PREDESTINAÇÃO

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

 é todo aquele que foi 'abençoado de antemão';

portanto, é alguém que foi 'escolhido por Deus para a glória eterna'.

Não importa se o cara anda ou se não anda na mão ou na contramão;

Na hora de adentrar no breuzão se arrepende e ganha uma luzerna.

 

Aqueloutra estorinha pra boi dormir de que só temos uma vida

foi uma estragédia[1] para contrapesar a Lei da Reencarnação.

— O que eu não puder resolver agora, resolverei em outra vida.

Assim pensavam muitos, entrava geração saía geração.[2]

 

Para poder empurar a carruagem o parto foi dorido e dificultoso.

O homem, se pudesse, dormia até em pé, e em tudo era moroso.

O jeitinho foi vender às consciências duas baitas irracionalidades.

 

Impuseram a doutrina da vida única e a arenga da predestinação,[3]

que serviram também para enricar o 'teólogo' sem-vergonha e ladrão.

Tudo isso acabou gerando as mais abjetas e absurdas deformidades.

 

 

 

 

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Notas: (A nota [3] já foi apresentada em outro soneto. Mas como eu ando tão abichornado com esse assunto resolvi fazer este soneto e repetir a nota. Sei lá. Alguém poderá ler este soneto e não ler o outro, ou ler o outro e não ler este. Tudo é possível, até o Bush perdoar o Osama e o Congresso Nacional do Brasil punir os corruptos ambulanceiros ao invés de puni-los. Deu para entender essa? Pois é. Coisas da língua portuguesa. Punir tanto pode ser infligir pena ou castigo como lutar em defesa de.)

[1]. Estragédia = estratégia + tragédia.

[2]. Ainda que isso não tenha mudado inteiramente.

[3]. Predestinação: doutrina teológica que prega que algumas criaturas (os eleitos) estão de antemão destinados à bem-aventurança eterna no céu ou em algum local aprazível equivalente – que ninguém sabe onde é – enquanto outras pobres criaturas (os réprobos) estão destinados a torrar no inferno eternamente e, de quebra, mais seiscentos e sessenta e seis anos, seiscentos e sessenta e seis dias, seiscentos e sessenta e seis minutos e cinqüenta e nove segundos. O de quebra é que é de lascar. De arrepiar mesmo são os cinqüenta e nove segundos! En passant: também ninguém sabe onde é o raio do inferno. Mas muita gente ficou rica – e outro tanto continua a ficar – por causa do tal do inferno: uns vendendo passagens da primeira à última classe só de ida para lá; outros vendendo salvo-condutos ou habeas corpi preventivos para o céu. Voltando ao assunto da predestinação: ela é baseada na vontade de Deus e não em premonição ou em conhecimento do futuro em relação a um ente e/ou a um acontecimento. Teologicamente, a doutrina da predestinação está particularmente associada ao Calvinismo. Deus age continuamente com onipotência total para realizar a Sua Vontade Onipotente com onipotência total. De forma integral, com onipotência total e você que se dane se não é uma pessoa especial. Sempre, sempre e sempre. E não adianta chiar, bradar, vociferar, esbravejar, fazer biquinho, impetrar um habeas-data ou reclamar com o papa, que dá na mesma como na mesma dá. Agora pensei no seguinte: se dá na mesma como na mesma dá, por que comprar ou vender salvo-condutos ou habeas corpi preventivos para o céu? Vender eu até consigo entender. Mas comprar? O bendito dia em que os compradores de salvo-condutos e/ou de habeas corpi preventivos perceberem isso, essa indústria fedorenta vai amargar rapidinho uma falenciazinha culposa. Eu não compro nada; por mim, essas ratazanas têm que trabalhar para poder comer o pão de cada dia. E também não aceito nicas, lhufas ou bulhufas – de graça, por doação ou por herança – que se relacione com esses salvo-condutos e habeas corpi preventivos. São todos inúteis. Nem adianta insistir ou me ameaçar com o calor do inferno, até porque lá deve ser muito mais divertido do que no céu. Entre tantas figuras notáveis, já pensaram encontrar o Giordano Bruno por lá? Porém, eu realmente tenho um pouco de pena dele. Tendo sido condenado em 1600 por heresia pela Igreja Católica por duvidar da Santíssima Trindade, há quatrocentos e seis anos que ele deve sentir um calor infernal. Mas até hoje ecoam no Vaticano as palavras de Bruno ao receber a sentença de que seria executado sem profusão de sangue, ou seja, que seria queimado vivo. Disse Bruno: — Teme mais a Força [a Igreja Católica] em pronuciar a sentença do que eu em escutá-la. Enfim, seja o que Deus quiser. Depois veremos. Ponto final. (Mas ainda vou voltar a esse assunto medonho trocentas vezes).

 

 

 

 

Música de fundo:

Cheek To Cheek (Irving Berlin)

Fonte:

http://www.damadanoite.adm.br/internacionais.htm