O MENINO

 

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga


 

 

 

 


O menino que, um dia, poderá ser o Menino!1

 

 

 

 

Capítulo I
Quem é o Menino?

 

 

 

Mas, por fim, quem é esse menino? — Perguntei.

 

Meu Irmão olhou para mim, e complacentemente esclareceu: — Esse menino, movido por um Amor desconhecido da imensa maioria dos seres humanos, projetou sua Consciência para a Terra para cumprir uma importante e santa missão ligada à evolução da Humanidade. Mas, em virtude de sua pouca idade, ele ainda não tem consciência de quem é e do que deverá fazer no futuro. Em seus nove anos, por assim dizer, é um menino comum. Quase como qualquer outro. Só que já manifesta poderes, digamos, como é dito hoje, paranormais ou psicotrônicos inusuais que não consegue controlar, e, às vezes, usa esses poderes para fazer coisas estrambólicas e provocar efeitos terríveis. Você precisa compreender que os Grandes Iniciados, os Hierofantes e os Avatares não são propriamente deuses e não nascem milagrosamente já prontos e acabados. Precisam recordar quem são, devem ser treinados durante anos e necessitam receber diversas Iniciações. E, em uma projeção consciente para uma Dimensão vibratoriamente inferior à sua original, até que possam ter domínio total de suas faculdades latentes e conatas, podem eventualmente ser ruinosos e se tornar perigosíssimos, pois, como não poderia deixar de ser, são constrangidos pela multiplicidade de vibrações do corpo planetário ao qual se projetaram. Foi assim que, em consórcio com outros fatores e com outras peculiaridades, na noite do tempo, surgiu a Grande Loja Negra, que engendrou a Oitava Esfera e cooptou milhares de inocentes úteis e de acólitos, para desencaminhar e atrair os fracos e os descuidados, tanto na Terra quanto em outros sistemas de outros Planos. Todos os Irmãos que compõem esta Loja, hoje nas sombras, não resistiram aos apelos da mundanidade. Por vaidade e aspiração de poder, basicamente, cederam e se afastaram da Santa LLuz. Não há, assim, no Universo, um demônio fabricado, consciente ou inconscientemente, que não esteja associado à esta Loja Negra e aos Irmãos das Sombras. Então, seres como esse menino, mesmo que sejam espiritualmente avançadíssimos e que não tenham tendências negrejantes, são capazes, por exemplo, de restaurar a saúde e de atuar em consonância com o Summum Bonum, como também, temporariamente, são suscetíveis de provocar moléstias gravíssimas e até de causar desarmonias planetárias. Suas emoções ainda são descontroladas, e, se alguma coisa os aborrece ou se eles se sentem ameaçados, podem produzir desatinos assustadores e impensáveis. Então, não julgue o menino pelo seu comportamento infantil, inconsciente e, eventualmente, inadequado. O que anda fazendo agora haverá de educativamente reciprocar. Como qualquer um. Não há aquele que esteja acima das Leis Cósmicas. Elas, para tudo e para todos, sempre se cumprem de forma retributiva e educacional, ainda que, na maioria das vezes, sem a devida e desejável consciência objetiva dos seres-no-mundo. O maior empenho do homem deveria ser em direção à compreensão, pois só ela poderá libertá-lo e evolucioná-lo. A incompreensão é aprisionadora e retrocedente, e anda de mãos dadas com a ignorância – que é irmã gêmea do preconceito.

 

 

 


Reciprocidade Cósmica Inexorável e Educativa

 

 

Hum! — murmurei, e não perguntei mais nada. Meu Irmão também não disse mais nada e não tocou neste assunto por vários meses. E eu acabei tirando o menino dos meus pensamentos.

 

 

 

 

 

 

Capítulo II
A Viagem

 

 

 

O tempo passou. Um dia, no comecinho do outono de um determinado ano da segunda metade do século XX, meu Irmão mandou me chamar à sua cela e comunicou: — Amanhã faremos uma viagem. Prepare suas coisas. É um pouco longa e deverá durar dois dias e meio, pois teremos que cruzar duas fronteiras. Iremos à casa do menino; ele irá completar dez anos na sexta-feira. No caminho lhe darei algumas instruções.

 

Aquela noite, para mim, foi um suplício infernal. Praticamente não dormi. Um espectro me convidou para atravessar o Letes, mas resisti e o dissolvi. Eu sabia exatamente quem era aquele menino, e, de certa maneira e apesar de tudo, não me achava digno de conhecê-lo. Enfim...

 

No primeiro dia de nossa viagem, meu Irmão não disse uma unidade mínima sonora e significante. Ele normalmente era econômico com as palavras, mas naquele dia não disse um ai. Só respirava. Eu respeitei seu silêncio e também nada falei. Também só respirei. De noite, um súcubo veio me apoquentar com uma proposta indecente, mas eu resisti novamente e o dissolvi sem muito esforço.

 

Na quinta-feira foi a mesma inânia-inana. Ele, silencioso de lá; eu, emudecido de cá. Ele, respirando de lá; eu, absorvendo o oxigênio do ar nos pulmões de cá. O vento ventava, a nevoeira neblinava, o calor esfriava, os cavalos nitriam, as abelhas zumbiam, os pássaros chilreavam, os sapos coaxavam, mas nós não conversávamos. Só respirávamos! Confesso que eu já começava a me inquietar com aquela circunspecção muda e mansa na qual estava imerso meu Irmão. Fiquei matutando em como seria nosso encontro com o menino. Meu Irmão já o conhecia, mas eu só vim saber de sua existência, há coisa de mais ou menos um ano, por intermédio dele. Mas, realmente, eu nunca vira meu Irmão tão calado e tão quedado. Estaria ele preocupado com alguma coisa? Daí a minha inquietude meio que mais ou menos ofegosa. Mas, pelo menos, naquela terceira noite não apareceu qualquer espectro para me incomodar e meu descanso foi reparador. Acho que eu estava tão cansado, que dormi e acordei sem me lembrar de nada.

 

No terceiro dia, depois de nos alimentarmos, como nos dias anteriores, partimos bem cedinho para completar nossa jornada. Então, meu Irmão falou: — Chegaremos à casa do menino por volta do meio-dia. E mais silêncio. Eu só pensava nas instruções que meu Irmão disse que me daria... e que ainda não dera. Bem, isto não me aborreceu, pois Ele saberia, tenho certeza, a melhor hora para me transmitir o que deveria ser transmitido. Mas, pelo menos, depois de dois dias de silêncio total, ele juntou 40 letras e um traço-de-união, e pronunciou solenemente 9 palavras! O que estaria se passando em sua cabeça? Isto eu jamais saberei.

 

Por volta das onze horas, meu Irmão deu início às tais instruções.

 

Como, há alguns meses, já lhe antecipei alguma coisa sobre a trajetória mística desse menino, agora devo lhe dizer que estamos indo visitar um Sambhogakaya que projetou volitivamente sua consciência para a Terra por superno amor à Humanidade. Mas ele ainda não tem consciência de sua sagrada missão. Os poderes inatos e místico-psicotrônicos ou místico-psicobíofisicos que trouxe consigo, muitas vezes, manifestam-se inesperada e descontroladamente. Em certos momentos, isto é uma cruciação para ele. Mas o mais preocupante é que, conforme já lhe disse, às vezes, ele usa esses poderes para fazer coisas terríveis, verdadeiras maldades. E isto, talvez, deverá continuar até ele completar catorze anos ou um pouco antes. É com esta idade – quando seu Corpo Astral de potência será transformado em ato – que ele começará a receber Daqueles Que Sabem e Podem os ensinamentos preliminares que o farão lentamente se recordar de quem é, de onde veio e porque está aqui, e que o habilitarão, futuramente, a desempenhar a missão que se comprometeu a levar a cabo. Até lá, vai continuar a viver mais ou menos como um menino igual a qualquer outro, fazendo toda sorte de tropelias.

 

Mas, afinal, o que ele faz de tão detestável? — perguntei.

 

Meu Irmão apenas comentou: — Você verá. Ele gosta de mostrar seus poderes, principalmente para os desconhecidos.

 

Mais uns glóbulos de silêncio.

 

Já quase chegando à casa do menino, meu Irmão acrescentou: — Como lhe disse, você certamente verá os poderes que esse menino tem. Ele fará questão de mostrá-los, principalmente porque ele o está vendo pela primeira vez. Não demonstre qualquer surpresa, admiração ou veneração, pois é isto que ele esperará de você. Mas também não seja indiferente. Não o ofenda. Não manifeste qualquer forma de desconsideração, desdém ou desprezo. Você deverá encontrar um meio-termo para lidar com ele. Ele não deverá se sentir adulado ou festejado nem desestimado ou exprobrado. Ele precisa se acostumar com seus poderes, e o pior que alguém poderá fazer é tratá-lo como um ser especial que está à mostra em uma vitrine. Seja como for, sim, ele é um ser especial, especialíssimo; mas se for objeto de lisonja e se for dominado pela vaidade será um verdadeiro desastre. Confio em sua experiência e sobriedade para lidar com esse menino.

 

Fiquei pensando nas palavras de meu Irmão, e, mais adiante, ao avistarmos a casa do menino, perguntei: — Mas por que estou tendo o privilégio de ir conhecê-lo?

 

Porque você, ainda que esteja longe de ser como ele, pois ainda não alcançou o desenvolvimento espiritual que ele já possui, precisa incorporar ao seu conhecimento o que vivenciará hoje. Nós três somos espiritualmente originários da mesma esfera vibratória, todavia estamos em níveis distintos de compreensão e de realização de Aquilo que é comumente chamado pelos místicos ocidentais de Consciência Cósmica. Esta experiência que você terá hoje ficará gravada em sua Consciência e será muito útil, no futuro, em sua Jornada pelo Universo. Receba com humildade. Apenas isto.

 

Eu? Eu sabia quem o menino era, mas ser originário da mesma esfera vibratória do menino e do meu Irmão? Como! Isto soou para mim como uma bomba. Meu Irmão jamais houvera comentado algo semelhante, e eu, nos meus trinta e cinco anos de existência, nunca desconfiei de nada. Sempre me considerei o último dos Iniciados e desmerecedor, até mesmo, de ter meu Irmão como amigo, conselheiro e Mestre. Tantos anos dedicado aos estudos das Leis Universais e da minha própria natureza interior... Eu, realmente, não sabia nada de nada vezes nada igual a nada! Mas se meu Irmão afirmou... Neste caso, cabe muito bem o ditado: Magister dixit, causa finita! O Mestre falou, fim de papo!

 

 

 

 

 

 

Capítulo III
O Encontro com o Menino

 

 

 

Passava um pouquinho do meio-dia daquela sexta-feira outonal e o frio estava de lascar; mas a viagem foi tranqüila e chegamos bem. Não sei como, mas a mãe do menino já estava na porta de sua casa nos esperando e veio nos receber.

 

 

 

 

Fizeram boa viagem? — Perguntou simpaticamente a jovem senhora, mãe do menino, dirigindo-se ao meu Irmão.

 

Sim. Tudo correu bem. Obrigado. — Respondeu meu Irmão.

 

A jovem senhora olhou para mim, e disse: — É uma honra recebê-lo em nossa casa. Por favor, sinta-se à vontade.

 

Eu agradeci e entramos em sua casa. A casa era simples, mas muito confortável. Um chá quentinho estava nos esperando. Nós três tomamos uma chávena, e a mãe do menino se desculpou dizendo que iria preparar o almoço. Eu adorei, pois estava morto de fome. Enquanto a mãe esquentava o que parecia ser um sopão, fez-se de novo aquele já conhecido silêncio. Mas onde havia se metido o menino? Eu estava curiosíssimo para conhecê-lo.

 

O silêncio foi quebrado pela mãe. Acho que adivinhando o que eu estava pensando, comentou: — anda por aí. Como ele sabia que vocês viriam para o seu aniversário, está se escondendo. Coisa de criança travessa.

 

A mãe de pôs a mesa para quatro pessoas e nos serviu uma fumegante sopa de legumes. Um pão maravilhoso feito em casa e água fresquinha completaram o almoço. A mãe e meu frugal Irmão ficaram no primeiro prato. Eu repeti. Só não pedi o terceiro porque fiquei sem jeito. Afinal eu havia ido à casa de para conhecê-lo, não para ficar tomando sopa sem parar. Mas que eu tomaria mais um pratinho, eu tomaria sim; sem qualquer esforço. Uma coisa que observei, é que sopa feita por mulher é mais saborosa do que a que é preparada por homem. Por exemplo, reconheço que a sopa que eu faço é apenas comível. E se eu tinha alguma dúvida sobre isto, hoje confirmei. A expressão facial de meu Irmão, ao tomar a sopa preparada pela mãe de , estava completamente diferente da que costuma evidenciar ao tomar a que eu faço. Seja como for, ele jamais reclamou da minha sopa, o que é, pelo menos, um lenitivo e um estímulo aos meus péssimos dotes culinários.

 

Eu estava remoendo em onde estaria metido o menino, quando...

 

Vocês já almoçaram? Por que não me chamaram? — Irrompeu ab-ruptamente porta adentro o menino.

 

Meu filho, onde você estava? — Perguntou a mãe.

 

Por aí... Brincando... — Respondeu insossamente o menino.

 

Você não vai cumprimentar seu amigo? — Perguntou a mãe. — Hoje ele veio acompanhado deste jovem. Vieram para felicitá-lo pelo seu aniversário.

 

O menino se virou para o meu Irmão e se atirou em seus braços beijando-o carinhosamente. — Parabéns pelo seu aniversário — cumprimentou meu Irmão oferecendo-lhe um presente que havia trazido. Depois que o menino examinou o presente e agradeceu, meu Irmão disse: — Eu quero lhe apresentar este meu amigo. Ele viajou comigo para conhecê-lo.

 

Parabéns . Eu também quero lhe dar um presente que eu mesmo fiz. — Emendei eu.

 

O menino se aproximou de mim, recebeu o presente e, demonstrando satisfação com o que havia ganho, agradeceu educadamente. Em seguida, me olhou profundamente nos olhos, e, depois de alguns segundos, perguntou: — Foi você mesmo que fez este presente? Eu gostei muito. Quem é você?

 

Sim, fui eu. Sou chela do seu amigo — respondi amistosamente. E o diálogo terminou aí. Pude, então, observar melhor o menino. Para a sua idade, já era bem alto. Possuía olhos negros e cabelos também negros e bastos que davam um toque requintado e senhorial aos seus dez anos. Sua voz era suave, mas firme; uma voz de quem sabe o que quer. Mas, se eu tivesse que definir , diria que ele era o menino de olhos negros com o olhar mais doce e penetrante que conheci.

 

sentou-se à mesa para almoçar, e se dirigiu a mim: — Sente aqui; vem me fazer companhia, enquanto eu almoço.

 

À medida que sua mãe o servia e meu Irmão observava imperturbavelmente tudo o que estava acontecendo, eu me acomodei ao seu lado na mesa. A sopa veio fumegando, e aí aconteceu um fato inusitado e inverossímil. olhou fixamente para o prato com a sopa fervente, e, em um instante, pareceu ter se desconectado do mundo. Seu rosto se afogueou e seus olhos se apertaram ligeiramente, e, depois de algum tempo, o prato de sopa, sem que ele o tocasse, se ergueu delicadamente uns dez centímetros da mesa e começou a girar 90 graus para a esquerda e 90 graus para a direita, agitando suavemente a sopa. Aquilo durou mais ou menos um minuto e meio, até que o prato, com a mesma delicadeza com que levitou, 'deslevitou' e retornou à posição primitiva. O menino, então, inspirando ruidosamente, pois havia prendido a respiração durante aquela demonstração de poder psíquico, aterrizou, por assim dizer, e voltou ao seu estado normal. De relance, olhei para o meu Irmão, que meneou levemente a cabeça como que a me lembrar: Não demonstre qualquer surpresa, admiração ou veneração, pois é isto que ele esperará de você. Mas também não seja indiferente. Não o ofenda. Não manifeste qualquer forma de desconsideração, desdém ou desprezo.

 

 

 

 

Terminada a pirotecnia psíquica, olhou para mim e comentou: — A sopa estava muito quente. Tive que esfriá-la. O que você achou?

 

Insólita esta forma de esfriar sopa. Acho que agora você poderá tomá-la sem queimar a língua. — O menino deu uma gostosa gargalhada e almoçou rapidamente. Meu Irmão, que continuava imperturbável, abaixou levemente a cabeça e não disse nada. A mãe fez um trejeito com a cabeça e também não disse nada. E eu também não disse mais nada. Fiquei na minha, mas impressionadíssimo com o que acabara de assistir.

 

Terminada a refeição, comentou: — Você sabe fazer isso?

 

Isso o quê? — Perguntei com um sorriso nos olhos, mas sabendo exatamente o que era o isso.

 

Esfriar sopa dessa maneira.

 

Não. Faço à moda antiga. Eu sopro e sacolejo com cuidado.

 

deu outra gostosa gargalhada, e disse: — Então vou lhe ensinar. É simples. Você consegue ver esses milhões de pontinhos que se movimentam no ar? É simples. Basta fixar o olhar em alguns deles, aproximá-los, criar duas mãos invisíveis, e fazer com que elas girem o prato para a esquerda e para a direita. Simples, não é?

 

Se você está dizendo que é simples, deve ser mesmo. Mas eu prefiro soprar e sacolejar. Vai que alguma coisa dá errado durante o vira-pra-lá e o vira-pra-cá do prato... Vai que as duas mãos invisíveis se evaporam... Lá se vai tudo quanto Marta fiou!

 

Outra gostosa gargalhada do menino e um comentário afetuoso: — Gostei muito de você.

 

 

 

 

 

 

Capítulo IV
O Ensinamento Psíquico

 

 

 

A tarde foi caindo, o frio foi aumentando, a fome foi voltando. A mãe do menino, novamente parecendo adivinhar meus pensamentos, nos ofereceu um chazinho com bolo. , depois daquele papo, havia saído para brincar. Nós três conversamos durante umas duas horas, e o tema não poderia ser outro: o menino. Na verdade, eu mais ouvi do que falei. A bondosa e aflita mãe falou de suas preocupações com certos procedimentos do menino, mas meu Irmão a tranqüilizou. Disse que sua alma era boníssima e que aquilo tudo haveria de passar. Por outro lado, ele era constantemente vigiado e monitorado para não se exceder. Seu livre-arbítrio era respeitado, mas se ele decidisse fazer algo descabido, seria impedido por Aqueles Que Sabem e Podem. — Tudo vai dar certo; não se preocupe — concluiu meu Irmão, sorrindo para a mãe do menino.

 

Estávamos os três entretidos, quando apareceu com um vaso de flores silvestres.

 

Estão lindas essas flores, meu filho. Foi você que as plantou? — perguntou a mãe. Nós também comentamos alguma coisa, e o menino anunciou circunspectamente: — Vou mostrar uma coisa para vocês.

 

Colocando o vaso sobre a mesa da sala, o menino olhou fixamente para as flores. Seu rosto se afogueou novamente e seus olhos se apertaram, como na pirotecnia do prato de sopa, e, meio minuto depois, as flores começaram vagarosamente a murchar. Depois de haverem murchado completamente, ele as fez voltar à condição inicial, mais bonitas até do que estavam antes. Tudo isto não durou mais do que cinco minutos. Uma proeza digna de Harry Houdini!2

 

Gostaram? — Perguntou o menino com uma expressão triunfal.

 

Nenhum de nós aprovou ou desaprovou aquela nova demonstração psicocinética. Mas meu Irmão decidiu intervir.

 

Você precisa ver umas coisas. Vou levá-lo para passear psiquicamente. Venha comigo — falou meu Irmão. E, colocando a mão sobre a cabeça do menino, saíram os dois em projeção psíquica. Eu resolvi ir junto, só para ver o que iria acontecer, e ajudar, claro, se fosse necessário.

 

Sem comentar absolutamente nada, meu Irmão começou por levar a diversos hospitais. E o menino pôde ver pessoas enfermas, sofredoras e doentes terminais. Algumas estavam presas ao leito por anos. Depois o menino foi transportado às favelas, palafitas e guetos. E o menino pôde ver a angústia, a miséria e a fome dos párias e dos sem-nada. Depois foi projetado a alguns lugares turbulentos e convulsionados: Faixa de Gaza, Líbano, Afeganistão, Iraque, Congo, Colômbia, Haiti. E o menino pôde ver sofrimento, sangue e morte, desespero, fanatismo e crueldade. Ainda conheceu a mentira, a injustiça, a falsidade, a traição, o egoísmo, a religiosidade insana e decepante, a intolerância, o preconceito, o ódio, a volúpia, a avareza, tudo de uma pancada. Mas meu Irmão deu especial atenção à vaidade. Mostrou ao menino a vaidade dos senhores do mundo e as conseqüências funestas de seus atos. Foi uma aula psicomística intensiva que durou apenas quinze minutos. Apenas quinze minutos, mas que pareceram ter durado um ano! Eu mesmo fiquei emocionado e contristado com o que vi.

 

 

 


Crueldade Pendular Personificada

 

 

Terminado o educativo e afligente passeio planetário, o menino chorou. Chorou convulsiva e doridamente. Quando ele se acalmou, meu Irmão, com todo o amor de seu Coração e a voz mais pacífica e fraternal possível, falou: — Está na hora de você saber um pouco mais sobre você. Não direi muito, pois ainda não é o tempo. Você já deve ter percebido que tem poderes, digamos assim, especiais. Por quê? Por acaso? Não. Eles são naturalmente seus; você os conquistou, era após era, encarnação depois de desencarnação, mérito seguido de mérito. Você se esforçou, mereceu e é o legítimo detentor de todos eles. Mas usar estes poderes para coisas inúteis ou perversas é, no mínimo, um risco, porque você poderá ficar privado de todos eles. Temporária ou definitivamente. Então, pense no que anda fazendo com esses poderes. Hoje, você conheceu coisas que nem sequer imaginava que existiam: descompassos, mágoas, desgostos, decepções, desgraças, fome, doenças e guerras. Também conheceu a vaidade e seus filhotes. O que você tem a dizer de tudo isto?

 

Perdão. Estou envergonhado — respondeu o menino, moralmente abatido e sofrendo visivelmente. — Meu amigo e meu Mestre, eu prometo: a partir de hoje só usarei meus poderes para ajudar as pessoas. Eu juro: jamais usarei esses poderes para prejudicar, diminuir, ferir ou me pavonear. Senti claramente que todos fazem parte mim e que eu sou parte de tudo e de todos. Alguma coisa se acendeu em meu interior, e, agora que conheci todas essas desgraças, irei todos os dias visitar lugares e pessoas para ajudar no que puder. Jamais quebrarei este juramento. Nunca mais desonrarei você; nunca mais você se decepcionará comigo.

 

Estou feliz com as suas palavras e com a sua decisão — aprovou e incentivou meu Irmão. Sempre que você precisar, me procure. Enquanto eu viver, estarei ao seu lado para auxiliá-lo e apoiá-lo no que você tem de melhor. Oportunamente, você será apresentado a outros, que, como eu, subsidiarão em aspectos de seus ensinamentos que estão fora de minha alçada. Mas o que me pertencer fazer, eu farei.

 

 

 

 

 

 

Capítulo V
Soprando e Sacolejando a Sopa

 

 

 

A noite chegou, o frio multiplicou, a fome sotrancou. Novamente a mãe adivinhou. Em silêncio reverencial, jantamos os quatro a sopa que sobrara do almoço. A sopa, como dantes, veio fervendo. Para esfriá-la, eu soprei e sacolejei, a mãe soprou e sacolejou, meu Irmão soprou e sacolejou, e o menino também soprou e sacolejou. E rimos à solta.

 

No dia seguinte, de manhã bem cedo, voltamos para casa. Ao nos despedirmos de e de sua mãe, percebi uma pequena lágrima escorrer no rosto do menino. Com a voz embargada, ele falou: — Obrigado por tudo. Amo vocês. Eu jamais me esquecerei deste aniversário.

 

Meu Irmão estava animadíssimo, e durante toda a viagem de retorno falou pelos cotovelos. Parecia que havia engolido um disco! Eu, praticamente, só ouvia e respirava!3

 

 

 

 

 

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Notas:

1. Por que não? Todos nós, sem exceção, se nos esforçarmos, se trabalharmos e se formos sinceros em nossos propósitos, poderemos, um dia, alcançar o estágio místico do menino deste Conto Iniciático. AMeN! E de Sambhogakaya, depois, para Dharmakaya. Quem sabe! Tudo depende apenas de nós. O que precisamos não nos esquecer é que na Via Iniciática prestigiosa que seguimos, as tentações são numerosas, as quedas ocasionais e a dúvida periódica, como ensinou Raymond Bernard (19 de maio de 1923 – 10 de janeiro de 2006). E mais: à medida que que avançarmos rumo às Iniciações Maiores, as tentações serão mais provocadoras, as quedas serão mais dolorosas e as dúvidas serão mais lancinantes. Agora, se preferirmos ser andrólatras, ególatras, iconólatras, demonólatras, 'sacanólatras', 'filhosdaputólatras' e outras tantas coisas escrotas mais, ao invés de edificarmos o Mestre-Deus de nossos Corações, continuaremos exatamente como somos hoje: sensuais, ingênuos e medíocres. E o que é pior: pensando e acreditando que não somos nada disto! Vanidades! Vanidades! Vanidades! Domine, non sum dignus ut  intres sub tectum meum; sed tantum dic Verbo et sanabitur anima mea. Domine, non sum dignus ut  intres sub tectum meum; sed tantum dic Verbo et sanabitur anima mea. Domine, non sum dignus ut  intres sub tectum meum; sed tantum dic Verbo et sanabitur anima mea. AMeN. AMeN. AMeN. Sursum Corda! Sursum Corda! Sursum Corda!

2. Harry Houdini, nome artístico de Ehrich Weiss, (Budapeste, 24 de março de 1874 – Detroit, 31 de outubro de 1926) foi um dos mais famosos mágicos dos Estados Unidos, para onde sua família emigrou quando tinha apenas duas semanas de vida. Teve uma infância muito pobre, o que o obrigou a trabalhar desde cedo. Foi perfurador de poços, fotógrafo, contorcionista e trapezista. Foi também ferreiro, e nesse ofício ele aprendeu os truques que mais tarde o transformariam no maior mágico ilusionista do mundo.

3. Errata: eu, praticamente, só aprendia e respirava!

 

 

 

 

 

 

 

 

Fundo musical:

Oíche Chiúin (Silent Night)

Fonte:

http://www.angelfire.com/
ny5/davesworld56/EnyaMidis.html