PEQUENO DIÁLOGO IV

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Mutus Liber (14ª prancha)

Mutus Liber (14ª prancha)

 

 

 

 

M: — Hoje, conforme lhe prometi, vamos estudar a questão da misericórdia.

 

D: — Da última vez que estivemos juntos, você me disse que misericórdia não é fazer tudo pelo outro. Mas, na Profecia de Isaías 30, versículos XVIII e XIX, está escrito: 'Por isto o Senhor espera o momento em que terá misericórdia de vós, e Ele exaltará a Sua glória perdoando-vos, porque o Senhor é um Deus de eqüidade; ditosos todos os que esperam Nele... O Senhor, compadecendo-se de ti, usará contigo de misericórdia; logo que ouvir a voz do teu clamor, te responderá benignamente.' Gostaria que você comentasse estas passagens.

 

M: — Muito bem. A Santa Bíblia, como você sabe, pode ser lida de diversas maneiras; uma delas é a forma poético-imagética, pueril, mas, em certo sentido, reconfortante. É mais prometedor ler 'ninguém irá ao Pai, senão por mim', do que dizer: eu e meu Eu somos um; por isto, sou responsável por tudo. Entretanto, não se esqueça do que lhe ensinei em nosso último encontro: três palavras regulam tudo – paciência, trabalho e mérito. Logo, ditoso não aquele que espera no Senhor, mas aquele que trabalha diuturnamente e se esforça para alcançar a compreensão que produzirá a libertação. A coisa toda, meu irmão, é mesmo como está gravado na 14ª prancha do Mutus Liber: 'Ora, Lege, Lege, Lege, Relege, Labora et Invenies', cuja tradução é: Ora, Lê, Lê, Lê relê, Trabalha e Encontrarás. Assim, a Transmutação não se passa fora, no cadinho, mas dentro, no Coração.

 

D: — Compreendo isto perfeitamente. Mas como a misericórdia se compatibiliza com estes conceitos?

 

M: — É isto que veremos agora. De maneira geral, a misericórdia é entendida como sentimento de dor e de solidariedade com relação a alguém que está sofrendo uma tragédia pessoal ou que caiu em desgraça, acompanhado do desejo ou da disposição de ajudar ou de salvar esta pessoa. E assim, é entendida como dó, compaixão, piedade. E ainda, como perdão, indulgência, graça, clemência e caridade. Mas, em termos Místicos e Iniciáticos, misericórdia é muito mais do que isto, porque, compreensivamente, é diferente disto, está acima disto.

 

D: — Diferente? Acima? Como assim?

 

M: — Preste atenção. Em primeiro lugar, quando as pessoas pensam em misericórdia, geralmente, pensam em pessoas; só em pessoas. Habitualmente, não incluem, por exemplo, os animais e os vegetais neste sentimento. Logo, é limitada ou, pelos menos, é incompleta uma apreciação que não abrace e acarinhe todos os seres da Terra, e, mais ainda, todos os seres do Universo. Mas, no que concerne à Terra, serão misericordiosos aqueles que maltratam os animais? Que os sacrificam das mais diversas formas para os mais diversos fins? Serão misericordiosos aqueles que fazem queimadas com o propósito de calcinar a terra como meio de melhorar o solo? Serão misericordiosos aqueles que criminosamente poluem e devastam o meio ambiente, visando apenas o lucro imediato? Serão misericordiosos aqueles que fazem experiências com artefatos bélicos, matando milhões de seres em um único apertar de botão? Quando particularmente é detonada uma bomba nuclear, milhões e milhões de seres são sublimados em fração de segundo – de microorganismos a seres mais complexos na escala da evolução. As bombas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagazaki, mais do que um crime sem precedentes contra a Humanidade, inaugurou uma desordem ecossistêmica que, até hoje, não foi completamente restaurada.

 

D: — Eu nunca havia pensado desta forma.

 

M: — Sim, eu sei. Mas, para o momento, fiquemos apenas com os seres humanos. Como lhe disse, em termos Místicos e Iniciáticos, a Misericórdia é muito mais do que simplesmente misericórdia, como é consuetudinariamente entendida, porque é diferente de tudo o que já foi escrito a respeito deste tema. Então, vejamos. O mais alto nível de misericórdia envolve todos os seres do Universo, pois a misericórdia não tem limites nem faz escolhas. Voltarei a isto já, mas, antes, gostaria que você refletisse sobre os seguintes pontos: misericórdia é estar presente, quando nossa vontade é de não nos envolvermos. Misericórdia é ver, quando nossa vontade é de fechar os olhos. Misericórdia é abrir mão do nosso conforto e da nossa segurança, para lutar categoricamente pelos direitos de cada um e de todos. Misericórdia é ensinar tudo o que pode e deve ser ensinado, para auxiliar a libertar o outro do estado de ignorância em que se encontra. Misericórdia é ouvir o outro, quando o assunto é maçante e incomodante. Misericórdia é não julgar o outro por ser diferente de nós. Misericórdia é admitir e respeitar outras opções e crenças que diferem das nossas, não contestando, não recriminando e não gerando mal-estar, mas agasalhando e autorizando, no imo Coração, por exemplo, todas as concepções e percepções humanas da Divindade. Misericórdia é não criticar o outro por ter ferido princípios que a nós são caros. Misericórdia é não tomar partido, mas sempre tomando partido. Misericórdia é partilhar o que nos fará falta. Misericórdia é tratar o santo e o pecante com a mesma deferência e a mesma equanimidade; o hoje pecador será santo amanhã. Misericórdia é privilegiar a todos, sem conceder privilégios. Misericórdia é não bulir no 'karma' alheio por misericórdia. Misericórdia é jamais usar a força, sempre a razão; mas, mais do que a razão e sempre que possível, a Razão Transnoética. Misericórdia é reconhecer conscientemente que ninguém tem direito exclusivo sobre nada; que todos, por mérito, têm direito a tudo e sobre tudo. Misericórdia é jamais impor, sempre argumentar e propor. Misericórdia é, enfim, não julgar e sempre perdoar. Mas, mais do que perdoar é imprescindível e insubstituível compreender, pois a vera compreensão não está falsificada ou travestida com hipoteticidades ou com onipotências conjecturais. A verdadeira misericórdia não auxilia, orienta; não exproba, educa; não faz pelo outro, faz com o outro; não perdoa, compreende. A verdadeira misericórdia, definitivamente, não indulgencia ou desculpa, aplica a Lei da Assunção, quando é o caso, para promover as necessárias modificações.

 

D: — Novamente, devo confessar: eu nunca havia pensado desta forma.

 

M: — Pois bem, agora, para concluir, discutiremos o fato de a misericórdia não ter limites nem fazer escolhas. Sei que você sabe o que é um Nirmanakaya, um Sambhogakaya e um Dharmakaya. Em a Voz do Silêncio, a Senhora Helena Blavatsky afirmou: 'Vestir a veste humilde do Nirmanakaya é rejeitar, para si, a felicidade eterna, para poder auxiliar na salvação humana. Chegar à felicidade do Nirvana, mas renunciar a ela, é o passo supremo, final – o mais alto e o mais misericordioso no caminho da renúncia... Uma vez tornado um Dharmakaya, um Adepto (ou Buddha) abandona toda a possível relação ou pensamento ligado à esta Terra. Assim, para poder auxiliar a Humanidade, um Adepto que adquiriu o direito ao Nirvana, renuncia ao corpo Dharmakaya. Falando misticamente: guarda, do Sambhogakaya, apenas os grandes e completos conhecimentos, e fica no seu Nirmanakaya.' Esta é, portanto, a mais alta Misericórdia – a Misericórdia que, entre outros Altos Iniciados, ainda empresta Jesus, o Cristo, à esta Humanidade, mas que, incrivelmente, a cada dia, continua a ser crucificado por esta mesma Humanidade egoísta, anestesiada e criminal, pois, enquanto a Rosa de Sharon transmuta, a Humanidade circunduta. A cada mau pensamento, a cada palavra inadequada e a cada ação demeritória, mais um cravo doloroso é fincado em Sua ilimitada bondade. E por falar em bondade, o Mestre Morya disse do Mestre Kut Hu Mi: 'Jamais um homem honesto, sincero e bondoso como Ele respirou sobre os Himalayas.' Sem erro e sem contradição, eu plagio e parafraseio: jamais um homem honesto, sincero, imaculadamente puro e misericordioso como Jesus, o Cristo, respirou neste Planeta. É difícil, muito difícil, quase impossível, eu sei, mas a última libertação só acontecerá quando o ser-no-mundo tiver imitado, até a última gota, integralmente, o Mestre Jesus. Até lá, serão dores e decepções. E até lá, continuarão a ser cometidos equívocos em nome da incompreendida Lei da Misericórdia.

 

 

 


Penso que compreendo,
mas, descompreendo.
Penso que aformosento,
entretanto, afermento.