L'ONORATA SOCIETÀ

(Invisibile Come La Faccia Occulta Della Luna)

 

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

Em alguns textos anteriores contei uns poucos episódios da minha vida. Acho isso importante porque, de certa forma, é desmistificada a idéia errônea de que um místico já nasça pronto, em uma família espiritualista e bem estruturada, sem problemas existenciais e com poderes excepcionais. Não é assim. De uma maneira geral não é assim mesmo, ainda que haja exceções. Mas, exceção não é regra. Contudo, por outro lado, também é fato que do útero de uma santa mulher não poderão nascer um degenerado ou uma degenerada, como do útero de uma degenerada não poderão nascer um santo homem ou uma santa mulher. Não obstante, a imensa maioria dos místicos nasce em uma família comum, passa por sérias dificuldades individuais e interpessoais, em algum momento de sua vida dá uma resvalada para a esquerda e faz uma (pequena ou grande) série de bobagens. Um dia (teria sido melhor que eu tivesse digitado DIA) um Raio de Luz o invade. E assim começa (ou recomeça) sua Peregrinação. Comigo foi exatamente assim. Fiz algumas merdinhas e algumas merdonas, mas tomei vergonha na fuça.

Minha mãe, que nasceu no Porto, Portugal, tanto quanto meu pai, que era italiano de Reggio, Calábria (ambos já falecidos), eram emigrantes. Aqui se encontraram, casaram, e dez anos depois, de repente(?), minha mãe ficou grávida... e nove meses depois eu nasci. A fórceps, mas nasci! Mas, o que vou relatar hoje são dois episódios que mais dizem respeito ao meu pai. Pouco têm a ver diretamente comigo. Indiretamente, têm tudo.

O primeiro envolve um irmão de meu pai, apenas por parte de meu avô paterno, que tive a oportunidade de conhecer há mais ou menos uns quarenta anos. Zio Claudio, lá pelos anos sessenta, resolveu conhecer o Brasil, ficando hospedado na casa do meu pai. Nessa época, meu pai já havia se separado de minha mãe e morava em Copacabana, no Rio de Janeiro, com uma senhora com quem eu me dava excepcionalmente bem. Mas isso são outros quinhentos. Voltando ao meu zio, estive com ele umas três ou quatro vezes durante o tempo em que esteve no Brasil. Em um dos encontros, na hora do almoço, perguntei a ele: — Zio, cos’è la Famiglia Montalbano? Naquela época, isso era segredo de estado, ou melhor, um segredo restrito à Onorata Società. Hoje, todo mundo sabe o que é. Mas eu sabia porque meu pai havia me explicado. Meu zio, que estava mastigando uns mariscos (aliás, nos trinta dias que esteve no Brasil só comeu frutos do mar), ficou imóvel, empalideceu um pouco, cravou os olhos no meu pai e fez um meneio com o corpo como que a perguntar: como esse garoto sabe isso? Meu pai desabou em uma estrondosa gargalhada e disse que havia sido ele quem me contara. Meu zio não contestou, mas me disse que eu deveria manter silêncio sobre o assunto. Depois do almoço, me convidou para viver em Nova Iorque, cidade onde morava há alguns anos. Disse que se eu aceitasse o convite, meu futuro estaria garantido, pois ele me arranjaria um ótimo emprego em uma empresa americana e... Bem, meu zio era mafioso, como, possivelemente, o era também o meu pai. Não estou certo se, nessa época, eu já era Rosacruz. Mas, independentemente disso, educadamente recusei a oferta. Rosacruz ou não-Rosacruz um convite desses é inaceitável, particularmente porque envolveria um certo tráfico de influência medonhamente horrendo. Ponto final nesse comentário lateral. O fato é que, entre os mafiosos, os membros de uma famiglia (ou de uma Famiglia) não ficam desamparados. Em primeiro lugar está a famiglia. Porém, antes da famiglia está a Famiglia. É assim que funciona. Meu zio acabou indo embora para Nova Iorque, e eu fiquei no Brasil. Nunca mais o vi e nem falei com ele.

Eu comentei acima que meu pai, possivelmente, também tivesse sido mafioso. Meu zio eu sei que era; mas, se meu pai era ou se não era, isso não saberei, com certeza, jamais. Apenas posso presumir. O que eu sei é que um primo que eu tenho, que mora em um país da Europa, certa vez teve um problema seríssimo, gravíssimo, e foi o meu pai, daqui do Brasil, que, com um único telefonema, resolveu o assunto em definitivo. Isso é máfia ou é o quê? De qualquer modo, nas entrelinhas, meu pai deu a entender que havia resolvido o problema por intermédio de uns amigos que ele tinha na Famiglia Montalbano. Isso é de arrepiar!

O segundo evento que vou relatar ocorreu em Reggio, Calabria. Mas, para que se entenda o que aconteceu em Reggio, preciso preliminarmente dizer que meu pai emigrou para o Brasil por ordem de meu avô, pois se continuasse na Itália seria morto pela Camorra. Alguma coisa ele fez por lá (que eu nunca soube o que foi) que o juraram de morte. Mas os anos se passaram, e, um dia, já no final da vida, meu pai voltou a Reggio. No primeiro dia de sua estada em Reggio, onde moram meus parentes por parte de pai, passeando por uma rua da cidade, ele deu de cara com o homem – já um senhor como ele – que prometera matá-lo quando ele lá morava. É preciso que se saiba que, no âmbito da Onorata Società, em princípio, não há anulação de juramento. Declarada uma vendetta, ela terá que ser cumprida. Custe o que custar, demore o tempo que demorar. Isso é uma questão que não pode ser apagada ou desfeita, por nada, para um uomo d’onore, seja ele um giovane d'onore, um picciotto d'onore ou um alto dirigente da Associazione — L'Onorata Società.

Mas, sabem o que sucedeu? Contado, ninguém acredita. Mas aconteceu exatamente assim: os dois velhos homens – meu pai e o senhor que o jurara de morte – entreolharam-se, sorriram, se abraçaram, se beijaram à italiana e caíram no choro como duas crianças. Então, essa coisa medonha de que uma vendetta tem que ser cumprida a ferro e fogo, a todo transe, demore o tempo que demorar, que é uma questão que não pode ser apagada et cetera, não é lá bem assim. Ou, pelos menos, para alguns não é, como não foi para o velho calabrês que jurou matar o meu pai. Ou, ainda, quem sabe, alguns se arrependem, compreendem e passam a borracha no juramento de morte. Isso foi muito bonito. Esse crime o velho senhor não levou para o túmulo. Ainda bem! Por isso concluí o soneto que está mais abaixo com o terceto:

 

Contudo, se quiser, poderá transmudar,

e, ao invés de assassinar, Peregrinar.

E parar de uma pancada de viver a esmo.

 

Só para concluir: alguns dias depois desse episódio que narrei acima, ainda em Reggio, meu pai passou mal (primeira manifestação de um terrível problema cerebral que ceifaria sua vida um ano depois) e teve que ser atendido de urgência. Sabem por quem ele foi atendido? Alguém pode imaginar quem foi que o examinou? Por um médico da cidade, claro. Mas esse médico não era ninguém mais ninguém menos do que o próprio filho do velho calabrês que jurou meu pai de morte cinqüenta anos atrás! Isso emociona até uma estátua de pedra! E até dá para fazer um filme. Alguém se habilita? Se qualquer um dos representantes da santíssima trindade do cinema italiano dos anos 50 – Vittorio de Sicca (1902-1974), Roberto Rosselini (1906-1972) e Luchino Visconti (1906-1976) (os maiores expoentes do neo-realismo italiano) – ainda estivesse vivo, talvez fizesse um filme com essa história de amor. Talvez o Totó (1898-1967) pudesse representar o meu pai e o Ugo Tognazzi (1922-1990) o velho calabrês! Se estivessem vivos também, óbvio.

Por tudo que expus, a letra da MIDI de fundo deste trabalho (Vingança, de Lupicínio Rodrigues) vale apenas como peça musical de um tempo melancólico; não pode ser levada a sério por um místico consciente. Acho que nem o próprio Lupicínio levou a sério esse clássico da MPB. Para quem não conhece a letra da música Vingança, eu a reproduzi ao final do Trabalho. Ela é simplesmente macabra.

Quero digitar só mais uma frase e três palavras: Matar por vendetta ou por qualquer outro motivo, non è da cosa alcuna. Paz aos mafiosos. Apenas isso.

E quero repetir: Um místico não nasce pronto e acabado, apesar de haver algumas poucas exceções. Mas, mesmo no caso dessas raríssimas exceções, um longo Trabalho Iniciático não poderá jamais ser descartado. Um exemplo conhecido é o do Mestre Jesus, que teve que se preparar por mais ou menos dezoito longos anos para poder cumprir uma Missão visível e pública de apenas quarenta meses. Então, talvez se possa concluir que nem os Avatares nascem prontos e acabados. Mas será que pode haver, no Universo, algo que esteja pronto e acabado?

 

 

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É vero. Na Onorata Società,

o infeliz que trai a omertà

— ou que 'vende' uma peta —

será vítima de uma vendetta!

 

Aquele que vier a cair em desfortuna

E assim, muitos morrem a cada ano

por ordem da Famiglia Montalbano.

 

O fato inconteste é que todo mafioso

é um homem socialmente perigoso.

Não respeita a Vida nem a si mesmo.

 

Contudo, se quiser, poderá transmudar,

e, ao invés de assassinar, Peregrinar.

E, de uma pancada, parar de viver a esmo.

 

 

 

Esta animação não é uma criação original minha.
Foi produzida com base em um desenho que se
encontra disponibilizado no Website:
http://www.umuersalis.net/quadriegrafica/
quadri/omert-sulla-violenza.html

 

 

 

Fundo musical:

Vingança (Lupicínio Rodrigues)

Fonte:

http://saojoaodospatos.br.tripod.com/midis.htm

 

 

 

 

Vingança

(Lupicínio Rodrigues)

 

 

Eu gostei tanto,
tanto, quando me contaram
que Ihe encontraram
bebendo e chorando
na mesa de um bar.

E que quando os amigos do peito
por mim perguntaram,
um soluço cortou sua voz,
não Ihe deixou falar.

Eu gostei tanto,
tanto, quando me contaram,
que tive mesmo de fazer esforço
prá ninguém notar.

O remorso talvez seja a causa
do seu desespero,
você deve estar bem consciente
do que praticou;
me fazer passar essa vergonha
Com um companheiro.

E a vergonha
é a herança maior que meu pai me deixou;
mas, enquanto houver força em meu peito
eu não quero mais nada:
só vingança, vingança, vingança
aos santos clamar.

Você há de rolar como as pedras
que rolam na estrada,
sem ter nunca um cantinho de seu
pra poder descansar.

 

 

Vingança é para os muito tolinhos!