Anteontem,
uma quarta-feira como outra qualquer, 19 de setembro de 2007, à noitinha,
por volta das sete horas, estacionei meu carro em um parqueamento da Rua
Professor Gabizo, na Tijuca, Rio de Janeiro, e me dirigi para o Instituto
de Desenvolvimento Humano e Gestão Empresarial (IDHGE), onde ministro
algumas aulas de Metodologia da Pesquisa e atendo os alunos dos diversos
MBAs do Instituto.
Já
na calçada, a poucos metros do Instituto, fui abordado por um garoto
de uns 12 anos, negro como um tição, mas lindo como o nascer
do Sol. Reproduzirei, a seguir, o diálogo que mantive com o garoto.
Tio
— falou o garoto — to com fome. Será que o senhor
podia me dar R$ 7,50 pra eu comer um sanduíche e tomar um refresco?
Olhei
para o garoto e fiquei pasmo. O garoto era de uma beleza incomum, negro
como um tição, mas lindo como o nascer do Sol. Passei meu
braço direito sobre seus ombros, e, caminhando em direção
ao Instituto, falei: — Tá estudando, garoto?
O
garoto
respondeu: — Não to não senhor. To com fome.
—
Mas por que você não está estudando?
— Insisti.
—
Eu moro na rua, tio. Fugi de casa porque meu
padrasto me batia e me obrigava a levar dinheiro pra casa pra ele beber.
Me dá um dinheiro aí, tio. Eu to com fome. Só R$ 7,50
pra eu comer um sanduíche e tomar um refresco.
—
E sua
mãe? O que ela dizia? — Continuei.
—
Não liga —
respondeu o garoto com a tristeza do Universo estampada em seus olhos. E
mais uma vez: — Eu to com fome.
—
Penalizado, disse ao garoto: Vou te dar
a grana. Mas você precisa estudar. A única maneira de você
sair da rua é estudando. Talvez você não me veja mais,
mas se lembre disto: se você não estudar, vai continuar na
rua pedindo e sem ter nada seu. Entendeu?
—
Entendi, sim senhor. Tio, dá um dinheiro
aí. To com fome.
À
essa altura, já estávamos na porta do IDHGE,
e eu acabei dando R$ 9,00 para o garoto. Ele agradeceu e, naquela noite
de quarta-feira como outra qualquer, saiu em disparada, sumindo como um
fantasma, da mesma forma que, de repente, como um fantasma, apareceu em
minha vida. Nessas ocasiões, que não são raras no Rio
de Janeiro, sempre fico remoendo que poderia ter feito um pouco mais. Isso
tudo é mesmo uma merda sem-fim. Mas não deixa de ser uma merda
boa, porque coloca nos eixos nossas vaidades e nossas injustificadas presunções.
Mesmo que momentaneamente, já é alguma coisa.
Depois
fiquei pensando: será que esse garoto, negro como um tição,
mas lindo como o nascer do Sol, encontraria seu caminho? Em meio a esses
pensamentos, me emocionei e chorei um pouquinho. Penso que sei a origem
e o porquê de toda essa miséria, mas não consigo deixar
de me emocionar e de chorar todas as vezes que presencio coisas como essas.
E a lengalenga que prego é sempre a mesma: — Tá
estudando? Você precisa estudar pra se libertar... Se você não
estudar não vai sair da rua... Tá entendendo?
Todos
nós, sem exceção, somos responsáveis por tudo.
Transferir qualquer responsabilidade é totalmente impossível.
Até podemos, se quisermos, se nossa crueldade chegar a tanto, por
medo, por nojo, ou pelo que seja, enxotar, escorraçar, um sem-teto,
um sem-nada, um menino de rua. Mas quem faz isso é menos do que um
amarelão Ascaris lumbricoides; não é sequer
digno do seu próprio cagalhão. Não há seres
de 1ª classe e seres de 2ª classe; não há irmãos
de 1ª classe e irmãos de 2ª classe. Um borra-botas não
é menos importante do que um bem-arrumadinho e bem vestidinho. O
que é mesmo um borra-botas? O que é mesmo um bem-arrumadinho
e bem vestidinho?
Todos
nós nascemos nus, meio que analfabetos e meio que surdos-mudos para
a vida, e sem porra alguma de útil para contar alguma estória
que preste para os outros; só trazemos nosso passado – muitas
vezes comprometedor – como bagagem. Se tivermos vivido uma vida inútil
e preconceituosa, voltaremos mais nus do que quando chegamos, e com menos
porra alguma com a qual nascemos. Ao voltarmos, é verdade, podemos,
se nos esforçamos para isso, ter acrescentado alguma coisa boa à
nossa bagagem pessoal, mas alguns bestalhões – os que viveram
inutilmente e preconceituosamente – voltarão mesmo com menos
e com a bagagem mais pesada e mais fedorenta, que terão que carregar
sozinhos! Somos todos Um e sujeitos às mesmas Leis Universais. Sem
exceção.
Quem
escolhe e faz esse tipo de separação, entre coisas e seres
de 1ª classe e coisas e seres de 2ª classe, e também estupidezas
do tipo que americano é melhor do que muçulmano, é
um escroto de marca maior. Isso para não chamar esse engomadinho-limpinho-engravatado
que age desta maneira de fidumégua ou de coisa pior e mais
apropriada. Somos todos Um e somos responsáveis por tudo. Melhor?
Pior? Sua Excelência? Menino de rua? Mais importante? Menos importante?
Eu? Você? O outro? Tempo? Espaço? Vácuo? Não
existe vácuo no Universo. Ou melhor: há vácuo, sim;
nos corações desses filhos de uma égua. Vácuo
de amor; vácuo de solidariedade; vácuo de compreensão.
Como
diz a letra de Disparada, se você não concordar,
não posso me desculpar.
Não
escrevo pragradar.
Sem
jamais me desculpar,
vou insistir, escrever e digitar
até
a minha voz calar.
Não
escrevo pramimar.
Se acaso você não perfilhar,
dê
um jeitinho de mudar.
Vou
escrever até passar.
Não
escrevo praquietar.
Não posso deixar de lavrar.
Meu
encargo é ensinar;
minha
empreitada é
auxiliar.
Se
você não concordar,
não
posso me desculpar.
O
Vácuo dos Corações
dos Filhos de uma Égua
Música
de fundo:
Disparada
Letra:
Geraldo Vandré
Música: Theo de Barros
Intérprete: Jair Rodrigues
A matéria
a seguir, ligeiramente editada, é fundamentalmente de autoria de
Dárcio Fragoso.
'Disparada'
foi uma das principais composições da época dos festivais
de música popular brasileira. Foi a vencedora do Festival
da TV Record, em 1965, dividindo o primeiro lugar com 'A Banda', de Chico
Buarque de Holanda, quando houve verdadeira 'disputa com apostas' em todo
o País entre os adeptos de uma e de outra composição.
O autor da letra de 'Disparada', Geraldo Vandré (nome artístico
de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias), nascido na Paraíba, mas
educado no Rio de Janeiro, vivenciou todo o período do golpe militar
de 1964, e, ainda muito moço, esteve ligado aos meios estudantis
do Rio de Janeiro. Era uma época de nacionalismo exacerbado; e os
jovens, com um pouco de cultura e de sensibilidade, não se conformavam
com as injustiças sociais imperantes no Brasil. Os meios musicais
e literários e as lideranças intelectuais do País não
estavam imunes aos movimentos sociais visando melhorias para as camadas
mais pobres da população.
Geraldo Vandré, participante dos movimentos estudantis, também
deu sua contribuição com composições muito significativas.
Além de 'Disparada', compôs 'Pra Não Dizer Que Não
Falei Das Flores' (um hino de resistência contra o Governo Militar),
ambas consideradas duas obras-primas entre as músicas de cunho social
da música popular brasileira. Ainda em 1968, com o estuporado AI-5,
Vandré foi obrigado a se exilar. Depois de passar alguns dias escondido
na fazenda da viúva de Guimarães Rosa (1908 - 1967), morto
no ano anterior, o compositor partiu para o Chile e, de lá, para
a França. Voltou ao Brasil em 1973.
Vem,
vamos embora
Que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer.
Em 'Disparada', Vandré faz uma maravilhosa comparação
entre a exploração das classes sociais pobres pelas mais ricas
e a exploração das boiadas pelos boiadeiros, entre a maneira
de se lidar com gado e a maneira de se lidar com gente. A música,
composta por Theo de Barros, complementou de forma perfeita os versos de
Vandré, e a interpretação de Jair Rodrigues deu forma
final muito bonita aos versos e à música. Logo após
os anos de ouro dos festivais, Geraldo Vandré afastou-se dos amigos,
passando a viver espartana e isoladamente. Theo de Barros continuou sua
brilhante carreira de músico e de arranjador, tendo se dedicado principalmente
a 'jingles' comerciais.
Fontes:
http://www.paixaoeromance.com/
60decada/disparada/hdisparada.htm
http://pt.wikipedia.org/
wiki/Geraldo_Vandr%C3%A9
Observação
1:
A animação
em flash Menino de Rua foi produzida a partir da obra de mesmo
nome em carvão sobre papel canson (medidas: 26 x 21 cm) disponibilizada
na página:
http://arteedesespero.com/
Observação
2:
A animação
em flash O Vácuo dos Corações dos Filhos
de uma Égua foi produzida a partir de uma fotografia digital
disponibilizada na página:
http://art.gnome.org/backgrounds/abstract/2218