Na
aldeia russa que a minha família morava, obviamente, não havia
frutas tropicais. Ao emigraram para o Brasil, de navio, a família,
pobre, passa fome. Meu pai, então com dez anos de idade, chegou magérrimo
ao Brasil. Ao desembarcar, um gaúcho se compadece do menino e lhe
deu uma banana, que ele não sabia como comê-la. Mexendo prá
lá e prá cá, conseguiu descascá-la, mas a polpa
lhe pareceu um caroço, que ele jogou fora e comeu a casca. Meu pai
passou o resto da vida afirmando que a casca da banana era melhor do que
o fruto.
Uma
das frases mais famosas sobre o seu ofício de escrever:
— Não
preciso de silêncio, não preciso de solidão, não
preciso de condições especiais. Só preciso de um teclado.
Eu
sou aquele cujo verdadeiro nome não pode ser pronunciado. Admito,
contudo, ser chamado de Jeová.
O
escritor busca a verdade do ser humano.
Acredito, sim, em inspiração;
não como uma coisa que vem de fora, que 'baixa' no escritor, mas,
simplesmente, como o resultado de uma peculiar introspecção
que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram
em embrião no seu próprio inconsciente, e que costumam aparecer
sob outras formas – o sonho, por exemplo. Mas só inspiração
não é suficiente.
Quanto
a pessoa está doente, muito doente, as máscaras caem.
Às
vezes, meu lado médico estranha o meu lado escritor; às vezes,
meu lado escritor estranha o meu lado médico.
A
Literatura não pode mudar o mundo, mas a minha geração
achava que sim... Em todo caso, se a Literatura mudar pessoas, isto já
é suficiente. E ela muda.
A
Literatura, ao fim e ao cabo, se resolve na frente da folha de papel, no
computador.
Apesar
da suposta oposição entre texto e vida, todos os escritores
sabem que não há outra forma de produzir Literatura.
Contar
e ouvir histórias é fundamental para os seres humanos; parte
de nosso genoma, por assim dizer. Sob a forma de mitos, as histórias
proporcionavam, e proporcionam, explicações para coisas que
parecem, ou podem parecer, misteriosas. De onde veio o mundo? De onde surgiram
as criaturas que o habitam? O que acontece com o Sol quando ele se põe?
Mitos ou histórias proporcionam explicações que, mesmo
fantasiosas (ou exatamente por serem fantasiosas), acalmam nossa ansiedade
diante da vida e do Universo.
Todos
queremos ser imortais. A Literatura é uma promessa neste sentido,
uma dupla promessa, aliás. De um lado, o autor tem a esperança
da permanência: 'Fulano não morreu; permanece vivo em suas
obras.' De outro lado, a história sempre pode continuar. 'Casaram
e foram felizes para sempre.' Este 'sempre' é uma gama infinita de
possibilidades: os filhos, alegres e rechonchudos, os netinhos... De divórcio
ninguém fala ao final de um conto de fadas. Não faz parte
do final feliz.
Há
uma história sobre um escritor e seu vizinho. O vizinho observava
o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntou: —
'Descansando, senhor escritor?' Ao que o escritor respondeu: — 'Não,
amigo, estou trabalhando.' Daí a pouco, o vizinho viu o escritor
mexendo na terra, cuidando das plantas, e comentou: — 'Trabalhando?'
— 'Não' — respondeu o escritor — 'descansando'.
O
ensino da Literatura ainda não se libertou
da metodologia do passado, em que leitura era obrigação curricular,
e não prazer. Só se lia autor morto – quanto mais morto,
melhor. Clássicos são essenciais –
Machado é prova disso –
mas autores contemporâneos também são importantes, na
medida em que falam da realidade vivida pelos jovens.
Regra número um: eliminar o caráter de obrigatoriedade, de
dever escolar, da leitura. Ler é algo que se deve fazer
com prazer e emoção. A principal pergunta que um professor
deve fazer para um jovem não é algo do tipo "O que o
autor quis dizer com esse texto?", mas sim: "O que você
sentiu lendo esse texto?" O conhecimento da vida e do mundo que se
pode adquirir pela leitura é sempre mediado pelo sentimento. A segunda
regra é estimular a interação com o texto: adaptações
teatrais e recriação de textos são dois exemplos.
Embora
a transmissão da informação e do conhecimento se possa
fazer hoje de muitas e diferentes maneiras, o texto continua sendo importante.
Ele estimula a imaginação, ele amplia o domínio sobre
a palavra (e a palavra é um esteio fundamental da condição
humana) ele pode ser arte. Uma bela história e um belo poema melhoram
nossa vida.
O
estudo estimula o cérebro; é um antídoto contra a estagnação
intelectual.
A
gente não chega a nada sem método e sem esforço.
A
escola tem de funcionar bem. Vivemos em um País pobre, mas não
podemos deixar que a desorganização, a imprevidência
e a falta de planejamento agravem os efeitos desta pobreza.
O
conhecimento da vida e do mundo que se pode adquirir pela
leitura é sempre mediado pelo sentimento. Por isto, melhor que perguntar
para um jovem 'O que o autor quis dizer com esse texto?' é questionar
'O que você sentiu lendo esse texto?
A
participação dos pais nos estudos dos filhos pode despertar
um interesse maior pela educação. O pai (ou a mãe)
sentado ao lado do filho que faz um trabalho ou lê um livro é
uma imagem que traduz um poderoso estímulo educacional para a criança.
Não é só aquilo que os pais podem ensinar, não
é apenas o seu papel disciplinador. É, sobretudo, o amparo
emocional que o jovem ou a criança sempre necessitam.
A primeira coisa que um pai ou uma
devem fazer para interagir com os filhos de maneira divertida e educativa
ao mesmo tempo é deixar de lado o ranço autoritário.
Aprender é uma coisa boa, sobretudo hoje em dia, com o computador
e outros recursos tecnológicos, diante dos quais pais e filhos são,
antes de tudo, parceiros.
Sou
filho de uma legítima mãe judia, protetora e alimentadora.
Por isso, sempre pensei que a Literatura deveria nutrir os leitores e protegê-los
das desilusões da vida.
Escrever,
para mim, é um ato que preenche várias finalidades. Em primeiro
lugar, é uma forma de organizar o mundo, de dar sentido às
coisas, através daquela progressão lógica: princípio,
meio, fi m. Em segundo lugar, é um grande meio de comunicação
com nossos semelhantes. A palavra escrita é um território
que partilhamos em silêncio, em amável cumplicidade.
O
importante é superar as desavenças com rápido perdão,
total superação.
Tornei
-me médico porque tinha medo de doença.
Não
entendo o livro que faz o leitor sofrer.
Ser
escritor não é só botar o mal-estar para fora; é
saber trabalhar com as palavras.
Álcool
não é fonte de inspiração.
Moacyr
Scliar
Durante
muito tempo, os exames escolares serviram principalmente para que
as escolas avaliassem os estudantes. Agora, com o ENEM, Exame Nacional
do Ensino Médio, as próprias escolas estão
sendo avaliadas e colocadas num 'ranking', de acordo com os resultados
obtidos por seus alunos. Alguém poderia perguntar até
que ponto um exame avalia o nível de conhecimento ou o nível
do estabelecimento de ensino; é uma polêmica que volta
todos os anos na véspera do vestibular. A verdade, porém,
é que a nota é um número, e números,
com todas as suas imperfeições, são a maneira
mais simples, mais prática e mais rápida de avaliar.
Alguns
dos resultados obtidos no ENEM eram previsíveis. Por exemplo,
a média nacional das escolas privadas é superior à
das escolas públicas, que lutam com dificuldades de recursos,
com a má remuneração dos professores, com a
carência dos alunos, em geral mais pobres. Mas há também
um dado interessante. Das 27 melhores escolas públicas, segundo
o ENEM, seis são colégios militares, incluindo o de
Porto Alegre, com uma das maiores médias (70,63 contra os
40,25 que representam a média nacional no setor público).
Não sei quantas são as escolas públicas, nem
quantos colégios militares existem, mas certamente eles estão
super-representados. E aí vem a pergunta: por quê?
A resposta, naturalmente, demandaria um estudo mais amplo, mas vou
arriscar um palpite: acho que pesa, neste caso, uma coisa chamada
disciplina.
Que,
no passado, era coisa aterrorizante. Até recentemente, as
escolas inglesas ainda admitiam chicotear os alunos, e nós
tínhamos a palmatória. Mais: o Brasil passou por um
período ditatorial que, entre outras coisas, serviu para
nos dar aversão ao autoritarismo. Agora: existem dois tipos
de disciplina, aquela que é autoritária, enfiada goela
abaixo nas pessoas, e aquela que resulta da compreensão da
necessidade de um esforço sistemático para atingir
qualquer objetivo, seja ele aprender a jogar futebol, tocar um instrumento
musical ou entender uma fórmula matemática.
Esforço, porém,
é uma palavra que adquiriu conotação negativa,
sobretudo em uma sociedade não raro permissiva, como é
a nossa. E os professores, freqüentemente, se transformam em
bodes expiatórios da revolta de jovens; até casos
de agressão são registrados. Precisamos, portanto,
recuperar a noção de disciplina como algo necessário.
Mas é possível à escola proporcionar as condições
emocionais para que os alunos se incorporem a este esforço
de maneira espontânea, de maneira agradável e de maneira
gratificante. Um desafio tão grande quanto conseguir boas
notas no ENEM.
|
A
pessoa recorre ao álcool pelo mesmo motivo que escreve: o desamparo
social. Só que escrever é libertador e o álcool escraviza.
O
importante é conservarmos a criança em nós.
Precisamos
acordar todas as manhãs com o olhar brilhante, mesmo que haja chuva,
renascendo de todo o passado, pois o presente é o tempo de amar,
é o tempo de viver, de perdoar e de ser perdoado.
O importante é viver com plenitude,
renascendo sempre, em cada manhã...
A
praça é do povo, como o céu é do condor.
Convenhamos:
a independência dos filhos é, ao fim e ao cabo, um triunfo
para os pais.
Toda
a mudança tem suas implicações.
O
bom senso nem sempre está disponível em nossas cabeças...
Vivemos
novos tempos e temos de nos adaptar a eles. O importante é que as
pessoas continuam se querendo. A tecnologia e os hábitos mudam. O
amor, mesmo à distância, continua igual.
A
verdade ainda é o melhor caminho que os médicos podem ajudar
os pacientes a trilhar.
Felicidade
não se compra. Nem mesmo pela Internet...
Sorria
pode ser, portanto, um bom conselho, na medida em que o sorriso, atributo
caracteristicamente humano, possa ser um indicador do sentimento de felicidade.
O
primeiro dia do ano nos dá presentes; o segundo, cobra a conta.
O
problema, concluiu antes de expirar, é que a gente não pode
ter tudo o que se quer na vida.
Você
sempre viveu no ar. Agora está na hora de colocar os pés no
chão...
A
gente pensa que padrões de beleza dependem exclusivamente de gostos
pessoais, de idiossincrasias. É verdade, mas só em parte.
Quando achamos uma mulher bela, não estamos apenas aplicando padrões
estéticos pessoais.
O
ideal é que todo dia seja Dia dos Namorados (o que não significa
ir ao 'shopping' todos os dias para comprar presentes).
Que
pessoas de idade aprendam a usar o computador, que façam esporte,
que cuidem da aparência, que aprendam a andar de moto, tudo bem. Mas
que renunciem à sua própria vida, à sua identidade,
essa não.
É
impressionante a influência que artistas 'pop' podem ter sobre o estilo
de vida do público, sobretudo o público jovem. Isto se refere
à maneira de falar, à maneira de vestir, ao uso de variadas
substâncias (drogas, inclusive) e acaba levando a situações
que podem prejudicar a saúde.
Seja
Esperto
Moacyr
Scliar
Todo mundo entra no ano
novo com o firme propósito de mudar de vida, principalmente
no que se refere à saúde, e principalmente em relação
ao estilo de vida, que, todos nós sabemos, têm muito
a ver com saúde. Exercício físico, dieta,
fumo, álcool: eis aí um quarteto clássico,
objeto de muitas e fervorosas promessas.
Infelizmente,
é mais fácil prometer do que cumprir, como se descobre,
com evidente desapontamento, no final do ano, que tão auspiciosamente
se iniciou.
E
por que não cumprimos promessas? Por que não seguimos
nossas próprias resoluções? É culpa
de nossa fraqueza, de nossa inconstância? Provavelmente, não.
Não precisamos aumentar a carga de nossas culpas com essa
adicional acusação. Seres humanos têm limitações,
cedem a tentações, e isso desde Adão e Eva.
O que fazer, então?
A
resposta está, antes de mais nada, no jeito de formular as
resoluções. Tendemos a ser irrealistas. Criamos objetivos
grandiosos, que simplesmente não temos como atingir. Daí
o desapontamento. Daí a desilusão.
Lendo
um artigo americano sobre as resoluções de fim de
ano, encontrei uma fórmula que me pareceu, no mínimo,
interessante, e que diz muito da engenhosidade de um País
que, antes de cometer erros monumentais, revolucionou a ciência
e a técnica. E o fez graças a um espírito prático
que aparece nessa fórmula.
Para
começar, ela se traduz em um acrônimo muito significativo:
'smart', que quer dizer esperto. Americanos adoram essas coisas.
Por exemplo, um estudo sobre a modificação dos fatores
de risco na doença cardíaca ficou conhecido como Mr.
Fit, abreviatura de Multiple Risk Factor Intervention Trial. Mas,
Mr. Fit também quer dizer Senhor Apto – apto a viver
sem doença cardíaca, obviamente. 'Smart' também
é formado de iniciais. O S é de 'specific', e nos
diz: seja específico sobre o que você vai fazer. Não
basta decidir algo como 'vou viver melhor'. O que é viver
melhor? Em que consiste a vida melhor? O M é de mensurável.
Tudo que é verdadeiro pode ser expresso em números,
dizia o cientista Lord Kelvin, e isso vale para o estilo de vida.
Vou perder peso: quantos quilos? Vou deixar de fumar: em que dia?
Vou caminhar: quantas vezes por semana e durante quanto tempo? O
A é atingível: o objetivo tem de estar ao nosso alcance;
nada de promessas mirabolantes. O R é de resultado: que resultado
quero atingir, ou seja, quanto quero pesar, quantos dias de férias
quero tirar? Finalmente, o T é de tempo: quanto tempo vou
me dar para conseguir meus objetivos?
Adotar
resoluções é coisa que todo mundo faz. Mas
adotar resoluções que funcionarão depende de
esperteza, depende de ser 'smart'.
|
Você
está certo meu amigo. Não só as férias são
curtas; a vida também.1
Se
o escritor não tiver prazer escrevendo, o leitor também não
terá.
A
gente nunca pode desistir de encontrar sentido no aparente absurdo de nossa
existência.2
A
morte de Ivan Ilitch,3
do Tolstoi, é uma verdadeira lição de vida, e a prova
de que alguns livros de ficção podem ensinar mais do que qualquer
manual de Medicina.
O
escritor é um sismógrafo; registra as vibrações
que estão na sociedade.
Um
dia, Jesus resolveu ser médico do SUS.4
O primeiro paciente que chegou foi um paraplégico, em uma cadeira
de rodas. Ao entrar no consultório, Jesus ordenou:
—
Levanta-te e anda.
O
sujeito levantou e saiu caminhando. Lá fora, encontrou um amigo,
que lhe perguntou:
—
Como foi?
E
o paciente: — Igualzinho a toda consulta no SUS; o médico [nem
sequer tocou em mim,] me mandou embora e não receitou
nada.
Somos
os únicos seres capazes de iluminar nossa culpa. E culpa iluminada
é culpa domada. Iluminado, o dedo acusador deixa de ser um algoz
para ser simplesmente um dedo, parte do nosso corpo, parte da mão
que nos fez humanos.
Na crise do apagão, três
frases surgiram, frases que já estão destinadas a figurar
no folclore político brasileiro e que volta e meia serão repetidas.
A primeira foi a da ministra Marta Suplicy, o agora famoso 'Relaxa e goza'.
A segunda foi do também ministro Guido Mantega, que viu, na confusão
dos aeroportos, um sinal da nova prosperidade brasileira. A terceira é
do brigadeiro José Carlos Pereira, o presidente da INFRAERO, falando
à BandNews FM: 'Estou absolutamente tranqüilo para voar. Até
porque os aviões estão retidos no solo, e todo mundo sabe
que a melhor proteção para um avião não cair
é ele não decolar. Reparem que, a rigor, nenhuma das declarações
é absurda. A ministra Marta simplesmente usou aquela expressão
que os americanos consagraram, o 'relax and enjoy' (que, a propósito,
não tem necessariamente conotação sexual), para tentar
uma espécie de sorridente psicoterapia – afinal, ela é
psicóloga de formação. O ministro Mantega constatou
algo que é real: de fato, os brasileiros estão voando mais,
e os problemas seriam inevitáveis. E, finalmente, o presidente da
INFRAERO disse o óbvio: avião que não decola não
cai.
A
população brasileira se divide em pobres e ricos, mas também
se divide em dois grupos: os que sabem usar a crase, a minoria, e a maioria,
que tem um medo existencial desse sinal. A crase foi feita, sim, para humilhar
as pessoas.
Todos
temos sonhos não realizados, objetivos não atingidos. Todos
temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos
apressadamente algo que certamente
poderia ser a fórmula de nossa própria felicidade. Ah!,
se ao menos lembrássemos o que ali escrevemos! Se ao menos entendêssemos
nossa própria letra!
Letra
de médico, uma situação que, a propósito, não
deixa de ser intrigante: de onde viria essa fama de clássica ilegibilidade?
Da pressa com que os doutores, sempre lutando com a falta de tempo, escrevem?
Ou seria uma curiosa manifestação de poder, tipo 'decifra-me
ou te devoro', como dizia a esfinge na história de Édipo?
Ou simples desleixo?
O
Elogio da Diversidade
(Última
crônica de Moacyr Scliar publicada em 11 de janeiro de 2.011
no Correio Braziliense)
Entre
as impressionantes mudanças ocorridas no Brasil, há
uma que mereceria um estudo especial, quem sabe até uma tese
de mestrado ou de doutorado. Nos últimos anos, descobrimos
os números, o que é uma verdadeira revolução
para um País que, durante muito tempo, acreditava sobretudo
na retórica, nas palavras, domínio de uns poucos privilegiados.
Agora, não. Agora, passamos a ter como divisa a frase do
cientista Lord Kelvin, segundo a qual 'tudo que é verdadeiro
deve ser expresso em algarismos'. Todos os dias recebemos pela mídia
uma verdadeira enxurrada numérica, indicadores econômicos,
sociais, de saúde. E disso resultam também 'rankings',
lista dos melhores estados ou municípios, classificados pelo
sucesso obtido em áreas que vão desde a produção
industrial até o nível educacional.
Nessas
várias listas, há uma trinca constante formada por
Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Distrito Federal. Peguem, por
exemplo, a expectativa de vida, o número de anos que podemos
esperar viver. Em primeiro lugar, estão o Distrito Federal
e Santa Catarina, com 75,8 anos, e logo em seguida, o Rio Grande
do Sul, com 75,5 anos. Tomem a mortalidade infantil. Por causa da
fragilidade das crianças, esse é, infelizmente, o
indicador clássico para avaliar a situação
de saúde. Pois, nos quatro melhores estados (São Paulo
entra aí também) está a nossa trinca, RS, SC,
DF, todos bem abaixo da média nacional.
'O
emigrante é um cara que luta: luta para sobreviver,
luta por melhores condições de vida, luta para educar
seus filhos. E freqüentemente vence'.
Vamos
para uma outra área: a educacional. Recentemente, foram divulgados
os dados do PISA (Programme for International Students Assesment
– Programa Internacional de Avaliação de Alunos)
introduzido pela Organização de Cooperação
e de Desenvolvimento Econômico, que analisou a situação
da educação em 65 países, no que se refere
a ciências, matemática e leitura. No caso do Brasil,
quem encontramos no topo do 'ranking' dos estados? Distrito Federal,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Tomemos
um indicador mais abrangente, o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), composto por expectativa de vida, alfabetização
e produto interno 'per capita'; ou seja, saúde, educação,
Economia. Nos cinco estados mais bem situados (aí entram
São Paulo e Rio de Janeiro), está de novo a nossa
trinca, DF, SC, RS.
Agora,
o que terão em comum os três? Aí entramos no
terreno do palpite, mas ouso arriscar uma resposta: a diversidade,
populacional e cultural. Rio Grande do Sul e Santa Catarina são
estados formados, em grande parte, por emigração,
e o mesmo acontece com Brasília (só que aí
é a migração de brasileiros, dos lendários
candangos). Ora, o emigrante é um cara que luta: luta para
sobreviver, luta por melhores condições de vida, luta
para educar seus filhos. E freqüentemente vence. Porque o emigrante
é aquele cara que não se resignou a ficar onde estava,
entregue aos queixumes e às lamentações; não,
o emigrante é um cara que, à frente de sua família,
foi em busca de uma existência melhor, viajando num pau-de-arara
ou num precário navio. Um cara que chegou a um lugar para
ele desconhecido, mas que, sem se intimidar, procurou trabalho (e
o gaúcho, que ajudou a povoar todo o oeste do País,
é um exemplo disso). A combinação da cultura
dos emigrantes com as tradições locais funcionou bem
nesses três estados, mostrando que o Brasil é o verdadeiro
'melting pot', aquele panelão de misturas que os Estados
Unidos sempre viram, acertadamente, como uma fórmula para
o desenvolvimento.
DF,
SC, RS: dá para acreditar no Brasil. O que, convenhamos,
além de boa notícia, é um verdadeiro presente
de ano-novo.
|
Em
todas esquinas do mundo encontrei as esquinas de Porto Alegre.
Morar
na rua é opção, e resulta, sobretudo, de uma vida infeliz.5
Quase a metade dessas pessoas tem problemas familiares; 70% vivem sós,
uma situação para a qual colaboram o alcoolismo e as drogas...
Na manhã do domingo passado, passei sob o Viaduto Silva Só
[em Porto Alegre],
onde vivem muitos habitantes de rua. Detive-me a contemplar
um colchão. Era um colchão de espuma, velhíssimo, esburacado.
Sobre ele, um cobertor, igualmente velho, esburacado. Mas, e esse foi o
detalhe que me impressionou, e comoveu, o cobertor estava cuidadosamente
dobrado, caprichosamente dobrado. Pensei, então, no homem ou na mulher
que o havia dobrado. Ao fazê-lo, talvez num ato automático
e reminiscente de uma infância, quem sabe vivida de uma maneira melhor,
essa pessoa colocara um pouco de ordem em sua vida. Uma partícula
de ordem, por assim dizer, mas que deve ter contribuído para restaurar
algo da dignidade que existe em qualquer ser humano, por mais precária
que seja sua existência. Ao ver o cobertor dobrado, a pessoa deve
ter ficado satisfeita consigo mesma: eu não sou um traste completo,
eu sou alguém, ainda existe esperança para mim. Ou seja: sob
os viadutos de Porto Alegre, como sob as pontes de Paris, a vida resiste.
Logo
após o anúncio do resultado da eleição para
ocupar a cadeira número 31 da Academia Brasileira de Letras, perguntado
como se sentia o novo imortal, Scliar preferiu relembrar, em tom de brincadeira,
uma frase de cineasta Woody Allen:
'O que adianta ser imortal depois de morto'.
A
vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a
experiência enganadora, o julgamento difícil.
A inspiração é
o motor de arranque, mas precisa também do domínio da palavra
escrita.
Escritor é um cara que senta
e escreve.6
Reinventar-se,
o que significa isso? Em primeiro lugar, é preciso dizer que há
uma diferença entre inventar e descobrir. Descobrir é achar
uma coisa que já estava ali, aparentemente coberta ou oculta. Colombo
descobriu a América, mas a América existia, ainda que não
com esse nome, era habitada por muitos povos – só que os europeus
não sabiam disso, e glorificaram essa ignorância com a palavra
descoberta que, não sem boas razões, tem sido contestada,
como de resto a descoberta do Brasil. Inventar
é outra coisa. Inventar é criar algo que não existia,
um dispositivo, uma máquina, uma substância química.
Inventar exige conhecimento, exige criatividade, exige imaginação;
escritores são, de certa forma, inventores; eles fazem surgir personagens
e situações que não existiam. A
invenção pode ter contornos sombrios, como a guilhotina (bolada
por um médico, o Dr. Guillotin) e as câmaras de gás
dos campos de concentração. Mas, em geral, inventores são
objeto de nossa admiração, e o Nobel é um testemunho
disso. Já
reinventar é um termo que tem conotação irônica,
debochada: quando dizemos que fulano reinventou a roda estamos fazendo uma
gozação. Mas a partícula apassivadora 'se' dá
ao verbo um outro, e revolucionário, sentido; o termo, por assim
dizer, se reinventa. Reinventar-se
significa deixar para trás o nosso passado, significa transformar
nossa vida (nem que seja em pequenos detalhes) e isso pode ser um antídoto
decisivo contra o marasmo, contra o desânimo, contra a apatia. De
repente, somos outra pessoa. Um
choque? É. Um choque. Mas um choque benéfico. Reinventar-se:
eis aí um bom lema para o ano que se aproxima. Reinventar-se como
profissional, como cônjuge, como pai ou mãe ou filho ou filha,
reinventar-se como amigo, reinventar-se como cidadão ou cidadã,
reinventar-se como pessoa. Em um mundo em que a invenção é
um acontecimento contínuo, em que as mudanças se sucedem de
maneira vertiginosa, mexer um pouco com nós mesmos pode ser algo
muito bom, um grande começo de ano, um grande recomeço de
vida.
Ó
Scliar, ouça só:
A
estória do invólucro da banana
me tocou mais do que um pouco;
porém,
eu não posso dizer ,
senão
serei tachado de tarouco.
Gostei
da brincadeira de seu pai.
Com
bastante H2O e bom humor,
não
há pentelho que resmoneie ai
ou
que se queixe de qualquer dor.
Sim,
não há mal que sempre dure
nem
um bem que nunca se acabe.
Entretanto,
não há santo que cure
trelente
querente que tudo desabe.
Todos
nós somos doença e cura,
porém,
levamos a vida na sacanice.
Mas,
se a doença vem, dá paúra,
e
amaldiçoamos a nossa estultice.