M:
— Hoje,
conforme lhe prometi, vamos
estudar
a questão da misericórdia.
D:
— Da última
vez que estivemos juntos, você me disse que misericórdia não
é fazer tudo pelo outro. Mas, na Profecia de Isaías 30, versículos
XVIII e XIX, está escrito: 'Por isto o Senhor espera o momento em que
terá misericórdia de vós, e Ele exaltará a Sua
glória perdoando-vos, porque o Senhor é um Deus de eqüidade;
ditosos todos os que esperam Nele... O Senhor, compadecendo-se de ti, usará
contigo de misericórdia; logo que ouvir a voz do teu clamor, te responderá
benignamente.' Gostaria que você comentasse estas passagens.
M:
— Muito bem.
A Santa Bíblia, como você sabe, pode ser lida de diversas maneiras;
uma delas é a forma poético-imagética, pueril, mas, em
certo sentido, reconfortante. É mais prometedor ler 'ninguém
irá ao Pai, senão por mim', do que dizer: eu e meu Eu somos
um; por isto, sou responsável por tudo. Entretanto, não se esqueça
do que lhe ensinei em nosso último encontro: três palavras regulam
tudo – paciência, trabalho e mérito. Logo, ditoso não
aquele que espera no Senhor, mas aquele que trabalha diuturnamente e se esforça
para alcançar a compreensão que produzirá a libertação.
A coisa toda, meu irmão, é mesmo como está gravado na
14ª prancha do Mutus Liber: 'Ora, Lege, Lege, Lege, Relege, Labora et
Invenies', cuja tradução é: Ora, Lê, Lê,
Lê relê, Trabalha e Encontrarás. Assim, a Transmutação
não se passa fora, no cadinho, mas dentro, no Coração.
D:
— Compreendo
isto perfeitamente. Mas como a misericórdia se compatibiliza com estes
conceitos?
M:
— É isto
que veremos agora. De maneira geral, a misericórdia é entendida
como sentimento de dor e de solidariedade com relação a alguém
que está sofrendo uma tragédia pessoal ou que caiu em desgraça,
acompanhado do desejo ou da disposição de ajudar ou de salvar
esta pessoa. E assim, é entendida como dó, compaixão,
piedade. E ainda, como perdão, indulgência, graça, clemência
e caridade. Mas, em termos Místicos e Iniciáticos, misericórdia
é muito mais do que isto, porque, compreensivamente, é diferente
disto, está acima disto.
D:
— Diferente?
Acima? Como assim?
M:
— Preste atenção.
Em primeiro lugar, quando as pessoas pensam em misericórdia, geralmente,
pensam em pessoas; só em pessoas. Habitualmente, não incluem,
por exemplo, os animais e os vegetais neste sentimento. Logo, é limitada
ou, pelos menos, é incompleta uma apreciação que não
abrace e acarinhe todos os seres da Terra, e, mais ainda, todos os seres do
Universo. Mas, no que concerne à Terra, serão misericordiosos
aqueles que maltratam os animais? Que os sacrificam das mais diversas formas
para os mais diversos fins? Serão misericordiosos aqueles que fazem
queimadas com o propósito de calcinar a terra como meio de melhorar
o solo? Serão misericordiosos aqueles que criminosamente poluem e devastam
o meio ambiente, visando apenas o lucro imediato? Serão misericordiosos
aqueles que fazem experiências com artefatos bélicos, matando
milhões de seres em um único apertar de botão? Quando
particularmente é detonada uma bomba nuclear, milhões e milhões
de seres são sublimados em fração de segundo –
de microorganismos a seres mais complexos na escala da evolução.
As bombas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagazaki, mais do que
um crime sem precedentes contra a Humanidade, inaugurou uma desordem ecossistêmica
que, até hoje, não foi completamente restaurada.
D:
— Eu nunca havia
pensado desta forma.
M:
— Sim, eu sei.
Mas, para o momento, fiquemos apenas com os seres humanos. Como lhe disse,
em termos Místicos e Iniciáticos, a Misericórdia é
muito mais do que simplesmente misericórdia, como é consuetudinariamente
entendida, porque é diferente de tudo o que já foi escrito a
respeito deste tema. Então, vejamos. O mais alto nível de misericórdia
envolve todos os seres do Universo, pois a misericórdia não
tem limites nem faz escolhas. Voltarei a isto já, mas, antes, gostaria
que você refletisse sobre os seguintes pontos: misericórdia é
estar presente, quando nossa vontade é de não nos envolvermos.
Misericórdia é ver, quando nossa vontade é de fechar
os olhos. Misericórdia é abrir mão do nosso conforto
e da nossa segurança, para lutar categoricamente pelos direitos de
cada um e de todos. Misericórdia é ensinar tudo o que pode e
deve ser ensinado, para auxiliar a libertar o outro do estado de ignorância
em que se encontra. Misericórdia é ouvir o outro, quando o assunto
é maçante e incomodante. Misericórdia é não
julgar o outro por ser diferente de nós. Misericórdia é
admitir e respeitar outras opções e crenças que diferem
das nossas, não contestando, não recriminando e não gerando
mal-estar, mas agasalhando e autorizando, no imo Coração, por
exemplo, todas as concepções e percepções humanas
da Divindade. Misericórdia é não criticar o outro por
ter ferido princípios que a nós são caros. Misericórdia
é não tomar partido, mas sempre tomando partido. Misericórdia
é partilhar o que nos fará falta. Misericórdia é
tratar o santo e o pecante com a mesma deferência e a mesma equanimidade;
o hoje pecador
será santo amanhã. Misericórdia é privilegiar
a todos, sem conceder privilégios. Misericórdia é não
bulir no 'karma' alheio por misericórdia. Misericórdia é
jamais usar a força, sempre a razão; mas, mais do que a razão
e sempre que possível, a Razão Transnoética. Misericórdia
é reconhecer conscientemente que ninguém tem direito exclusivo
sobre nada; que todos, por mérito, têm direito a tudo e sobre
tudo. Misericórdia é jamais impor, sempre argumentar e propor.
Misericórdia é, enfim, não julgar e sempre perdoar. Mas,
mais do que perdoar é imprescindível e insubstituível
compreender, pois a vera compreensão não está falsificada
ou travestida com hipoteticidades ou com onipotências conjecturais.
A verdadeira misericórdia não auxilia, orienta; não exproba,
educa; não faz pelo outro, faz com o outro; não perdoa, compreende.
A verdadeira misericórdia, definitivamente, não indulgencia
ou desculpa, aplica a Lei da Assunção, quando é o caso,
para promover as necessárias modificações.
D:
— Novamente,
devo confessar: eu nunca havia pensado desta forma.
M:
— Pois bem,
agora, para concluir, discutiremos o fato de a misericórdia não
ter limites nem fazer escolhas. Sei que você sabe o que é um
Nirmanakaya, um Sambhogakaya e um Dharmakaya. Em a Voz do Silêncio,
a Senhora Helena Blavatsky afirmou: 'Vestir a veste humilde do Nirmanakaya
é rejeitar, para si, a felicidade eterna, para poder auxiliar na salvação
humana. Chegar à felicidade do Nirvana, mas renunciar a ela, é
o passo supremo, final – o mais alto e o mais misericordioso no caminho
da renúncia... Uma vez tornado um Dharmakaya, um Adepto (ou Buddha)
abandona toda a possível relação ou pensamento ligado
à esta Terra. Assim, para poder auxiliar a Humanidade, um Adepto que
adquiriu o direito ao Nirvana, renuncia ao corpo Dharmakaya. Falando misticamente:
guarda, do Sambhogakaya, apenas os grandes e completos conhecimentos, e fica
no seu Nirmanakaya.' Esta é, portanto, a mais alta Misericórdia
– a Misericórdia que, entre outros Altos Iniciados, ainda empresta
Jesus, o Cristo, à esta Humanidade, mas que, incrivelmente, a cada
dia, continua a ser crucificado por esta mesma Humanidade egoísta,
anestesiada e criminal, pois, enquanto a Rosa de Sharon transmuta, a Humanidade
circunduta. A cada mau pensamento, a cada palavra inadequada e a cada ação
demeritória, mais um cravo doloroso é fincado em Sua ilimitada
bondade. E por falar em bondade, o Mestre Morya disse do Mestre Kut Hu Mi:
'Jamais um homem honesto, sincero e bondoso como Ele respirou sobre os Himalayas.'
Sem erro e sem contradição, eu plagio e parafraseio: jamais
um homem honesto, sincero, imaculadamente puro e misericordioso como Jesus,
o Cristo, respirou neste Planeta. É difícil, muito difícil,
quase impossível, eu sei, mas a última libertação
só acontecerá quando o ser-no-mundo tiver imitado, até
a última gota, integralmente, o Mestre Jesus. Até lá,
serão dores e decepções. E até lá, continuarão
a ser cometidos equívocos em nome da incompreendida Lei da Misericórdia.
Penso
que compreendo,
mas, descompreendo.
Penso que aformosento,
entretanto, afermento.