Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

José Ortega y Gasset

(Pensamentos)

 

 

Debaixo de toda vida contemporânea se encontra latente uma injustiça.

 

A civilização avançada envolve problemas árduos. Por isto, quanto maior o progresso, mais está ameaçada. A vida está cada vez melhor; porém, evidentemente, cada vez mais complicada.

 

Eu sou eu e minha circunstância; se não salvo a ela, não me salvo a mim.

 

O mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais. Não é, pois, algo à parte e alheio à nossa vida, mas é a sua autêntica periferia.

 

Podemos pretender ser quanto queiramos; mas não é lícito fingir que somos o que não somos.

 

Em épocas de grande agitação, o dever do intelectual é manter-se calado, pois nessas ocasiões é preciso mentir, e o intelectual não tem esse direito.

 

Quem, em nome da liberdade, renuncia a ser aquilo que deveria ser, já se matou em vida: é um suicida de pé. A sua existência consistirá em uma perpétua fuga da única realidade que era possível.

 

Sem missão não há homem.

 

Desconfio do respeito de um homem com seu amigo ou com sua bandeira quando não o vejo respeitar o inimigo ou a bandeira deste.

 

Não é a fome, mas, pelo contrário, a abundância, o excesso de energias, que provocam a guerra.

 

Pouco se pode esperar de alguém que só se esforça quando tem a certeza de vir a ser recompensado.

 

Não é tão fácil, como se crê, ser um egoísta puro; e ninguém, sendo-o, alguma vez triunfou.

 

Cultura é o sistema de idéias vivas que cada época possui. Melhor: o sistema de idéias das quais o tempo vive.

 

A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida. É uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem.

 

Se ensinares, ensina ao mesmo tempo a duvidar daquilo que estás a ensinar.

 

O que distingue um grande poeta é o fato de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.

 

É imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução.

 

Muitos homens, como as crianças, querem uma coisa, mas não as suas conseqüências.

 

O exagero é sempre a exageração de algo que não o é.

 

Contrariamente ao que supõe uma ótica inocente e folhetinesca, o poder não é tanto uma questão de punhos quanto de nádegas.

 

Eis ao que leva o intervencionismo do Estado: o povo converte-se em carne e massa que alimenta o simples artefato e máquina que é o Estado.

 

O prazer estético deve ser um prazer inteligente.

 

O amor vive do pormenor e procede microscopicamente.

 

O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro dos seus erros, a larga experiência vital decantada por milênios, gota a gota.

 

Contrariamente ao que crêem os chorões, todo o erro é uma propriedade que acresce o nosso haver. Em vez de chorar sobre ele, convém apressar-se em aproveitá-lo.

 

A lei seca da arte é esta: 'Ne quid nimis', nada além do necessário. Tudo o que é supérfluo, tudo aquilo que podemos suprimir sem alterar a essência é contrário à existência da beleza.

 

Civilização é, acima de tudo, vontade de convivência.

 

Não basta a agudeza intelectual para descobrir uma coisa nova. Faz falta entusiasmo, amor prévio por essa coisa. O entendimento é uma lanterna que necessita de ir dirigida por uma mão, e a mão necessita de ir mobilizada por um anseio preexistente para este ou outro tipo de possíveis coisas. Em definitivo, somente se encontra o que se busca, e o entendimento encontra porque o amor busca. Por isto, todas as ciências começaram por ser entusiasmos de amadores. A pedanteria contemporânea desprestigiou esta palavra; mas amador é o mais que se pode ser com respeito a alguma coisa, pelo menos é o germe todo. E o mesmo diríamos do 'dilettante' – que significa o amante. O amor busca para que o entendimento encontre. Grande tema para uma longa e fértil conversa, este que consistiria em demonstrar como o ser que busca é a própria essência do amor! Pensaram vocês na surpreendente contextura do buscar? O que busca não tem, não conhece ainda aquilo que busca, e, por outra parte, buscar é já ter de antemão e conjecturar o que se busca.

 

A inteligência não é o fundo do nosso ser. Pelo contrário. É como uma pele sensível, tentacular, que cobre o resto do nosso volume íntimo, o qual, por si, é 'stricto sensu' ininteligente, irracional. Barrès dizia isto muito bem: 'L'intelligence, quelle petite chose à la surface de nous.' Aí está ela, estendida como um entorno sobre o nosso ser mais interior, dando uma face às coisas, ao ser – porque o seu papel não é outro senão pensar as coisas, pensar o ser; o seu papel não é ser o ser, mas refleti-lo, espelhá-lo. Tanto não somos ela que a inteligência é a mesma em todos, embora uns dela tenham maior porção que outros. Mas a que tiverem é igual em todos: 2 e 2 são para todos 4. Por isto, Aristóteles e o Averroísmo acreditaram que havia um único 'nous' ou intelecto no Universo; que todos éramos, enfim, enquanto inteligentes, uma só inteligência. O que nos individualiza está por trás dela.

 

A Filosofia não brota por ser útil, mas tão-pouco pela ação irracional de um desejo veemente. É constitutivamente necessária ao intelectual. Por quê? A sua nota radical é buscar o todo como um tal todo, capturar o Universo, caçar o Unicórnio. Mas, por que este profundo anseio? Por que não nos contentamos com o que, sem filosofar, achamos no mundo, com o que já é e aí está patente diante de nós? Por esta simples razão: tudo o que é e está aí, quanto nos é dado, presente, patente, é, por sua essência, um mero bocado, pedaço, fragmento, coto. E não podemos vê-lo sem prever e verificar que está a menos a porção que falta. Em todo o ser que é dado, em todo o dado do mundo, encontramos a sua essencial linha de fratura, o seu caráter de parte e só parte – vemos a ferida da sua mutilação ontológica, grita-nos a sua dor de amputado, a sua nostalgia do bocado que lhe falta para ser completo, o seu divino descontentamento. Há doze anos, quando eu falava em Buenos Aires, definia o descontentamento «como um amar sem amado e uma como dor que sentimos em membros que não temos». É o achar de menos o que não somos, o reconhecermo-nos incompletos e manetas.

 

O viver se faz sempre a partir de ou sobre certos supostos, que são como o solo em que para viver nos apoiamos ou do qual partimos. E isto em todas as ordens – em ciência como em moral e política, como em arte. Toda idéia é pensada e todo o quadro é pintado a partir de certas suposições ou convenções tão básicas, tão evidentes para quem pensou a idéia ou pintou o quadro, que nem sequer repara nelas, e, por isto, não as introduz na sua idéia nem no seu quadro, não as achamos ali postas, mas precisamente supostas e como deixadas voluntariamente no esquecimento. Por isto, às vezes, não entendemos uma idéia ou um quadro: falta-nos a palavra do enigma, a clave da secreta convenção. E como, repito, cada época – vou ser mais exato – cada geração parte de pressupostos mais ou menos diferentes. Isto quer dizer que o sistema das verdades e o dos valores estéticos, morais, políticos, religiosos têm inexoravelmente uma dimensão histórica, são relativos a uma certa cronologia vital humana, valem só para certos homens. A verdade é histórica.

 

Que um ou vários homens inventem uma nova idéia ou um novo sentimento não faz alterar o cariz da história, o tom dos tempos, como a cor do Atlântico não muda porque um pintor de marinhas limpa nele o seu pincel carregado de vermelhão. Mas se, de súbito, uma massa ingente de homens adota aquela idéia e vibra com aquele sentimento, então a ária da história, a face dos tempos, tinge-se de um novo colorido. Pois bem: as massas ingentes de homens não adotam uma idéia nova, não vibram com o seu peculiar sentimento simplesmente porque se lhes faça prédicas. É preciso que essa idéia e este sentimento se achem neles pré-formados, inatos, prontos. Sem essa predisposição radical, espontânea da massa, todo pregador seria um pregador no deserto. Daqui que as mudanças históricas supõem o nascimento de um tipo de homem diferente em mais ou menos do que antes havia; isto é, supõem a mudança de gerações.

 

A relação das verdades com o tempo não é positiva, mas negativa; é um simples não ter que ver com o tempo em qualquer sentido; é ser por completo alheia a toda a qualificação temporal; é manter-se rigorosamente anacrônica. Dizer, pois, que as verdades o são sempre não envolve, falando de modo rigoroso, menor impropriedade do que se dissermos – para usar um famoso exemplo trazido por Leibniz a outro propósito – «justiça verde». O corpo ideal da justiça não oferece um encaixe nem um orifício onde possa se enganchar o atributo «verdosidade», e todas as vezes que pretendamos inseri-lo naquele, outras tantas o veremos resvalar sobre a justiça – como sobre uma área polida. A nossa vontade de unir estes dois conceitos fracassa, e, ao dizê-los juntos, permanecem obstinadamente separados, sem possível adesão nem conjugação. Não existe, pois, heterogeneidade maior que a que existe entre o modo de ser atemporal constitutivo das verdades e o modo de ser temporal do sujeito humano que as descobre e pensa, conhece ou ignora, rejeita ou esquece.

 

Sempre acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo e, além disso, esta nossa disciplina tem como ponto de honra, hoje mais do que nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes, diferente das ciências especiais, que cada vez mais com maior rigor, interpõem entre o tesouro das suas descobertas e a curiosidade dos profanos o dragão medonho da sua terminologia hermética. Penso que o filósofo tem que levar até ao limite de si próprio o rigor metódico quando investiga e persegue as suas verdades, mas que ao emiti-las e enunciá-las deve evitar o uso cínico com que alguns homens de ciência se comprazem, como Hércules de feira, em ostentar diante do público os bíceps do seu tecnicismo.

 

No ser vivo toda a necessidade essencial, que brota do próprio ser e não lhe advém de fora acidentalmente, vai acompanhada de voluptuosidade. A voluptuosidade é a cara, a 'facies' da felicidade. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação, da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está a ser o que é na verdade. Por esta razão Schlegel [August Wilhelm von Schlegel (1767 – 1845)] dizia, invertendo a relação entre voluptuosidade e destino: «Para o que nos agrada temos gênio». O gênio, isto é, o dom superlativo de um ser para fazer alguma coisa tem sempre simultaneamente uma fisionomia de supremo prazer. Em um dia que está próximo e graças a uma transbordante evidência, vamos nos ver surpreendidos e obrigados a descobrir o que agora somente parecerá uma frase: que o destino de cada homem é, ao mesmo tempo, o seu maior prazer.

 

Em matéria de arte, de amor ou de idéias, creio serem pouco eficazes anúncios e programas. Pelo que toca às idéias, a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o pensador da opinião recebida ou já aí existente, do que com mais graves razões que quanto agora suponham, merece chamar-se «opinião pública» ou «vulgaridade». Todo o esforço intelectual, que com rigor o seja, afasta-nos solitários da praia comum, e, por rotas recônditas que precisamente o nosso esforço descobre, conduz-nos a lugares retirados, situa-nos sobre pensamentos insólitos. São estes o resultado da nossa meditação. Pois bem: o anúncio ou programa reduz-se a antecipar estes resultados, deles arrancando previamente a via ao cabo da qual foram descobertos... Um pensamento separado da rota mental que a ele conduz, insulano e escarpado, é uma abstração no pior sentido da palavra, e, por esse motivo, é ininteligível.

 

O homem não se ocupa em conhecer, em saber, simplesmente porque tenha dons cognoscitivos, inteligência, etc. – mas, ao contrário, porque não tem outro remédio que intentar conhecer, saber, mobilizando os meios de que dispõe, embora estes sirvam muito mal para aquele mister. Se a inteligência humana fosse de verdade o que a palavra indica – capacidade de entender o homem teria imediatamente entendido tudo e estaria sem nenhum problema, sem lide penosa pela frente.

 

A vida é primariamente encontrar-se, cada qual, submergido entre as coisas; e enquanto é apenas isto, consiste em sentir-se absolutamente perdido. A vida é perdição. Mas, por isto mesmo, obriga, quer queiramos quer não, a um esforço para se orientar no caos, para se salvar desta perdição. Este esforço é o conhecimento que extrai do caos um esquema de ordem, um cosmos. Este esquema do Universo é o sistema das nossas idéias ou convicções vigentes. Quer queiramos quer não, vivemos com convicções e de convicções. O mais teoreticamente cético existe apoiando-se em um suporte de crenças sobre o que as coisas são. A vida é absoluta convicção. A dúvida intelectual mais extrema é vitalmente uma absoluta convicção de que tudo é duvidoso. E algo ou tudo ser duvidoso não é uma crença em um ser menor do que qualquer outra de aspecto mais positivo.

 

O cigano foi se confessar; mas o padre, precavido, começou por interrogá-lo sobre os Mandamentos de Deus. Ao que o cigano respondeu: — Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que havia perdido o valor... Todo o mundo – nações, indivíduos – está desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização diverte e até vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo em que eram inscritos sobre pedra ou bronze o seu caráter de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pôr em alguém algo nas mãos. Quem manda é, sem remissão, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro já estão fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem, e aproveitam, com ar festivo, este tempo de pesados imperativos. Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta é a horrível situação íntima em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma vida em disponibilidade é maior negação do que a morte. Porque viver é ter que fazer algo determinado – é cumprir um encargo – e na medida em que iludamos pôr em algo a nossa existência, desocupamos a nossa vida. Dentro em pouco, ouvir-se-á um grito formidável em todo o Planeta, que subirá, como uivo de cães inumeráveis, até as estrelas, pedindo alguém e algo que mande, que imponha um afazer ou uma obrigação.

 

Todo conceito, tanto o mais vulgar como o mais técnico, vai incluso na ironia de si mesmo, nos entredentes de um sorriso tranqüilo, como o geométrico diamante vai implícito na dentadura de ouro de seu engaste. Ele diz muito seriamente: «Esta coisa é A, e esta outra coisa é B». Mas é a sua a seriedade de um 'pince-sans-rire' [sonso, gracejador, apenas sério na aparência]. É a seriedade instável de quem engoliu uma gargalhada, e se não aperta bem os lábios a vomita. Ele sabe muito bem que nem esta coisa é A, assim, à valentona, nem que a outra é B, sem reservas. O que o conceito pensa a rigor é um pouco outra coisa que o que diz, e nesta duplicidade consiste a ironia. O que verdadeiramente pensa é isto: eu sei que, falando com todo rigor, que esta coisa não é A e que nem aquela B; mas, admitindo que são A e B, eu me entendo comigo mesmo para os efeitos do meu comportamento vital diante de uma ou de outra coisa.

 

Assim como é impossível conhecer diretamente a plenitude do real, não temos outro remédio senão construir arbitrariamente uma realidade, supor que as coisas são de certa maneira. Isto nos proporciona um esquema, quer dizer, um conceito ou um entretecido de conceitos. Com ele, como através de uma quadrícula, olhamos depois a efetiva realidade, e então, só então, conseguimos uma visão aproximada dela. Nisto consiste o método científico. Mais ainda: nisto consiste todo uso do intelecto. Quando, ao virmos chegar o nosso amigo pela vereda do jardim, dizemos «este é o Pedro», cometemos deliberadamente, ironicamente, um erro. Porque Pedro significa para nós um esquemático repertório de modos de se comportar física e moralmente – o que chamamos «caráter» – e a pura verdade é que o nosso amigo Pedro não se parece, em certos momentos, em quase nada, com a idéia «o nosso amigo Pedro».

 

Tenderíamos, ilusoriamente, a crer que uma vida nascida em um mundo abastado seria melhor, mais vida e de superior qualidade à que consiste, precisamente, em lutar com a escassez. Mas não é verdade. Por razões muito rigorosas e arquifundamentais que agora não é oportuno enunciar. Agora, em vez destas razões, basta recordar o fato, sempre repetido, que constitui a tragédia de toda a aristocracia hereditária. O aristocrata herda, quer dizer, encontra atribuídas à sua pessoa umas condições de vida que ele não criou, portanto, que não se produzem organicamente unidas à sua vida pessoal e própria. Acha-se, ao nascer, instalado, de repente e sem saber como, no meio da sua riqueza e das suas prerrogativas. Ele não tem, intimamente, nada que ver com elas, porque não vêm dele. São a carapaça gigantesca de outra pessoa, de outro ser vivente, seu antepassado. E tem de viver como herdeiro, isto é, tem de usar a carapaça de outra vida. Em que ficamos? Que vida vai viver o «aristocrata» de herança, a sua ou a do prócer inicial? Nem uma nem outra. Está condenado a representar o outro, portanto, a não ser nem o outro nem ele mesmo.

 

Não há cultura onde não há princípios de legalidade civil a que apelar. Não há cultura onde não há acatamento de certas últimas posições intelectuais a que se referir na disputa. Não há cultura quando as relações econômicas não são presididas por um regime de tráfico sob o qual possam se amparar. Não há cultura onde as polêmicas estéticas não reconhecem a necessidade de justificar a obra de arte. Quando faltam todas estas coisas, não há cultura; há, no sentido mais estrito da palavra, barbárie. E isto é, não tenhamos ilusões, o que começa a haver na Europa sob a progressiva rebelião das massas. O viajante que chega a um país bárbaro, sabe que naquele território não regem princípios aos quais possa recorrer. Não há normas bárbaras propriamente ditas; a barbárie é ausência de norma e de possível apelação.

 

Toda a vida é se achar dentro da «circunstância» ou do mundo. Porque este é o sentido originário da idéia (mundo). Mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais. Não é, pois, algo à parte e alheio à nossa vida, mas que é a sua autêntica periferia. Representa o que podemos ser; portanto, a nossa potencialidade vital. Esta tem de se concretizar para se realizar, ou, dito de outra maneira, chegamos a ser só uma parte mínima do que poderíamos ser. Daí que nos parece o mundo uma coisa tão enorme, e nós, dentro dele, uma coisa tão pequena. O mundo ou a nossa vida possível é sempre mais do que o nosso destino ou a vida efetiva.

 

Surpreender-se, estranhar, é começar a entender. É o desporto e o luxo específico do intelectual. Por isto, o seu gesto gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para um par de pupilas bem abertas.

 

O cínico, parasita da civilização, vive de negá-la, simplesmente porque está convencido de que esta não lhe faltará. Que faria o cínico em um povoado selvagem onde todos, naturalmente e a sério, fizessem o que ele, de farsa, considera como o seu papel pessoal? O que é um fascista se não fala mal da liberdade e um surrealista se não abjura a arte?

 


José Ortega y Gasset (1883 – 1955)

 

 

 

 

Obscureza

 

 

 

O que é lucidez?

Vox Dei1 assimilada pelo Eu Espiritual.

O que é obscureza?

Tentationem diaboli aceita pelo eu boçal.

 

 

O que é lucidez?

Querer. Ousar. Saber. Calar.

O que é obscureza?

Dormitar. Encafifar. Desidentificar. Grulhar.

 

 

O que é lucidez?

Vontade. Atualidade. Liberdade.

O que é obscureza?

Sombra. Prisão. Ininteligibilidade.

 

 

O que é lucidez?

Viver por Imperativos categóricos.2

O que é obscureza?

Viver por imperativos hipotéticos.3

 

 

 

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Só a Iniciação poderá Libertar!

 

 

Lucidez

 

 

 

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Notas:

1. In Corde loquitur nostro Vox Dei. Em nosso Coração fala a Voz de Deus.

2. Imperativo Categórico (ou Imperativo Lúcido): Age somente segundo uma máxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma Lei Universal. (Fundamentos da Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant, 1724 – 1804).

3. O imperativo hipotético (ou, em certos casos, imperativo obscurante), ao contrário do Imperativo Categórico, não é uma obrigação moral, mas, sim, uma condição conjectural para se chegar a um determinado fim, que poderá ser digno ou indigno. (Fundamentos da Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant).

 

Observação (uma Lei Mística que aprendi hoje):

Eu já havia encerrado este trabalho – e até já o havia enviado ao meu provedor para divulgá-lo – quando aconteceu o fato que passarei a relatar. O dia: terça-feira, 29 de julho de 2008. A hora: mais ou menos 22:00 horas. Nesta terça, por volta das 8:30 horas, saí para jantar com uma amiga, a Senhora T. Como ela já havia jantado e saiu comigo apenas para me fazer companhia e bater papo, devorei, sozinho e esfaimadamente, todo o serviço, menos o salaminho. Depois, entupido de pão, 'pickles', coca-cola et cetera e tal, quase desisti de jantar, mas acabei pedindo uma 'lasagna' de queijo, da qual acabei só comendo a quarta parte. Terminado o jantar, pedi ao garçom que pusesse o que havia sobrado em uma quentinha, pois, geralmente, essas sobras de refeição eu as dou para um pobre da rua ou para o porteiro noturno do prédio em que moro. Já de volta à casa, na esquina da rua Souza Lima com a Avenida Copacabana, no Rio de Janeiro, avistei um irmão fodido-sem-porra-nenhuma, enfiado até o pescoço em um cobertor esfarrapado, em pé, tiritando na calçada sob o açoite daquela noite frígida, em frente à uma farmácia. Parei o carro, chamei o sem-porra-nenhuma e ofereci a quentinha (ainda quentinha) com a 'lasagna', que ele aceitou imediatamente e agradeceu muito. Retomando o caminho de casa, logo que recomecei a dirigir, um pensamento de autoparabéns, meio que vaidosamente, começou a se formar e a tentar se instalar em minha cuca, o que me deixou logo meio emputecido. Já tive oportunidade de dizer, em trabalho anterior, que quando faço uma presumida boa ação, me dou, no máximo, cinco segundos para esquecê-la. O que me irritou, desta vez, é que a generosidade com o sem-porra-nenhuma insistia em querer não me sair da cachola. Foi aí que a Voz falou e me ensinou uma Lei Cósmica, que transmito, agora, com minhas palavras e com muito prazer, para vocês: — Você não tem que se irritar por ter praticado um ato de verdadeira fraternidade. Isto é uma infantilidade. Não deve, é claro, se vangloriar ou se deixar envaidecer por tê-lo praticado; mas, por outro lado, deve, isto sim, usar criativamente a energia dele derivada, que é poderosíssima. Aprenda isto: sempre que alguém exercita um modo de agir fraternal, solidário e desprendido, qualquer que seja ele, sua vibração se aproxima das vibrações espirituais dos mais elevados Adeptos. Isto se dá natural e momentaneamente, em uma pequena fração do tempo – uma espécie de pico de Bem e de Beleza, por assim dizer, mas que, geralmente, é impercebido. Se você, neste momento, der um comando ou emitir um pensamento construtivo, e até mesmo transmutativo, eles acontecerão, imediatamente ou quando a hora for compadecida ou propícia. É como se você e o Universo, por um fugaz instante, se tornassem efetiva e operacionalmente um, e a Onipotência Cósmica fluísse através de você. Agora, não esqueça: você será responsabilizado pelo que comandar ou determinar. Aproveitei rapidinho aquele ensinamento novo e, emocionado, determinei que houvesse paz no mundo e fraternidade despretensiosa entre os homens. Sirvo-me deste exemplo para repetir que, se cada um de nós, apenas uma vez por dia, por cinco segundos, determinar mentalmente que haja paz no mundo e fraternidade entre os homens, o dever de casa daquele dia está feito. Isto vale mais do que um 'zilhão' de orações. Seja como for, acho que é escusado dizer que provocar uma situação caridosa, para o que quer que seja, cosmicamente não adiantará bulhufas alguma de lhufas nenhuma. O Universo não responde afirmativamente a hipoteticidades, sejam dignas, sejam indignas! Nós místicos, particularmente, temos (ou teremos) que aprender que só o que é categórico é efetivo e, em um certo sentido, permanente, ainda que o Universo seja caracterizado, basicamente, por movimento, mudança e evolução. Em termos espirituais, nomeadamente religiosos, fazer para alcançar, fazer para obter ou fazer para garantir é malhar em ferro frio! Por isto, por exemplo, receber a Santa Comunhão na primeira sexta-feira de cada mês, por nove meses seguidos, não poderá gerar a desejada graça da penitência final, até porque, no Cósmico, não há este diploma da graça da penitência final. Isto é hipotético, fantasioso e inútil. Para dizer o mínimo, penitência final é sinônimo de imobilidade, inércia, e isto não combina com o movimento evolutivo do Universo.

 

 

 

 

Páginas da Internet consultadas:

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Imperativo_categ%C3%B3rico

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Imperativo_hipot%C3%A9tico

http://www.citador.pt/pensar.php?pensamentos
=Jose_Ortega_y_Gasset&op=7&author=178

http://pt.wikiquote.org/
wiki/Jos%C3%A9_Ortega_y_Gasset

http://www.pensador.info/
autor/Jose_Ortega_y_Gasset/

 

Fundo musical:

End of Summer

Fonte:

http://geocities.com/BourbonStreet/1114/justjaz2.htm