Mikhail Bakunin
(Idéias e Reflexões)

 

 

 

Mikhail Bakunin

Mikhail Bakunin

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

Este estudo, basicamente estruturado a partir dos trabalhos Deus e o Estado e A Igreja do Estado, resume, sobre esta matéria, as idéias e as reflexões de Mikhail Aleksandrovitch Bakunin – o anarquista dos anarquistas.

 

Mais uma vez lembro: aceitar ou desaceitar, apoiar ou desapoiar, concordar ou discordar do pensamento de outrem é um privilégio da razão e do livre-arbítrio humanos. Rejeitar o que quer que seja liminarmente não é mais nem menos do que um preconceito excludente, e toda excludência que não pertença ao domínio da razão é boçalizante. Logo, por exemplo, excluir pela razão é uma coisa; excluir pela fé, outra inteiramente diferente. Mas, a efetiva exclusão do que quer que seja só pode se dar com segurança pela transrazão (transnoesis).

 

 

 

 

Breve Biografia de Bakunin

 

 

 

Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (Premukhimo, 30 de maio de 1814 – Berna, 1º de julho de 1876) foi um teórico político russo e um dos principais expoentes do Anarquismo em meados do século XIX. Nascido no Império Russo em uma família proprietária de terras de linhagem nobre, Bakunin passou sua juventude em Moscou estudando Filosofia e começou a freqüentar os círculos radicais, onde foi, em grande medida, influenciado pelas idéias do filósofo, escritor, jornalista e político russo Aleksandr Ivanovitch Herzen (1812 – 1870). Deixou a Rússia em 1842 mudando-se para Dresden (Alemanha), e depois para Paris (França), onde conheceu grandes pensadores políticos entre estes George Sand, Pierre-Joseph Proudhon e Karl Marx.

 

Foi deportado da França por discursar publicamente contra a opressão russa na Polônia. Em 1849, foi preso em Dresden por sua participação na Rebelião de 1848. Levado de volta ao Império Russo, foi aprisionado na Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo, permanecendo preso até 1857, quando foi exilado em um campo de trabalhos forçados na Sibéria. Conseguindo escapar do exílio na Sibéria, foi para o Japão, chegou aos Estados Unidos, e de lá retornou para Londres e por lá ficou durante um curto período em que, juntamente com Herzen, colaborou para o periódico Radical Kolokol (O Sino). Em 1863, Bakunin partiu da Inglaterra para se juntar à insurreição na Polônia, mas não conseguiu chegar ao seu destino permanecendo algum tempo na Suíça e na Itália.

 

Apesar de ser considerado um criminoso pelas autoridades religiosas e governamentais, já naquele período, Bakunin havia se tornado uma figura de grande influência para a juventude progressista e revolucionária, não só na Rússia, mas por toda a Europa. Em 1868, tornou-se membro da Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), uma federação de progressistas e organizações sindicais com seções em grande parte dos países europeus.

 

Em 1870, tomou parte na insurreição de Lyon, um dos principais precedentes da Comuna de Paris. Em 1872, Bakunin havia se tornado uma figura influente na AIT, fazendo com que, através de suas posições, o congresso ficasse dividido em duas tendências contrapostas: uma delas que se organizava em torno da figura de Marx, que defendia a participação em eleições parlamentares, e a outra, de caráter libertário, que se opunha a esta participação considerada não-revolucionária, e que se articulava em torno de Bakunin.

 

A posição defendida pelo círculo de Bakunin acabaria sendo derrotada em votação, e ao fim do congresso, Bakunin e muitos membros foram expurgados sob a acusação de manterem uma organização secreta dentro da Internacional. Os libertários, entre eles Bakunin responderam à acusação afirmando que o congresso fora manipulado, e que, por este motivo, organizariam sua própria conferência da Internacional em Santo-Imier, na Suíça, depois de 1872.

 

Bakunin manteve-se envolvido com muita atividade no âmbito dos movimentos revolucionários europeus. De 1870 à 1876, escreveu grande parte de sua obra, textos como Estadismo e Anarquia e Deus e o Estado. Apesar de sua saúde frágil, tentou tomar parte em uma insurreição em Bolonha, mas foi forçado a retornar para a Suíça disfarçado, para receber tratamento médico. Mais tarde, morando em Lugano, conviveu com Errico Malatesta, um teórico e ativista anarquista italiano.

 

No final de sua vida, com muitos problemas de saúde, foi levado da Itália para um hospital em Berna, onde morreu em 1876.

 

Bakunin é lembrado como uma das maiores figuras da história do Anarquismo e um oponente do Marxismo em seu caráter autoritário, especialmente das idéias de Marx de ditadura do proletariado. Ele segue sendo uma referência presente entre os anarquistas da contemporaneidade, entre estes, nomes como Avram Noam Chomsky, um lingüista, filósofo e ativista político estadunidense.

 

 

 

 

Idéias e Reflexões Bakuninianas

 

 

 

 

 

 

Três elementos ou três princípios fundamentais constituem, na história, as condições essenciais de todo desenvolvimento humano, coletivo ou individual: 1º) a animalidade humana; 2º) o pensamento; 3º) a revolta. À primeira corresponde propriamente a Economia social e privada; à segunda, a ciência; à terceira, a liberdade.

 

Sou um amante fanático da liberdade, considerando-a como o único espaço onde podem crescer e se desenvolver a inteligência, a dignidade e a felicidade dos homens; não esta liberdade formal, outorgada e regulamentada pelo Estado, mentira eterna que, em realidade, representa apenas o privilégio de alguns, apoiada na escravidão de todos. Só aceito uma única liberdade que possa ser realmente digna deste nome – a liberdade que consiste no pleno desenvolvimento de todas as potencialidades materiais, intelectuais e morais que se encontrem em estado latente em cada um.

 

Religião é demência coletiva.

 

Todos os ramos da ciência moderna – da verdadeira e desinteressada ciência concorrem para proclamar esta grande verdade, fundamental e decisiva: o mundo social, o mundo propriamente humano, a Humanidade, numa palavra, outra coisa não é senão o desenvolvimento supremo, a manifestação mais elevada da animalidade, pelo menos para nós e em relação ao nosso Planeta. Mas, como todo desenvolvimento implica necessariamente uma negação, a da base ou do ponto de partida, a Humanidade é, ao mesmo tempo e essencialmente, a negação refletida e progressiva da animalidade nos homens; e é precisamente esta negação, racional por ser natural, simultaneamente histórica e lógica, fatal como o são os desenvolvimentos e as realizações de todas as leis naturais no mundo, é ela que constitui e que cria o ideal o mundo das convicções intelectuais e morais, ou seja, as idéias.

 

Toda autoridade temporal provém diretamente da autoridade divina ou espiritual. Mas a autoridade é a negação da liberdade. Deus, ou melhor, a ficção de Deus, é a consagração de todas as autoridades que existem sobre a Terra, e estas não serão eliminadas até que se tenha extinguido a crença em um amo celeste.

 

Se Deus existe, o homem é escravo; mas, o homem pode e deve ser livre, pois Deus não existe.

 

Jeová, de todos os bons deuses adorados pelos homens, foi, certamente, o mais ciumento, o mais vaidoso, o mais feroz, o mais injusto, o mais sanguinário, o mais despótico e o maior inimigo da dignidade e da liberdade humanas.

 

No paraíso prometido, como se sabe, visto que é formalmente anunciado, haverá poucos eleitos. O resto – a imensa maioria das gerações presentes e futuras arderá eternamente no inferno. Enquanto isso, para nos consolar, Deus, sempre justo, sempre bom, entrega a Terra ao governo dos Napoleão III, Guilherme I, Ferdinando da Áustria e Alexandre de todas as Rússias.

 

É melhor a ausência de luz do que uma luz trêmula e incerta, servindo apenas para extraviar aqueles que a seguem.

 

Eu reverto a frase de Voltaire, e digo isto: se Deus realmente existisse, seria necessário aboli-Lo.1

 

Basta um amo no céu para que haja mil na Terra.

 

Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e passarão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disto não conhece a natureza humana.

 

Se Deus existisse, só haveria para Ele um único meio de servir à liberdade humana: seria o de cessar de existir.

 

A liberdade alheia é a minha, mas sem limites.

 

É próprio do privilégio e de toda posição privilegiada matar o espírito e o coração dos homens. O homem privilegiado, seja política, seja economicamente, é um homem depravado de espírito e de coração.

 

Se você pegar o mais ardente dos revolucionários e dar poder absoluto a ele, em um ano ele será pior do que o próprio czar.

 

Não creio nas constituições nem nas leis. A mais perfeita constituição não conseguiria me satisfazer. Necessitamos de algo diferente: inspiração, vida, um mundo sem leis, portanto, livre.

 

A Liberdade do outro estende a minha ao infinito.

 

É preciso que se compreenda que não existe liberdade sem igualdade e que a realização da maior liberdade na mais perfeita igualdade de direito e de fato – política, econômica e social ao mesmo tempo é a justiça.

 

As pessoas vão à igreja pelos mesmos motivos que vão à taverna: para se entorpecerem, para se esquecerem de sua miséria, para se imaginarem, de algum modo, livres e felizes.

 

Não há nada tão estúpido como a inteligência orgulhosa de si mesma.

 

Estamos convencidos de que o pior mal tanto para a Humanidade quanto para a verdade e o progresso é a Igreja. Poderia ser de outra forma? Pois não cabe à Igreja a tarefa de perverter as gerações mais novas e especialmente as mulheres? Não é ela que, através de seus dogmas, de suas mentiras, de sua estupidez e da sua ignomínia tenta destruir o pensamento lógico e a ciência? Não é ela que ameaça a dignidade do homem, pervertendo suas idéias sobre o que é bom e o que é justo? Não é ela que transforma os vivos em cadáveres, despreza a liberdade e prega a eterna escravidão das massas em benefício dos tiranos e dos exploradores? Não é esta mesma Igreja implacável que procura perpetuar o reino das sombras, da ignorância, da pobreza e do crime? Se não quisermos que o progresso seja, em nosso século, um sonho mentiroso, devemos acabar com a Igreja.

 

A paixão pela destruição é uma paixão criativa.2

 

Os teólogos dizem: essas coisas são mistérios insondáveis. Ao que respondemos: são absurdos imaginados por vós próprios. Começais por inventar o absurdo; depois, nos fazei dele a imposição como mistério divino, insondável e tanto mais profundo quando mais absurdo. É sempre o mesmo procedimento: creio porque é absurdo.

 

Quem quer, não a liberdade, mas o Estado, não deve brincar de revolução.

 

A emancipação econômica deve ser a mãe de todas as outras emancipações.

 

A existência de Deus implica a abdicação da razão e da justiça humanas. Ela é a negação da liberdade humana e resulta, necessariamente, em uma escravidão não somente teórica, mas prática.

 

A liberdade não será restituída à Humanidade e os verdadeiros interesses da sociedade – quaisquer que sejam os grupos, organizações sociais ou indivíduos que a compõem – só serão satisfeitos quando os Estados não mais existirem.

 

O Estado é um enorme matadouro, um vasto cemitério no qual, sob a sombra e o pretexto de abstração, todas as reais aspirações e forças ativas de um país se deixaram enterrar generosa e pacificamente.

 

A abolição da Igreja e do Estado deve ser a primeira e indispensável condição para a verdadeira libertação da sociedade; só depois que isto acontecer é que a sociedade poderá ser organizada de uma maneira diferente. Não de cima para baixo e segundo algum plano ideal sonhado por alguns sábios e eruditos, e menos ainda por decretos emanados de algum poder ditatorial ou ainda por uma assembléia nacional eleita por sufrágio universal. Como já demonstrei, um tal sistema levaria inevitavelmente à criação de um novo Estado e, conseqüentemente, à formação de uma aristocracia oficial, isto é, de uma classe de indivíduos que não teriam nada em comum com o povo e que começariam imediatamente a explorar e subjugar esse povo em nome do bem-estar geral ou para salvar o Estado.

 

A futura organização da sociedade deveria ser realizada de baixo para cima, pela livre associação e união dos operários; primeiro em associações, depois em comunas, em regiões, em países e, finalmente, em uma grande federação internacional e universal.3 Só assim poderá ser estabelecida a liberdade e a facilidade geral da nova ordem – uma ordem que, longe de querer negar, garante e tenta harmonizar os interesses dos indivíduos e da sociedade.

 

Enchendo seus bolsos e satisfazendo sua luxúria imunda, os defensores dos sistemas metafísicos teológicos se consolam com a idéia de que estão trabalhando para a glória de Deus, pela vitória da civilização e pela causa do proletariado.

 

A liberdade deve ser entendida no seu senso mais amplo e profundo como o destino do progresso histórico do homem.

 

Toda riqueza do progresso intelectual humano, moral e material, assim como a aparente independência do homem, é produto da vida em sociedade. Fora da sociedade, o homem não seria livre, e nem mesmo se tornaria um homem verdadeiro, isto é, um ser autoconsciente que sente, pensa e fala. Apenas a combinação da inteligência com o trabalho coletivo pode tirar o homem do estágio selvagem e animalesco que constitui sua primeira natureza, ou melhor, seu primeiro passo em direção ao progresso. Estamos seriamente convencidos de que a verdade de toda a vida humana, isto é, interesses, tendências, necessidades, ilusões e mesmo estupidez, assim como os atos de violência e de injustiça, toda ação que parece ser voluntária é apenas uma conseqüência das forças fatais na vida em sociedade. Não se pode admitir a idéia da independência mútua sem negar a influência recíproca da correlação de manifestações de natureza externa.

 

A superstição sempre deu lugar a assustadores azares que sempre terminaram em torrentes de sangue e lágrimas.

 

A grande maioria das pessoas vive em contradição consigo mesma e sob contínuas desinteligências. Geralmente, as pessoas não se dão conta disto, até que algum fato extraordinário as tire do seu sonambulismo habitual e as force a olhar para si e ao redor.4

 

Se a ordem é natural e possível no Universo, é porque o Universo não é governado por nenhum sistema criado anteriormente e imposto por um poder supremo. A hipótese teológica de uma legislação suprema leva a um absurdo evidente e à negação da ordem e da própria Natureza. As leis naturais são reais apenas enquanto forem inerentes à Natureza, isto é, enquanto não são fixadas por uma autoridade. Estas leis são somente simples manifestações ou modalidades descontínuas do desenvolvimento das coisas e a combinação de fatos variados, transitórios, porém reais. Juntos constituem o que denominamos Natureza. A inteligência humana e a ciência observaram estes fatos e os controlaram experimentalmente. Estão, reuniram estes fatos em um sistema e os denominaram leis. Mas a própria Natureza não tem leis.5 Ela age inconscientemente, representando em si própria a infinita variedade dos fenômenos, que surgem e se repetem de acordo com a necessidade. Graças a esta inevitabilidade de ação que a ordem universal pode existir. E, de fato, existe.

 

Tanto em política como na religião, os homens são apenas máquinas nas mãos dos exploradores. Mas, assaltantes e assaltados, opressores e oprimidos vivem lado a lado, governados por um punhado de indivíduos que devem ser considerados como os verdadeiros exploradores. É sempre o mesmo tipo de gente... que maltrata e oprime... Nos séculos XVII e XVIII até a Grande Revolução, assim como hoje, esta gente comandou a Europa e tudo funcionou como eles queriam. Cremos que sua dominação não pode mais continuar.

 

Se a Igreja é necessária para a salvação da alma, como afirmam os padres... o Estado é, por sua vez, necessário para a conservação da paz, da ordem e da justiça. Proclamam os dogmáticos de todas as classes: 'Sem a Igreja e o Estado não haveria civilização nem progresso'.

 

O povo, infelizmente, é ainda muito ignorante e mantido na ignorância pelos esforços sistemáticos de todos os Governos, que consideram isso, com muita razão, como uma das condições essenciais de seu próprio poder. Esmagado por seu trabalho quotidiano, privado de lazer, de intercâmbio intelectual, de leitura, enfim, de quase todos os meios e de uma boa parte dos estímulos que desenvolvem a reflexão nos homens, o povo aceita, na maioria das vezes, sem crítica e em bloco, as tradições religiosas. Elas o envolvem desde a primeira idade, em todas as circunstâncias de sua vida, artificialmente mantidas em seu seio por uma multidão de corruptores oficiais de todos os tipos, padres e leigos, elas se transformam entre eles em um tipo de hábito mental, freqüentemente mais poderoso do que seu bom senso natural.

 

Há uma categoria de pessoas que, se não crêem, devem, pelo menos, fazer de conta que sim. São todos os atormentadores, todos os opressores e todos os exploradores da Humanidade: padres, monarcas, homens de Estado, homens de guerra, financistas públicos e privados, funcionários de todos os tipos, soldados, policiais, carcereiros e carrascos, capitalistas, aproveitadores, empresários e proprietários, advogados, economistas, políticos de todas as cores, até o último vendedor de especiarias, todos repetirão em uníssono estas palavras de Voltaire: Se Deus não existisse, seria preciso inventá-Lo. É preciso uma religião para o povo. É a válvula de escape.

 

A antigüidade de uma crença, de uma idéia, longe de provar alguma coisa em seu favor, deve, ao contrário, torná-la suspeita.

 

Está constatado que todos os povos, em todas as épocas de sua vida, acreditaram e acreditam ainda em Deus. Disto, devemos concluir, simplesmente, que a idéia divina, emanada de nós mesmos, é um erro historicamente necessário no desenvolvimento da Humanidade.

 

O céu religioso nada mais é do que uma miragem onde o homem, exaltado pela ignorância e pela fé, encontra sua própria imagem, mas ampliada e invertida, isto é, divinizada.

 

A essência de todos os sistemas religiosos – que é empobrecimento é a escravização e o aniquilamento da Humanidade em proveito de uma divindade.

 

Incapaz de encontrar por si próprio a justiça, a verdade e a vida eterna, o homem só pode alcançar isto por meio de uma revelação divina. Mas quem diz revelação diz reveladores e legisladores inspirados pelo próprio Deus. E estes, uma vez reconhecidos como os representantes da divindade sobre a Terra, como os santos instituidores da Humanidade, eleitos pelo próprio Deus para dirigi-la em direção à via da salvação, exercem necessariamente um poder absoluto. Todos os homens lhes devem uma obediência passiva e ilimitada, pois contra a razão divina não há razão humana, e contra a justiça de Deus não há justiça terrestre que se mantenha. Escravos de Deus, os homens devem sê-lo também da Igreja e do Estado, enquanto este último for consagrado pela Igreja. Eis o que de todas as religiões que existem ou que existiram, o Catolicismo compreendeu melhor do que as outras, sem excetuar a maioria das antigas religiões orientais, as quais só abarcaram povos distintos e privilegiados, enquanto que o Catolicismo tem a pretensão de abarcar a Humanidade inteira.

 

A despeito dos metafísicos e dos idealistas religiosos, dos filósofos, dos políticos ou dos poetas, a idéia de Deus implica a abdicação da razão e da justiça humanas; ela é a negação mais decisiva da liberdade humana, e resulta necessariamente na escravidão dos homens, tanto na teoria quanto na prática.

 

Se Deus é, o homem é escravo. Ora, o homem pode e deve ser livre; portanto, Deus não existe.

 

Entendo por ciência absoluta a ciência realmente universal, que reproduziria idealmente, em toda a sua extensão e em todos os seus detalhes infinitos, o Universo, o sistema ou a coordenação de todas as leis naturais, manifestas pelo desenvolvimento incessante dos mundos. É evidente que esta ciência, objeto sublime de todos os esforços do espírito humano, jamais se realizará em sua plenitude absoluta.

 

Todas as religiões são cruéis, todas são fundadas sobre o sangue, visto que todas repousam principalmente sobre a idéia do sacrifício, isto é, sobre a imolação perpétua da Humanidade à insaciável vingança da divindade. Neste sangrento mistério, o homem é sempre a vítima, e o padre, homem também, mas homem privilegiado pela graça, é o divino carrasco. Isto nos explica porque os padres de todas as religiões, os melhores, os mais humanos, os mais doces, têm quase sempre no fundo de seu coração – senão no coração, pelo menos em sua imaginação, em seu espírito – alguma coisa de cruel e de sanguinário.

 

Rejeito toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencido de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada.

 

Na posição do padre católico, uma dupla contradição. Inicialmente, a da doutrina de abstinência e de renúncia às tendências e às necessidades positivas da natureza humana, tendências e necessidades que, em alguns casos individuais, sempre muito raros, podem ser continuamente afastadas, reprimidas e mesmo completamente eliminadas pela influência constante de alguma poderosa paixão intelectual e moral, que, em certos momentos de exaltação coletiva, podem ser esquecidas e negligenciadas, por algum tempo, por uma grande quantidade de homens ao mesmo tempo, mas que são tão profundamente inerentes à nossa natureza que acabam sempre por retomar seus direitos, de forma que, quando não são satisfeitas de maneira regular e normal, são finalmente substituídas por satisfações daninhas e monstruosas. É uma lei natural, e, por conseqüência, fatal, irresistível, sob a ação funesta da qual caem inevitavelmente todos os padres católicos e especialmente os da Igreja Católica Romana.6

 

Somente a ação espontânea do povo pode criar a liberdade.

 

Há somente dois meios de convencer as massas da bondade de uma instituição social qualquer. O primeiro, o único real, mas também o mais difícil de empregar – porque implica a abolição do Estado, isto é, a abolição da exploração politicamente organizada da maioria por uma minoria qualquer – seria a satisfação direta e completa das necessidades e das aspirações do povo, o que equivaleria à liquidação da existência da classe burguesa e, mais uma vez, à abolição do Estado. E, pois, inútil falar disso. O outro meio, ao contrário, funesto somente ao povo, precioso ao bem-estar dos privilegiados burgueses, não é outro senão a religião. É a eterna miragem que leva as massas à procura dos tesouros divinos, enquanto que, muito mais astuta, a classe governante se contenta em dividir entre seus membros – muito desigualmente, por sinal, e dando cada vez mais àquele que mais possui – os miseráveis bens da terra e os despojos do povo, inclusive, naturalmente, a liberdade política e social deste.

 

Não é nada difícil provar, com a história na mão, que a Igreja, que todas as Igrejas, católicas e não católicas, ao lado de sua propaganda espiritualista, provavelmente para acelerar e consolidar seu sucesso, jamais negligenciaram de organizar grandes companhias para a exploração econômica das massas, sob a proteção e a bênção direta e especial de uma divindade qualquer; que todos os Estados que, em sua origem, como se sabe, nada mais foram, com todas as suas instituições políticas e jurídicas e suas classes dominantes e privilegiadas, senão sucursais temporais destas diversas Igrejas, só tiveram igualmente por objeto principal esta mesma exploração em proveito das minorias laicas, indiretamente legitimadas pela Igreja; enfim, que, em geral, a ação do bom Deus e de todas as fantasias divinas sobre a Terra finalmente resultaram, sempre e em todos os lugares, na fundação do materialismo próspero do pequeno número sobre o idealismo fanático e constantemente faminto das massas.

 

A imensa vantagem da ciência positiva sobre a teologia, a metafísica, a política e o direito jurídico consiste no seguinte: no lugar das abstrações enganosas e funestas, pregadas por estas doutrinas, ela apresenta abstrações verdadeiras, que exprimem a natureza geral e a lógica das coisas – as relações e as leis gerais de seu desenvolvimento.

 

A única missão da ciência é iluminar o caminho. Somente a vida, liberta de todos os seus entraves governamentais e doutrinários, e devolvida à plenitude de sua ação, pode criar.

 

Se Deus, por inteiro, pudesse se alojar em cada homem, então, cada homem seria Deus. Teríamos uma grande quantidade de Deuses, cada um se achando limitado pelos outros, mas nem por isso menos infinito, contradição que implicaria necessariamente a destruição mútua dos homens, a impossibilidade de que existisse mais do que um.7

 

 

 

Não olhemos jamais para trás; olhemos sempre para a frente. À frente está nosso Sol, nossa salvação. Se nos é permitido, se é mesmo útil e necessário nos virarmos para o estudo de nosso passado, é apenas para constatar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que fizemos e o que nunca mais deveremos fazer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Notas:

1. Voltaire é o pseudônimo do poeta, ensaísta, dramaturgo, filósofo e historiador iluminista francês François-Marie Arouet (Paris, 21 de novembro de 1694 – 30 de maio de 1778). A frase de Voltaire contestada por Bakunin é: Se Deus não existisse, seria preciso inventá-Lo.

2. Particularmente, se esta sentença for lida misticamente, ela faz e tem um sentido estupendo, pois só destruindo nossas iniqüidades poderemos pensar em começar a dignamente construir nosso Deus Interno; antes, não.

3. Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – Königsberg, 12 de fevereiro de 1804), no século XVIII, escreveu a obra Pela Paz Perpétua (proposta de constituição republicana fundamentada em três princípios: liberdade dos membros de uma sociedade enquanto homens, dependência enquanto súditos e igualdade enquanto cidadãos). Em sua obra mais lida e mais influente – Crítica da Razão Pura – Kant afirmou: Só a crítica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que se podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o cepticismo, que são sobretudo perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no público. Aproveito esta nota para, mais uma vez, citar o o imperativo categórico kantiano: Age de tal modo que a máxima da tua ação possa se tornar princípio de uma legislação universal.

4. E, se o olhar for sincero, é possível que algo mais sutil, que Bakunin não compreendeu, possa acontecer.

5. Aqui, devo discordar. O que sustenta e mantém o Universo é movimento, sistema e ordem. E movimento, sistema e ordem só podem prevalecer como tais se estiverem regulados e se manifestarem sob a égide de leis eternas e imutáveis, senão o fudelhufas de cagahouse ultrapassaria o poder da imaginação mais fértil. Agora, de maneira geral, o ser humano quando descobre uma destas leis (lei-filhote de uma Lei Universal) a usa em benefício próprio, normalmente de forma egoísta e, muitas vezes, assassina. Basta um exemplo: a descoberta das leis da radioatividade, que são um conjunto de leis-filhotes da Lei Universal, acabou desembocando na fabricação de artefatos nucleares, que, na Segunda Grande Guerra, devastaram Hiroshima e Nagazaki. Hoje, há submarinos nucleares – entenda-se: um único submarino – com poder de destruição maior do que todo o arsenal bélico usado na Segunda Guerra. Como há diversos submarinos destes... Na pictórica animação mais abaixo, da Lei Universal derivam leis-filhotes (La, Lb, Lc, Ld, Le, Lf e Lg), que, por sua vez, geram outras leis-filhotes (Lh, Li, Lj, Lk, Ll, Lm e Ln), e assim por diante. É mais ou menos assim: x2 x3 x4 x5, mas a base é a mesma. Seja como for, Bakunin, em outro passo, afirma: A liberdade do homem consiste unicamente nisto: ele obedece às leis naturais porque ele próprio as reconheceu como tais, não porque elas lhe foram impostas exteriormente, por uma vontade estranha, divina ou humana, coletiva ou individual, qualquer. Em outra passagem, Bakunin assevera: Reconhecemos, pois, a autoridade absoluta da ciência porque ela tem como objeto único a reprodução mental, refletida e tão sistemática quanto possível, das leis naturais inerentes à vida material, intelectual e moral, tanto do mundo físico quanto do mundo social, sendo estes dois mundos, na realidade, um único e mesmo mundo natural. Fora desta autoridade exclusivamente legítima, pois que ela é racional e conforme à liberdade humana, declaramos todas as outras autoridades mentirosas, arbitrárias e funestas.

 

 

Lei Universal e Leis-filhotes

 

 

6. Em 20 de maio de 2009, o Jornal do Brasil publicou a seguinte matéria (editada por mim): Milhares de crianças sofreram abusos sexuais sistemáticos em orfanatos, escolas e reformatórios dirigidos pela Igreja Católica na Irlanda, revela uma investigação de quase dez anos divulgada quarta-feira em Dublin. De acordo com a minuciosa pesquisa, os abusos em instituições católicas para crianças irlandesas foram endêmicos entre 1930 e 1990. 'As autoridades religiosas sabiam que os abusos sexuais eram um problema persistente nas organizações religiosas masculinas', acusa o documento. O relatório final de 2.600 páginas, elaborado pela Comissão de Investigação Sobre Abusos às Crianças, foi divulgado pelo juiz Sean Ryan, da Alta Corte. Segundo o texto, mais de 30 mil crianças consideradas criminosas ou vindas de famílias 'não-funcionais' – o que inclui mães solteiras – foram enviadas para a rede de escolas, reformatórios, orfanatos e abrigos no início da década de 1930 até os anos 1990, quando a última destas instituições foi fechada. A comissão ouviu os depoimentos de milhares de pessoas, atualmente com idades entre 50 e 70 anos, que estudaram em mais de 250 instituições dirigidas pela Igreja. O relatório afirma que as crianças eram molestadas e abusadas nas escolas para garotos, dirigidas pela ordem dos Irmãos Cristãos, e que os supervisores aplicavam regras que aumentavam o risco deste tipo de crime. As instituições para garotas, chefiadas pelas Irmãs da Misericórdia, registraram menos casos de abusos sexuais, mas foram freqüentes as denúncias de humilhação para que se sentissem desvalorizadas... Enquanto as vítimas pediram durante anos que suas experiências fossem reveladas para que outras crianças irlandesas não sofressem mais com tal tratamento, a Igreja Católica tentou repetidamente impedir a publicação do relatório. Autoridades religiosas do País rejeitaram as alegações como exageros e mentiras, e testemunharam à comissão dizendo que a responsabilidade pelos abusos é de pessoas falecidas há anos. O documento divulgado afirma ainda que as crianças que sofriam os abusos não tinham como denunciar o fato de maneira segura às autoridades, principalmente os abusos sexuais de funcionários da Igreja e de outros colegas de instituições para garotos...

Fonte:

http://jbonline.terra.com.br/pextra/
2009/05/20/e20058301.asp

7. Aqui, devo discordar novamente de Bakunin. O processo Místico-iniciático da construção pessoal do Deus de nosso Coração leva à compreenção-realização dos Deuses de Todos os Corações e à certeza interior de que somos todos um. Neste ponto, atingido este ponto, não há necessariamente a destruição mútua dos homens; pelo contrário, há, sim, fraternidade consciente do Iniciado com todos. Sem exceção.

 

 

 

 

Páginas da Internet consultadas:

http://ateus.net/artigos/
critica/a_igreja_e_o_estado.php

http://ateus.net/artigos/
critica/deus_e_o_estado.php

http://pt.wikipedia.org/wiki/Mikhail_Bakunin

http://pt.wikipedia.org/wiki/
Immanuel_Kant#A_paz_perpetua

http://ateus.net/ebooks/

http://pt.wikiquote.org/wiki/
Mikhail_Aleksandrovitch_Bakunin

 

Música de fundo:

For Once In My Life
Compositores: Ron Miller & Orlando Murden
Intérprete: Frank Sinatra

Fonte:

http://www.umnovoencontromusical.com/
internacionais-F.htm