José Maria de Eça de Queirós
(Pensamentos e Reflexões)

 

 

 

Eça de Queirós

 

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

Continuando a estudar alguns portugueses ilustres, este texto reproduz fragmentariamente algumas reflexões e alguns pensamentos de Eça de Queirós. Penso, salvo melhor juízo, que os fragmentos escolhidos para compor este trabalho sejam tão atuais, que se quadrem perfeitamente à mentalidade, às tendências e às angústias da contemporaneidade que estamos vivendo. Enfim, quem disse que não há idéia mais consoladora do que esta: que eu, e tu, e aquele monte, e o Sol – que, agora, se esconde – são moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo fim, merece, no mínimo, um instantinho de atenção e de revisitação, ainda que eu, e tu, e aquele monte, e o Sol – que, agora, se esconde – são moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei seja bem fácil de ser entendido; já o rolando para o mesmo fim me deixa um tanto quanto embatucado. Será que tudo e todos rolam para o mesmo fim? Será que há um fim? Se se admite que haja um fim, é porque houve um suposto começo. De quê? Quando? Por quê? Bem, não vou entrar nesta reflexão aqui neste parágrafo; já discuti este tema à exaustão e até à saciedade em rascunhos anteriores. Agora é só Eça. De Queirós. E um ensinamento zen-budista, no final, só para rematar.

 

A animação aí embaixo é só um alerta, para não aquecermos demais; eu não acredito em big-isto, big-aquilo, big-estoutro, big-aqueloutro, big-essoutro, big-quem-sabe, day after etc. Com big ou sem big, com small ou sem small, eu, que nasci otimista e vou morrer otimista, confio que o homem dará um jeito na sua loucura. Se não der, e eu constatar que a coisa está ficando inevitavelmente preta, me mudo rapidinho para Shambhala.

 

 

 

 

 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Eça de Queirós

Eça de Queirós

 

 

 

Diplomata e escritor muito apreciado em todo o mundo e considerado um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, Eça de Queirós nasceu José Maria Eça de Queirós, em Póvoa de Varzim-Portugal, no dia 25 de novembro de 1845 e morreu em Paris-França, no dia 16 de agosto de 1900.

 

Em Coimbra, Eça foi amigo de Antero de Quental, ambos filiados à Franco-maçonaria, ainda que Antônio Ribeiro de Almeida acredite que o espírito crítico e irônico de Eça nunca permitiria que ele entrasse numa oficina maçônica. Já Lourival Souza, Membro do Supremo Conselho do Rito Moderno, afirma: Pode-se afinal, sem sombra de dúvida, afirmar que pela Maçonaria passaram, até a Revolução de 28 de maio de 1926 – de que veio surpreendentemente a resultar, devido à forte interferência das altas finanças e da hierarquia clerical, a ditadura Salazar, conhecida por Estado Novo vultos dos mais eminentes da vida política e literária do País, nacionalistas, profundamente imbuídos daquele irrecusável livre pensamento. Citamos aqui apenas alguns desses irmãos escritores mais conhecidos no Brasil: Eça de Queirós, Antero Tarquínio de Quental, Camilo Castelo Branco e Alexandre Herculano. Seja como for, os primeiros trabalhos de Eça, divulgados como avulsos na revista Gazeta de Portugal, foram depois coligidos em livro e publicados depois da sua morte sob o título Prosas Bárbaras.

 

Tendo entrado na carreira diplomática, Eça de Queirós passou os anos mais produtivos de sua vida na Inglaterra, como cônsul de Portugal em Newcastle e em Bristol. Escreveu, então, alguns dos seus trabalhos mais importantes, como A Capital, escrito numa prosa hábil, plena de realismo. Suas obras mais conhecidas, Os Maias e O Mandarim, foram escritas em Bristol e em Paris, respectivamente. Seu último livro foi A Ilustre Casa de Ramires, sobre um fidalgo do século XIX com problemas para se reconciliar com a grandeza de sua linhagem. É um romance imaginativo, entremeado com capítulos de uma aventura de vingança bárbara que se passa no século XII, escrito por Gonçalo Mendes Ramires, o protagonista. Trata-se de uma novela chamada A Torre de D. Ramires, em que antepassados de Gonçalo são retratados como torres de honra sanguínea, que contrastam com a lassidão moral e intelectual do rapaz.

 

Eça morreu em 16 de agosto de 1900, em Paris. Teve funerais nacionais. Está sepultado em Santa Cruz do Douro, uma freguesia portuguesa do Concelho de Baião.

 

 

 

 

Pensamentos e Reflexões de Eça

 

 

 

Eça de Queirós

Eça de Queirós

 

 

 

Refletindo sobre o Brasil? Não, claro; sobre Portugal da minha mãe e do seu tempo. Em junho de 1871, assim Eça de Queirós inicia a primeira crônica de As Farpas que, em parceria com Ramalho Ortigão, começou, então, a publicar em fascículos mensais: Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos e já não se crê na honestidade dos homens públicos...

 

Para ensinar, há uma formalidadesinha [sic] a cumprir – saber.

 

O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anônimo. É por isso que hoje é tão útil como irreverente rir das idéias do passado: a multidão não se ocupa de idéias, ocupa-se das fórmulas visíveis, convencionais das idéias. Por exemplo: o povo em Portugal, nas províncias, não é católico – é padrista. Que sabe ele da moral do Cristianismo? Da teologia? Do ultramontanismo1? Sabe do santo de barro que tem em casa, e do cura que está na igreja.

 

 

 

Não há idéia mais consoladora do que esta: que eu, e tu, e aquele monte, e o Sol – que, agora, se esconde – são moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo fim.

 

 

 

 

É o grande dever do jornalismo fazer conhecer o estado das coisas públicas, ensinar ao povo os seus direitos e as garantias da sua segurança, estar atento às atitudes que toma a política estrangeira, protestar com justa violência contra os atos culposos, frouxos, nocivos, velar pelo poder interior da pátria, pela grandeza moral, intelectual e material em presença de outras nações, pelo progresso que fazem os espíritos, pela conservação da justiça, pelo respeito do direito, da família, do trabalho, pelo melhoramento das classes infelizes.

 

O que são há 20 anos os partidos em Portugal? Que pensamento traduzem? Que grande fato social querem realizar? Formam-se, desagregam-se, dissolvem-se, passam, esquecem, sem que deles fique uma edificação aceitável, uma criação fecunda. Estabelecem patronatos, constroem filiações, arregimentam homens e braços trabalhadores, preparam terreno e solo robusto, onde eles possam sem embaraço tomar as livres atitudes do aparato e da vaidade reluzente. Nada mais fazem. Nascem infecundamente, morrem esterilmente.2

 

Ordinariamente, todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o Estadista. É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?3

 

Os que sabem dar a verdade à sua pátria não a adulam, não a iludem, não lhe dizem que é grande, porque tomou Calicute; dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade rude e brutal. Gritam-lhe: tu és pobre, trabalha! Tu és ignorante, estuda! Tu és fraca, arma-te!

 

Poupe-se ao boi a vista ao malho.

 

O interesse do Universo está todo na vida, na sua luta, na sua paixão, no seu cerimonial, no seu ideal e no seu mal. O Sol, nascendo por detrás das Pirâmides, sobre o fulvo deserto da Líbia, forma um prodigioso cenário; o vale do Caos, nos Pirineus, é de uma grandeza exuberante. Mas todos estes espetáculos hão-de ser sempre infinitamente menos interessantes que uma simples comédia de ciúmes, passada num quinto andar. Que há, com efeito, de comum entre mim e o Monte Branco? Enquanto que as alegrias amorosas do meu vizinho ou os prantos do seu luto são como a consciência visível das minhas próprias sensações.

 

Houve um filósofo que deixou aos infelizes esta máxima: Se a tua dor te aflige, faz dela um poema.

 

No fundo, nós somos todos fadistas: do que gostamos é de vinhaça e viola e bordoada, e viva lá sô compadre...

 

Calado, invadido pelo pensamento do Báb – o Arauto da Fé Bahá’í – revolvia comigo o confuso desejo de me aventurar nessa campanha espiritual... Por que não? Tinha a mocidade, tinha o entusiasmo... Via-me discípulo do Báb... E partia logo a pregar, a espalhar o verbo babista. Aonde iria? A Portugal, certamente, levando de preferência a salvação às almas que me eram mais caras.

 

Na arte, quando forte, fina e superior, a simplicidade resulta sempre de um violento esforço. Não se coordena com clara inteligência uma concepção, não se atinge uma expressão fácil, concisa e harmoniosa, sem longas e tumultuárias lutas em que arquejam juntos, espírito e vontade.

 

Homem, que fizeste tu da alma?

 

Que mérito há em amar os que nos amam?

 

Ah!, nunca homem deste século batalhou mais esforçadamente contra a seca de viver!

 

O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.

 

A imprensa é composta de duas ordens de periódicos: os noticiosos e os políticos. Os noticiosos têm todos a mesma notícia; os políticos têm todos a mesma política.

 

É o Coração que faz o caráter.

 

 

 

 

A arte é um resumo da Natureza feito pela imaginação.

 

Pensar e fumar são duas operações idênticas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento.

 

É o comer que faz a fome.

 

Nas nossas democracias a ânsia da maioria dos mortais é alcançar em sete linhas o louvor do jornal. Para se conquistarem essas sete linhas benditas, os homens praticam todas as ações – mesmo as boas.

 

Os sentimentos mais genuinamente humanos logo se desumanizam na cidade.

 

Existe no fundo de cada um de nós, é certo – tão friamente educados que sejamos – um resto de misticismo; e basta, às vezes, uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar, para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a idéia, e fique assim o mais matemático ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista – como um velho monge poeta.

 

Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo.

 

O apreço exterior pela arte é a sobrecasaca da inteligência.

 

O ódio é um sentimento negativo que nada cria e tudo esteriliza: quem a ele se abandona bem depressa vê consumidas na inércia as forças e as faculdades que a Natureza lhe dera para a ação. O ódio, quando impotente, não tendo outro objeto direto e nem outra esperança senão o seu próprio desenvolvimento é uma forma da ociosidade. É uma ociosidade sinistra, lívida, que se encolhe a um canto, na treva. Mas que esse sentimento seja secundário na vasta obra que temos diante de nós, agora que acordamos, e não essencial, ou supremo e tão absorvente que só ele ocupe a nossa vida, e se substitua à própria obra.

 

Quem, sem descanso, apregoa a sua virtude, a si próprio se sugestiona virtuosamente e acaba por ser, às vezes, virtuoso.

 

O jornal exerce todas as funções do defunto satanás, de quem herdou a ubiqüidade; e é não só o pai da mentira, mas o pai da discórdia.

 

Para aparecerem no jornal, há assassinos que assassinam.

 

É que o amor é essencialmente perecível, e na hora que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Há, então, um delírio, um entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois! Seria, pois, necessário estar sempre a começar, para poder sempre sentir?

 

Quando não se tem aquilo que se gosta é necessário gostar-se daquilo que se tem.

 

A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva, por um lado, a escutar atrás das portas, e, por outro, a descobrir a América.

 

Não haveria o direito de vencer, se não houvesse o direito de perdoar.

 

Ora, no mundo, só há de interessante, verdadeiramente, o Homem e a Vida.

 

Nada influencia mais profundamente o sentir do homem do que a fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantos dos decotes e da valsa; e o mais extraviado mundano, dentro de uma 'robe de chambre', sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão. Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a idéias conservadoras.

 

Em matéria social, é o rótulo impresso na garrafa que determina a qualidade e o sabor do vinho.

 

As revoluções não são fatos que se aplaudam ou que se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São fatos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal de que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade. Decerto que os horrores da revolução são medonhos; decerto que tudo o que é vital nas sociedades, a família, o trabalho, a educação, sofrem dolorosamente com a passagem dessa trovoada humana. Mas as misérias que se sofrem com as opressões, com os maus regimens, com as tiranias, são maiores ainda. As mulheres assassinadas no estado de prenhez e esmagadas com pedras, quando foi da revolução de 93, é uma coisa horrível; mas as mulheres, as crianças, os velhos morrendo de frio e de fome, aos milhares nas ruas, nos invernos de 80 a 86, por culpa do Estado, e dos tributos e das finanças perdidas, e da fome e da morte da agricultura, é pior ainda. As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades; as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias.

 

Em suma, esta geração nova sente a necessidade do divino. A ciência não faltou, é certo, às promessas que lhe fez: mas é certo também que o telefone, o fonógrafo, os motores explosivos e a série dos éteres não bastam a calmar e a dar felicidade a estes corações moços. Além disso, eles sofrem desta posição ínfima e zoológica a que a ciência reduziu o homem, despojado por ela da antiga grandeza das suas origens e dos seus privilégios de imortalidade espiritual. É desagradável, para quem sente a alma bem conformada, descender apenas do protoplasma; e mais desagradável ter o fim que tem uma couve, a quem não cabe outra esperança senão renascer como couve. O homem contemporâneo está evidentemente sentindo uma saudade dos tempos gloriosos em que ele era a criatura nobre feita por Deus, e no seu ser corria com outro sangue o fluido divino, e ele representava e provava Deus na criação, e quando morria reentrava nas Essências Superiores e podia ascender a anjo ou santo. Tão tumultuosamente esta geração nova apetece o divino, que, à falta dele, se contenta com o sobrenatural. Assim sucede que, enquanto alguns rondam já com os braços em cruz, em torno do Cristianismo, e outros mais ousados penetram na índia a procurar o Budismo, há um número considerável que se senta em torno de uma mesa ou de um chapéu, e se instala confortavelmente no Espiritismo. Em Paris, em todas as grandes cidades, onde o materialismo excessivo exasperou as imaginações, não se vêem senão homens inquietos batendo de novo à porta dos mistérios.

 

Um homem, realmente, não pode ter a rigidez impassível de um princípio. Os princípios são insensíveis e intangíveis, e os homens são um feixe de nervos sujeitos à todas as influências, mesmo às da chuva e do vento. É absurdo pretender que um poeta seja tão poético como os seus poemas, um padre tão transcendente como o seu dogma e que um estadista, elevado ao poder para representar uma idéia, se torne tão impessoal como ela, e como ela prossiga impassivelmente na sua evolução, mesmo quando a Terra trema e os céus em torno caiam.

 

O Pessimismo é uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o tornar uma lei universal – a lei própria da Vida; portanto, lhe tira o caráter pungente de uma injustiça especial, cometida contra o sofredor por um Destino inimigo e faccioso! Realmente, o nosso mal, sobretudo, nos amarga quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho, porque nos sentimos escolhidos e destacados para a infelicidade, podendo, como ele, ter nascido para a fortuna. Quem se queixaria de ser coxo, se toda a Humanidade coxeasse? E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve, na friagem e na borrasca de um inverno especial, organizado nos céus para o envolver a ele unicamente, enquanto em redor toda a Humanidade se movesse na benignidade de uma primavera? O Pessimismo é excelente para os inertes, porque lhes atenua o desgracioso delito da inércia.

 

... Nada torna o homem recolhido, aconchegado à lareira, simples e facilmente feliz como a guerra. É a paz que, dando os vagares da imaginação, causa as impaciências do desejo.

 

A imaginação, na cidade, é a perpétua repelida. A imaginação só vive da vida dos outros seres: precisa pousar sobre as coisas externas e tirar-lhes, como a abelha tira o mel às flores, a quantidade de sonho que as coisas contêm. A imaginação, no campo, na margem dum rio, entre uma floresta, toma um livre caminho, encontra alimento, vive, tem quem a escute, tem confidentes, tem companhia, pasta livremente, devagar, olhando, cismando... Apertada nas ruas duma cidade de casas estreitas e chatas, na violenta limitação imposta pela municipalidade, o que há-de fazer a imaginação, de que há-de viver, como pode ter expansões legítimas? Esvoaça, como um pássaro dentro duma casa fechada, batendo as asas de encontro às paredes caiadas. E assim, a imaginação, batendo de encontro a tudo o que faz a vida social, perturba a quietação das coisas sérias: arremessa-se então para a política, e produz os revolucionários, as mudanças de Estado, a guilhotina; lança-se na vida moral e produz a orgia, as 'lorettes',4 o luxo, as roletas. E quando se concentra sobre si mesma, quando se escava a si própria, acontece-lhe o que acontece a todas as funções que se isolam, que se impropriam: vê falso, sente falso, produz falso!5

 

A arte convencional mutila o homem moral, como a ciência convencional mutila o homem físico; são ambas aprovadas pelos monsenhores arcebispos de Paris e dadas em leitura nos colégios. Mas uma ensina falso, como a outra educa falso: ambas nocivas, portanto.

 

Só na verdade o pensamento e a sua criação suprema – a ciência, a literatura e as artes – dão grandeza aos povos, atraem para eles universal reverência e carinho, e, formando dentro deles o tesouro de verdades e de belezas que o Mundo precisa, os tornam, perante o mundo, sacrossantos.

 

A definição de «grande homem» está feita já, e com exatidão. O grande homem é aquele que, pelo raciocínio, atingiu uma maior soma de verdade, ou pela imaginação as maiores formas de beleza, ou pela ação os mais altos resultados, do que todos os seus contemporâneos na latitude do seu século. Esta obra superior em verdade, em beleza, em bondade ou em utilidade, é produzida por um não sei quê que possui o grande homem, que se chama gênio, cuja natureza não está suficientemente explicada, mas que constitui uma força infinitamente maior que o simples talento, o simples gosto ou a simples virtude.

 

Os interesses, os negócios, a loja, a repartição, a família, a profissão liberal, os prazeres não deixam um momento para as exigências de uma iniciação artística. E em uma cidade de dois milhões de almas, como Paris, há, por fim, apenas, meia dúzia de almas que possam sentir com verdade e profundidade a beleza ou a grandeza de uma obra, e que diante de um quadro de Velásquez e de um quadro de Bonguereau, saibam qual pertence à arte e qual pertence ao artifício. Por isso, a oleografia triunfa, e Ohnet e outros tiram a cem mil exemplares e as comédias mais desprezivelmente idiotas congregam as multidões. E não é culpa da multidão. Ela pode dizer, como o amanuense a Voltaire: «Não me sobra tempo para ter bom gosto».6

 

A Democracia, saída toda inteira da Declaração dos Direitos do Homem, que afirmara soberbamente a sua liberdade e a sua igualdade, encontra no homem um ser mesquinhamente sujeito a todas as fatalidades físicas e a todas as dependências sociais, e não consegue libertá-lo delas, porque contra os direitos do homem, declarados, protestam as realidades da Natureza, experimentadas. Daí todas as angustiosas contradições do século. Em lugar da fraternidade, vem a guilhotina operar como fator de civilização; em vez das raças fundadas numa concórdia universal, crescem as nacionalidades antagônicas, que abominam e vivem cobertas de ferro e armas, espreitando, por cima das fronteiras, o apetecido momento psicológico de se entredilacerarem. Da aristocracia territorial e senhorial decepada renasce, como cabeça número dois da hidra, a aristocracia argentária e industrial; e o mundo, que deixara de ver escravos revoltados e jacqueries7, de novo os encontra ante si, mas implacáveis e dolorosas, sob o nome de Comunismo e de niilismo. E, como se isto não bastasse, a própria ciência nega a origem da Democracia, que se dizia ser a igualdade natural, provando que a única lei universal é a desigualdade; que o homem, como os outros seres, está sujeito à seleção evolutiva; que o direito das espécies à vida se avalia à proporção da sua capacidade para viver; que quem triunfa e sobrevive é o mais forte; e que, portanto, só há realidade de direito quando há manifestações de força. Diremos ainda que a Democracia é uma vitoriosa?8

 

Coração Incoerente: A superior sapiência das nações já formulou esta lei naquele seu fino adágio: 'O coração não sente o que os olhos não vêem'. A mais pequenina dor, que diante de nós se produz e diante de nós geme, põe na nossa alma uma comiseração e na nossa carne um arrepio, que lhe não dariam as mais pavorosas catástrofes passadas longe, noutro tempo ou sob outros céus. Um homem caído a um poço na minha rua mais ansiadamente me sobressalta que cem mineiros sepultados numa mina da Sibéria; e um carro esmagando a pata de um cão, em frente à nossa janela, é um caso infinitamente mais aflitivo do que a heróica e admirável Joana d'Arc queimada na praça de Rouen.9

 

Desde que a caridade se organiza e se consolida em instituição, com regulamentos, relatórios, comitês, sessões, um presidente e uma campainha, e do sentimento natural passa a função oficial, é porque o homem, não contando já com os impulsos do seu Coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições de um estatuto. Com os Corações assim duros e os invernos tão longos, que vai ser dos pobres?10

 

Uma religião a que se elimine o ritual desaparece, porque as religiões para os homens (com exceção dos raros metafísicos, moralistas e místicos) não passam de um conjunto de ritos, através dos quais cada povo procura estabelecer uma comunicação íntima com o seu deus e dele obter favores.11




 

 

 

A Título de Remate

 

 

 

Vou resumir o que garimpei e o que compreendi de Eça com um ensinamento zen-budista (que não é de minha autoria).

 

O velho monge pediu a um jovem triste que colocasse uma mão cheia de sal em um copo d'água e bebesse.

Qual é o gosto? — perguntou o Mestre.

Ruim, muito salgada disse o aprendiz.

O monge sorriu e pediu ao jovem que pegasse outra mão cheia de sal e levasse a um lago. Os dois caminharam em silêncio e o jovem, a pedido do monge, jogou o sal no lago. Então o velho monge disse:

Agora, beba um pouco dessa água.

Enquanto a água escorria pelo queixo do jovem, sorridente, o Mestre perguntou:

Qual é o gosto?

Normal! disse o rapaz.

Você sente o gosto do sal? perguntou o Mestre.

Não... disse o jovem.

O monge então sentou ao lado do jovem, pegou suas mãos e disse:

A dor na vida de uma pessoa não muda, mas o sabor da dor depende de onde a colocamos. Quando você sentir dor, a única coisa que você deve fazer é aumentar o sentido de tudo o que está à sua volta. É dar mais valor ao que você tem do que ao que você perdeu. Em outras palavras: você deve deixar de ser um copo e se tornar um Lago.

 

 

 

 


 

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Notas:

1. Ultramontanismo refere-se à doutrina e à política católica que busca em Roma a sua principal referência. Este movimento surgiu na França na primeira metade do século XIX. Reforça e defende o poder e as prerrogativas do papa em matéria de disciplina e de fé, portanto, sublinhando a infalibilidade papal. Roma locuta est, causa finita est. Roma falou, a causa está encerrada. [Santo Agostinho, Sermones, CXXXI, 10].

2. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência.

3. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência.

4. Lorette = Mulher elegante e de costumes fáceis.

5. Há dois tipos básicos de imaginação: a imaginação-direita e a imaginação-esquerda. A imaginação-esquerda vê falso, sente falso, produz falso e é falsa porque, nela, há a predominância inconsciente da ação do Corpo Astral sobre o processo de imaginar – daí, no limite, a extrema crueldade, que vai da crueldade consigo à crueldade com o outro. Já a imaginação-direita é amorosa, fraterna e, sobretudo, condolente.

6. E aqui me lembrei do Brasil contemporâneo: programas de variedades repetitivos, anestesiantes e enfadonhos que não variam coisa alguma, notícias escandalosas e inúteis, explorações cruéis das patologias mentais humanas, novelas, seriados, reality shows, como o Big Brother Brasil e No Limite, pregações e sermões eletrônicos para todos os bem-intencionados de todas as fés, cujos principais objetivos são a intimidação criminosa, a lengalenga fastidiosa e locupletante e o arrecadamento indecoroso de dinheiro via negócios com Deus, Roletrando (quadro de programa de televisão, estilo game-show, exibido pelo SBT nas décadas de 1980 e 1990), talk shows, como o da vovó do sexo Sue Johanson, que, no caso, mistura informações importantíssimas – que todo mundo deveria saber – com as mais loucas loucuras, inimagináveis até, quero crer, para um Porfirio Rubirosa (1909 – 1965), diplomata, jogador de pólo e piloto de automóveis da República Dominicana, que se tornou mundialmente conhecido por sua fama de playboy e participação no jet set internacional et cetera, et cetera, et cetera... Anestesias mil: local, peridural, caudal, raquidiana, troncular, geral, para todos os gostos e para ninguém reclamar ou botar defeito, contrariando, em latitude e em longitude, em profundidade e em rasidade, o que disse Nelso Malacarne: Sábio é o homem que desfruta todos os momentos da vida, enriquecendo-se de bens eternos! O busílis (que nada tem a ver com temporibus illis, naqueles tempos) é saber o que são bens eternos. É complicada a coisa; fazer o quê? Em um certo sentido, é mesmo meio doloroso: Tempora mutantur; nos et mutamur in illis. Mudam os tempos; nós também mudamos com eles. [John Owen, Epigrammata, VIII, 58].

7. A Jacquerie ou Revolta dos Jacques foi uma insurreição camponesa que teve lugar no norte de França, entre 28 de maio e 24 de junho de 1358, durante a Guerra dos Cem Anos. A designação deriva de Jacques Bonhomme (líder da revolta), expressão idiomática francesa, de conotação paternalista, que designava genericamente um camponês e que posteriormente foi usada pejorativamente, equivalendo a joão-ninguém.

8. É melhor Democracia meio sem democracia do que autoritarismos ou totalitarismos, pois, nos primeiros as normas constitucionais são manipuladas ou reeditadas conforme os interesses dos grupos ou das coligações partidárias que detêm o poder, e nos segundos o regime político está concentrado em uma pessoa que representa a figura de um fürher (comandante supremo). Nos regimes políticos totalitários não há nenhuma instituição política que possa representar qualquer vestígio de Democracia. Tais regimes ocorreram maiormente entre os anos 1920/1945 na forma de Fascismo na Itália e na Espanha, Nazismo na Alemanha e Estalinismo na União Soviética.

9. E, assim, esquecemos ou não ligamos! Paz aos Mestres Ascensionados da Grande Loja Branca! Paz aos Irmãos Maiores da Ordem Rosa+Cruz Eterna, Verdadeira e Invisível! Paz a Akhenaton, a Sâr Alden, a Sâr Validivar, à Maria A. Moura – Irmãos a quem devo minha Iniciação Rosacruz!

10. Vale a pena refletir sobre estas citações:

Edmondo de Amicis [1846-1908]: Os pobres gostam da esmola dos jovens porque não se sentem humilhados e porque os jovens, que precisam de todos, assemelham-se a eles... A esmola de um homem é um ato de caridade, mas a de um menino é, ao mesmo tempo, uma caridade e um carinho.

Victor-Marie Hugo [1802 – 1885]: Dêem, ricos! A esmola é irmã da prece.

António Vieira [1608 – 1697]: O merecimento da esmola não consiste em que a comam aqueles para quem a dais, senão em que vós a deis para que eles a comam.

11. Se você passar a ver Deus não mais como um Pai, se você abrir mão desta concepção paternalista com todo o obscurantismo (inclusive bíblico) que ela carrega, se você passar a ver Deus de uma outra forma - como um Santo Espírito que o envolve, motiva, santifica e ascensiona, mas que faz tudo isso sem manipular você, sem impor condições, sem propor negócios de toma-lá-dá-cá ou exigir a assinatura de um termo de servidão ao Poder, isto já será um grande avanço. (Frater Velado, 7Ph.D., Dirigente da Ordo Illuminati Ægyptorum).

 

Páginas da Internet consultadas:

http://ribeirobr.blogspot.com/
feeds/posts/default

http://old.bpb.uminho.pt/eventos/
20010502/Farpas.htm

http://iwww.citador.pt/pensar.php?
op=10&refid=200405220914

http://iwww.citador.pt/pensar.php?
op=10&refid=200807090900

http://iwww.citador.pt/pensar.php?
op=10&refid=200809170900

http://pt.wikipedia.org/wiki/Regime
_pol%C3%ADtico#Autoritarismo

http://iwww.citador.pt/pensar.php?
op=10&refid=200810180900

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jacquerie

http://iwww.citador.pt/pensar.php?
op=10&refid=200811082300

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http://www.amoreamor.com/
frases-do-autor--eca-de-queiroz--6627.html

http://www.pensador.info/
p/pensamentos_de_eca_de_queiroz/2/

http://www.pensador.info/
p/pensamentos_de_eca_de_queiroz/1/

http://pt.wikiquote.org/wiki/
E%C3%A7a_de_Queiroz

 

Fundo musical:

Foi Deus
Compositor: Alberto Janes
Intérprete: Amália Rodrigues

Fonte:

http://www.umnovoencontromusical.com/
portuguesas.htm