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Nota
1. Maniqueísmo:
dualismo religioso sincretista que se originou na Pérsia
e foi amplamente difundido no Império Romano (séculos
III d. C. e IV d. C.), cuja doutrina consistia basicamente em afirmar
a existência de um conflito cósmico entre o reino da Luz
(o Bem) e o das Sombras (o Mal), em localizar a matéria e a carne
no reino das Sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever de
ajudar à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas,
especialmente evitando a procriação e os alimentos de
origem animal. O maniqueísmo é também (toda
e) qualquer visão de mundo que o divida em situações
ou estados opostos e inconciliáveis. No caso deste soneto,
de um lado as prostitutas, os gays e os dependentes, e de outro,
os moralistas de salão, os religiosos de fim de semana (e geralmente
só quando a família está por perto) e os fariseus
metidos a santos.
Por outro lado, a técnica
dialética do Sic et Non (sim e não, ou a favor
e contra) – s.m.j. filha tardia do maniqueísmo, o que pode
ser considerado um exagero ou uma heresia – do eminente e controvertido
filósofo-teólogo escolástico francês Pedro
Abelardo (1079-1142), considerado mesmo a figura mais prestigiosa
do século XII, foi um gravíssimo autoritarismo teológico-filosófico-dialético
do pensamento medieval, mas que até hoje tem seus admiradores
ocultos. O Sic et Non propõe que se reúnam teses
opostas sobre vários assuntos (por exemplo, em termos contemporâneos,
racismo, sexismo, elitismo, economia,
política, meio ambiente, eixo do mal, eixo do bem etc.),
para que (dialeticamente?!) se chegue à verdade. Mas, o que é
a verdade? É exatamente por causa dessa tal de verdade que o
Mundo está sendo rachado ao meio neste Terceiro Milênio.
De uma maneira geral – mas não absoluta – para os
ocidentais, o ocidente é Sic e o oriente é Non;
para os orientais, o oriente é que é Sic e o
ocidente é que é Non; mas para os místicos
verdadeiros ninguém (nem nada) é Sic ou é
Non. Nessa linha especulativa, o máximo que eu me permito
admitir é que tudo é Sic-et-Non,
pois até os distanciados podem reencontrar o Caminho.
Enfim, em uma de suas
cartas à jovem literata Heloísa – o grande amor
da vida de Abelardo – o Escolástico escreveu: Fujo
para longe de ti, evitando-te como a um inimigo, mas incessantemente
te procuro em meu pensamento. Trago tua imagem em minha memória
e assim me traio e me contradigo. Eu te odeio, eu te amo. Neste
caso, aonde foi parar a tal verdade que Abelardo tanto procurou e tanto
defendeu? No amor? Sic? Non? No ódio? Sic?
Non? Na Teologia? Sic? Non? No medo do inferno?
Sic? Non? No que os outros poderiam pensar? Sic?
Non? Coisas como essas são verdadeiras mediocridades.
Ora, quem escreve uma frase como essa está inteiramente apaixonado
(de quatro, dominado, como costuma ser dito), só que, no caso
de Abelardo, ele teimou em não admitir e renunciou à sua
amada Heloísa por um fideísmo boçal. Medo de Deus
e de pecar? Pode ser. Vergonha de sua confraria? Pode ser. Pode ser
muita coisa. Inclusive covardia. Mas penso que seja, principalmente,
uma antropomorfização maluca de Deus com transferência
de desejos, paixões, rancores, punições e outras
coisas menores para esse nível imaginário, mas tido como
verdadeiro, e conseqüente subserviência a essa linha desajeitada
de pensamento. Isso é tudo uma grande maluquice-prisão.
Ou prisão-maluquice, que dá na mesma e não leva
a lugar algum. Heloísa morreu vinte anos depois de Abelardo e,
por sua vontade, foi sepultada na mesma tumba de seu amado. Sofreu o
pão que o diabo amassou por causa dessa incoerência de
Abelardo, que, com relação à ela, preferiu o preconceituoso
Non ao ensolarado Sic. A fé de Heloísa
jamais a consolou e sua vida foi miserável e povoada de lembranças.
E o pobre Astrolábio – que, como o meu filho mais velho*,
nasceu antes de Abelardo e Heloísa se casarem secretamente na
Catedral de Notre-Dame, em Paris – como ficou nessa estória?
Esse Catolicismo medieval ainda vai ter que explicar muita coisa! Mas,
como eu contei um pouco mais acima, Abelardo é considerado a
figura mais prestigiosa do século XII. Pode? Deve poder,
mas eu não consigo compreender, pois sei que as verdadeiras figuras
prestigiosas nunca mostraram suas faces publicamente.
2. Por sua própria
consciência.
* Só que eu não
me casei secretamente nem abandonei meu(s) filho(s). Divorciei... Mas
isso é coisa da vida. Depois casei mais três vezes. E por
pouco não me casei com uma prostituta.