A
imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa
certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras,
pela imobilidade de nosso pensamento perante elas.
Só
se ama o que não se possui completamente.
A ambição embriaga
mais do que a glória.
Uma
pessoa não está... nítida e imóvel diante dos
nossos olhos, com as suas qualidades, os seus defeitos, os seus projetos,
as suas intenções para conosco (como um jardim que contemplamos,
com todos os seus canteiros, através de um gradil), mas é
uma sombra em que não poderemos jamais penetrar, para a qual não
existe conhecimento direto, a cujo respeito formamos inúmeras crenças,
com auxílio de palavras e até de atos, palavras e atos que
só nos fornecem informações insuficientes e aliás
contraditórias, uma sombra onde poderemos alternadamente imaginar,
com a mesma verossimilhança, que brilham o ódio e o amor.
Essas
evocações torvelinhantes e confusas nunca duravam mais que
alguns segundos; muitas vezes, minha breve incerteza do local em que me
achava não permitia tampouco distinguir uma das outras as diversas
suposições que a constituíam, da mesma forma que não
isolamos, ao ver um cavalo correndo, as posições sucessivas
que nos mostra o cinetoscópio.1
…
sem o hábito e reduzido a seus próprios recursos,
seria nosso espírito incapaz de nos tornar habitável qualquer
alojamento.
O
amor mais obcecante para alguém é sempre o amor de outra coisa.
No amor, a felicidade é um
estado anormal.
Em
amor, é um erro se falar de uma má escolha, uma vez que, havendo
escolha, ela tem de ser sempre má.
O
arrependimento, como o desejo, não procura se analisar, mas, sim,
se satisfazer.
...
em seu olhar, um sorriso no qual, contrariamente
ao que se lê no rosto de muitos humanos, não havia ironia senão
para consigo mesma, e, para nós todos, como que um beijo de seus
olhos, que não podiam ver aqueles a quem queria sem os acariciar
apaixonadamente com o olhar.
O artista que troca uma hora de trabalho
por uma hora de conversa com um amigo sabe que está a sacrificar
uma realidade a algo que não existe.
Para
quem ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz,
a mais intensa, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças?
Mas,
nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da
vida, somos nós um todo materialmente constituído, idêntico
para toda a gente, e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento,
como se se tratasse de um livro de contas ou de um testamento; nossa personalidade
social é uma criação do pensamento alheio.
Para
tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós
certas pequenas loucuras.
Anthony
Hopkins –
Hannibal Lecter
A
calma que resultava de minhas angústias findas dava-me uma alegria
extraordinária, não menos que a espera, a sede e o medo do
perigo.
As
informações que a
memória voluntária, a memória da inteligência,
nos dá sobre o passado não conserva nada deste.
É
assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos
os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis.
Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em
algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto
material) que nós nem suspeitamos. Só do acaso depende que
encontremos esse objeto antes de morrer ou que não o encontremos
nunca.
Invadira-me um prazer delicioso,
isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornaria
indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres,
ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma
preciosa essência: ou antes, essa essência não estava
em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente,
mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava
ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que ultrapassava infinitamente
e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava?
Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole que me traz um pouco menos
que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo
a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não
está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece,
e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez
com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar
e que quero tornar a lhe solicitar daqui a um instante e encontrar intato
à minha disposição, para um esclarecimento decisivo.
Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele
que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas as vezes que
o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador,
é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde toso o seu
equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar:
criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe
e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz.
Mas
quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das
criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis,
porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis,
o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando,
guardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando
sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso
da recordação.
O amor é o espaço e
o tempo tornados sensíveis ao Coração.
Os
verdadeiros paraísos são os paraísos que se perderam.
Os
paraísos perdidos estão somente em nós mesmos.
A
viagem da descoberta consiste não em achar novas paisagens, mas em
ver com novos olhos.
Tudo
o que é grande no mundo em que vivemos provém dos neuróticos.
As
pessoas dizem sempre aquilo que precisam dizer, o que não será
entendido pelos outros. Falar é uma coisa destinada a si mesmo.
Por
vezes, estamos demasiado dispostos a crer que o presente é o único
estado possível das coisas.
A constância de um hábito
está em relação com o seu absurdo.
É
verdade que lá em casa há toda sorte de coisas inúteis.
Só lhe falta o necessário, um grande pedaço de céu
como aqui. 'Trate de conservar um pedaço de céu acima de sua
vida, meu menino' — acrescentava, voltando-se para mim. — 'Tem
uma bela alma, de qualidade rara, uma natureza de artista, não a
deixe em falta do que lhe é preciso.'
Tudo
o que foi um desejo torna-se um fato, mas quando não o desejamos
mais.
A
pessoa amada é sucessivamente o mal e o remédio que suspende
ou agrava o mal.
Em
qualquer momento em que a consideremos, a nossa alma total tem sempre um
valor quase fictício, apesar do numeroso balanço das suas
riquezas, pois ora umas, ora outras, são indisponíveis, quer
se trate de riquezas efetivas como de riquezas da imaginação...
Pois as perturbações da memória estão ligadas
às intermitências do Coração. É sem dúvida
a existência do nosso corpo, semelhante para nós a um vaso
em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor
que todos os nossos bens interiores, as alegrias passadas e todas as nossas
dores estão perpetuamente em nossa possessão.
A
mulher que amamos só poucas vezes satisfaz as nossas necessidades,
pelo que lhe somos infiéis com a mulher que não amamos.
A
Natureza parece quase incapaz de produzir doenças que não
sejam curtas. Mas a Medicina se encarrega da arte de as prolongar.
O
homem é a criatura que não pode sair de si, que só
conhece os outros em si, e, dizendo o contrário, mente.
O
que censuro nos jornais é, todos os dias, nos fazerem prestar atenção
em coisas insignificantes, ao passo que nós lemos três ou quatro
vezes na vida livros em que há coisas essenciais.
Mas
todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou o infortúnio
de um personagem real só se produzem em nós por intermédio
de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; todo o engenho do
primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único
elemento essencial na estrutura de nossas emoções, a simplificação
que consistisse em suprimir pura e simplesmente os personagens reais seria
um aperfeiçoamento decisivo.
Há
males de que não se deve buscar a cura porque só eles nos
protegem contra males mais graves.
Não é apenas a arte
que põe encanto e mistério nas coisas mais insignificantes.
Este mesmo poder de as relacionar intimamente conosco é reservado
também à dor.
E
uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos
os estados puramente interiores, cada emoção é duplicada,
e em que seu livro vai nos agitar como um sonho, mas um sonho mais claro
do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja lembrança vai durar mais
tempo, eis que então ele desencadeia em nós, durante uma hora,
todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas
das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais
intensas dentre elas, jamais nos seriam reveladas, pois a lentidão
com que se processam nos impede de as perceber (assim muda nosso coração,
na vida, e esta é a mais amarga das dores; mas é uma dor que
só conhecemos pela leitura, pela imaginação; porque
na realidade o coração se nos transforma do mesmo modo por
que se produzem certos fenômenos da Natureza, isto é, com tamanho
vagar que, embora possamos ver cada um de seus diferentes estados sucessivos,
por outro lado nos escapa a própria sensação da mudança).
Ele
não podia saber, pelo menos por si mesmo, que era esnobe, pois nós
só conhecemos as paixões dos outros, e o que chegamos a saber
das nossas apenas são eles que nos dirão.
À
meia altura de uma árvore indeterminada, um pássaro invisível
se empenhava em que fosse breve o dia, explorando com uma nota prolongada
a solidão circundante, mas recebia desta uma réplica tão
unânime, um contragolpe tão reduplicado de silêncio e
imobilidade, que se poderia dizer que ele acabava de parar para sempre o
instante que procurava fazer passar mais depressa.
Não
era o mal, que lhe dava idéia do prazer, que lhe parecia agradável;
era o prazer que lhe parecia maligno.
Não
teria acaso pensado que o mal fosse um estado tão raro, tão
extraordinário, tão isolante e para onde era tão grato
emigrar, se soubesse discernir em si mesma, como em todos os outros, essa
indiferença pelos sofrimentos que nós mesmos causamos e que,
por mais diversos nomes que lhe dêem, é a forma terrível
e permanente da crueldade.
É
sempre devido a um estado de espírito não destinado a durar
que se tomam resoluções definitivas.
Habitualmente,
detestamos o que nos é semelhante, e os nossos próprios defeitos
vistos de fora nos exasperam.
Sentimos
em um mundo, pensamos e nomeamos em um outro mundo; podemos estabelecer
uma concordância entre ambos, mas não preencher o intervalo.
Ou
porque a fé que cria se haja estancado em mim ou porque a realidade
só se forme na memória, as flores que hoje me mostram pela
primeira vez não me parecem flores de verdade.
...
isso lhe pareceria uma abdicação
tão covarde diante da vida e uma renúncia tão estúpida
a uma nova felicidade, como se em vez de visitar a terra onde se achava,
se metesse em seu quarto, a olhar ‘vistas’ de Paris.
De
todos os modos de produção do amor, de todos os agentes de
disseminação do mal sagrado, um dos mais eficazes é
esse grande torvelinho de agitação que às vezes sopra
sobre nós. Então a sorte está lançada, e a criatura
com quem nesse momento nos comprazemos será a criatura amada. Nem
mesmo é necessário que até então nos tenha agradado
mais que as outras ou tanto como as outras. O que era preciso é que
nossa inclinação por ela se tornasse explosiva. E essa condição
se realiza quando — no instante em que ela nos faltou — sentimos
em nós não o desejo de buscar prazeres que o seu convívio
nos proporciona, mas uma necessidade angustiosa que tem por objeto essa
mesma criatura, uma necessidade absurda que as leis deste mundo tornam impossível
de satisfazer e difícil de curar — a necessidade insensata
e dolorosa de possuí-la.
E
o prazer que lhe dava a música e que em breve ia criar nele uma verdadeira
necessidade, assemelhava-se, com efeito, em tais momentos, ao prazer que
sentiria ao experimentar perfumes, ao entrar em contato com um mundo para
o qual não fomos feitos, que nos parece sem forma porque nossos olhos
não o percebem, sem significado porque escapa à nossa inteligência,
e nós só o atingimos por um único sentido.
Nós só conhecemos as
paixões dos outros, e o que chegamos a saber das nossas é
deles que podemos aprender.
Pois
bem — acrescentava ele com essa leve emoção que experimentamos
quando, mesmo sem o notar, dizemos uma coisa não porque seja verdadeira,
mas porque sentimos prazer em dizê-la e a escutamos através
de nossa própria voz como se não viesse de nós mesmos
— a sorte está lançada, resolvi amar apenas os corações
magnânimos e só viver na magnanimidade.
Há
autores originais em quem a menor ousadia causa revolta porque não
lisonjearam de início os gostos do público e não lhe
serviram os lugares-comuns a que estava habituado; era da mesma forma que
Swann indignava ao sr. Verdurin. No caso de Swann, como no daqueles autores,
era a novidade da linguagem que fazia acreditar na perversidade das suas
intenções.
Mas
nesse estranho período do amor, o individual assume algo de tão
profundo, que aquela curiosidade que sentia despertar em si relativamente
às menores ocupações de uma mulher era a mesma que
tivera outrora pela História.
Há
no violino — quando não se vê o instrumento e não
se pode ligar o que se ouve à sua imagem, coisa que modifica a sonoridade
— acentos que lhe são tão comuns com certas vozes de
contralto, que se tem a ilusão de que uma cantora veio se juntar
ao concerto. Erguemos os olhos e só vemos as caixas dos violinos,
preciosas como estojos chineses, mas, por um momento, ainda nos iludimos
com o enganoso apelo da sereia; às vezes também se julga ouvir
um gênio cativo que se debate no fundo da sábia caixa, enfeitiçada
e fremente, como um diabo em uma pia d’água benta; ou então
é no ar que o sentimos como um ser sobrenatural e puro que passasse
desenrolando a sua invisível mensagem.
A realidade é, pois, alguma
coisa que não tem nenhuma relação com as possibilidade,
da mesma forma que uma facada que recebemos nada tem a ver com o leve movimento
das nuvens acima da nossa cabeça ...
Coisa
estranha que tais palavras, ‘umas duas ou três vezes’,
nada mais que palavras, palavras pronunciadas no ar, a distância,
possam assim dilacerar o coração como se o tocassem de verdade,
possam fazer adoecer, como um veneno que se ingerisse.
Como
os diferentes acasos que nos põem em presença de certas pessoas
não coincidem com o tempo em que nós as amamos, mas, ultrapassando-o,
podem suceder antes que ele comece e repetir-se depois que findou, as primeiras
aparições que faz em nossa vida um ser destinado a nos agradar
mais tarde, assumem, retrospectivamente, para nós, um valor de advertência,
de presságio.
Tão
múltiplos são os interesses de nossa vida que não é
raro que, numa mesma circunstância, os marcos de uma felicidade que
ainda não existe estejam pousados ao lado da agravação
de um mal de que sofremos.
O
que as palavras nos apresentam das coisas é uma imagem clara e usual
como essas que se dependuram nas paredes das escolas para dar às
crianças o exemplo do que é um banco, um pássaro, um
formigueiro, coisas tidas como semelhantes a todas as do mesmo gênero.
...
aquilo a que minha imaginação
aspirava e que meus sentidos só percebiam no presente de modo incompleto
e sem prazer nenhum, eu o havia encerrado no refúgio dos nomes; e
como eu ali acumulara sonho, esses nomes imantavam agora os meus desejos.
As
terras que desejamos ocupam a cada momento muito mais espaço em nossa
vida verdadeira do que a terra onde efetivamente nos achamos.
O
desinteresse de seu pensamento era tal, quanto a tudo o que, de perto ou
de longe, parecesse estar relacionado com a vida mundana, que o seu senso
auditivo tendo por fim compreendido sua inutilidade momentânea desde
que, ao jantar, a conversa assumia um tom frívolo ou unicamente terra-a-terra,
sem que elas pudessem fazê-la retornar aos assuntos que lhes eram
caros, deixava, portanto, em repouso os seus órgãos receptores,
fazendo-os sofrer um verdadeiro princípio de atrofia.
Existem
autores originais em quem a menor ousadia causa revolta. Eles antes não
tiveram o cuidado de lisonjear os gostos do público e não
serviram os lugares-comuns a que ele está habituado.
Veja,
só há duas classes de pessoas: os magnânimos e os outros.
Cheguei a uma idade em que é preciso tomar partido, decidir de uma
vez por todas a quem amar, e a quem desdenhar; juntar-se àqueles
a quem amamos e, para recuperar o tempo perdido com os outros, não
mais deixá-los até a morte. Eu escolhi gostar dos únicos
seres magnânimos e viver na magnanimidade.
Ainda
assim, mesmo do ponto de vista da simples quantidade, os dias, em nossa
vida, não são iguais. Os dias, os temperamentos um pouco nervosos,
como era o meu, dispõem de automóveis, de velocidades diferentes.
Há dias acidentados e a gente leva um tempo infinito a transpor,
e dias em declive que se deixa a toda velocidade cantando.
Até
as mulheres que pretendem avaliar um homem só pelo físico,
vêem neste físico a emanação de uma vida especial.
É por isto que amam os militares, os bombeiros... O uniforme as faz
menos exigentes para o rosto; julgam beijar, por baixo da couraça,
um coração diferente, aventuroso e suave. E um jovem soberano,
um príncipe herdeiro, para efetuar as conquistas mais lisonjeiras
nos países estranhos que visita, não precisa ter o perfil
regular que talvez fosse indispensável a um corretor da bolsa.
... e chorei de alegria e confiança
sobre as páginas do escritor como nos braços de um pai reencontrado.
A
música pode ser o exemplo único do que poderia ter sido –
se não tivesse havido a invenção da linguagem, a formação
das palavras e a análise das idéias – a comunicação
das almas.
Deixemos as mulheres bonitas aos
homens sem imaginação.
São
as paixões que esboçam os nossos livros, e o intervalo de
repouso entre elas que as escreve.
O
amor causa verdadeiros levantamentos geológicos do pensamento.
Somente
pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que um outro vê
desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens
permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem
existir na Lua. Graças à arte, em vez de ver um único
mundo, o nosso, nós o vemos se multiplicar, e quantos artistas originais
existirem tantos mundos teremos à nossa disposição,
mais diferentes uns dos outros do que aqueles que rolam no infinito e, muitos
séculos após se ter extinguido o foco do qual emanavam, chamasse
ele Rembrandt ou Johannes Vermeer, ainda nos enviam o seu raio especial.
Os
homens podem ter várias espécies de prazer. O verdadeiro é
aquele pelo qual eles deixam outro.
É
impossível encontrar prazer quando nos contentamos em procurá-lo.
A
Sabedoria não se transmite. É preciso que nós a descubramos
fazendo uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar e que
ninguém nos pode evitar. A Sabedoria é uma maneira de ver
as coisas.
Se
um tanto de sonho é perigoso, não é menos sonho que
há de curá-lo, e, sim, mais sonho, todo o sonho. É
preciso conhecer totalmente os nossos sonhos para não sofrermos mais
com eles.
Eu
a olhava, primeiro com o olhar que é apenas o porta-voz dos olhos,
mal à janela do qual se debruçam todos os sentidos, ansiosos
e petrificados, o olhar que desejaria tocar, capturar, levar consigo o corpo
que está olhando e com ele a alma…
Uma
verdade claramente compreendida não pode ser escrita com sinceridade.
As obras escritas para a posteridade
só a posteridade as deveria ler, tal como sucede com certas pinturas,
mal apreciadas quando vistas de muito perto.
E
é por uma mulher dessas que todas as manhãs faço tantos
quilômetros!
Eram
puras palavras de conversação, como as dizemos nesses momentos
em que, muito agitados para ficar a sós conosco mesmos, sentimos
necessidade, na falta de outro interlocutor, de conversar conosco, sem sinceridade,
como um estranho.
Uma obra em que há teorias
é como um objeto no qual se deixa a etiqueta do preço.
Acontece
com a velhice o mesmo que com a morte. Alguns as enfrentam com indiferença,
não porque tenham mais coragem do que os outros, mas porque têm
menos imaginação.
O
desejo de agradar os amigos é, por assim dizer, uma desforra da ambição.
A verdadeira beleza é tão
particular, tão nova, que não se reconhece como beleza.
O
ciúme é, muitas vezes, uma inquieta necessidade de tirania
aplicada às coisas do amor.
Uma
vez descoberto, o ciúme passa a ser considerado por quem dele é
objeto como uma desconfiança que autoriza a enganar.
É
espantoso como o ciúme, que passa o tempo a fazer pequenas suposições
em falso, tem pouca imaginação quando se trata de descobrir
a verdade.
Ser
grande dama é representar de grande dama, o que quer dizer, representar
simplicidade. É um papel que sai extremamente caro, tanto mais, que
a simplicidade só encanta sob a condição de que os
outros saibam que poderíamos não ser simples, isto é,
que somos riquíssimos.
Doente?
Não é ao menos uma doença diplomática?
Desse amontoado de erros se desvencilharam
com o tempo algumas verdades.
Dizem
hoje as pessoas de bom gosto que Renoir foi um grande pintor do século
XIX. Mas ao dizer isto, esquecem o tempo, e que foi preciso muito, mesmo
em pleno século XIX, para que Renoir fosse considerado grande artista.
Só
nos curamos de um sofrimento depois de o haver suportado até ao fim.
O
sono é como uma outra casa que poderíamos ter, e onde, deixando
a nossa, iríamos dormir.
Os
dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um
homem.
Os que vêm a conhecer algum
detalhe exato da vida alheia tiram logo conseqüências que não
o são, e vêem no fato recém-descoberto a explicação
de coisas que precisamente não têm nenhuma relação
com ele.
Certas
recordações são como os amigos comuns: sabem fazer
reconciliações.
Assim,
os que produzem obras geniais não são aqueles que vivem no
meio mais delicado, que têm a conversação mais brilhante,
a cultura mais extensa, mas os que tiveram o poder, deixando subitamente
de viver para si mesmos, de tornar a sua personalidade igual a um espelho,
de tal modo que a sua vida aí se reflete, por mais medíocre
que aliás pudesse ser mundanamente, e até, em certo sentido,
intelectualmente falando, pois o gênio consiste no poder refletor
e não na qualidade intrínseca do espaço refletido.
Aquilo
que se aproxima, não é a comunhão das opiniões,
mas a consangüinidade dos espíritos.
Aquilo
que para nós faz a felicidade ou a infelicidade da nossa vida constitui
para qualquer outro um fato quase imperceptível.
Há uma coisa ainda mais difícil
do que seguir um regime: é não o impor aos outros.
Sei
dos ciumentos que só o são das mulheres com quem a amante
tem relações longe deles, mas permitem que elas se entreguem
a outro homem que não eles, se for com autorização
deles, junto deles e, senão à vista, pelo menos sob o mesmo
teto. Este caso é freqüente nos homens idosos apaixonados por
mulher moça. Sentem a dificuldade de lhe agradar, às vezes
a impotência de contentá-la e, para não serem enganados,
preferem admitir em casa, num quarto vizinho, alguém que julgam incapazes
de dar a ela maus conselhos, mas não o prazer.
Passamos
a vida a mentir, até, sobretudo, talvez apenas, àqueles que
amamos. Com efeito, somente estes podem pôr em perigo os nossos prazeres
e nos fazer desejar a sua estima.
Às
vezes, sem o sabermos, o futuro está em nós, e as nossas palavras,
supostamente mentirosas, descrevem uma realidade que está próxima.
Menosprezamos
facilmente um objetivo que não conseguimos alcançar ou que
alcançamos definitivamente.
A
posse do que se ama é uma alegria ainda maior do que o amor. Muitas
vezes os que escondem de todos essa posse, só o fazem pelo medo de
que o objeto amado lhes seja roubado. E a felicidade deles fica diminuída
por aquela prudência de calar.
A
felicidade é salutar para os corpos, mas é o desgosto que
desenvolve as forças do espírito.
No
solitário, a reclusão, ainda que absoluta e até o fim
da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desregrado da multidão
e tanto mais forte do que qualquer outro sentimento, que ele, não
podendo obter, quando sai, a admiração da porteira, dos transeuntes,
do cocheiro ali estacionado, prefere jamais ser visto, e renunciar, por
isso, a toda e qualquer atividade que o obrigue a sair para a rua.
A
maioria dos homens gasta a melhor parte da vida para tornar a outra miserável.
Muitas
vezes, não prestamos bastante atenção em coisas que
poderiam ser importantes: não ouvimos bem uma frase, não notamos
um gesto, e os esquecemos. E quando, mais tarde, ávidos por descobrir
a verdade, remontamos em dedução, folheando nossa memória
como uma coleção de testemunhos, chegamos a esta frase, a
este gesto, mas é impossível nos lembrarmos. Recomeçamos
vinte vezes o mesmo trajeto, mas inutilmente: o caminho não vai mais
adiante.
O desejo floresce; a posse faz murchar
todas as coisas.
Os
paradoxos de hoje serão os preconceitos de amanhã.
A
felicidade é salutar para o corpo, mas só a dor robustece
o espírito.
A
mentira é essencial à Humanidade. Ela desempenha um papel
tão importante como a procura do prazer, e, de resto, é comandada
por esta mesma procura. Mentimos para proteger o nosso prazer ou a nossa
honra, se a divulgação do prazer for contrária à
honra. Mentimos ao longo de toda a nossa vida, até, sobretudo e,
talvez, apenas àqueles que nos amam. Só estes, com efeito,
nos fazem temer pelo nosso prazer e desejar a sua estima.
A mentira, a mentira perfeita, acerca
das pessoas que conhecemos, sobre as relações que com elas
tivemos, sobre o nosso móbil em determinada ação formulado
por nós de uma forma completamente diferente, a mentira acerca do
que somos, acerca do que amamos, acerca do que sentimos pela criatura que
nos ama e que julga nos ter tornado semelhante a ela porque passa o dia
a nos beijar, esta mentira é das únicas coisas no mundo que
nos pode abrir perspectivas sobre algo de novo, de desconhecido, que pode
abrir em nós sentidos adormecidos para a contemplação
do Universo que nunca teríamos conhecido.
O
nosso Eu é edificado pela superposição de estados sucessivos.
Mas esta superposição não é imutável,
como a estratificação de uma montanha. Levantamentos contínuos
fazem aflorar à superfície camadas antigas.
Os seres não cessam de mudar
de lugar em relação a nós. Na marcha insensível
mas eterna do mundo, nós os consideramos como imóveis num
instante de visão, demasiado breve para que seja percebido o movimento
que os arrasta. Mas basta escolher na nossa memória duas imagens
suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto
para que eles não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente,
e a diferença das duas imagens mede a deslocação que
eles operavam em relação a nós.
Não é certo que para
a criação de uma obra literária a imaginação
e a sensibilidade sejam qualidades equivalentes, e que a segunda possa,
sem grande inconveniente, substituir a primeira, do mesmo modo que há
pessoas cujo estômago é incapaz de digerir e que encarregam
os intestinos desta função. Um homem que nasceu sensível
e que não tenha imaginação poderá, apesar disto,
escrever romances admiráveis. O sofrimento que os outros lhe causarão,
os esforços para o evitar, os conflitos que este sofrimento e a outra
pessoa cruel irão criar, tudo isto, interpretado pela inteligência,
poderá constituir matéria para um livro, não apenas
tão belo como se tivesse sido imaginado, inventado, mas também
tão exterior aos sonhos, do autor, se este, feliz, se tivesse deixado
arrastar por si mesmo, tão surpreendente para ele próprio,
tão acidental como um capricho fortuito da imaginação.
O soldado está convencido
de que tem diante de si um espaço de tempo infinitamente adiável
antes que o matem; o ladrão, antes que o prendam; o homem, em geral,
antes que o arrebate a morte. Este é o amuleto que preserva os indivíduos
– e, às vezes, os povos – não do perigo, mas do
medo ao perigo. Na verdade, da crença no perigo, motivo pelo qual
o desafiam em certos casos, sem que sejam necessariamente bravos.
É em geral com o nosso ser
reduzido ao mínimo que nós vivemos, a maioria das nossas faculdades
adormecidas, porque repousam no hábito, que sabe o que cumpre fazer
e não necessita delas.
Como
o perigo de desagradar provém principalmente da dificuldade em avaliar
quais as coisas que se notam e quais as que não são notadas,
pelo menos, por prudência, as pessoas nunca deveriam falar de si mesmas,
pois este é um tema em que seguramente a nossa visão e a alheia
não coincidem nunca. Ao mau costume de falar de si mesmo e dos próprios
defeitos, cumpre acrescentar, como formando bloco com o mesmo, esse outro
hábito de denunciar no caráter alheio defeitos análogos
aos nossos. E constantemente estamos a falar nos referidos defeitos, como
se fora uma espécie de rodeio para falar de nós mesmos, em
que se juntam os prazeres de confessar e o de nos absolvermos.
As
pessoas querem aprender a nadar e ter um pé no chão ao mesmo
tempo.
Se
sonhar um pouco é perigoso, a solução não é
sonhar menos é sonhar mais.
A Sabedoria
não se transmite. É preciso que nós a descubramos fazendo
uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém
nos pode evitar, porque a Sabedoria é uma maneira de ver as coisas.
A
amizade, a amizade que diz respeito aos indivíduos, é sem
dúvida uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade.
Mas, pelo menos, é uma amizade sincera, e o fato de ela se dirigir
a um morto, a uma pessoa ausente, confere-lhe algo de desinteressado, de
quase tocante. E, além disto, uma amizade liberta de tudo quanto
constitui a fealdade dos outros. Como não passamos todos, nós
os vivos, de mortos que ainda não entraram em funções,
todas essas delicadezas, todos esses cumprimentos no vestíbulo a
que chamamos deferência, gratidão, dedicação
e a que misturamos tantas mentiras, são estéreis e cansativas.
Além disso – desde as primeiras relações de simpatia,
de admiração, de reconhecimento – as primeiras palavras
que escrevemos tecem à nossa volta os primeiros fios de uma teia
de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já não
conseguimos nos desembaraçar nas amizades seguintes; sem contar que
durante este tempo as palavras excessivas que pronunciamos ficam como letras
de câmbio que temos que pagar ou que pagaremos mais caro ainda toda
a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar. Na leitura,
a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza. Com
os livros, não há amabilidade. Estes amigos, se passarmos
o serão com eles, é porque realmente temos vontade disto.
A eles, pelo menos, muitas vezes só os deixamos a contragosto. E
quando os deixamos, não temos nenhum desses pensamentos que estragam
a amizade — 'Que terão eles pensado de nós?' 'Não
tivemos falta de tato?' 'Teremos agradado?' — nem o medo de sermos
esquecidos por um deles. Todas estas agitações da amizade
expiram no limiar desta amizade pura e calma que é a leitura. Também
não há deferência; só rimos com o que diz Molière
na exata medida em que lhe achamos graça; quando ele nos aborrece,
não temos medo de mostrar um ar aborrecido, e quando estamos decididamente
fartos de estar com ele, o pomos no seu lugar tão bruscamente como
se ele não tivesse nem gênio nem celebridade. A atmosfera desta
pura amizade é o silêncio, mais do que a palavra. Porque nós
falamos para os outros, mas nos calamos para conosco mesmos. É por
isto que o silêncio não traz consigo, como a palavra, a marca
dos nossos defeitos, das nossas caretas. Ele é puro, é verdadeiramente
uma atmosfera. Entre o pensamento do autor e o nosso não se interpõem
elementos irredutíveis refratários ao pensamento, os nossos
egoísmos diferentes. A própria linguagem do livro é
pura (se o livro for digno desta palavra), tornada transparente pelo pensamento
do autor, que dele retirou tudo quanto não fosse ele próprio,
até o transformar na sua imagem fiel; cada uma das frases, no fundo,
semelhante às outras, dado que todas são ditas através
da inflexão única de uma personalidade. Daí, uma espécie
de continuidade, que as relações da vida e o que estas associam
ao pensamento como elementos que lhe são estranhos excluem, e que
permite muito rapidamente seguir o próprio fio do pensamento do autor,
os traços da sua fisionomia que se refletem neste espelho tranqüilo.
Sabemos apreciar os traços de cada um deles sem termos necessidade
de que sejam admiráveis, pois é um grande prazer para o espírito
distinguir estas pinturas profundas e amar com uma amizade sem egoísmo,
sem frases, como dentro de nós mesmos.
Que
barreira existe mais intransponível do que o silêncio?