, a sua formação mais tradicionalista impôs-se e passou a dar mais atenção aos aspectos pitorescos da realidade portuguesa e orientar-se por um certo bom senso burguês, pouco propício às mudanças radicais. Esse espírito conservador foi se acentuando com a idade e, já no século XX, Ramalho acabou por se integrar na corrente nacionalista, então em formação.

 

Outro aspecto em que se distinguiu foi o das impressões de viagem, deixando-nos algumas obras que ainda hoje podem ser lidas com prazer.

 

Faleceu em Lisboa, em 27 de setembro de 1915.

 

 

 

Migalhas Ramalhianas

 

 

 

Realmente, a grandeza do ser humano se mede pelos seus atos, idéias e sentimentos que praticam em prol de seus semelhantes. Que pena que a grande massa classifica a grandeza pelo lado extrínseco, ou seja, pelo ter e não pelo ser. A maioria das pessoas rotula as outras pelo que possuem; quanto mais, mais são valorizadas, seja pelo cargo, seja pela casa, seja pela roupa, seja pela conta bancária, seja pelos títulos etc. Poucos pensam em melhorar como pessoa – um aprimoramento espiritual e intelectual que os possa fazer melhor dia-a-dia como ser humano. Para concluir, somos seres humanos. Então, somos seres, e devemos buscar sermos mais humanos, pois, caso contrário, não poderemos ser chamados assim.

 

Maçar o menos possível que seja o meu semelhante, procurando tornar, para os que me cercam, a existência mais doce, o mundo mais alegre e a sociedade mais justa tem sido a regra de toda a minha vida particular. O acaso fez de mim um crítico. Foi um desvio de inclinação a que me conservei fiel. O meu fundo é de poeta lírico.

 

Não, a vida não é uma festa permanente e imóvel; é uma evolução constante e rude.

 

 

Fonte:
http://www.random-good-stuff.com/

 

O papel do marido atraiçoado continuará a ser ridículo até o dia em que a sociedade reconhecer que a honra é uma propriedade como qualquer outra, e que, roubado esse patrimônio, o desprezo, como punição do delito, deve cair não no que sofre, mas ,sim, no que perpetrou o roubo.

 

O casamento é a identificação de duas pessoas imperfeitas num indivíduo completo.

 

O modo mais eficaz de seres útil à tua pátria é educares o teu filho.

 

O amor veemente, o amor apaixonado, por mais perfeito que o queiram pintar, tem sempre intercadências de desalento e de tédio que assassinam a felicidade.

 

O «tête-à-tête» da verdadeira amizade só existe entre um homem e uma mulher. A mulher é o amigo natural do homem. Dois homens raramente se estimam verdadeiramente.

 

O celibato é uma amputação nas forças e nas faculdades do homem.

 

A arte é a eterna desinfectante de toda a podridão em que toca.

 

O amor é um estado essencialmente transitório. É como uma enfermidade. Tem a sua fase de incubação, o seu período agudo, a sua declinação e a sua convalescença. É um fato reconhecido e ratificado por todos os fisiologistas das paixões.

 

Sem alegria, a Humanidade não compreende a simpatia nem o amor.

 

A orientação mental da mocidade contemporânea, comparada à orientação dos rapazes do meu tempo, estabelece, entre as nossas respectivas cerebrações, uma diferença de nível que desloca o eixo do respeito na sociedade em que vivemos, obrigando a 'élite' dos velhos a inclinar-se rendidamente perante a élite dos novos.

 

Combater apenas o analfabetismo do povo por meio de escolas primárias e de escolas infantis sem religião e sem Deus, não é salvar uma civilização, é derruí-la pela base por meio do pedantismo da incompetência, da materialização dos sentimentos e do envenenamento das idéias. Quem ignora hoje que foi a perseguição religiosa e o domínio mental da escola laica o que retalhou e fracionou em França a alma da nação? Quem é que nesse tão amado, tão generoso e tão atribulado país não está vendo hoje objetivar-se praticamente o profético aforismo de Le Bon1: «É sobretudo depois de destruídos os deuses que se reconhece a utilidade deles!»

 

A unidade nacional, a harmonia, a paz, a felicidade e a força de um povo não têm por base senão o rigoroso e exato cumprimento coletivo dos deveres do cidadão perante a inviolabilidade sagrada da família – que é a célula da sociedade perante o culto da religião que é a alma ancestral da comunidade e perante o culto da bandeira que é o símbolo da honra e da integridade da Pátria.

 

Toda decomposição orgânica dá origem a seres parasitários, cuja função é acelerar e completar a decomposição.

 

A lição final da guerra será na humanidade assim como o é na Natureza o simples triunfo implacável do que pode mais sobre o que pode menos.

 

Não nos precipitemos a amaldiçoar a brutalidade de um tal destino enquanto não refletirmos no que é realmente a força e de que natureza são os tão complexos elementos integrados nesse fenômeno global.

 

De quantos vícios e de quantas farroncas se compõe uma fraqueza? De quantas virtudes ignoradas e recônditas se constitui uma força humana?

 

Augusto de Castro2: O que eu admiro é que, sendo o Sr. Ramalho tão amigo de Eça de Queirós, nunca o ensinasse a andar…

Ramalho: — Efetivamente, o Queirós não andava. Trotava…

 

E se os diplomatas não podem alcançar bons tratados para o país, é porque andam ocupados em arranjar mais 'roast-beef' para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. Lá fora sabe-se isto: e é sempre com terror que os donos da casa vêem entrar o embaixador português, à frente do seu pessoal esfomeado.

 

Temos visto do jogo muitas e mui variadas definições. A única, porém, que inteiramente nos satisfaz é a seguinte: o jogo é uma asneira.

 

 

 

               

 

 

Inocência, na acepção em que tomamos a palavra, quer dizer ignorância do que é impuro. Quem cora ao ouvir uma imprudência, claro é que distingue; e quem distingue duas coisas conhece-as ambas.

 

O homem que só tem as qualidades próprias da sua idade e do seu estado é o homem admirável. O que reúne a essas grandes qualidades os pequenos defeitos que lhe são congêneres é o homem completo.

 

Eu creio tanto na influência dos maus jantares como no das más companhias na índole dos indivíduos, e adoto, para mim, esta sentença: «Diz-me o que comes; dir-te-ei as manhas que tens».

 

O homem sem educação, por mais alto que o coloquem, fica sempre um subalterno.

 

O homem mais perfeitamente educado, por um mestre, foi Stuart Mill.3 Aos vinte anos de idade ele tinha aprendido com James Mill, seu pai, tudo quanto a ciência pode ensinar a um sábio e a um filósofo. E, todavia, Stuart Mill conta-nos na sua autobiografia que, ao perguntar um dia a si mesmo se seria feliz, uma vez realizadas nas instituições e nas idéias todas as reformas que ele projetava criar, a sua consciência lhe respondera: não. 'Senti-me então desfalecer' – diz ele. 'Todas as fundações sobre que se tinha arquitetado a minha vida se desmoronaram de repente.' Mais tarde, ele sentiu a dor, sentiu depois o amor, o amor apaixonado, absorvente, enorme, dominando todo o seu ser, submetendo a força dissolvente da análise; e foi só então que ele se sentiu homem, revivendo para a Natureza, forte da grande força que a Natureza lhe comunicava, equilibrado para sempre no seu destino, cingido ao coração palpitante de uma mulher que ele amou – ele, o sábio, o filósofo, o reformador frio e implacável com o amor ilimitado, entusiástico, cavalheiresco, que as velhas lendas líricas atribuem aos grandes amantes célebres.

 

O plebeísmo da palavra torna rasteira a opinião. Uma Câmara que fala mal é impossível que proceda bem.

 

Para conhecer a realidade do mundo – único fim sério da ciência – é preciso entrar no combate da vida como entravam na liça os paladinos bastardos: sem pai e sem padrinho. Os príncipes não constituem exceção a esta lei geral da formação dos homens. Da educação de gabinete, do bafo enervante dos mestres, dos camareiros e das aias, nunca saíram senão doentes e pedantes. Na sagração dos czares há uma cerimônia de alta significação simbólica: o imperador não se confirma enquanto por três vezes não haja descido do trono e penetrado sozinho na multidão; e isto quer dizer que na convivência do povo a autoridade e o valor dos monarcas recebe uma tão sagrada unção como a da Santa Crisma. Todos os reis fortes se fizeram e se educaram a si mesmos nos mais rudes e mais hostis contatos da Natureza e da sociedade humana. Veja vossa alteza Carlos Magno, que só aos quarenta anos é que mandou chamar um mestre para aprender a ler. Veja Pedro o Grande, do qual a educação de câmara começou por fazer um poltrão. Aos quinze anos, não se atrevia a atravessar um ribeiro. Reagiu, enfim, sobre si mesmo, pela sua única força pessoal. Para perder o medo aos regatos, um dia, da borda de um navio, arrojou-se ao mar. Para se fazer marinheiro, começou por aprender a manobrar, servindo como grumete. Para se fazer militar, começou por tambor na célebre companhia dos jovens boiardos. E para reconstituir a nacionalidade russa, começou por construir navios, a machado, como oficial de carpinteiro e de calafate, nos estaleiros de Sardam. Também não teve mestres, e foi consigo mesmo que ele aprendeu a língua alemã e a língua holandesa. Veja vossa alteza, enfim, todos aqueles que no governo dos homens tiveram uma ação eficaz, e reconhecerá se é na lição dos mestres ou se é no livre exercício da força e da vontade individual que se criam os caráteres verdadeiramente dominadores, como o de Cromwell, como o de Bonaparte, como o de Santo Inácio, como o de Lutero, como o de Calvino, como o de Guilherme, o Taciturno, como o de Washington, como o de Lincoln.

 

A mulher plenamente feia é uma calamidade social.

 

 

 

 

 

A Lei do Universo baseia-se sobre o concurso destes dois grandes agentes: a luta pela vida e a seleção natural. A luta pela vida é o estado permanente de todos os seres, para os quais a criação é uma eterna batalha. A sorte do conflito decide-a a seleção natural. Como? Fixando na espécie, pela adaptação ao meio, os seres mais fortes, e expulsando os seres inferiores. Por isso o professor Haeckel affirma: «A teoria de Darwin estabelece que nas sociedades humanas, como nas sociedades animais, nem os direitos, nem os deveres, nem os bens, nem os gostos dos membros associados podem ser iguais.» Ora, o que é que estabelece o Direito? O Direito estabelece precisamente o contrário disso: a igualdade dos deveres recíprocos para a mais equitativa distribuição dos bens. O Direito, portanto, não só não é uma emanação da lei natural, mas é uma reação contra essa lei. A Natureza é o triunfo brutal decretado ao forte. A sociedade é a proteção consciente assegurada ao fraco. A criação funda a luta pela vida. A sociedade organiza o auxílio pela existência. Uma civilização é tanto mais adiantada quanto mais ela submete ao seu domínio as fatalidades naturais. E é assim que o homem, de conquista em conquista, chegará, um dia, como diz Büchner, ao paraíso futuro, ao paraíso terreal, de onde não veio, mas para onde vai, e que não é um dom divino primitivo, mas o fruto derradeiro do trabalho humano.

 

Os meus últimos meses de solidão em Lisboa acabam de demonstrar-me que é Spinosa,4 afinal, que tem razão. Há um determinismo mental de que ninguém se liberta. Ninguém tem pensamentos exclusivamente próprios. Ninguém pensa o que quer.

 

Paço de Arcos5 tem um hotel habitável – o do Bugio – e um clube em cujo salão há 'soirées' aos sábados. Senhoras espanholas a banhos nesses subúrbios são convocadas em cada semana a levarem aos sábados de Paço de Arcos o doce tributo da sua presença, da sua 'toilette' e da sua expansiva vivacidade. Assim como de manhã se pergunta para o banho: «há maré?»; assim à noite se pergunta para o baile: «há espanholas?»

 

'Tomar propósito' é uma locução essencialmente local e intraduzível, que quer dizer: aprender a não saber andar, a não saber rir, a estar quieto e a estar calado, a corromper os mais nobres instintos da natureza humana, finalmente a dissimular e a mentir. Ainda bem que nunca ‘tomei propósito'.

 

O espírito move tudo e não responde por coisa alguma: ele é a eloqüência da alegria e o entrincheiramento das situações difíceis; salva uma crise fazendo sorrir; disfarça, às vezes, a fraqueza de uma opinião; acentua, outras vezes, a força de uma idéia; é a mais fina salvaguarda dos que não querem se definir francamente; tira a intransigência às convicções, fazendo-lhes cócegas; substitui a razão, quando não substitui a ciência; dá uma posição no mundo e, adotado como sistema, derruba um império.

 

É binária a natureza de todo o homem superior. Metade dele pertence ao ramerrame passageiro de cada dia; a outra metade pertence ao ideal eterno de um mundo mais perfeito, em cuja obra cada um colabora procurando torná-lo, na órbita de sua aptidão pessoal, ou mais justo, ou mais rico, ou mais belo.6

 

Assim cada um tem em si, superior a todas as torpezas da Terra, impoluta, inviolável e sagrada, a mística torre ebúrnea em que habita a aspiração imortal do espírito do homem.

 

O senhor presidente senta-se, com os seus secretários um de cada lado. A Câmara está nos seus postos, cheia de compostura e de gravidade, com as barbas feitas. Os taquígrafos têm aparado as suas penas mais velozes, têm-nas molhado na sua tinta mais corredia, e, de punho suspenso sobre a página, com a manga de alpaca enfiada no braço, o colete desabotoado, o corpo curvo, esperam ávidos e diligentes. O senhor presidente toca a campainha e diz: — 'Está aberta a sessão.' O senhor presidente assoa-se, tosse, procura nas algibeiras, consulta os senhores secretários em voz baixa. Na mesa, trocam-se palavras imperceptíveis. Os senhores secretários procuram também nas algibeiras. Um deles tira uma carteira, o outro tira o relógio, o senhor presidente tira um lenço branco, que coloca sobre a mesa pondo-lhe em cima o antebraço. O senhor presidente enxuga os beiços ao lenço branco e torna a colocá-lo sobre a mesa, ao lado de um lápis. Alguns senhores deputados batem nas tampas das carteiras com os nós dos dedos e fazem gestos expressivos aos senhores contínuos que aparecem. Os senhores deputados estendem a mão aberta paralelamente com o nariz e movem-na repetidamente, metendo para dentro da boca a ponta do dedo polegar: os senhores contínuos percebem esta mímica e voltam trazendo copos de água. O senhor presidente, vendo este movimento, cruza os braços no peito, recosta a cabeça para trás, e espera. Os senhores deputados, que beberam água, trocam uns com os outros palavras que se não ouvem na mesa dos taquígrafos e deitam as línguas de fora. (Silêncio). Os senhores Deputados, que beberam água e deitaram as línguas de fora, tomam a meter as línguas para dentro. (Outro silêncio). O senhor presidente: — 'Está em discussão o parágrafo n° 6 do projeto de lei n° 8.' (Silêncio profundo). O senhor presidente percorre com os olhos a assembléia, tendo o braço erguido no ar e um lápis em punho No meio do silêncio geral, ouve-se, nos bancos da direita, um rugido intestinal. Uma voz debaixo dos bancos da esquerda: — 'A maioria rugiu!'. Uma voz debaixo dos bancos da direita: — 'Fora, faccioso!' A primeira voz: — 'Peço ao senhor presidente que me dê o rugido para uma explicação pessoal.' Muitas vozes: — Peço o rugido! Peço o rugido! ' O senhor presidente tocando a campainha: — Ordem, senhores! Ordem! Eu não posso dar o rugido a todos ao mesmo tempo. Inscrevam-se, inscrevam-se!' (Pausa). Tem o rugido o digno deputado Sr. Barros and Cunha. O Sr. Barras and Cunha (com amarga ironia e uma grande calva): — 'Senhor Presidente, eu não rujo senão em inglês, no rugido de lorde Byron e de John Stuart Mill' (com uma grande sobreexcitação de amargura e de ironia). 'Se eu rugisse, o Governo não me compreenderia sem consultar os dicionários!' 'Senhor presidente (cada vez mais amargo e mais calvo), eu desisto do rugido.' O senhor presidente: — Continua a estar em discussão o parágrafo n° 6 do projeto de lei n° 8.' O deputado Sr. Rocha Peixoto, cheio de barba e de ardor: — A rugidos. Digo: a votos! A votos!' O deputado Sr. Tonas Lírico: — 'Apoiado!' O Senhor presidente: — 'Está aprovado o parágrafo n° 6 do projeto de n° 8. Como deu a hora, está levantada a sessão. A ordem do dia para amanhã é a discussão do parágrafo n° 7 do dito projeto n° 8.' E está-se nisto há dois meses!

 

Baudelaire, imitador do estilo humorístico americano de Edgar Poe,7 é um mundano, um dândi, um corrupto. Tem os defeitos e as virtudes inerentes à sua violenta personalidade. Conhece todas as elegâncias, todos os vícios, todos os desejos, todos os apetites, todas as perversões nervosas, todas as úlceras, todas as febres, todas as podridões modernas. Sabe o segredo do 'chic', os preceitos da moda, os efeitos da prostituição e do alcoolismo, e os últimos requintes da sensualidade e da devassidão... A sua musa foi criada irritantemente com túbaras e com vinhos de champagne, entre o lupanar, o 'tripot' e o 'water closet' do 'boulevard'. Pinta os cabelos, os beiços, as faces e põe sinais. Dá ao cabelo o aspecto de uma meada de linho cor de manteiga, ao rosto a imagem da superfície de uma taça de leite em que caíssem duas moscas, à boca a semelhança de uma cicatriz. Tem tosse, meias de seda e um 'coupé', de quando em quando... Baudelaire tem, no entanto, o grande mérito de haver criado a língua da decadência literária do Segundo Império, de ter fiado na linguagem as fosforescências do charco, as cintilações do estilo negro. Há estados morais e estados patológicos na vida do homem moderno, os quais, antes de Edgar Poe nos Estados Unidos, de Henrique Heine,8 na Alemanha, e de Charles Baudelaire, em França, estavam inéditos na literatura destes três países. Heine e Poe fizeram a língua da tísica, da dispepsia, da nevrose e do 'delirium tremens'. Baudelaire criou o idioma sifilítico do crevetismo.

 

Quando um poeta é de natureza tal, que ao passar por senhoras de carruagem se vê obrigado, pelo seu temperamento, pela sua veia poética ou pelos seus princípios políticos, a corcovar, a endoidecer, a ter convulsões e febre e a amarrotar os colarinhos, esse poeta é perigoso na rua do Alecrim, e deverá ir, 'sinistro e mal trajado', desejar o lugar dos truões e amarrotar a roupa branca para a circunvalação.

 

Com uma paisagem tão penetrante portuguesa, tão aviventada de sentimentos, na Alhandra, em Vila Franca de Xira, no Cartaxo, no Vale de Santarém, ondulada de searas, do verdejante das vinhas gorjeada de rouxinóis, no murmúrio das azinheiras e dos olivais, uma noção nova me veio – a noção de Pátria.

 

A Justiça, impondo o discernimento do bom e do mau, pressupõe a ciência.

 

 

 

 

 

 

Ó Ramalho, oiça bem isto:

 

 

 

 

 

 

Desconcordo: mulher feia

não é u'a calamidade social.

Estar embaciada a candeia,

sim, isto é um grande mal!

 

A mamã era proprietária

de um nasal macroscópico;

mas, em sua canseira diária,

seu desvio era microscópico.

 

Ó Ramalho, oiça bem isto:

vale o quê uma fácies bela,

se dentro tudo é permisto,

sem parafuso ou arruela?

 

O pé pode estar bichado,

que o deixe aconchegado

para transpor a passarela.

 

Lembra do Torquemada?

Homem, mas trajava saia.

Cuca rapada, alma aviltada,

 

Bem – ó Ramalho – é isso aí.

Espero que você esteja legal.

Um dia, você regressará aqui;

entretanto, com outro cabedal.

 

Quem sabe, até como mulher,

não importa se feia ou bonita.

Mas lembre: sopa é de colher,

 

 


______

Notas:

1. Gustave Le Bon (7 de maio de 1841 – 13 de dezembro de 1931) foi um psicólogo social, sociólogo e físico amador francês. Foi o autor de várias obras nas quais expôs teorias de características nacionais, superioridade racial, comportamento de manada e psicologia de massas. Sua obra sobre psicologia de massas tornou-se importante na primeira metade do século XX, quando foi usada por pesquisadores da mídia, tais como Hadley Cantril e Blumer, para descrever as reações de grupos subordinados à mídia. Também contribuiu para debates continuados sobre a natureza da matéria e da energia. Seu livro A Evolução da Matéria tornou-se muito popular na França (chegando a doze edições), e embora algumas de suas idéias – notadamente a de que toda a matéria era inerentemente instável e estava constante e lentamente transformando-se em éter – tenham sido levados em conta favoravelmente por físicos da época (incluindo Henri Poincaré), sua formulação específica não teve a mesma consideração. Em 1896, informou que havia observado um novo tipo de radiação, a qual denominou luz negra (não é a mesma coisa hoje denominada luz negra), embora posteriormente tenha sido descoberto que a mesma não existia. As idéias de Le Bon exerceram notável influência sobre o escritor brasileiro Monteiro Lobato, cujo único romance, O Presidente Negro (publicado em 1927), aborda a questão da sobrevivência futura da raça branca (e o que ela teria de fazer, na visão de Lobato, para não se extinguir via vira-latice pelos resíduos autossômicos negróides). Outro autor de destaque que discutiu suas idéias foi Sigmund Freud no seu livro Psicologia de Grupo e a Análise do Ego, publicado originariamente em Leipzig, Viena e Zurique, em 1921.

2. Augusto de Castro Sampaio Corte-Real (Porto, 11 de Janeiro de 1883 – Estoril, 24 de Julho de 1971), mais conhecido por Augusto de Castro, foi um advogado, jornalista, diplomata e político com uma carreira que se iniciou nos anos finais da Monarquia Constitucional Portuguesa e se estendeu até o Estado Novo. Foi uma das principais figuras Estado Novo, ganhando grande notoriedade como comissário da Exposição do Mundo Português, em 1940. Foi diretor do Diário de Notícias por dois períodos distintos, de 1919 a 1924, altura em que foi em missão diplomática para Londres, e de 1939 até 1971. Membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 25 de Janeiro de 1945, ocupando a cadeira nº 5, que pertencera a Eugênio de Castro (1869 – 1944).

3. John Stuart Mill (Londres, 20 de Maio de 1806 – Avinhão, 8 de Maio de 1873) foi um filósofo e economista inglês, e um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX. Foi um defensor do Utilitarismo, a teoria ética proposta inicialmente por seu padrinho Jeremy Bentham.

4. Spinosa – também Benedito Espinoza ou Baruch Spinoza – (24 de novembro de 1632 – 21 de fevereiro de 1677) foi um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz. Nasceu em Amsterdã, nos Países Baixos, no seio de uma família judaica portuguesa e é considerado o fundador do Criticismo bíblico moderno.

5. Paço de Arcos ou Paço d'Arcos é uma freguesia portuguesa do Concelho de Oeiras, com 3,49 km² de área e 28.000 habitantes (2001). Densidade: 3 390,5 hab/km². Foi elevada a vila por um decreto de 7 de dezembro de 1926.

6. Diz o poeta e teórico da arte francês Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 – Paris, 31 de agosto de 1867) – um dos precursores do Simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia – a respeito da Arte: A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.

7. Edgar Allan Poe (Boston, 19 de janeiro de 1809 – Baltimore, 7 de outubro de 1849) foi um escritor, poeta, romancista, crítico literário e editor estado-unidense. Poe é considerado, juntamente com Jules Verne, um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica modernas.

8. Christian Johann Heinrich Heine (Düsseldorf, 13 de dezembro de 1797 – Paris, 17 de fevereiro de 1856) foi um importante poeta romântico alemão, sendo conhecido como o último dos românticos. Boa parte de sua poesia lírica, especialmente a sua obra de juventude, foi musicada por vários compositores notáveis como Robert Schumann, Franz Schubert, Felix Mendelssohn, Brahms, Hugo Wolf, Richard Wagner e, já no século XX, por Hans Werner Henze e Lord Berners.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://integras.blogspot.com/2010/12/
mulher-bonita-e-inteligente-quer-muito.html

http://www.dinodirect.com/IiPlus-cnwd3-2GB-Happy-
Ugly-Woman-Catoon-USB-Flash-Drive-Yellow.html

http://www.equisport.pt/pt/
artigos/arte/ramalho-ortigao

http://www.unicentro.br/editora/revistas/guairaca
/22/06%20-%20artigo%20p.%2045-53.pdf

http://www.migalhas.com.br/mig_leitores.
aspx?cod=4010&datap=13/02/2011

http://www.shutterstock.com/pic-281
0772/stock-vector-ugly-woman.html

http://www.perlacasino.com/

http://books.google.com.br/

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http://talvezpensar.bloguepessoal.com/286195/
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http://citador.pt/pensar.php?pensamentos
=Ramalho_Ortigao&op=7&author=1266

http://entreaspas.org/
autores/ramalho-ortigao

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Augusto_de_Castro_Sampaio_Corte-Real

http://www.angelfire.com/pq/unica/monumenta
_1914_carta_ramalho_amaral.htm

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Gustave_Le_Bon

http://www.infopedia.pt/
$ramalho-ortigao

http://pensador.uol.com.br/
autor/Ramalho_Ortigao/

 

Música de fundo:
O Namorico da Rita
Compositores: António Mestre & Artur Ribeiro
Fadista: Amália da Piedade Rodrigues

Fonte:

http://www.belita.org/Music/