LYA FETT LUFT
(Pensamentos e Reflexões)

 

 

 

Lya Luft

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Objetivo do Texto

 

 

 

Este texto apresenta para meditação alguns pensamentos e algumas reflexões da romancista, poetisa e tradutora brasileira Lya Fett Luft, que assim se autodefine: Sou fascinada pelo lado complicado. Tenho um olho alegre que vive: sou uma pessoa despachada, adoro família, adoro a Natureza. Mas eu tenho um outro olho que observa o lado difícil, sombrio. A minha literatura nunca vai ser 'aí casaram e foram felizes para sempre'. Minha literatura sempre nasceu do conflito, da dificuldade, do isolamento.

 

 

 

Breve Biografia de Lya

 

 

 

Lya Fett Luft nasceu em Santa Cruz do Sul, uma cidade de colonização alemã no Rio Grande do Sul, em 15 de setembro de 1938. A sua família tinha muito orgulho de suas raízes germânicas e, por isto, considerava-se superior aos brasileiros, embora seus integrantes tivessem chegado ao Brasil em 1825.

 

Durante sua juventude, Lya foi uma tida como uma menina desobediente e contestadora: não gostava de aprender a cozinhar nem a bordar, e chegou a ser mandada para um internato durante dois meses. Mas, desde cedo, foi uma ávida leitora – aos onze anos, já recitava poemas de Göethe e Schiller e tinha um relacionamento mais natural com o pai, um homem culto a quem idolatrava, do que com a mãe. Aos dezenove anos, ela se converteu ao Catolicismo, espantando aos pais, ambos luteranos.

 

A partir de 1959, Lya Luft passou a residir em Porto Alegre, onde se diplomou em Pedagogia e em Letras Anglo-Germânicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Passou a trabalhar, então, como tradutora de literaturas em alemão e inglês, tendo traduzido para o português mais de cem livros, dentre os quais se destacam traduções de Virginia Wolf, Rainer Maria Rilke, Hermann Hesse, Doris Lessing, Günter Grass, Botho Strauss e Thomas Mann.

 

Em 1963, aos vinte e um anos, Lya se casou com Celso Pedro Luft, então um irmão marista, dezenove anos mais velho do que ela. Eles se conheceram durante uma prova de vestibular, para a qual ela chegara atrasada. Ela e seu marido tiveram três filhos: Suzana (1965), André (1966) e Eduardo (1969).

 

De 1970 a 1982, Lya trabalhou como professora titular de Lingüística na Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras (FAPA) e obteve o grau de mestre em Lingüística em 1975, pela PUCRS, e em Literatura Brasileira em 1978, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

Em 1985, Lya Luft anulou seu casamento com Celso para viver com o psicanalista e também escritor Hélio Pellegrino, no Rio de Janeiro Eles foram apresentados um ao outro por Nélida Piñon. Em 1992, quatro anos após a morte de Pellegrino, Lya voltou a viver como esposa de Celso Luft, de quem ficou viúva em 1995.

 

No início de seu primeiro casamento, Lya Luft começou a escrever poemas, reunidos no livro Canções de Limiar (1964). Em 1972, foi publicado seu segundo livro de poemas, intitulado Flauta Doce. Quatro anos mais tarde, escreveu alguns contos e mandou-os para um editor da Nova Fronteira, Pedro Paulo Sena Madureira, que os considerou publicáveis. Em 1978, foi lançada sua primeira coletânea de contos, Matéria do Cotidiano.

 

O mesmo editor da Nova Fronteira havia aconselhado Lya a escrever romances. Daí surgiu As Parceiras, publicado em 1980. No ano seguinte, veio A Asa Esquerda do Anjo. Tais livros foram influenciados por uma visão de morte que a autora teve depois de sofrer um acidente automobilístico quase fatal em 1979.

 

Em 1982, publicou Reunião de Família e, em 1984, outras duas obras: O Quarto Fechado e Mulher no Palco. O primeiro foi lançado nos Estados Unidos sob o título The Island of the Dead. Em 1987, lançou Exílio; em 1989, o livro de poemas O Lado Fatal; e, em 1996, o premiado O Rio do Meio (ensaios), considerado a melhor obra de ficção daquele ano.

 

Em 2001, Lya recebeu o prêmio União Latina de melhor tradução técnica e científica, pela obra Lete: Arte e Crítica do Esquecimento, de Harald Weinrich.

 

No total, já escreveu e publicou 23 livros, entre romances, coletâneas de poemas, crônicas, ensaios e livros infantis.

 

Os livros de Lya Luft continuam sendo traduzidos para diversos idiomas, como alemão, inglês e italiano.

 

 

 

Pensamentos e Reflexões Luftianas

 

 

 

Quem é escravo da repetição está condenado a virar cadáver antes da hora.

 

Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, enredam em doces laços ou nos matam dolorosamente, como punhais.

 

Talvez seja utopia, mas se eu não deixar que se embote a minha sensibilidade, quando envelhecer, em vez de estar ressequida, eu terei chegado ao máximo exercício de meus afetos.

 

E se eu tivesse perguntado? E se ele tivesse me dito? Se eu tivesse merecido saber? Isto me atormentou por longo tempo. Eu me sentia muito culpada. Hoje, acredito que não saber é o que torna a vida possível.1

 

Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada.

 

Sou dos escritores que não sabem dizer coisas inteligentes sobre seus personagens, suas técnicas ou seus recursos. Naturalmente, tudo que faço hoje é fruto de minha experiência de ontem: na vida, na maneira de me vestir e me portar, no meu trabalho e na minha arte. Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve sobre nós – desde que nascemos vai elaborando o roteiro de nossa vida. O medo de perder o que se ama faz com que avaliemos melhor muitas coisas. Assim como a doença nos leva a apreciar o que antes achávamos banal e desimportante, diante de uma dor pessoal compreendemos o valor de afetos e interesses que até então pareciam apenas naturais: nós os merecíamos, só isso. Eram parte de nós. O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim – que é dor – complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância. Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes. A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura. Às vezes, é preciso recolher-se.

 

Escrevo sobre isolamento e ternura, a perturbadora ambivalência nossa, frivolidade e covardia, às vezes, a graça e o riso.

 

Um povo pouco informado acredita no primeiro demagogo que aparece, engole suas mentiras como pílulas salvadoras e, por cegueira ou por carência, segue o caminho de seu próprio infortúnio.

 

Seja como for, não sou saudosista. Acho esquisito falar 'no meu tempo', porque nosso deve ser o hoje. Somos tão fixados no mito da eterna juventude que, depois dos 30 anos, nem o tempo é mais nosso; somos exilados da própria vida.

 

Não adianta dizer que só se deve ler em português, só beber coisa produzida nacionalmente, abaixo a 'Coca-Cola' e o resto. Na sua santa burrice, os propagadores do estreitamento, da separação e do isolamento, do nivelamento por baixo, ao que parece, desejam que não sejamos continente, mas uma ilha no meio da civilização ocidental. Que talvez nem seja lá grande coisa, mas é o que temos.

 

Podemos tirar o nariz de palhaço e construir algo real com nossas escolhas.

 

 

 

 

Boa parte de nossa infelicidade nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da Antigüidade Grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo temeroso.

 

Nem toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe é mártir. Muitas são algozes, aliás.

 

Há gente que, em vez de destruir, constrói; em lugar de invejar, presenteia; em vez de envenenar, embeleza; em lugar de dilacerar, reúne e agrega.

 

Concordo inteiramente com o que escreveu um dia desses meu querido Ferreira Gullar: 'quem de verdade aprecia a Natureza não é catastrofista, não vive ameaçando de dedo em riste. Para ele, respeitar e amar (plantas, animais, o outro e a si mesmo) só é legítimo quando natural e esperançoso'.

 

Reafirmei minha certeza de que não somos apenas invejosos e ressentidos. Nem sempre nos deleitamos na arrogância burra do preconceito e do julgamento. Nem sempre contaminamos e estragamos o ambiente físico e emocional em que vivemos, num impulso suicida. Não só entupimos o coração e os ouvidos, sem falar na mente, com barulho, sujeira, tumulto, segundo o lema 'quanto pior, melhor; quanto mais feio, mais aplaudido; quanto mais agitado, mais nos seduz'. Não: às vezes a gente é melhor que isso.

 

Andar por ali nos devolve a momentânea inocência primordial perdida nos 'tsunamis' do que se chama civilização.

 

Não é preciso aprender decoração, técnicas orientais ou requintes ocidentais: tudo nasce da nossa filosofia de vida, se a tivermos. O que me faz acreditar, como as crianças, que eventualmente o bem não é esmagado – desde que a gente consiga parar, olhar, escutar e se transformar um pouco que seja.

 

Falemos ainda no mito da esposa perfeita, aquela da qual alguns homens, enquanto pulam valentemente a cerca, dizem: 'Minha mulher é uma santa'. Sinto muito, mas nem todas são. Eu até diria que, mais vezes do que sonhamos, somos umas chatas. Sempre reclamando, cobrando, controlando, não querendo intimidades, ocupadas em limpar, cozinhar, comandar, irritar, na crença vã de que boa mulher é a que mantém a casa limpa e a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços abertos, coração cálido, compreensão, interesse e ternura.

 

Devemos ser capazes de ter alegria com aquilo que temos e com o que podemos fazer numa vida produtiva, porque real.

 

Nem todo velho é bom só por ser velho. Ao contrário, se não acumularmos bom humor, autocrítica, certa generosidade e cultivo de afetos vários, seremos velhos rabugentos que afastam família e amigos.

 

 


Eu não quero nem vou julgar nada;
mas que esse Popeye, aí em cima,
está com cara de macróbio rabugento, isso ele está!
E já perdeu um olho não se sabe onde!

 

Antigamente, as coisas eram, em vários aspectos, bem piores. Não havia ar-condicionado, nem penicilina, nem avião, nem computador, nem a possibilidade de discutir abertamente assuntos graves, nem terapia para endireitar a cabeça quando ela entorta demais. A verdade era escondida debaixo do tapete, as relações humanas debaixo dos panos, e a sem-gracice devia ser bastante grande... Não havia um milhão de coisas que facilitam, ampliam, iluminam nossa vida.

 

Antigamente, nas Cruzadas a carnificina era, como a Inquisição, em nome de Deus. Queimavam-se supostas bruxas na fogueira, junto com hereges, judeus, e não sei quem mais... Mas quem fritava naquele fogo eram inocentes pais e mães de família, eventualmente crianças. Relatos históricos são arrepiantes. O povo – aristocratas e povão – assistia animadíssimo.

 

Antigamente, na guerra não se apertava um botão lançando bomba: o inimigo era decapitado ou estripado cara a cara. A média de idade das pessoas (falo das que viviam acima da miséria absoluta, mais absoluta do que a nossa) era de 20 e poucos anos: morriam cedo, desdentadas, podres, malcheirosas. Tinha-se quinze filhos para que sobrevivessem cinco no meio da imundície e da ignorância.

 

Em lugar de nos isolarmos, bem que podíamos tentar nos integrar mais (atenção, não falo em subserviência, macaquice, imitação: falo em integração). Em vez de bancarmos os subdesenvolvidos fanáticos pela chamada cultura nativa, devíamos aprender mais com quem tem 2.000 anos de tradição cultural, bibliotecas, arquitetura, arte, Filosofia. E reconhecer o que eles têm de ruim, não secretamente aspirando a isso...

 

Todos merecem algum respeito, no mínimo compaixão.

 

Não tenho nenhuma religião instituída, mas tenho uma profunda 'visão religiosa', sagrada, da Natureza, das pessoas, do outro.

 

Não existe isso de homem escrever com vigor e mulher escrever com fragilidade. Puta que pariu, não é assim. Isso não existe. É um erro pensar assim. Eu sou uma mulher. Faço tudo de mulher, como mulher. Mas não sou uma mulher que necessita de ajuda de um homem. Não necessito de proteção de homem nenhum. Essas mulheres frageizinhas, que fazem esse gênero, querem mesmo é explorar seus maridos. Isso entra também na questão literária. Não existe isso de homens com escrita vigorosa, enquanto as mulheres se perdem na doçura. Eu fico puta da vida com isso. Eu quero escrever com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem.

 

Eu imagino Deus como força de vida: luminosa, positiva, imperscrutável.

 

Essas coisas que obrigam as pessoas a ser atletas. Hoje é quase uma imposição: a ordem é fazer sexo sem parar, o tempo todo. A ordem é não fumar, não beber. É essa loucura o dia inteiro na cabeça. Quem não for resistente acaba enlouquecendo. E a vida fica para trás. Hoje, as pessoas estão sofrendo muito. Um sofrimento absolutamente desnecessário. Especialmente as mulheres, que fazem plástica logo que vêem uma ruga no rosto. Plásticas de inteira inutilidade.

 

O que me causa repugnância são o preconceito e a hipocrisia.

 

Na ambição de serem sempre jovens, as mulheres acabam perdendo o próprio rosto. São os falsos mitos da juventude para sempre. E isso também inclui a febre atual da mídia, particularmente nas revistas femininas. Só se fala em como se pode ter vários orgasmos numa única noite. Só se fala em como a mulher deve agir para segurar seu homem pelo sexo, especialmente o oral. São fórmulas de um mundo conturbado, que foge ao afeto, distante de qualquer felicidade. Essa é outra coisa para o enlouquecimento. Em todo lugar, o que existe é a supervalorização do sexo. Quem não estiver fazendo sexo sem parar o tempo todo passa a ser anormal. Muita gente fica complexada porque não consegue vários orgasmos numa noite. É tudo uma imposição.

 

 


Diamante Azul

 

 

Tento entender a vida, o mundo e o mistério, e para isso escrevo. Não conseguirei jamais entender, mas tentar me dá uma enorme alegria. Além disso, sou uma mulher simples, em busca cada vez mais de mais simplicidade. Amo a vida, os amigos, os filhos, a arte, minha casa, o amanhecer. Sou uma amadora da vida.

 

Nunca esquecerei o vento e a chuva nas árvores do imenso jardim que cercava a casa de meu pai, na minha infância. Puro maravilhamento.

 

A vida é maravilhosa, mesmo quando dolorida. Eu gostaria que na correria da época atual a gente pudesse se permitir, criar, uma pequena ilha de contemplação, de autocontemplação, de onde se pudesse ver melhor todas as coisas: com mais generosidade, mais otimismo, mais respeito, mais silêncio, mais prazer. Mais senso da própria dignidade, não importando idade, dinheiro, cor, posição, crença. Não importando nada.

 

Para viver de verdade, pensando e repensando a vida para que ela valha a pena, é preciso ser amado, amar e amar-se.

 

Tenho 65 anos, e não 165. Ademais, não há nada de estranho em um homem se apaixonar por uma velha gordinha e sensual como eu. As mulheres estão muito chatas: só falam de dieta. E, metade do tempo, não se pode nem encostar nelas, tantas as cicatrizes de plástica.

 

Das caminhadas, não abro mão, por uma razão de higiene. Quero conseguir me levantar sozinha da cadeira aos 80 anos.

 

Os homens sofrem de solidão – na medida da solidão (ou da infantilidade) de suas mulheres. Também querem ser amados, ouvidos, olhados, não só criticados e cobrados. Nós mulheres também sabemos ser muito chatas. Insatisfeitas, cobradoras, ásperas ou lamuriosas, frívolas e agitadas, chantagistas: nem sempre companheiras, poucas vezes cúmplices. E deixamos sozinho o nosso homem, que bem ou mal é o que está do nosso lado. Pois se for ruim demais, por que ainda estamos com ele?

 

O silêncio nos assusta por retumbar no espaço vazio dentro de nós.2 Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incômodas e mal resolvidas, ou se enxerga outro ângulo de nós mesmos. No susto que essa idéia provoca, queremos ruído, ruídos. Chegamos em casa e ligamos a televisão antes de largar a bolsa ou a pasta. Não é para assistir a um programa: é pela distração.

 

O que precisa um casal para ser um bom casal, amoroso, alegre, criando pontes sobre as diferenças e resolvendo com bom humor as agruras do convívio cotidiano? Penso que o bom casal é o que se gosta, com tudo o que isso significa: cumplicidade, interesse, sensualidade boa e o difícil compromisso da lealdade.

 

Muitas vezes, a salvação está na separação, embora casais não se separem apenas por frieza ou desamor.3 Às vezes houve tamanhas e tais transformações no curso do tempo que o mais digno, o mais libertador para todos, é uma separação com respeito e amizade. Não acho um fracasso uma relação que dure dez, vinte anos e depois termine. O 'que seja eterno enquanto dure', de Vinicius, não era cinismo, porém constatação de que um amor pode se transformar, não em rancor, mas em um afeto que foge às definições e permanece mesmo depois de uma separação. Desde que não se abafe essa possibilidade debaixo de camadas de rancor e desejo de vingança.

 

Para ser boa mãe, não é preciso se vitimizar: a mãe-mártir desperta culpa e causa aflição. Só uma pessoa que se respeita e se valoriza pode realmente amar seus filhos, prepará-los para não serem almas subalternas e lhes servir de eventual apoio.

 

O desperdício de nossa vida, talentos e oportunidades é o único débito que no final não se poderá saldar: estaremos no arquivo morto.

 

Fico imaginando que se a gente fizesse uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria ligeiro no ralo do bom senso. Sobrariam alguns compromissos reais, dos quais não há como fugir: provavelmente saúde, prestação do apartamento, escola (a pública estando como está) e alguns outros (poucos). Comprar não é um dever, quando não se trata do indispensável ou do que faz bem. Comprar pode ser, e tem sido, em grande parte moda, mania, quase neurose. Cada um que arrume o baú de suas prioridades e faça a arrumação que quiser ou puder.

 

A morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo).

 

Se o outro servir de cabide para os nossos sonhos mais extravagantes de perfeição, o primeiro vento contrário derruba o pobre ídolo, que não tem culpa de nada.

 

Mas, o que pode haver de positivo em ficar velho? — perguntaram-me um dia. As qualidades interiores vão sobressaindo, afirmando-se sobre as físicas. Ao contrário da pele, cabelos, brilho de olhar e firmeza de carnes, elas tendem a se aprimorar: inteligência, bondade, dignidade, escutar o outro. Capacidade de compreender. Mas é preciso que exista algo interior para sobressair: o desgaste físico será compensado pelo brilho de dentro.

 

Apesar das minhas fragilidades, avanço.

 

Viver deveria ser – até o último pensamento e derradeiro olhar – transformar-se.

 

Mãe não tem de ser amiguinha, tem de ser mãe. Tem de ser aquela a quem filhos, mesmo adultos, sabem que podem recorrer quando tudo falhou, até os melhores amigos. Não ser a falsa jovenzinha competindo em maquilagem e roupas com a filha ou parecendo seduzir colegas do filho – criando constrangimentos que ela ignora como se não vivesse no real. Conceitos pouco simpáticos, severos? A vida pode ser bem mais severa do que isto.

 

Não comandamos o destino das pessoas amadas nem ao menos podemos sofrer em lugar delas, mas ter filhos é ser gravemente responsável. Não apenas por comida, escola, saúde, mas pela personalidade desses filhos: mais complicado do que garantir uma sobrevivência física saudável.

 

A fantasia não pede licença para se desenrolar...

 

Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas. Em plena tarde da semana, caminhar na calçada... Sentar ao Sol na varanda do apartamento... Deitar na grama do parque ou jardim, por menor que ele seja, e, como criança, olhar as nuvens, interpretando suas formas: camelo, coelho, árvore ou anjo.

 

O ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada.

 

E escutar a música do Universo, o canto do sabiá...

 

 

 

 

 

 

 

Canção das Mulheres


Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada, o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco – em lugar de voltar logo à sua vida, não porque lá está a sua verdade, mas, talvez, seu medo ou sua culpa.

Que se começo a chorar sem motivo depois de um dia daqueles, o outro não desconfie logo que é culpa dele ou que não o amo mais.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo: — Olha que estou tendo muita paciência com você!

Que se me entusiasmo por alguma coisa o outro não a diminua, nem me chame de ingênua, nem queira fechar essa porta necessária que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça.

Que quando, sem querer, eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que quando levanto de madrugada e ando pela casa, o outro não venha logo atrás de mim reclamando: — Mas que chateação essa sua mania; volte pra cama!

Que se eu peço um segundo drinque no restaurante o outro não comente logo: — Poxa, mais um?

Que se eu eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro – filho, amigo, amante, marido – não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que, mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa – uma mulher.

 

 

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos – para não morrermos soterrados na poeira da banalidade, embora pareça que ainda estamos vivos.

 

A vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.

 

Quando menos se espera, ele chega – o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do 'shopping', no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação. E, sem ter programado, a gente pára pra pensar... Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.

 

Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.

 

Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria, de vez em quando, parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono – o sonho que, afinal, nessa idade, ainda é a vida.

 

Pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e, quem sabe, finalmente respirar.

 

Somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele, todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.

 

 

Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e das possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar – que lhe atribui identidade – e sem o nosso pensamento – que lhe confere alguma ordem.

 

Viver, como talvez morrer, é recriar-se. A vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente, reprogramada. Conscientemente, executada. Muitas vezes, ousada.

 

Suportar sem se submeter. Aceitar sem se humilhar. Entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. E sonhar, porque se desistimos disso, apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.

 

Que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que, afinal, se conseguiu fazer.

 

Alguma dura experiência me ensinou que nem sempre a vida é o bem supremo. O bem supremo seria uma vida em que, em qualquer idade, houvesse espaço para afetos e projetos.

 

O lado negro – que nada tem a ver com um poético Lago Negro de Gramado – está falsamente quieto em algum canto de todos nós.

 

E os terroristas, que andam se explodindo e arrasando vidas a granel, devem pensar mais ou menos na mesma linha: meu país está ferrado mesmo, aí vêm os caras de uma organização qualquer e se instalam por aqui dizendo que vão nos ajudar. Nada disso, eles querem é o petróleo, a riqueza, nos esmagar, tudo. Então, vamos explodir um ônibus cheio de criancinhas. Ou aquele edifício, bem ali onde fica o escritório do imperialista que veio nos explorar. Dentes por dentes. Quem sabe, logo uma dentadura inteira!

 

Não queremos perder nem deveríamos perder: saúde, pessoas, posição, dignidade ou confiança. Mas, perder e ganhar fazem parte do nosso processo de humanização.

 

Acho que a vida é um processo... É como subir uma montanha. Mesmo que no fim não se esteja tão forte fisicamente, a paisagem visualizada é melhor.

 

Homens são passos; mulheres são perfumes
Que se aproximam, param e se esquivam
Sem lançar raízes nessa treva.
Beijam-se às vezes, como num murmúrio,
Pra depois, num mundo só de beijos...

 

Se não conheço os mapas, escolho o imprevisto: qualquer sinal é um bom presságio.

 

A quatro mãos, escrevemos o roteiro para o palco de meu tempo: o meu destino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos a sério.

 

As pessoas são responsáveis e inocentes em relação ao que acontece com elas, sendo autoras de boa parte de suas escolhas e omissões.4

 

Certa vez, errei uma tecla do computador, e em lugar de 'perdas' saiu 'peras'. Eu ia corrigir, mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.5

 

Porque entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte só um leve sacudir de panos – e a poeira do tempo, com todo o tempo que eu perdi, tudo recobre, tudo apaga, tudo torna simples e tão indiferente.

 

Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.

Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo – esplêndido – pensamento.

 

Apesar de todos os medos, escolho a ousadia. Apesar dos ferros, construo a dura liberdade.

 

Um anjo vem todas as noites: senta-se ao pé de mim, e passa
sobre meu coração a asa mansa, como se fosse meu melhor amigo.

 

Lembro-me do passado, não com melancolia ou saudade, mas com a sabedoria da maturidade que me faz projetar no presente aquilo que, sendo belo, não se perdeu.

 

Meu coração se transforma a cada experiência. Mas, ainda palpita, sobressalta e se assusta. Ainda é vulnerável como quando eu tinha dez anos.

 

Não dês valor maior ao meu silêncio;
E se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
Teus lábios nos meus para ouvir.

 

A crise da autoridade começa em casa quando temos medo de dar ordens e limites ou mesmo castigos aos filhos. Estamos iludidos por uma série de psicologismos falsos. Muito crime, pouco castigo! Leis antiquadas ou insuficientes. Assim, como reféns, chegamos em casa como ratos assustados na rua.

 

A dor eventual é o preço da vida: passagem, seguro e pedágio.

 

O amor, mais que tudo, nos revela: manifesta nossas tendências – o que preferimos e escolhemos para nós.

 

Eu sabia que era preciso tempo. Cada perda tem sua hora de acabar, cada morto seu prazo de partir, e não depende muito da vontade da gente.

 

Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem.

 

As muitas fomes é o que impulsiona o sonho. Fome de nos sentirmos bem na nossa pele de espécie pensante.

 

Com as perdas, só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos, o proveito é saborear cada um como uma boa fruta de estação.

 

Cuidar naturalmente de seu povo, onde quer que seja , não seria a melhor propaganda de bons políticos?

 

Tanta gente bandida vivendo feito rei, e tanta gente boa crucificada quando quer fazer o bem e consertar o mal!

 

Sei que todos, algum dia, acordamos com a senhora desilusão sentada na beira da cama. Mas a gente vai à luta e inventa um novo sonho, uma esperança, mesmo recauchutada: vale tudo, menos chorar tempo demais. Pois sempre há coisas boas para pensar. Algumas se realizam. Criança sabe disso.

 

Andamos tão desencantados que ser decente parece virtude, ser honesto ganha medalha e ser mais ou menos coerente merece aplausos.

 

Voz que nunca desiste, na mais negra das águas da mais longa das noites.

 

O essencial não tem nome nem forma: é descoberta e assombro, glória ou danação de cada um.

 

Que a gente se divirta sem se matar, que ame sem se contaminar, que aprenda sem se enganar, que viva sem se vender.

 

E a dor faz parte.

 

 

 

Eu penso assim:

 

 

 

Por mais polêmico que possa aparentar,

nunca se perde nada; sempre se ganha.

Por mais kuru'pírico que possa kuru'pízar,

algo se aprende – até com o caamanha.6

 

A vida é uma seqüência de experiências:

umas são agradáveis; outras, nem tanto.

Todavia, nas presenças ou nas absências,

sempre haveremos de escutar um canto.

 

Nada se perde: tudo é experimentação.

Seja no contentamento, seja na opressão,

seja lá no que seja, tudo é um catalisador.

 

Seja no bem-estar, seja no adoecimento,

seja lá no que seja, tudo é um fomento.

Nada se esperdiça: tudo é Bem e Amor.

 

 

 

Tudo é fomento. Tudo é Bem. Tudo é Amor.
Seja lá no que seja, tudo é um catalisador.

 

 

 

______

Notas:

1. Não saber até poderá tornar a vida possível, mas tornará a Santa Vida impossível.

2. Depende do silêncio. Se for Silêncio, não assusta, ao contrário: Illumina!

3. Também por interesse, por acomodação, por medo de ter que enfrentar a vida sozinho et cetera e tal. Também tem o troço de e o que os outros vão pensar?

4. Não somos autores apenas de boa parte de nossas escolhas e omissões. Somos autores e responsáveis por todas as nossas escolhas e por todas as nossas omissões. Por tudo. O fortuito acontece porque desconhecemos a Lei que o tornaria previsto, educativo e necessário. Logo, como já disse em trabalho anterior, não há bala perdida; há bala com endereço certinho: país, estado cidade, rua etc. Agora, isto não quer dizer fatalidade imutável. Pode[re]mos mudar o endereço da bala, não para que atinja outro, o que seria um crime; mas para que ela erre o alvo ou nem sequer venha a ser disparada. Isto significa que o aprendizado pela dor é mera opção nossa, pois podemos transmutar a dor em amor, e, depois, em compreensão. Aí, não haverá mais bala que possa nos ferir!

 

Conhecimento da Lei

 

5. Em lugar de 'perdas' sair 'peras', tudo bem. Mas, certa vez, um juiz de primeira instância do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em uma sentença, digitou 'peido' em lugar de 'pedido'. Comeu a letra dê! Na segunda instância, os desembargadores se acabaram de tanto rir com o escorrego do juiz da primeira instância. Um deles, até brincou: — Como é que nós vamos julgar esse 'peido'? Um outro, logo respondeu: — É simples; antes, a gente toma um Luftal!

6. O caamanha é um ser imaginário da mitologia ameríndia, de características obscuras, que supostamente vive na mata e de que se diz ser o curupira. Já segundo o historiador, folclorista, antropólogo, advogado e jornalista brasileiro Luís da Câmara Cascudo (Natal, 30 de dezembro de 1898 – Natal, 30 de julho de 1986), o caamanha é a mãe-do-mato – um mito do Estado do Pará. Nos acampamentos, dentro das matas, os trabalhadores, ao se encaminharem para o serviço, desatam as redes ou desarmam as camas, com medo de que a mãe-do-mato, protetora dos animais fabulosos, venha colocar em cada leito algum graveto de madeira, como sinal de que possa fazer o efeito de morfina, prostrando em sono profundo o incauto que ali se deitar, predispondo-o a ser devorado por esses animais.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://www.cdvagabundo.com.br
/tag/nerd/page/47

http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Caamanha

http://citapense.blogspot.com/
2008/04/citaes_04.html

http://centroculturalzennbell.blogspot.com
/2010/01/lya-luft_07.html

http://pensador.uol.com.br/autor/Lya_Luft/3/

http://www.butterscotchtheclown.ca/
birthday_parties.html

http://pensador.uol.com.br/autor/Lya_Luft/2/

http://pensador.uol.com.br/autor/Lya_Luft/

http://gifs-animados.lwam.com.br/gif-animado
-de-um-cubo-formado-por-esferas/

http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/
030304/trecho_pensar.html

http://veja.abril.com.br/
030304/p_068.html

http://www.releituras.com/
lyaluft_bio.asp

http://veja.abril.com.br/
200405/ponto_de_vista.html

http://veja.abril.com.br/
090205/ponto_de_vista.html

http://pt.wikiquote.org/wiki/Lya_Luft

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

 

Música de fundo:

Bolero
Compositor: Joseph-Maurice Ravel

Fonte:

http://www.4shared.com/get/EDkbWadl/
Bolero_De_Ravel.html