Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Menino de Rua

 

 

 

Anteontem, uma quarta-feira como outra qualquer, 19 de setembro de 2007, à noitinha, por volta das sete horas, estacionei meu carro em um parqueamento da Rua Professor Gabizo, na Tijuca, Rio de Janeiro, e me dirigi para o Instituto de Desenvolvimento Humano e Gestão Empresarial (IDHGE), onde ministro algumas aulas de Metodologia da Pesquisa e atendo os alunos dos diversos MBAs do Instituto.

Já na calçada, a poucos metros do Instituto, fui abordado por um garoto de uns 12 anos, negro como um tição, mas lindo como o nascer do Sol. Reproduzirei, a seguir, o diálogo que mantive com o garoto.

Tio — falou o garoto — to com fome. Será que o senhor podia me dar R$ 7,50 pra eu comer um sanduíche e tomar um refresco?

Olhei para o garoto e fiquei pasmo. O garoto era de uma beleza incomum, negro como um tição, mas lindo como o nascer do Sol. Passei meu braço direito sobre seus ombros, e, caminhando em direção ao Instituto, falei: — Tá estudando, garoto?

O garoto respondeu: — Não to não senhor. To com fome.

Mas por que você não está estudando? — Insisti.

Eu moro na rua, tio. Fugi de casa porque meu padrasto me batia e me obrigava a levar dinheiro pra casa pra ele beber. Me dá um dinheiro aí, tio. Eu to com fome. Só R$ 7,50 pra eu comer um sanduíche e tomar um refresco.

E sua mãe? O que ela dizia? — Continuei.

Não liga — respondeu o garoto com a tristeza do Universo estampada em seus olhos. E mais uma vez: — Eu to com fome.

Penalizado, disse ao garoto: Vou te dar a grana. Mas você precisa estudar. A única maneira de você sair da rua é estudando. Talvez você não me veja mais, mas se lembre disto: se você não estudar, vai continuar na rua pedindo e sem ter nada seu. Entendeu?

Entendi, sim senhor. Tio, dá um dinheiro aí. To com fome.

À essa altura, já estávamos na porta do IDHGE, e eu acabei dando R$ 9,00 para o garoto. Ele agradeceu e, naquela noite de quarta-feira como outra qualquer, saiu em disparada, sumindo como um fantasma, da mesma forma que, de repente, como um fantasma, apareceu em minha vida. Nessas ocasiões, que não são raras no Rio de Janeiro, sempre fico remoendo que poderia ter feito um pouco mais. Isso tudo é mesmo uma merda sem-fim. Mas não deixa de ser uma merda boa, porque coloca nos eixos nossas vaidades e nossas injustificadas presunções. Mesmo que momentaneamente, já é alguma coisa.

Depois fiquei pensando: será que esse garoto, negro como um tição, mas lindo como o nascer do Sol, encontraria seu caminho? Em meio a esses pensamentos, me emocionei e chorei um pouquinho. Penso que sei a origem e o porquê de toda essa miséria, mas não consigo deixar de me emocionar e de chorar todas as vezes que presencio coisas como essas. E a lengalenga que prego é sempre a mesma: — Tá estudando? Você precisa estudar pra se libertar... Se você não estudar não vai sair da rua... Tá entendendo?

Todos nós, sem exceção, somos responsáveis por tudo. Transferir qualquer responsabilidade é totalmente impossível. Até podemos, se quisermos, se nossa crueldade chegar a tanto, por medo, por nojo, ou pelo que seja, enxotar, escorraçar, um sem-teto, um sem-nada, um menino de rua. Mas quem faz isso é menos do que um amarelão Ascaris lumbricoides; não é sequer digno do seu próprio cagalhão. Não há seres de 1ª classe e seres de 2ª classe; não há irmãos de 1ª classe e irmãos de 2ª classe. Um borra-botas não é menos importante do que um bem-arrumadinho e bem vestidinho. O que é mesmo um borra-botas? O que é mesmo um bem-arrumadinho e bem vestidinho?

Todos nós nascemos nus, meio que analfabetos e meio que surdos-mudos para a vida, e sem porra alguma de útil para contar alguma estória que preste para os outros; só trazemos nosso passado – muitas vezes comprometedor – como bagagem. Se tivermos vivido uma vida inútil e preconceituosa, voltaremos mais nus do que quando chegamos, e com menos porra alguma com a qual nascemos. Ao voltarmos, é verdade, podemos, se nos esforçamos para isso, ter acrescentado alguma coisa boa à nossa bagagem pessoal, mas alguns bestalhões – os que viveram inutilmente e preconceituosamente – voltarão mesmo com menos e com a bagagem mais pesada e mais fedorenta, que terão que carregar sozinhos! Somos todos Um e sujeitos às mesmas Leis Universais. Sem exceção.

Quem escolhe e faz esse tipo de separação, entre coisas e seres de 1ª classe e coisas e seres de 2ª classe, e também estupidezas do tipo que americano é melhor do que muçulmano, é um escroto de marca maior. Isso para não chamar esse engomadinho-limpinho-engravatado que age desta maneira de fidumégua ou de coisa pior e mais apropriada. Somos todos Um e somos responsáveis por tudo. Melhor? Pior? Sua Excelência? Menino de rua? Mais importante? Menos importante? Eu? Você? O outro? Tempo? Espaço? Vácuo? Não existe vácuo no Universo. Ou melhor: há vácuo, sim; nos corações desses filhos de uma égua. Vácuo de amor; vácuo de solidariedade; vácuo de compreensão.

Como diz a letra de Disparada, se você não concordar, não posso me desculpar.

 

Não escrevo pragradar.

Sem jamais me desculpar,

vou insistir, escrever e digitar

até a minha voz calar.

 

Não escrevo pramimar.

Se acaso você não perfilhar,

dê um jeitinho de mudar.

Vou escrever até passar.

 

Não escrevo praquietar.

Não posso deixar de lavrar.

Meu encargo é ensinar;

minha empreitada é auxiliar.

 

Se você não concordar,

não posso me desculpar.

 

 

 

O Vácuo dos Corações
dos Filhos de uma Égua

 

 

 

 

 

 

Música de fundo: Disparada

Letra: Geraldo Vandré
Música: Theo de Barros
Intérprete: Jair Rodrigues

A matéria a seguir, ligeiramente editada, é fundamentalmente de autoria de Dárcio Fragoso.

'Disparada' foi uma das principais composições da época dos festivais de música popular brasileira. Foi a vencedora do Festival da TV Record, em 1965, dividindo o primeiro lugar com 'A Banda', de Chico Buarque de Holanda, quando houve verdadeira 'disputa com apostas' em todo o País entre os adeptos de uma e de outra composição.

O autor da letra de 'Disparada', Geraldo Vandré (nome artístico de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias), nascido na Paraíba, mas educado no Rio de Janeiro, vivenciou todo o período do golpe militar de 1964, e, ainda muito moço, esteve ligado aos meios estudantis do Rio de Janeiro. Era uma época de nacionalismo exacerbado; e os jovens, com um pouco de cultura e de sensibilidade, não se conformavam com as injustiças sociais imperantes no Brasil. Os meios musicais e literários e as lideranças intelectuais do País não estavam imunes aos movimentos sociais visando melhorias para as camadas mais pobres da população.

Geraldo Vandré, participante dos movimentos estudantis, também deu sua contribuição com composições muito significativas. Além de 'Disparada', compôs 'Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores' (um hino de resistência contra o Governo Militar), ambas consideradas duas obras-primas entre as músicas de cunho social da música popular brasileira. Ainda em 1968, com o estuporado AI-5, Vandré foi obrigado a se exilar. Depois de passar alguns dias escondido na fazenda da viúva de Guimarães Rosa (1908 - 1967), morto no ano anterior, o compositor partiu para o Chile e, de lá, para a França. Voltou ao Brasil em 1973.

 

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer.

 

Em 'Disparada', Vandré faz uma maravilhosa comparação entre a exploração das classes sociais pobres pelas mais ricas e a exploração das boiadas pelos boiadeiros, entre a maneira de se lidar com gado e a maneira de se lidar com gente. A música, composta por Theo de Barros, complementou de forma perfeita os versos de Vandré, e a interpretação de Jair Rodrigues deu forma final muito bonita aos versos e à música. Logo após os anos de ouro dos festivais, Geraldo Vandré afastou-se dos amigos, passando a viver espartana e isoladamente. Theo de Barros continuou sua brilhante carreira de músico e de arranjador, tendo se dedicado principalmente a 'jingles' comerciais.

Fontes:

http://www.paixaoeromance.com/
60decada/disparada/hdisparada.htm

http://pt.wikipedia.org/
wiki/Geraldo_Vandr%C3%A9

 

Observação 1:

A animação em flash Menino de Rua foi produzida a partir da obra de mesmo nome em carvão sobre papel canson (medidas: 26 x 21 cm) disponibilizada na página:

http://arteedesespero.com/

 

Observação 2:

A animação em flash O Vácuo dos Corações dos Filhos de uma Égua foi produzida a partir de uma fotografia digital disponibilizada na página:

http://art.gnome.org/backgrounds/abstract/2218