José
Ortega y Gasset
(Pensamentos)
Debaixo
de toda vida contemporânea se encontra latente uma injustiça.
A
civilização avançada envolve problemas árduos.
Por isto, quanto maior o progresso, mais está ameaçada.
A vida está cada vez melhor; porém, evidentemente,
cada vez mais complicada.
Eu
sou eu e minha circunstância; se não salvo a ela, não
me salvo a mim.
O
mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais.
Não é, pois, algo à parte e alheio à
nossa vida, mas é a sua autêntica periferia.
Podemos pretender ser quanto
queiramos; mas não é lícito fingir que somos
o que não somos.
Em
épocas de grande agitação, o dever do intelectual
é manter-se calado, pois nessas ocasiões é
preciso mentir, e o intelectual não tem esse direito.
Quem,
em nome da liberdade, renuncia a ser aquilo que deveria ser, já
se matou em vida: é um suicida de pé. A sua existência
consistirá em uma perpétua fuga da única realidade
que era possível.
Sem missão não
há homem.
Desconfio
do respeito de um homem com seu amigo ou com sua bandeira quando
não o vejo respeitar o inimigo ou a bandeira deste.
Não é a fome,
mas, pelo contrário, a abundância, o excesso de energias,
que provocam a guerra.
Pouco se pode esperar de
alguém que só se esforça quando tem a certeza
de vir a ser recompensado.
Não é tão
fácil, como se crê, ser um egoísta puro; e ninguém,
sendo-o, alguma vez triunfou.
Cultura
é o sistema de idéias vivas que cada época
possui. Melhor: o sistema de idéias das quais o tempo vive.
A
cultura é uma necessidade imprescindível
de toda uma vida. É uma dimensão constitutiva da existência
humana, como as mãos são um atributo do homem.
Se
ensinares, ensina ao mesmo tempo a duvidar daquilo que estás
a ensinar.
O que distingue um grande
poeta é o fato de ele nos dizer algo que ninguém ainda
disse, mas que não é novo para nós.
É
imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente,
simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo
acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução.
Muitos
homens, como as crianças, querem uma coisa, mas não
as suas conseqüências.
O
exagero é sempre a exageração de algo que não
o é.
Contrariamente
ao que supõe uma ótica inocente e folhetinesca, o
poder não é tanto uma questão de punhos quanto
de nádegas.
Eis
ao que leva o intervencionismo do Estado: o povo converte-se em
carne e massa que alimenta o simples artefato e máquina que
é o Estado.
O
prazer estético deve ser um prazer inteligente.
O
amor vive do pormenor e procede microscopicamente.
O
importante é a lembrança dos erros, que nos permite
não cometer sempre os mesmos. O verdadeiro tesouro do homem
é o tesouro dos seus erros, a larga experiência vital
decantada por milênios, gota a gota.
Contrariamente ao que crêem
os chorões, todo o erro é uma propriedade que acresce
o nosso haver. Em vez de chorar sobre ele, convém apressar-se
em aproveitá-lo.
A
lei seca da arte é esta: 'Ne quid nimis', nada além
do necessário. Tudo o que é supérfluo, tudo
aquilo que podemos suprimir sem alterar a essência é
contrário à existência da beleza.
Civilização
é, acima de tudo, vontade de convivência.
Não basta a agudeza
intelectual para descobrir uma coisa nova. Faz falta entusiasmo,
amor prévio por essa coisa. O entendimento é uma lanterna
que necessita de ir dirigida por uma mão, e a mão
necessita de ir mobilizada por um anseio preexistente para este
ou outro tipo de possíveis coisas. Em definitivo, somente
se encontra o que se busca, e o entendimento encontra porque o amor
busca. Por isto, todas as ciências começaram por ser
entusiasmos de amadores. A pedanteria contemporânea desprestigiou
esta palavra; mas amador é o mais que se pode ser com respeito
a alguma coisa, pelo menos é o germe todo. E o mesmo diríamos
do 'dilettante' – que significa o amante. O amor busca para
que o entendimento encontre. Grande tema para uma longa e fértil
conversa, este que consistiria em demonstrar como o ser que busca
é a própria essência do amor! Pensaram vocês
na surpreendente contextura do buscar? O que busca não tem,
não conhece ainda aquilo que busca, e, por outra parte, buscar
é já ter de antemão e conjecturar o que se
busca.
A
inteligência não é o fundo do nosso ser. Pelo
contrário. É como uma pele sensível, tentacular,
que cobre o resto do nosso volume íntimo, o qual, por si,
é 'stricto sensu' ininteligente, irracional. Barrès
dizia isto muito bem: 'L'intelligence, quelle petite chose à
la surface de nous.' Aí está ela, estendida como um
entorno sobre o nosso ser mais interior, dando uma face às
coisas, ao ser – porque o seu papel não é outro
senão pensar as coisas, pensar o ser; o seu papel não
é ser o ser, mas refleti-lo, espelhá-lo. Tanto não
somos ela que a inteligência é a mesma em todos, embora
uns dela tenham maior porção que outros. Mas a que
tiverem é igual em todos: 2 e 2 são para todos 4.
Por isto, Aristóteles e o Averroísmo acreditaram que
havia um único 'nous' ou intelecto no Universo; que todos
éramos, enfim, enquanto inteligentes, uma só inteligência.
O que nos individualiza está por trás dela.
A
Filosofia não brota por ser útil, mas tão-pouco
pela ação irracional de um desejo veemente. É
constitutivamente necessária ao intelectual. Por quê?
A sua nota radical é buscar o todo como um tal todo, capturar
o Universo, caçar o Unicórnio. Mas, por que este profundo
anseio? Por que não nos contentamos com o que, sem filosofar,
achamos no mundo, com o que já é e aí está
patente diante de nós? Por esta simples razão: tudo
o que é e está aí, quanto nos é dado,
presente, patente, é, por sua essência, um mero bocado,
pedaço, fragmento, coto. E não podemos vê-lo
sem prever e verificar que está a menos a porção
que falta. Em todo o ser que é dado, em todo o dado do mundo,
encontramos a sua essencial linha de fratura, o seu caráter
de parte e só parte – vemos a ferida da sua mutilação
ontológica, grita-nos a sua dor de amputado, a sua nostalgia
do bocado que lhe falta para ser completo, o seu divino descontentamento.
Há doze anos, quando eu falava em Buenos Aires, definia o
descontentamento «como um amar sem amado e uma como dor que
sentimos em membros
que não temos». É o achar de menos o que não
somos, o reconhecermo-nos incompletos e manetas.
O
viver se faz sempre a partir de ou sobre certos supostos, que são
como o solo em que para viver nos apoiamos ou do qual partimos.
E isto em todas as ordens – em ciência como em moral
e política, como em arte. Toda idéia é pensada
e todo o quadro é pintado a partir de certas suposições
ou convenções tão básicas, tão
evidentes para quem pensou a idéia ou pintou o quadro, que
nem sequer repara nelas, e, por isto, não as introduz na
sua idéia nem no seu quadro, não as achamos ali postas,
mas precisamente supostas e como deixadas voluntariamente no esquecimento.
Por isto, às vezes, não entendemos uma idéia
ou um quadro: falta-nos a palavra do enigma, a clave da secreta
convenção. E como, repito, cada época –
vou ser mais exato – cada geração parte de pressupostos
mais ou menos diferentes. Isto quer dizer que o sistema das verdades
e o dos valores estéticos, morais, políticos, religiosos
têm inexoravelmente uma dimensão histórica,
são relativos a uma certa cronologia vital humana, valem
só para certos homens. A verdade é histórica.
Que
um ou vários homens inventem uma nova idéia ou um
novo sentimento não faz alterar o cariz da história,
o tom dos tempos, como a cor do Atlântico não muda
porque um pintor de marinhas limpa nele o seu pincel carregado de
vermelhão. Mas se, de súbito, uma massa ingente de
homens adota aquela idéia e vibra com aquele sentimento,
então a ária da história, a face dos tempos,
tinge-se de um novo colorido. Pois bem: as massas ingentes de homens
não adotam uma idéia nova, não vibram com o
seu peculiar sentimento simplesmente porque se lhes faça
prédicas. É preciso que essa idéia e este sentimento
se achem neles pré-formados, inatos, prontos. Sem essa predisposição
radical, espontânea da massa, todo pregador seria um pregador
no deserto. Daqui que as mudanças históricas supõem
o nascimento de um tipo de homem diferente em mais ou menos do que
antes havia; isto é, supõem a mudança de gerações.
A
relação das verdades com o tempo não é
positiva, mas negativa; é um simples não ter que ver
com o tempo em qualquer sentido; é ser por completo alheia
a toda a qualificação temporal; é manter-se
rigorosamente anacrônica. Dizer, pois, que as verdades o são
sempre não envolve, falando de modo rigoroso, menor impropriedade
do que se dissermos – para usar um famoso exemplo trazido
por Leibniz a outro propósito – «justiça
verde». O corpo ideal da justiça não oferece
um encaixe nem um orifício onde possa se enganchar o atributo
«verdosidade», e todas as vezes que pretendamos inseri-lo
naquele, outras tantas o veremos resvalar sobre a justiça
– como sobre uma área polida. A nossa vontade de unir
estes dois conceitos fracassa, e, ao dizê-los juntos, permanecem
obstinadamente separados, sem possível adesão nem
conjugação. Não existe, pois, heterogeneidade
maior que a que existe entre o modo de ser atemporal constitutivo
das verdades e o modo de ser temporal do sujeito humano que as descobre
e pensa, conhece ou ignora, rejeita ou esquece.
Sempre
acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo
e, além disso, esta nossa disciplina tem como ponto de honra,
hoje mais do que nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes,
diferente das ciências especiais, que cada vez mais com maior
rigor, interpõem entre o tesouro das suas descobertas e a
curiosidade dos profanos o dragão medonho da sua terminologia
hermética. Penso que o filósofo tem que levar até
ao limite de si próprio o rigor metódico quando investiga
e persegue as suas verdades, mas que ao emiti-las e enunciá-las
deve evitar o uso cínico com que alguns homens de ciência
se comprazem, como Hércules de feira, em ostentar diante
do público os bíceps do seu tecnicismo.
No
ser vivo toda a necessidade essencial, que brota do próprio
ser e não lhe advém de fora acidentalmente, vai acompanhada
de voluptuosidade. A voluptuosidade é a cara, a 'facies'
da felicidade. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu
destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação,
da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está
a ser o que é na verdade. Por esta razão Schlegel
[August
Wilhelm von Schlegel (1767 – 1845)] dizia,
invertendo a relação entre voluptuosidade e destino:
«Para o que nos agrada temos gênio». O gênio,
isto é, o dom superlativo de um ser para fazer alguma coisa
tem sempre simultaneamente uma fisionomia de supremo prazer. Em
um dia que está próximo e graças a uma transbordante
evidência, vamos nos ver surpreendidos e obrigados a descobrir
o que agora somente parecerá uma frase: que o destino de
cada homem é, ao mesmo tempo, o seu maior prazer.
Em
matéria de arte, de amor ou de idéias, creio serem
pouco eficazes anúncios e programas. Pelo que toca às
idéias,
a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação
sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica,
afasta inevitavelmente o pensador da opinião recebida ou
já aí existente, do que com mais graves razões
que quanto agora suponham, merece chamar-se «opinião
pública» ou «vulgaridade». Todo o esforço
intelectual, que com rigor o seja, afasta-nos solitários
da praia comum, e, por rotas recônditas que precisamente o
nosso esforço descobre, conduz-nos a lugares retirados, situa-nos
sobre pensamentos insólitos. São estes o resultado
da nossa meditação. Pois bem: o anúncio ou
programa reduz-se a antecipar estes resultados, deles arrancando
previamente a via ao cabo da qual foram descobertos... Um pensamento
separado da rota mental que a ele conduz, insulano e escarpado,
é uma abstração no pior sentido da palavra,
e, por esse motivo, é ininteligível.
O
homem não se ocupa em conhecer, em saber, simplesmente porque
tenha dons cognoscitivos, inteligência, etc. – mas,
ao contrário, porque não tem outro remédio
que intentar conhecer, saber, mobilizando os meios de que dispõe,
embora estes sirvam muito mal para aquele mister. Se a inteligência
humana fosse de verdade o que a palavra indica – capacidade
de entender –
o homem teria imediatamente
entendido tudo e estaria sem nenhum problema, sem lide penosa pela
frente.
A
vida é primariamente encontrar-se, cada qual, submergido
entre as coisas; e enquanto é apenas isto, consiste em sentir-se
absolutamente perdido. A vida é perdição. Mas,
por isto mesmo, obriga, quer queiramos quer não, a um esforço
para se orientar no caos, para se salvar desta perdição.
Este esforço é o conhecimento que extrai do caos um
esquema de ordem, um cosmos. Este esquema do Universo é o
sistema das nossas idéias ou convicções vigentes.
Quer queiramos quer não, vivemos com convicções
e de convicções. O mais teoreticamente cético
existe apoiando-se em um suporte de crenças sobre o que as
coisas são. A vida é absoluta convicção.
A dúvida intelectual mais extrema é vitalmente uma
absoluta convicção de que tudo é duvidoso.
E algo ou tudo ser duvidoso não é uma crença
em um ser menor do que qualquer outra de aspecto mais positivo.
O
cigano foi se confessar; mas o padre, precavido, começou
por interrogá-lo sobre os Mandamentos de Deus. Ao que o cigano
respondeu: — Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas
depois ouvi um zum-zum de que havia perdido o valor... Todo o mundo
– nações, indivíduos – está
desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização
diverte e até vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes
tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo
em que eram inscritos sobre pedra ou bronze o seu caráter
de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pôr
em alguém algo nas mãos. Quem manda é, sem
remissão, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro
já estão fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem,
e aproveitam, com ar festivo, este tempo de pesados imperativos.
Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver
de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta
é a horrível situação íntima
em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De
puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma
vida em disponibilidade é maior negação do
que a morte. Porque viver é ter que fazer algo determinado
– é cumprir um encargo – e na medida em que iludamos
pôr em algo a nossa existência, desocupamos a nossa
vida. Dentro em pouco, ouvir-se-á um grito formidável
em todo o Planeta, que subirá, como uivo de cães inumeráveis,
até as estrelas, pedindo alguém e algo que mande,
que imponha um afazer ou uma obrigação.
Todo
conceito, tanto o mais vulgar como o mais técnico, vai incluso
na ironia de si mesmo, nos entredentes de um sorriso tranqüilo,
como o geométrico diamante vai implícito na dentadura
de ouro de seu engaste. Ele diz muito seriamente: «Esta coisa
é A, e esta outra coisa é B». Mas é a
sua a seriedade de um 'pince-sans-rire' [sonso,
gracejador, apenas sério na aparência].
É a seriedade instável de quem engoliu uma gargalhada,
e se não aperta bem os lábios a vomita. Ele sabe muito
bem que nem esta coisa é A, assim, à valentona, nem
que a outra é B, sem reservas. O que o conceito pensa a rigor
é um pouco outra coisa que o que diz, e nesta duplicidade
consiste a ironia. O que verdadeiramente pensa é isto: eu
sei que, falando com todo rigor, que esta coisa não é
A e que nem aquela B; mas, admitindo que são A e B, eu me
entendo comigo mesmo para os efeitos do meu comportamento vital
diante de uma ou de outra coisa.
Assim
como é impossível conhecer diretamente a plenitude
do real, não temos outro remédio senão construir
arbitrariamente uma realidade, supor que as coisas são de
certa maneira. Isto nos proporciona um esquema, quer dizer, um conceito
ou um entretecido de conceitos. Com ele, como através de
uma quadrícula, olhamos depois a efetiva realidade, e então,
só então, conseguimos uma visão aproximada
dela. Nisto consiste o método científico. Mais ainda:
nisto consiste todo uso do intelecto. Quando, ao virmos chegar o
nosso amigo pela vereda do jardim, dizemos «este é
o Pedro», cometemos deliberadamente, ironicamente, um erro.
Porque Pedro significa para nós um esquemático repertório
de modos de se comportar física e moralmente – o que
chamamos «caráter» – e a pura verdade é
que o nosso amigo Pedro não se parece, em certos momentos,
em quase nada, com a idéia «o nosso amigo Pedro».
Tenderíamos,
ilusoriamente, a crer que uma vida nascida em um mundo abastado
seria melhor, mais vida e de superior qualidade à que consiste,
precisamente, em lutar com a escassez. Mas não é verdade.
Por razões muito rigorosas e arquifundamentais que agora
não é oportuno enunciar. Agora, em vez destas razões,
basta recordar o fato, sempre repetido, que constitui a tragédia
de toda a aristocracia hereditária. O aristocrata herda,
quer dizer, encontra atribuídas à sua pessoa umas
condições de vida que ele não criou, portanto,
que não se produzem organicamente unidas à sua vida
pessoal e própria. Acha-se, ao nascer, instalado, de repente
e sem saber como, no meio da sua riqueza e das suas prerrogativas.
Ele não tem, intimamente, nada que ver com elas, porque não
vêm dele. São a carapaça gigantesca de outra
pessoa, de outro ser vivente, seu antepassado. E tem de viver como
herdeiro, isto é, tem de usar a carapaça de outra
vida. Em que ficamos? Que vida vai viver o «aristocrata»
de herança, a sua ou a do prócer inicial? Nem uma
nem outra. Está condenado a representar o outro, portanto,
a não ser nem o outro nem ele mesmo.
Não
há cultura onde não há princípios de
legalidade civil a que apelar. Não há cultura onde
não há acatamento de certas últimas posições
intelectuais a que se referir na disputa. Não há cultura
quando as relações econômicas não são
presididas por um regime de tráfico sob o qual possam se
amparar. Não há cultura onde as polêmicas estéticas
não reconhecem a necessidade de justificar a obra de arte.
Quando faltam todas estas coisas, não há cultura;
há, no sentido mais estrito da palavra, barbárie.
E isto é, não tenhamos ilusões, o que começa
a haver na Europa sob a progressiva rebelião das massas.
O viajante que chega a um país bárbaro, sabe que naquele
território não regem princípios aos quais possa
recorrer. Não há normas bárbaras propriamente
ditas; a barbárie é ausência de norma e de possível
apelação.
Toda
a vida é se achar dentro da «circunstância»
ou do mundo. Porque este é o sentido originário da
idéia (mundo). Mundo é o repertório das nossas
possibilidades vitais. Não é, pois, algo à
parte e alheio à nossa vida, mas que é a sua autêntica
periferia. Representa o que podemos ser; portanto, a nossa potencialidade
vital. Esta tem de se concretizar para se realizar, ou, dito de
outra maneira, chegamos a ser só uma parte mínima
do que poderíamos ser. Daí que nos parece o mundo
uma coisa tão enorme, e nós, dentro dele, uma coisa
tão pequena. O mundo ou a nossa vida possível é
sempre mais do que o nosso destino ou a vida efetiva.
Surpreender-se,
estranhar, é começar a entender. É o desporto
e o luxo específico do intelectual. Por isto, o seu gesto
gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza.
Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para um par
de pupilas bem abertas.
O
cínico, parasita da civilização, vive de negá-la,
simplesmente porque está convencido de que esta não
lhe faltará. Que faria o cínico em um povoado selvagem
onde todos, naturalmente e a sério, fizessem o que ele, de
farsa, considera como o seu papel pessoal? O que é um fascista
se não fala mal da liberdade e um surrealista se não
abjura a arte?
José
Ortega y Gasset (1883 – 1955)