Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

Nelson Rodrigues
(Fragmentos Inesquecíveis)

 

 

 

 

 

 

O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: — 'Senhoras e senhores, eu sou um canalha’.

 

Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia.

 

Não se dá um passo em Álvaro Chaves sem tropeçar numa glória.

 

Deus me livre de ser inteligente.

 

Não há nada mais relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de figuras.

 

O Brasil é muito impopular no Brasil.

 

Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea.

 

Em nosso século, o 'grande homem' pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.

 

O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da imaturidade.

 

Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.

 

Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam.

 

 

 

 

 

Toda unanimidade é burra.

 

Só os profetas enxergam o óbvio.

 

A companhia de um paulista é a pior forma de solidão.

 

Até 1919, a mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera.

 

A cama é um móvel metafísico.

 

Toda mulher gosta de apanhar.

 

Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.

 

O 'homem de bem' é um cadáver mal informado. Não sabe que morreu.

 

Todas as mulheres deveriam ter catorze anos.

 

Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.

 

O mineiro só é solidário no câncer.1

 

O homem só é feliz pelo supérfluo. No Comunismo, só se tem o essencial. Que coisa abominável e ridícula!

 

Copacabana vive, por semana, sete domingos.

 

Não ama seu marido? Pois ame alguém, e já. Não perca tempo, minha senhora!

 

A fome é mansa e casta. Quem não come não ama nem odeia.

 

Todo ginecologista deveria ser casto. O ginecologista deveria andar de batina, sandálias e coroinha na cabeça. Como um São Francisco de Assis, com a luva de borracha e um passarinho em cada ombro.

 

No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal.

 

Não reparem que eu misture os tratamentos de tu e você. Não acredito em brasileiro sem erro de concordância.

 

Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora.

 

O cardiologista não tem, como o analista, dez anos para curar o doente. Ou melhor: dez anos para não curar. Não há no enfarte a paciência das neuroses.

 

O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é um orçamento.

 

Qualquer menino parece, hoje, um experimentado e perverso anão de 47 anos.

 

Desconfio muito dos veementes. Via de regra, o sujeito que esbraveja está a um milímetro do erro e da obtusidade.

 

Toda autocrítica tem a imodéstia de um necrológio redigido pelo próprio defunto.

 

O carioca é o único sujeito capaz de berrar confidências secretíssimas de uma calçada para outra calçada.

 

O ouvinte só é respeitoso quando não está entendendo nada.

 

Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.

 

Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de 'ilustre', de 'insigne', de 'formidável', qualquer borra-botas.

 

A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.

 

O pior cego é o surdo. Tirem o som de uma paisagem e não haverá mais paisagem.

 

Os que choram pouco ou que não choram nunca acabarão apodrecendo em vida.

 

 

 



 

 

O brasileiro não está preparado para ser 'o maior do mundo' em coisa nenhuma. Ser 'o maior do mundo' em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica em uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.

 

Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.

 

Toda coerência é, no mínimo, suspeita.

 

Sexta-feira é o dia em que a virtude prevarica.

 

Em uma simples ginga de Didi há toda uma nostalgia de gafieiras eternas.

 

 

 

 

 

Há homens que, por dinheiro, são capazes até de uma boa ação.

 

Djalma Santos põe, no seu arremesso lateral, toda a paixão de um Cristo negro.

 

 

 

 

 

 

Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.

 

O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.

 

Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.

 

O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.

 

A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades.

 

Outro dia ouvi um pai dizer, radiante: — 'Eu vi pílulas anticoncepcionais na bolsa da minha filha de doze anos!'. Estava satisfeito, com o olho rútilo. Veja você que paspalhão!

 

O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.

 

Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.

 

 

 

 

Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.

 

Todo amor é eterno. E se acaba, não era amor.

 

A fidelidade devia ser facultativa.

 

Amar é ser fiel a quem nos trai.

 

O casamento é o máximo da solidão com a mínima privacidade.

 

O importante é o casamento.

 

O Fluminense é o único time tricolor do mundo. O resto são só times de três cores.

 

O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada.

 

No dia da inauguração do paraíso, houve um Fla-Flu de portões abertos, e escorria gente pelas paredes.

 

Tricolores: vivos ou mortos, saiam de suas casas ou tumbas. Chegou a grande hora.

 

Um ônibus apinhado é o túmulo do pudor.

 

É impossível ser ridículo dentro de uma Mercedes.

 

Em um casamento, o importante não é a esposa, é a sogra. Uma esposa limita-se a repetir as qualidades e os defeitos da própria mãe.

 

No Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio. E, se quiserem acreditar, vaia-se até mulher nua.

 

Todo óbvio é ululante.

 

O brasileiro é um feriado.

 

A mediocridade, além de numerosa, é solidária.

 

Eu, como artista, se tivesse de escolher um epitáfio, optaria pelo seguinte: 'Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos.

 

As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado.

 

O subdesenvolvimento não se improvisa, é uma conquista de séculos.

 

O homem começou a própria desumanização quando separou o sexo do amor.

 

Amar a Humanidade é fácil; difícil é amar o próximo.

 

Amigos, eis uma verdade eterna: O passado sempre tem razão.

 

É só!

 

 

 

 

 

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Nota:

1. A frase – O mineiro só é solidário no câncer – tornou-se famosa porque Nelson Rodrigues a incluiu na peça Bonitinha Mas Ordinária ou Otto Lara Resende (citada quarenta e sete vezes), apresentada no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. A idiossincrática homenagem não agradou ao homenageado, e os dois passaram a ter relações apenas formais por alguns anos.

Nota editada das fontes:

http://recantodasletras.uol.com.br/resenhas/2383

http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernob/
2003/01/02/jorcab20030102002.html

 

Observação:

Aqui vale a pena fazer uma paródia: Político sem-vergonha só é solidário na hora da pizza.


 

 

 

 

 

 

 

 

Quem já não foi um desonroso?

Quem já não agiu como canalha?

Quem já não foi um indecoroso?

Quem já não cometeu uma falha?

 

 

Ora, se todos nós já resvalamos,

por que acusar e apontar malfeitos?

Essencial, na vida, é que corrijamos

nossas telhices e nossos defeitos.

 

 

Mas, isto é mais do que axiomático;

no entanto, continuamos a arremedar.

Se ouvíssemos o conselho socrático,*

com pureza, veríamos a LLuz Triangular.

 

 

 

 

 

 

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Nota:

*. Conhece-te a ti mesmo. Aforismo que tradicionalmente estava inscrito nas paredes do Templo de Apolo, em Delfos, na Antiga Grécia, e que é muito citado pelo filósofo Sócrates nos relatos de seu discípulo Platão. O Oráculo do Templo teria proclamado Sócrates o homem mais sábio na Grécia, ao que Sócrates respondeu com a célebre frase: — Só sei que nada sei.

 

Fundo musical:

Agapi Pougines Dikopo Maxairi
Compositor: Manos Xatzidakis

Fonte:

http://www.astrofegia.com/Music.htm