Górgias
Platão
(Fragmentos editados)
Górgias
A
experiência faz com que a nossa vida seja dirigida de acordo
com a arte; a inexperiência entrega nossa vida ao acaso. Cada
um, a seu modo, é proficiente em alguma coisa.
Por
meio da palavra, pela arte da Retórica1,
é possível convencer os juízes em um tribunal,
os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias
ou em toda e qualquer reunião política. Com semelhante
poder, farás do médico e do pedótriba2
teus escravos, e o economista acumulará riqueza para ti,
que sabes falar e convencer as multidões.
A
persuasão é, de fato, a finalidade precípua
da Retórica.
A
Retórica precisa ser usada semelhantemente às demais
artes de competição. Estas artes não devem
ser empregadas indiferentemente contra toda a gente, porque contam
com a prática e se tornaram, neste terreno, superiores a
amigos e a inimigos... O orador é capaz de falar a respeito
de qualquer assunto, conseguindo, por isto mesmo, convencer as multidões
melhor do que qualquer pessoa. Contudo, não será por
isto que ele irá privar o médico de sua fama —
o que lhe seria possível — nem qualquer outro profissional.
Pelo contrário, deverá usar a Retórica com
justiça, como qualquer outro gênero de combate...
Não
há nada de tão nocivas conseqüências para
o homem como admitir uma opinião errônea...
Em matéria de saúde,
diante das multidões,3
um orador tem maior força convincente do que o médico;
mas, diante de entendidos não será mais persuasivo
do que o médico.
O
homem justo pratica ações justas, e nunca há
de querer cometer alguma injustiça. Portanto, o orador sincero,
necessariamente, terá de ser justo, e nunca há de
querer cometer uma injustiça.
Normalmente, quando fazemos
alguma coisa em vista de um determinado fim, não é
essa coisa que queremos, mas o que tínhamos em vista quando
a fizemos.
Se alguém matar outra
pessoa, ou a expulsar da cidade, ou lhe arrebatar os bens, quer
seja tirano, quer seja orador, convencido de que disso auferirá
vantagens – quando, realmente, só virá a ser
prejudicado – este só faz, de fato, o que lhe apraz.
Se alguém matar alguém
injustamente, é digno de piedade; mas, se o faz com justiça,
não é para ser invejado.
O
maior dos males é cometer alguma injustiça. Se me
visse obrigado a optar entre praticar alguma injustiça ou
sofrê-la, preferiria sofrê-la, não praticá-la...
Cometer injustiça é pior do que sofrer injustiça.
Enquanto
justo, tudo o que é justo é belo.
Conforme
seja a ação do agente, assim será o sofrimento
do paciente.
A
injustiça, a intemperança e os demais vícios
da alma são os maiores males do mundo.
A
felicidade não consiste em alguém se livrar dos males,
mas em se conservar livre deles.
O castigo nos deixa mais
prudentes e justos, atuando a justiça como uma espécie
de medicina para a maldade.
O
homem injusto ou que comete injustiça, de qualquer forma
é infeliz. E mais infeliz será, ainda, se não
for punido; porém algum tanto menos se for castigado e punido
pelos deuses4
e pelos homens.
Se,
entre os homens, não houvesse identidade de sentimentos,
comuns a todos, embora com diferenças individuais, não
seria fácil a ninguém explicar aos outros o que se
passa consigo mesmo.
Prefiro
ter a lira desafinada e desarmônica ou um coro por mim dirigido,
sim, e até mesmo não concordar com minhas opiniões
a maioria dos homens, e combatê-las, a ficar em desarmonia
comigo mesmo e vir a me contradizer.
Considero
que para tirar a prova completa que permita saber se uma alma vive
bem ou mal são necessários três requisitos:
conhecimento, boa vontade e franqueza.
Cada
um deve comandar a si mesmo. Cada um deve ser temperante e dono
de si mesmo, e dominar, em si próprio, os prazeres e os apetites.
Não
me admirarei se falou certo Eurípides, quando disse: —
Quem nos dirá que não é morte a vida, e estar
Morto, Viver?
No
mundo das sombras — o mundo invisível — os mais
infelizes são os não-iniciados, pois carregam água
para um tonel furado em um crivo5
também cheio de furos... A alma dos insensatos é semelhante
a um crivo cheio de furos, pois nada consegue reter, visto carecer
de fé e de memória.
O
bem não consiste em ter prazer de qualquer modo.
O bem não é
a mesma coisa que o agradável, nem o mal o mesmo que o desagradável,
porque uns cessam ao mesmo tempo, e outros não, por serem
diferentes. Como poderia, pois, o agradável ser idêntico
ao bem e o desagradável ao mal?
Se
há alguma coisa que o homem possa, ao mesmo tempo, ter e
não ter, é mais do que claro que não seria
nem o bem nem o mal.
Todas
as necessidades e todos os desejos são desagradáveis.
Todos os nossos atos devem
ser pautados só em vista do bem... O bem deve ser a meta
exclusiva de nossos atos, e tudo deve ser feito por amor ao bem.
Há, portanto, duas
maneiras de falar ao povo: uma delas é adulação
e oratória da pior espécie; a outra é algo
belo, porque há preocupação sincera em deixar
boa, quanto possível, a alma dos cidadãos, esforçando-se
para dizer o que é melhor, quer agrade quer não agrade
ao auditório.
O
orador honesto e competente deverá dirigir seus discursos
à alma dos homens, sempre que lhes falar; e quer lhes dê
ou lhes tire alguma coisa, deverá pensar sempre no modo de
fazer nascer a justiça na alma de seus concidadãos
e de banir a injustiça, de nela implantar a temperança
e de afastar a intemperança.
A virtude de qualquer
coisa – seja instrumento, seja corpo, seja alma – não
vem por acaso e já completa. É o resultado de uma
certa ordem, de retidão e da arte adaptada à natureza
de cada um. Logo, é por meio da ordem que se promove devidamente
a virtude de cada coisa. Por isto, uma espécie de ordem inerente
a cada coisa é que a deixa boa com a sua presença.
E a alma que tem a sua ordem peculiar é melhor do que a que
for desordenada. E a alma em que há ordem é bem regulada.
E a alma bem regulada é temperante. Logo, a alma temperante
é boa.
Ordem
A
ordem e a harmonia da alma têm o nome de legalidade e de lei,
que é o que deixa os homens justos e ordeiros, e vem a ser,
precisamente, justiça e temperança.
Ordem
Onde
quer que um tirano domine grosseiros e sem educação,
se houver na cidade alguém muito melhor do que ele, é
fora de dúvida que o tirano se arreceará dessa pessoa
e nunca dela poderá se tornar amigo de todo o coração...
O mesmo se dará no caso de alguém muito pior do que
ele: o tirano o desprezará, sem lhe mostrar jamais a deferência
devida aos amigos. Resta, portanto, ao tirano, como único
amigo digno de menção, quem tiver o mesmo caráter
que ele, os mesmos gostos e aversões idênticas, e que
se disponha a obedecer e a se submeter à sua autoridade.
Um indivíduo, nestas condições, gozará
de grande influência na cidade, sem que ninguém consiga
ofendê-lo impunemente.
Para
alguém se tornar tão bom quanto possível...
é vergonhoso condicionar seu conselho a determinado pagamento.
Se, um dia, eu for chamado
ao tribunal, meu acusador terá de ser um indivíduo
muito ruim, pois jamais um homem bom acusará um inocente.6
Tudo
o que falo, falo por amor à justiça.
A
maior infelicidade é chegar ao Hades com a alma pejada de
malfeitorias.
Toda
adulação deve ser evitada, tanto com relação
a si próprio como a estranhos, quer sejam poucos, quer sejam
muitos. E a faculdade de bem falar, como os demais recursos desse
gênero, só devem ser empregados a serviço da
justiça.
A melhor maneira de viver
é a que consiste na prática da justiça e das
demais virtudes – tanto na vida quanto na morte.
______
Notas:
1.
Retórica é a arte da eloqüência,
a arte de bem argumentar, ou seja, a arte da palavra. Na Idade Média,
era uma das três disciplinas de que se constituía o
trivium
– a primeira parte do ensino universitário, formada
por três disciplinas (Gramática Latina, Lógica
e Retórica) ministradas antes do quadrivium
(Aritmética, Geometria, Música e Astronomia). Para
Sócrates, a
Retórica não se ocupa com discursos relativos ao par
e ao ímpar, porém, com os que se relacionam com o
justo e o injusto. Assim, em princípio, para
Sócrates, jamais
poderia a Retórica ser algo injusto, pois todos os seus discursos
tratam exclusivamente da justiça.
2.
Na Grécia antiga, o pedótriba era um professor de
educação física.
3.
Diante de ignorantes. Como argumenta Sócrates, o
ignorante tem maior poder de persuasão junto de ignorantes
do que o sábio. Isto é uma verdade incontestável.
Basta, por exemplo, dar uma rápida espiada nos programas
religiosos que coalham a televisão aberta, particularmente
durante a madrugada. Alguns sapientes
chegam a insinuar que a Medicina é inútil, pois só
Jesus cura! Enfim, esses retóricos de meia-pataca não
sabem como as coisas são em si mesmas, e, muitas vezes, recorrem
a algum artifício insincero e furreca para parecer aos ignorantes
que, em tudo, são mais entendidos do que os especialistas.
Claro, sempre com o suporte de citações bíblicas
decoradas, que eles, quando muito, conhecem muito mal as letras,
mas longe estão de entender as entrelinhas.
4.
Entenda-se, aqui, a punição praticada pelos deuses
como o funcionamento inexorável (imediato ou mediato) da
Lei Educativa da Compensação.
5.
Utensílio com o fundo perfurado e que se usa para separar
fragmentos, grãos, pedras preciosas e congêneres, de
acordo com o volume e a espessura.
6.
Sócrates (469 – 399]), que foi um homem piedoso, foi
executado por impiedade, no caso, falta de respeito pelos valores
comumente admitidos pela pólis.
O julgamento e a execução de Sócrates são
eventos centrais da obra de Platão (Apologia e Críton).
Sócrates admitiu que poderia ter evitado sua condenação
(beber o veneno chamado cicuta), se tivesse desistido da vida justa.
Mesmo depois de sua condenação, ele poderia ter evitado
sua morte, se tivesse escapado com a ajuda de amigos. A razão
para sua cooperação com a justiça da pólis
e com seus próprios valores mostra uma valiosa faceta de
sua Filosofia, em especial aquela que é descrita nos diálogos
com Críton.
Páginas
da Internet consultadas:
http://ateus.net/ebooks/
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3crates