Quem
é escravo da repetição está
condenado a virar cadáver antes da hora.
Ambivalentes
como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução.
Embalam ou derrubam, enredam em doces laços ou nos matam dolorosamente,
como punhais.
Talvez
seja utopia, mas se eu não deixar que se embote a minha sensibilidade,
quando envelhecer, em vez de estar ressequida, eu terei chegado ao máximo
exercício de meus afetos.
E
se eu tivesse perguntado? E se ele tivesse me dito? Se eu tivesse merecido
saber? Isto me atormentou por longo tempo. Eu me sentia muito culpada. Hoje,
acredito que não saber é o que torna a vida possível.1
Viver,
como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí
apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada.
Sou
dos escritores que não sabem dizer coisas inteligentes sobre seus
personagens, suas técnicas ou seus recursos. Naturalmente, tudo que
faço hoje é fruto de minha experiência de ontem: na
vida, na maneira de me vestir e me portar, no meu trabalho e na minha arte.
Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve
sobre nós – desde que nascemos vai elaborando o roteiro de
nossa vida. O medo de perder o que se ama faz com que avaliemos melhor muitas
coisas. Assim como a doença nos leva a apreciar o que antes achávamos
banal e desimportante, diante de uma dor pessoal compreendemos o valor de
afetos e interesses que até então pareciam apenas naturais:
nós os merecíamos, só isso. Eram parte de nós.
O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo
dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas
aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia
e generosidade. E como habitualmente tem um fim – que é dor
– complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão
da nossa arrogância. Quem nos quiser amar agora terá de vir
com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais
difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas
forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes.
A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos
sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura.
Às vezes, é preciso recolher-se.
Escrevo
sobre isolamento e ternura, a perturbadora ambivalência nossa, frivolidade
e covardia, às vezes, a graça e o riso.
Um
povo pouco informado acredita no primeiro demagogo que aparece, engole suas
mentiras como pílulas salvadoras e, por cegueira ou por carência,
segue o caminho de seu próprio infortúnio.
Seja
como for, não sou saudosista. Acho esquisito falar 'no meu tempo',
porque nosso deve ser o hoje. Somos tão fixados no mito da eterna
juventude que, depois dos 30 anos, nem o tempo é mais nosso; somos
exilados da própria vida.
Não
adianta dizer que só se deve ler em português, só beber
coisa produzida nacionalmente, abaixo a 'Coca-Cola' e o resto. Na sua santa
burrice, os propagadores do estreitamento, da separação e
do isolamento, do nivelamento por baixo, ao que parece, desejam que não
sejamos continente, mas uma ilha no meio da civilização ocidental.
Que talvez nem seja lá grande coisa, mas é o que temos.
Podemos
tirar o nariz de palhaço e construir algo real com nossas escolhas.
Boa
parte de nossa infelicidade nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes
esmagados ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos
mitos da Antigüidade Grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou
nosso inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos
míopes e passo temeroso.
Nem
toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe é mártir.
Muitas são algozes, aliás.
Há
gente que, em vez de destruir, constrói; em lugar de invejar, presenteia;
em vez de envenenar, embeleza; em lugar de dilacerar, reúne e agrega.
Concordo
inteiramente com o que escreveu um dia desses meu querido Ferreira Gullar:
'quem de verdade aprecia a Natureza não é catastrofista, não
vive ameaçando de dedo em riste. Para ele, respeitar e amar (plantas,
animais, o outro e a si mesmo) só é legítimo quando
natural e esperançoso'.
Reafirmei
minha certeza de que não somos apenas invejosos e ressentidos. Nem
sempre nos deleitamos na arrogância burra do preconceito e do julgamento.
Nem sempre contaminamos e estragamos o ambiente físico e emocional
em que vivemos, num impulso suicida. Não só entupimos o coração
e os ouvidos, sem falar na mente, com barulho, sujeira, tumulto, segundo
o lema 'quanto pior, melhor; quanto mais feio, mais aplaudido; quanto mais
agitado, mais nos seduz'. Não: às vezes a gente é melhor
que isso.
Andar
por ali nos devolve a momentânea inocência primordial perdida
nos 'tsunamis' do que se chama civilização.
Não
é preciso aprender decoração, técnicas orientais
ou requintes ocidentais: tudo nasce da nossa filosofia de vida, se a tivermos.
O que me faz acreditar, como as crianças, que eventualmente o bem
não é esmagado – desde que a gente consiga parar, olhar,
escutar e se transformar um pouco que seja.
Falemos
ainda no mito da esposa perfeita, aquela da qual alguns homens, enquanto
pulam valentemente a cerca, dizem: 'Minha mulher é uma santa'. Sinto
muito, mas nem todas são. Eu até diria que, mais vezes do
que sonhamos, somos umas chatas. Sempre reclamando, cobrando, controlando,
não querendo intimidades, ocupadas em limpar, cozinhar, comandar,
irritar, na crença vã de que boa mulher é a que mantém
a casa limpa e a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços
abertos, coração cálido, compreensão, interesse
e ternura.
Devemos
ser capazes de ter alegria com aquilo que temos e com o que podemos fazer
numa vida produtiva, porque real.
Nem
todo velho é bom só por ser velho. Ao contrário, se
não acumularmos bom humor, autocrítica, certa generosidade
e cultivo de afetos vários, seremos velhos rabugentos que afastam
família e amigos.
Eu não quero nem vou julgar nada;
mas que esse Popeye, aí em cima,
está com cara de macróbio rabugento, isso ele está!
E já perdeu um olho não se sabe onde!
Antigamente,
as coisas eram, em vários aspectos, bem piores. Não havia
ar-condicionado, nem penicilina, nem avião, nem computador, nem a
possibilidade de discutir abertamente assuntos graves, nem terapia para
endireitar a cabeça quando ela entorta demais. A verdade era escondida
debaixo do tapete, as relações humanas debaixo dos panos,
e a sem-gracice devia ser bastante grande... Não havia um milhão
de coisas que facilitam, ampliam, iluminam nossa vida.
Antigamente,
nas Cruzadas a carnificina era, como a Inquisição, em nome
de Deus. Queimavam-se supostas bruxas na fogueira, junto com hereges, judeus,
e não sei quem mais... Mas quem fritava naquele fogo eram inocentes
pais e mães de família, eventualmente crianças. Relatos
históricos são arrepiantes. O povo – aristocratas e
povão – assistia animadíssimo.
Antigamente,
na guerra não se apertava um botão lançando bomba:
o inimigo era decapitado ou estripado cara a cara. A média de idade
das pessoas (falo das que viviam acima da miséria absoluta, mais
absoluta do que a nossa) era de 20 e poucos anos: morriam cedo, desdentadas,
podres, malcheirosas. Tinha-se quinze filhos para que sobrevivessem cinco
no meio da imundície e da ignorância.
Em
lugar de nos isolarmos, bem que podíamos tentar nos integrar mais
(atenção, não falo em subserviência, macaquice,
imitação: falo em integração). Em vez de bancarmos
os subdesenvolvidos fanáticos pela chamada cultura nativa, devíamos
aprender mais com quem tem 2.000 anos de tradição cultural,
bibliotecas, arquitetura, arte, Filosofia. E reconhecer o que eles têm
de ruim, não secretamente aspirando a isso...
Todos
merecem algum respeito, no mínimo compaixão.
Não
tenho nenhuma religião instituída, mas tenho uma profunda
'visão religiosa', sagrada, da Natureza, das pessoas, do outro.
Não
existe isso de homem escrever com vigor e mulher escrever com fragilidade.
Puta que pariu, não é assim. Isso não existe. É
um erro pensar assim. Eu sou uma mulher. Faço tudo de mulher, como
mulher. Mas não sou uma mulher que necessita de ajuda de um homem.
Não necessito de proteção de homem nenhum. Essas mulheres
frageizinhas, que fazem esse gênero, querem mesmo é explorar
seus maridos. Isso entra também na questão literária.
Não existe isso de homens com escrita vigorosa, enquanto as mulheres
se perdem na doçura. Eu fico puta da vida com isso. Eu quero escrever
com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem.
Eu
imagino Deus como força de vida: luminosa, positiva, imperscrutável.
Essas
coisas que obrigam as pessoas a ser atletas. Hoje é quase uma imposição:
a ordem é fazer sexo sem parar, o tempo todo. A ordem é não
fumar, não beber. É essa loucura o dia inteiro na cabeça.
Quem não for resistente acaba enlouquecendo. E a vida fica para trás.
Hoje, as pessoas estão sofrendo muito. Um sofrimento absolutamente
desnecessário. Especialmente as mulheres, que fazem plástica
logo que vêem uma ruga no rosto. Plásticas de inteira inutilidade.
O
que me causa repugnância são o preconceito e a hipocrisia.
Na
ambição de serem sempre jovens, as mulheres acabam perdendo
o próprio rosto. São os falsos mitos da juventude para sempre.
E isso também inclui a febre atual da mídia, particularmente
nas revistas femininas. Só se fala em como se pode ter vários
orgasmos numa única noite. Só se fala em como a mulher deve
agir para segurar seu homem pelo sexo, especialmente o oral. São
fórmulas de um mundo conturbado, que foge ao afeto, distante de qualquer
felicidade. Essa é outra coisa para o enlouquecimento. Em todo lugar,
o que existe é a supervalorização do sexo. Quem não
estiver fazendo sexo sem parar o tempo todo passa a ser anormal. Muita gente
fica complexada porque não consegue vários orgasmos numa noite.
É tudo uma imposição.
Diamante
Azul
Tento
entender a vida, o mundo e o mistério, e para isso escrevo. Não
conseguirei jamais entender, mas tentar me dá uma enorme alegria.
Além disso, sou uma mulher simples, em busca cada vez mais de mais
simplicidade. Amo a vida, os amigos, os filhos, a arte, minha casa, o amanhecer.
Sou uma amadora da vida.
Nunca
esquecerei o vento e a chuva nas árvores do imenso jardim que cercava
a casa de meu pai, na minha infância. Puro maravilhamento.
A
vida é maravilhosa, mesmo quando dolorida. Eu gostaria que na correria
da época atual a gente pudesse se permitir, criar, uma pequena ilha
de contemplação, de autocontemplação, de onde
se pudesse ver melhor todas as coisas: com mais generosidade, mais otimismo,
mais respeito, mais silêncio, mais prazer. Mais senso da própria
dignidade, não importando idade, dinheiro, cor, posição,
crença. Não importando nada.
Para
viver de verdade, pensando e repensando a vida para que ela valha a pena,
é preciso ser amado, amar e amar-se.
Tenho
65 anos, e não 165. Ademais, não há nada de estranho
em um homem se apaixonar por uma velha gordinha e sensual como eu. As mulheres
estão muito chatas: só falam de dieta. E, metade do tempo,
não se pode nem encostar nelas, tantas as cicatrizes de plástica.
Das caminhadas, não abro mão,
por uma razão de higiene. Quero conseguir me levantar sozinha da
cadeira aos 80 anos.
Os
homens sofrem de solidão – na medida da solidão (ou
da infantilidade) de suas mulheres. Também querem ser amados, ouvidos,
olhados, não só criticados e cobrados. Nós mulheres
também sabemos ser muito chatas. Insatisfeitas, cobradoras, ásperas
ou lamuriosas, frívolas e agitadas, chantagistas: nem sempre companheiras,
poucas vezes cúmplices. E deixamos sozinho o nosso homem, que bem
ou mal é o que está do nosso lado. Pois se for ruim demais,
por que ainda estamos com ele?
O
silêncio nos assusta por retumbar no espaço vazio dentro de
nós.2
Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos
espiam coisas incômodas e mal resolvidas, ou se enxerga outro ângulo
de nós mesmos. No susto que essa idéia provoca, queremos ruído,
ruídos. Chegamos em casa e ligamos a televisão antes de largar
a bolsa ou a pasta. Não é para assistir a um programa: é
pela distração.
O que precisa um casal para ser um
bom casal, amoroso, alegre, criando pontes sobre as diferenças e
resolvendo com bom humor as agruras do convívio cotidiano? Penso
que o bom casal é o que se gosta, com tudo o que isso significa:
cumplicidade, interesse, sensualidade boa e o difícil compromisso
da lealdade.
Muitas
vezes, a salvação está na separação,
embora casais não se separem apenas por frieza ou desamor.3
Às vezes houve tamanhas e tais transformações no curso
do tempo que o mais digno, o mais libertador para todos, é uma separação
com respeito e amizade. Não acho um fracasso uma relação
que dure dez, vinte anos e depois termine. O 'que seja eterno enquanto dure',
de Vinicius, não era cinismo, porém constatação
de que um amor pode se transformar, não em rancor, mas em um afeto
que foge às definições e permanece mesmo depois de
uma separação. Desde que não se abafe essa possibilidade
debaixo de camadas de rancor e desejo de vingança.
Para
ser boa mãe, não é preciso se vitimizar: a mãe-mártir
desperta culpa e causa aflição. Só uma pessoa que se
respeita e se valoriza pode realmente amar seus filhos, prepará-los
para não serem almas subalternas e lhes servir de eventual apoio.
O desperdício de nossa vida,
talentos e oportunidades é o único débito que no final
não se poderá saldar: estaremos no arquivo morto.
Fico
imaginando que se a gente fizesse uma faxina em nossos compromissos e deveres,
boa parte desapareceria ligeiro no ralo do bom senso. Sobrariam alguns compromissos
reais, dos quais não há como fugir: provavelmente saúde,
prestação do apartamento, escola (a pública estando
como está) e alguns outros (poucos). Comprar não é
um dever, quando não se trata do indispensável ou do que faz
bem. Comprar pode ser, e tem sido, em grande parte moda, mania, quase neurose.
Cada um que arrume o baú de suas prioridades e faça a arrumação
que quiser ou puder.
A
morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo).
Se
o outro servir de cabide para os nossos sonhos mais extravagantes de perfeição,
o primeiro vento contrário derruba o pobre ídolo, que não
tem culpa de nada.
—
Mas, o que pode haver de positivo em ficar velho? —
perguntaram-me um dia. As qualidades interiores vão sobressaindo,
afirmando-se sobre as físicas. Ao contrário da pele, cabelos,
brilho de olhar e firmeza de carnes, elas tendem a se aprimorar: inteligência,
bondade, dignidade, escutar o outro. Capacidade de compreender. Mas é
preciso que exista algo interior para sobressair: o desgaste físico
será compensado pelo brilho de dentro.
Apesar
das minhas fragilidades, avanço.
Viver deveria ser – até
o último pensamento e derradeiro olhar – transformar-se.
Mãe
não tem de ser amiguinha, tem de ser mãe. Tem de ser aquela
a quem filhos, mesmo adultos, sabem que podem recorrer quando tudo falhou,
até os melhores amigos. Não ser a falsa jovenzinha competindo
em maquilagem e roupas com a filha ou parecendo seduzir colegas do filho
– criando constrangimentos que ela ignora como se não vivesse
no real. Conceitos pouco simpáticos, severos? A vida pode ser bem
mais severa do que isto.
Não
comandamos o destino das pessoas amadas nem ao menos podemos sofrer em lugar
delas, mas ter filhos é ser gravemente responsável. Não
apenas por comida, escola, saúde, mas pela personalidade desses filhos:
mais complicado do que garantir uma sobrevivência física saudável.
A
fantasia não pede licença para se desenrolar...
Agenda pode ser tormento e prisão.
Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas. Em plena tarde da semana,
caminhar na calçada... Sentar ao Sol na varanda do apartamento...
Deitar na grama do parque ou jardim, por menor que ele seja, e, como criança,
olhar as nuvens, interpretando suas formas: camelo, coelho, árvore
ou anjo.
O ócio é uma possibilidade
infinita a ser explorada.
E escutar a música do Universo,
o canto do sabiá...
Canção
das Mulheres
Que o outro saiba quando
estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas
demais.
Que
o outro note quando preciso de silêncio e não vá
embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos
porque estou quieta.
Que
o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com
minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com
delicadeza ou bom humor.
Que
o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim nem se
aproveite disso.
Que
se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim,
porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.
Que
se estou apenas cansada, o outro não pense logo que estou
nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.
Que
o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse
ficar comigo um pouco – em lugar de voltar logo à sua
vida, não porque lá está a sua verdade, mas,
talvez, seu medo ou sua culpa.
Que
se começo a chorar sem motivo depois de um dia daqueles,
o outro não desconfie logo que é culpa dele ou que
não o amo mais.
Que
se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem
fazer alarde nem dizendo: — Olha que estou tendo muita paciência
com você!
Que
se me entusiasmo por alguma coisa o outro não a diminua,
nem me chame de ingênua, nem queira fechar essa porta necessária
que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça.
Que
quando, sem querer, eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais
pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.
Que
quando levanto de madrugada e ando pela casa, o outro não
venha logo atrás de mim reclamando: — Mas que chateação
essa sua mania; volte pra cama!
Que
se eu peço um segundo drinque no restaurante o outro não
comente logo: — Poxa, mais um?
Que
se eu eventualmente perco a paciência, perco a graça
e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.
Que
o outro – filho, amigo, amante, marido – não
me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva,
mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.
Que,
finalmente, o outro entenda que, mesmo se às vezes me esforço,
não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma
pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada
e audaciosa – uma mulher.
|
Não
lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção
de nós mesmos – para não morrermos soterrados na poeira
da banalidade, embora pareça que ainda estamos vivos.
A
vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia,
mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
Quando
menos se espera, ele chega – o sorrateiro pensamento que nos faz parar.
Pode ser no meio do 'shopping', no trânsito, na frente da tevê
ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga,
do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação
e da resignação. E, sem ter programado, a gente pára
pra pensar... Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e
reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois
refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos demasiado frívolos:
buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um
lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o
primeiro dever seria, de vez em quando, parar e analisar: quem a gente é,
o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações
também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de
idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso
de pelúcia e prosseguir, no sono – o sonho que, afinal, nessa
idade, ainda é a vida.
Pensar não é apenas
a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas
de si mesmo e olhar em torno, e, quem sabe, finalmente respirar.
Somos
inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual.
É o poderoso ciclo da existência. Nele, todos os desastres
e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Se nos
escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não
escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos
que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos
possíveis ganhos.
Os
ganhos ou os danos dependem da perspectiva e das possibilidades de quem
vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido
sem o nosso olhar – que lhe atribui identidade – e sem o nosso
pensamento – que lhe confere alguma ordem.
Viver,
como talvez morrer, é recriar-se. A vida não está aí
apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente, reprogramada.
Conscientemente, executada. Muitas vezes, ousada.
Suportar
sem se submeter. Aceitar sem se humilhar. Entregar-se sem renunciar a si
mesmo e à possível dignidade. E sonhar, porque se desistimos
disso, apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena.
Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que
trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
Que
o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que,
afinal, se conseguiu fazer.
Alguma dura experiência me
ensinou que nem sempre a vida é o bem supremo. O bem supremo seria
uma vida em que, em qualquer idade, houvesse espaço para afetos e
projetos.
O
lado negro – que nada tem a ver com um poético Lago Negro de
Gramado – está falsamente quieto em algum canto de todos nós.
E
os terroristas, que andam se explodindo e arrasando vidas a granel, devem
pensar mais ou menos na mesma linha: meu país está ferrado
mesmo, aí vêm os caras de uma organização qualquer
e se instalam por aqui dizendo que vão nos ajudar. Nada disso, eles
querem é o petróleo, a riqueza, nos esmagar, tudo. Então,
vamos explodir um ônibus cheio de criancinhas. Ou aquele edifício,
bem ali onde fica o escritório do imperialista que veio nos explorar.
Dentes por dentes. Quem sabe, logo uma dentadura inteira!
Não
queremos perder nem deveríamos perder: saúde, pessoas, posição,
dignidade ou confiança. Mas, perder e ganhar fazem parte do nosso
processo de humanização.
Acho
que a vida é um processo... É como subir uma montanha. Mesmo
que no fim não se esteja tão forte fisicamente, a paisagem
visualizada é melhor.
Homens
são passos; mulheres são perfumes
Que se aproximam, param e se esquivam
Sem lançar raízes nessa treva.
Beijam-se às vezes, como num murmúrio,
Pra depois, num mundo só de beijos...
Se
não conheço os mapas, escolho o imprevisto: qualquer sinal
é um bom presságio.
A
quatro mãos, escrevemos o roteiro para o palco de meu tempo: o meu
destino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos a sério.
As
pessoas são responsáveis e inocentes em relação
ao que acontece com elas, sendo autoras de boa parte de suas escolhas e
omissões.4
Certa
vez, errei uma tecla do computador, e em lugar de 'perdas' saiu 'peras'.
Eu ia corrigir, mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei
assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.5
Porque
entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o
mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte só um leve sacudir
de panos – e a poeira do tempo, com todo o tempo que eu perdi, tudo
recobre, tudo apaga, tudo torna simples e tão indiferente.
Lembro-me
de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.
Se
é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo – esplêndido – pensamento.
Apesar de todos os medos, escolho
a ousadia. Apesar dos ferros, construo a dura liberdade.
Um
anjo vem todas as noites: senta-se ao pé de mim, e passa
sobre meu coração a asa mansa, como se fosse meu melhor amigo.
Lembro-me
do passado, não com melancolia ou saudade, mas com a sabedoria da
maturidade que me faz projetar no presente aquilo que, sendo belo, não
se perdeu.
Meu
coração se transforma a cada experiência. Mas, ainda
palpita, sobressalta e se assusta. Ainda é vulnerável como
quando eu tinha dez anos.
Não dês valor maior
ao meu silêncio;
E se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
Teus lábios nos meus para ouvir.
A crise da autoridade começa
em casa quando temos medo de dar ordens e limites ou mesmo castigos aos
filhos. Estamos iludidos por uma série de psicologismos falsos. Muito
crime, pouco castigo! Leis antiquadas ou insuficientes. Assim, como reféns,
chegamos em casa como ratos assustados na rua.
A
dor eventual é o preço da vida: passagem, seguro e pedágio.
O
amor, mais que tudo, nos revela: manifesta nossas tendências –
o que preferimos e escolhemos para nós.
Eu
sabia que era preciso tempo. Cada perda tem sua hora de acabar, cada morto
seu prazo de partir, e não depende muito da vontade da gente.
Deve
ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto,
mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem.
As muitas fomes é o que impulsiona
o sonho. Fome de nos sentirmos bem na nossa pele de espécie pensante.
Com as perdas, só há
um jeito: perdê-las. Com os ganhos, o proveito é saborear cada
um como uma boa fruta de estação.
Cuidar
naturalmente de seu povo, onde quer que seja , não seria a melhor
propaganda de bons políticos?
Tanta
gente bandida vivendo feito rei, e tanta gente boa crucificada quando quer
fazer o bem e consertar o mal!
Sei
que todos, algum dia, acordamos com a senhora desilusão sentada na
beira da cama. Mas a gente vai à luta e inventa um novo sonho, uma
esperança, mesmo recauchutada: vale tudo, menos chorar tempo demais.
Pois sempre há coisas boas para pensar. Algumas se realizam. Criança
sabe disso.
Andamos
tão desencantados que ser decente parece virtude, ser honesto ganha
medalha e ser mais ou menos coerente merece aplausos.
Voz
que nunca desiste, na mais negra das águas da mais longa das noites.
O essencial não tem nome nem
forma: é descoberta e assombro, glória ou danação
de cada um.
Que
a gente se divirta sem se matar, que ame sem se contaminar, que aprenda
sem se enganar, que viva sem se vender.
E
a dor faz parte.
Eu
penso assim:
Por
mais polêmico que possa aparentar,
nunca
se perde nada; sempre se ganha.
Por
mais kuru'pírico
que possa kuru'pízar,
algo
se aprende – até com o caamanha.6
A
vida é uma seqüência de experiências:
umas
são agradáveis; outras, nem tanto.
Todavia,
nas presenças ou nas absências,
sempre
haveremos de escutar um canto.
Nada
se perde: tudo é experimentação.
Seja
no contentamento, seja na opressão,
seja
lá no que seja, tudo é um catalisador.
Seja
no bem-estar, seja no adoecimento,
seja
lá no que seja, tudo é um fomento.
Nada
se esperdiça: tudo é Bem e Amor.
Tudo
é fomento. Tudo é Bem. Tudo é Amor.
Seja lá no que seja, tudo é um catalisador.