OS PERDÕES IMPERDOÁVEIS

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

Perdoar é um ato – geralmente subconsciente – de onipotência. Às vezes, é bem-intencionado. Às vezes, não é. (Gustavo Capanema, 1900-1985, em Pensamentos, sentenciou: Perdoar é, além do mais, é um bom negócio.). Mas, quem comprende, não precisa perdoar; e quem perdoa, ainda não compreendeu. De qualquer forma, é melhor perdoar do que não perdoar, mas sempre categoricamente, claro. Contudo, o místico deve se esforçar para compreender as pessoas, os fatos e os fenômenos da Natureza (dos quais é parte irredutível), pois a compreensão é uma forma preliminar de iluminação que precede a Illuminação. De permeio, deve-se aprender a não julgar — nada nem ninguém. A trajetória é:

 

 

Em Lucas XXIII, 34, Jesus diz: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Quando Jesus diz porque não sabem o que fazem Ele demonstra compreender o que está acontecendo e porque está acontecendo; mas, quando pede a seu Pai, perdoa-lhes, demonstra, também, cabalmente que, com relação às ofensas que estava sofrendo, não poderia simplesmente perdoar. Isto estava fora de Sua alçada no sentido de que, se perdoasse, estaria sendo onipotente, estaria fazendo um certo juízo de valor e estaria passando por cima das Leis Cósmicas, que não julgam, perdoam ou punem: apenas educam. E, na verdade, de nada adiantaria Ele perdoar (se Ele pudesse!). Os citados 'milagres' que Jesus operou (e os 'milagres' que ainda acontecem todos os dias) ocorreram (se ocorreram da forma como são relatados) porque os beneficiários (por mérito) já haviam cumprido o que precisava que fosse cumprido. É mesmo difícil de conceber que um serial killer ainda com sangue na boca ou um pedófilo assumido ainda com manchas nas cuecas possam ser beneficiados ou premiados (essas palavras não estão boas, mas vou deixá-las aí como estão) por um 'milagre'. Então, sendo assim, por que Jesus proferiu a famosa frase que é repetida e festejada até a contemporaneidade? Voltando no tempo, Ele simplesmente estava deixando patente que, além de saber porque estava passando por todo aquele sofrimento, Ele próprio não julgou seus agressores, que foram meros instrumentos para que se cumprisse a Lei para que uma Nova Lei entrasse em vigor. Se Ele perdoasse ou afastasse o cálice, tudo iria por água abaixo. E isso não poderia suceder. Não com Ele. Não com a Terra. Não com a Humanidade. Jesus foi, então, uma espécie de Pedra Filosofal Planetária e certamente um Instrumento de manifestação do Cristo Cósmico. Por Amor! Uma vez mais, cito Mâ Ananda Moyî (1896-1982): O que acontece é desejado e bom. E assim, o Santo Sofrimento de Jesus (por Ele aceito) foi desejado e bom. Nós é que ainda não somos inteiramente dignos desse Santo Sofrimento. Eu, pelo menos, não sou. Quem sabe, um infinitesimus!

Mehmet Ali Agca, que disparou duas vezes contra o Papa João Paulo II, na Praça de S. Pedro, em Roma, no dia 13 de Maio de 1981, acaba de ser libertado neste 12 de Janeiro de 2006. Um ano e meio depois do atentado, João Paulo II foi visitá-lo na prisão. O teor da conversa que tiveram permanece desconhecido, mas o Papa manifestou-se a favor do perdão. Ora, o Papa pode perdoar (ato de generosidade), mas a lei (e a Lei) deve ser cumprida, e o Papa (nem ninguém) não pode estar acima da lei (nem da Lei), mesmo sendo Papa (e mesmo sendo generoso). Quando um criminoso salda seu débito com a sociedade (de acordo com as leis dessa mesma sociedade) pode ser solto. O que ele vai fazer da sua vida só ele sabe e só a ele compete. Mas, no que concerne às Leis Cósmicas isso não é assim. Enquanto a criatura não compreende os motivos que a levaram a cometer as desarmonias contra si e contra o próprio Cósmico (contra qualquer partícula do Cósmico), ficará enjaulada em sua própria armadilha-prisão de ignorância e sofrimento. Poderá acender mil e uma velas, rezar um bilhão de Ave Marias, apedrejar o demônio, martirizar-se, jejuar, fazer dez trilhões de promessas etc. que não adiantará absolutamente nada. A Lei é simples: ou se compreende ou se compreende. A própria oração só tem efeito e é efetiva quando se ora sabendo o como e o porquê do sagrado ato de orar. A Chave é simples: disponibilidade Cósmica e não desejar absolutamente nada. Pedir? Pedir o quê? A quem? Por quê?

Uma das ilusões que são vendidas (a peso de ouro) aos religiosos é que Deus perdoa a quem se arrepende. Isso é pura tolice; mas é uma tolice que remunera, e remunera muitíssimo bem. O arrependimento sincero, por outro lado, é outra coisa: é o primeiro passo para a reconciliação do ente consigo e com o próprio Cósmico. A própria Salvação passa, em primeiro lugar, pelo arrependimento sincero. Mas, o que é a Salvação? A Salvação nada mais é do que a possibilidade de o ente não ser entropizado e reciclado depois da morte – o que equivale a ser Salvo de si mesmo. Isto é: à medida que se renuncia, com sinceridade, à Senda Esquerda, torna-se viável que a Senda Direita apareça como opção de reconciliação, de regeneração e de reintegração. Logo, o esforço e o trabalho são exclusivamente pessoais. Não há, em princípio, interferência. No interior do homem há todas as ferramentas para que ele possa se libertar e se tornar o seu próprio Mestre.

Tudo isso posto, se Mehmet Ali Agca se arrependeu sinceramente e se libertou de sua fúria assassina nesses quase 25 anos de prisão... Mas, quem sou eu para discutir essa matéria? Só posso desejar que Agca (meu irmão) encontre a sua Paz. João Paulo II encontrou a dele.

Por último, quero enfatizar: precisamos nos libertar do errôneo pensamento de que alguém possa ou tenha o poder, entre outros absurdos, de nos perdoar. Ninguém tem esse poder, nem aqui nem do lado de lá. Ora, se os Mestres Ascensionados não interferem com as nossas manias e com as nossas besteiras, como é que alguém, cá, descaradamente, se arvora e assume por vontade própria (ou por delegação de quem não pode delegar absolutamente nada) o poder de perdoar, mesmo que seja em nome de Deus? Qualquer um que pare um segundinho para pensar haverá de entender o porquê da invenção da confissão auricular e do perdão dos pecados.

A última grande novidade católica foi divulgada hoje, sexta-feira, 13 de Janeiro de 2006: O Papa Bento XVI cria comissão de teólogos para estudar o fim do limbo, a moradia das almas não-batizadas, isto é, aquele lugar que ninguém jamais soube ou sabe aonde é – que nem é frio e nem é quente, que nem dói nem faz cócegas – para onde foram e vão (e por enquanto ainda continuam a ir) as alminhas das crianças, dos inocentes bebês e dos fetos que morrem sem ser batizadas (quem morre em pecado mortal vai direto para o quentíssimo e sulfídrico inferno – que também ninguém sabe onde fica – e sem direito a aparelho de ar condicionado, leque ou ventarola). E, por extensão, também vão para o limbo as almas ditas justas dos homens de bem que viveram na Antigüidade, antes da vinda de Jesus, como por exemplo Pitágoras, Sócrates e Platão, que tiveram dois azares azarentos terríveis: nasceram antes do advento do Cristianismo (hoje Catolicismo) e não foram batizados segundo a legislação católica (Direito Canônico – que rege a estrutura da Igreja Católica Apostólica Romana, bem como as relações entre os católicos). Isso é azar ou é o quê? É mesmo uma brincadeira de péssimo gosto de quem criou esse tal de limbo e lá enfiou pessoas do calibre de Pitágoras, de Sócrates e de Platão (o Senhor Buddah também deve estar por lá); em direção recentíssima, sabedoria político-teológica-macabra direcionada de quem quer acabar com ele – o limbo – mas que quer mesmo, no fundo, é reduzir o número de degraus entre o céu e o inferno, só para facilitar certas coisas. Ainda que isso também se configure como uma forma de perdão (imperdoável) é menos mal, mas só vale como gaiatice sem nenhuma graça. Mas, quem sabe Pitágoras, Sócrates, Platão e tantos outros, agora, já possam ir para o céu (que deve ser bem melhor do que o limbo, ainda que ninguém também saiba aonde fique). Eu só espero que a burocracia curial não emperre e não atrase a distribuição dos salvos-condutos. Eu acho que a turma do limbo deve estar cheia de perambular por lá e ansiosa para ser promovida! Afinal, são séculos de limbo!

 

Descida ao Limbo
Alonso Cano (1601-1667)
Óleo sobre tela (169 cm x 121 cm)
Los Angeles County Museum of Art
Los Angeles


http://www.wga.hu/frames-e.html?
/html/c/cano/limbo.html


 

 

 

 

Música de fundo:
Angel Eyes (Earl Brent & Matt Dennis)


Fonte:
http://ynucc.yeungnam.ac.kr/~bwlee/midi_a.htm