Esta
história bem que poderia ter acontecido em um barzinho de Ipanema,
no Rio de Janeiro, ou em qualquer outro lugar da nossa Galáxia. Também,
bem que poderia ter acontecido em uma quarta-feira, às 4 horas da
tarde, no dia 4 de janeiro de 2017. Neste barzinho, dois amigos de longa
data, um, maranguapense, o Johannesen Anysio Castanheira Coelho (primo em
2º grau e meio do Chico Anysio), e o outro, quixeramobinense, o Amundsen
Aprysio Oliveira Pinto (primo em nenhum grau do Chico Anysio, quer dizer,
não é primo do Chico Anysio, mas, é sobrinho-neto do
famoso monsenhor Salviano Pinto Brandão, e, não se sabe ao
certo, porém, parece que possui algum parentesco por afinidade com
o juiz de direito Dr. Antônio Pereira Ibiapina, cognominado o Apóstolo
do Nordeste), ambos com 69 anos, 4 meses e 1 dia de macrobia,
se encontraram para jogar conversa fora e tomar uns chopinhos. A história
que vou contar bem que poderia ser mesmo verdadeira, porque o que as pessoas
mais gostam de fazer é contar desgraças, se lamentar e reclamar
da vida, das pessoas e das coisas! Raros, raríssimos, são
aqueles que não nutrem um sentimentozinho xexelento de reclamação.
No limite, os caras se mandam e mudam de país, como se isso fosse
resolver as coisas! Nossas insatisfações são interiores;
independem do que está acontecendo no lado de fora. Há putaria,
sacanagem, desmando, corrupção, intrigalhada e violência
em toda parte. Nem o Palácio de Potala está livre disto nem
o Vaticano escapa destas incongruidades inconsubstanciais homosapienianas!
Essas coisas são como a prostituição: não acabam
nunca e, por todo lado, estão sempre se renovando. Bem, nunca, sinceramente,
não sei. Vai ver que, um dia, elas acabam.
ohannesen — E
aí, Amundsen, como é que você vai? Como é que
foi a virada?
mundsen — Eu
vou indo mais ou menos, Johannesen, e você?
Johannesen
— Bem. Mas,
que negócio é esse de 'vou indo mais ou menos'? Estamos em
2017.
Amundsen
— Pois é,
Johannesen, muitas decepções!
Johannesen
— Decepções?
Amundsen
— Com as pessoas.
Tristeza... Desilusão... Desapontamento... Um pouco de tudo e de
tudo um pouco.
Johannesen
— Como assim?
Amundsen
— Você
lembra da Phylomenna?
Johannesen
— Claro. A
Phyló
foi sua empregada
por mais de 20 anos, não foi?
Amundsen
— Foi. E é
isso que me decepciona.
Johannesen
— Explique
isso direitinho.
Amundsen
— Você
sabe como eu sou. Ajudo todo mundo. A Phyló
não é exceção. Sempre que ela precisa de alguma
coisa, bate lá em casa e me pede. E eu sempre dou.
Johannesen
— Eu sei...
Eu sei... Não há ninguém que não reconheça
que você tem um bom coração. Você não é
manga, mas, é coração-de-boi!
Amundsen
— Pois é...
Pois é... Mas, a Phyló
não reconhece
isto.
Johannesen
— Eu já
pedi; explique isso direitinho. Vá diretamente ao ponto, mas, deixe
as minúcias de lado.
Amundsen
— Você
acredita que, depois de tudo o que eu fiz e o que tenho feito pela Phyló,
ela, simplesmente, não me deu um telefonema sequer, nem no Natal
nem no Ano Novo! Isso me deixou decepcionadíssimo, Johannesen! É
muita ingratidão! Muita!
Johannesen
— Decepcionadíssimo,
Amundsen?
Ingratidão?
São palavras muito fortes!
Amundsen
— É.
Decepcionadíssimo com tanta ingratidão.
Johannesen
— Eu compreendo,
mas, você ligou para ela para desejar feliz Natal ou feliz Ano Novo?
Amundsen
— Não...
Johannesen
— Então,
não fode, cara. Por que a obrigação de ligar é
dela? Você quer que as pessoas tenham obrigações com
você, mas, não quer ter nenhuma obrigação com
elas? Você está raciocinando como patrão, como senhor
de engenho, que acha que todo mundo tem que ir ao beija-mão em sinal
de respeito, prestar obediência e se sujeitar. Essa porra acabou.
Na verdade, nunca deveria ter existido. Ou você é amigo da
Phyló ou
é senhor de engenho.
Amundsen
— Mas...
Johannesen
— Mas é
o cacete, porra! Ora, Amundsen, se manque, cara. Deixe de ser voltado
exclusivamente para as suas próprias vontades e mimadão. Isso
era coisa de senhor de engenho filho-da-puta, que se achava o rei da cocada
preta, da cocada branca, da cocada incolor e sem cocada. Era; não
é mais. Pare de só pensar só em si mesmo. Paradoxalmente,
ter bom coração, que é o seu caso, não anula
a esquisitice da bajulice que você gosta e que espera dos outros.
A mesma obrigação que a Phyló tem com você, você
tem com ela e com todo mundo. Isto se você achar que alguém
tem obrigação inquestionável com alguém neste
mundo. E se a Phyló morreu, e você a está
increpando de ingrata, como um bebê chorão? Já pensou
nisto? A sua
decepção virará um puta remorso, muito pior do que
hemorróidas sangrentas, do que verruga na bunda e do que dor de corno!
Pense bem.
-----------------------------------------------
Ao
chegar em casa1, Amundsen
resolveu ligar para a Phylomenna.
O marido informou que ela havia tido um infarto fulminante e morrido instantaneamente
na véspera do Natal. Amundsen
chorou de remorso.