Em
alguns textos anteriores contei uns poucos episódios da minha vida.
Acho isso importante porque, de certa forma, é desmistificada a idéia
errônea de que um místico já nasça pronto, em
uma família espiritualista e bem estruturada, sem problemas existenciais
e com poderes excepcionais. Não é assim. De uma maneira geral
não é assim mesmo, ainda que haja exceções.
Mas, exceção não é regra. Contudo, por outro
lado, também é fato que do útero de uma santa mulher
não poderão nascer um degenerado ou uma degenerada, como do
útero de uma degenerada não poderão nascer um santo
homem ou uma santa mulher. Não obstante, a imensa maioria dos místicos
nasce em uma família comum, passa por sérias dificuldades
individuais e interpessoais, em algum momento de sua vida dá uma
resvalada para a esquerda e faz uma (pequena ou grande) série de
bobagens. Um dia (teria sido melhor que eu tivesse digitado DIA) um Raio
de Luz o invade. E assim começa (ou recomeça) sua Peregrinação.
Comigo foi exatamente assim. Fiz algumas merdinhas e algumas merdonas, mas
tomei vergonha na fuça.
Minha
mãe, que nasceu no Porto, Portugal, tanto quanto meu pai, que era
italiano de Reggio, Calábria (ambos já falecidos), eram emigrantes.
Aqui se encontraram, casaram, e dez anos depois, de repente(?),
minha mãe ficou grávida... e nove meses depois eu nasci. A
fórceps, mas nasci! Mas, o que vou relatar hoje são dois episódios
que mais dizem respeito ao meu pai. Pouco têm a ver diretamente comigo.
Indiretamente, têm tudo.
O
primeiro envolve um irmão de meu pai, apenas por parte de meu avô
paterno, que tive a oportunidade de conhecer há mais ou menos uns
quarenta anos. Zio Claudio, lá pelos anos sessenta, resolveu
conhecer o Brasil, ficando hospedado na casa do meu pai. Nessa época,
meu pai já havia se separado de minha mãe e morava em Copacabana,
no Rio de Janeiro, com uma senhora com quem eu me dava excepcionalmente
bem. Mas isso são outros quinhentos. Voltando ao meu zio, estive
com ele umas três ou quatro vezes durante o tempo em que esteve no
Brasil. Em um dos encontros, na hora do almoço, perguntei a ele:
— Zio, cos’è la Famiglia Montalbano? Naquela
época, isso era segredo de estado, ou melhor, um segredo restrito
à Onorata Società. Hoje, todo mundo sabe o que é.
Mas eu sabia porque meu pai havia me explicado. Meu zio, que estava
mastigando uns mariscos (aliás, nos trinta dias que esteve no Brasil
só comeu frutos do mar), ficou imóvel, empalideceu um pouco,
cravou os olhos no meu pai e fez um meneio com o corpo como que a perguntar:
como esse garoto sabe isso? Meu pai desabou em uma estrondosa gargalhada
e disse que havia sido ele quem me contara. Meu zio não
contestou, mas me disse que eu deveria manter silêncio sobre o assunto.
Depois do almoço, me convidou para viver em Nova Iorque, cidade onde
morava há alguns anos. Disse que se eu aceitasse o convite, meu futuro
estaria garantido, pois ele me arranjaria um ótimo emprego em uma
empresa americana e... Bem, meu zio era mafioso, como, possivelemente,
o era também o meu pai. Não estou certo se, nessa época,
eu já era Rosacruz. Mas, independentemente disso, educadamente recusei
a oferta. Rosacruz ou não-Rosacruz um convite desses é inaceitável,
particularmente porque envolveria um certo tráfico de influência
medonhamente horrendo. Ponto final nesse comentário lateral. O fato
é que, entre os mafiosos, os membros de uma famiglia (ou
de uma Famiglia) não ficam desamparados. Em primeiro lugar
está a famiglia. Porém, antes da famiglia
está a Famiglia. É assim que funciona. Meu zio
acabou indo embora para Nova Iorque, e eu fiquei no Brasil. Nunca mais
o vi e nem falei com ele.
Eu
comentei acima que meu pai, possivelmente, também tivesse sido mafioso.
Meu zio eu sei que era; mas, se meu pai era ou se não era,
isso não saberei, com certeza, jamais. Apenas posso presumir. O que
eu sei é que um primo que eu tenho, que mora em um país da
Europa, certa vez teve um problema seríssimo, gravíssimo,
e foi o meu pai, daqui do Brasil, que, com um único telefonema, resolveu
o assunto em definitivo. Isso é máfia ou é o quê?
De qualquer modo, nas entrelinhas, meu pai deu a entender que havia resolvido
o problema por intermédio de uns amigos que ele tinha na Famiglia
Montalbano. Isso é de arrepiar!
O
segundo evento que vou relatar ocorreu em Reggio, Calabria. Mas, para que
se entenda o que aconteceu em Reggio, preciso preliminarmente dizer que
meu pai emigrou para o Brasil por ordem de meu avô, pois se continuasse
na Itália seria morto pela Camorra. Alguma coisa ele fez
por lá (que eu nunca soube o que foi) que o juraram de morte. Mas
os anos se passaram, e, um dia, já no final da vida, meu pai voltou
a Reggio. No primeiro dia de sua estada em Reggio, onde moram meus parentes
por parte de pai, passeando por uma rua da cidade, ele deu de cara com o
homem – já um senhor como ele – que prometera matá-lo
quando ele lá morava. É preciso que se saiba que, no âmbito
da Onorata Società, em princípio, não há
anulação de juramento. Declarada uma vendetta, ela
terá que ser cumprida. Custe o que custar, demore o tempo que demorar.
Isso é uma questão que não pode ser apagada ou desfeita,
por nada, para um uomo d’onore, seja ele um giovane
d'onore, um picciotto d'onore ou um alto dirigente da Associazione
— L'Onorata Società.
Mas,
sabem o que sucedeu? Contado, ninguém acredita. Mas aconteceu exatamente
assim: os dois velhos homens – meu pai e o senhor que o jurara de
morte – entreolharam-se, sorriram, se abraçaram, se beijaram
à italiana e caíram no choro como duas crianças. Então,
essa coisa medonha de que uma vendetta tem que ser cumprida a ferro
e fogo, a todo transe, demore o tempo que demorar, que é uma questão
que não pode ser apagada et cetera, não é
lá bem assim. Ou, pelos menos, para alguns não é, como
não foi para o velho calabrês que jurou matar o meu pai. Ou,
ainda, quem sabe, alguns se arrependem, compreendem e passam a borracha
no juramento de morte. Isso foi muito bonito. Esse crime o velho senhor
não levou para o túmulo. Ainda bem! Por isso concluí
o soneto que está mais abaixo com o terceto:
Contudo,
se quiser, poderá transmudar,
e,
ao invés de assassinar, Peregrinar.
E
parar de uma pancada de viver a esmo.
Só
para concluir: alguns dias depois desse episódio que narrei acima,
ainda em Reggio, meu pai passou mal (primeira manifestação
de um terrível problema cerebral que ceifaria sua vida um ano depois)
e teve que ser atendido de urgência. Sabem por quem ele foi atendido?
Alguém pode imaginar quem foi que o examinou? Por um médico
da cidade, claro. Mas esse médico não era ninguém mais
ninguém menos do que o próprio filho do velho calabrês
que jurou meu pai de morte cinqüenta anos atrás! Isso emociona
até uma estátua de pedra! E até dá para fazer
um filme. Alguém se habilita? Se qualquer um dos representantes da
santíssima trindade do cinema italiano dos anos 50 – Vittorio
de Sicca (1902-1974), Roberto Rosselini (1906-1972) e Luchino Visconti (1906-1976)
(os maiores expoentes do neo-realismo italiano) – ainda estivesse
vivo, talvez fizesse um filme com essa história de amor. Talvez o
Totó (1898-1967) pudesse representar o meu pai e o Ugo Tognazzi (1922-1990)
o velho calabrês! Se estivessem vivos também, óbvio.
Por
tudo que expus, a letra da MIDI de fundo deste trabalho (Vingança,
de Lupicínio Rodrigues)
vale
apenas como peça musical de um tempo melancólico; não
pode ser levada a sério por um místico consciente. Acho que
nem o próprio Lupicínio levou a sério esse clássico
da MPB. Para quem não conhece a letra da música Vingança,
eu a reproduzi ao final do Trabalho. Ela é simplesmente macabra.
Quero
digitar só mais uma frase e três palavras: Matar por vendetta
ou por qualquer outro motivo, non è da cosa alcuna. Paz
aos mafiosos. Apenas isso.
E
quero repetir: Um místico não nasce pronto e acabado, apesar
de haver algumas poucas exceções. Mas, mesmo no caso dessas
raríssimas exceções, um longo Trabalho Iniciático
não poderá jamais ser descartado. Um exemplo conhecido é
o do Mestre Jesus, que teve que se preparar por mais ou menos dezoito longos
anos para poder cumprir uma Missão visível e pública
de apenas quarenta meses. Então, talvez se possa concluir que nem
os Avatares nascem prontos e acabados. Mas será que pode haver, no
Universo, algo que esteja pronto e acabado?