LISIS

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

Introdução e Objetivo do Estudo

 

 

 

Hoje, estou divulgando algumas migalhinhas (editadas aqui e ali) da obra Lisis – um diálogo platônico que se ocupa com o conceito de phylia (amizade, amor) – uma parte importante das relações humanas entre os gregos. Pertence à série conhecida como primeiros diálogos, composto na época em que o Alto Iniciado Platão ainda era jovem. Este texto é essencialmente um monólogo de Sócrates. Foi, provavelmente, composto anteriormente ao Carmides em virtude de os elementos fundamentais do sistema platônico estarem visíveis ao longo do texto. Os personagens são: Sócrates, Hipotales, Ctesipo, Menexeno e Lisis. Enfim, a excepcionalidade de Lisis reside, precisamente, em ser o primeiro documento literário em que foi levada a cabo uma investigação sistemática sobre o amor e a amizade, na qual se elaboram e superam algumas das idéias tradicionais sobre estes conceitos.

 

Devo informar, finalmente, que algumas notas de rodapé, que são apresentadas ao final, foram editadas de algumas notas da tradução espanhola que utilizei para elaborar este rascunho. Como o autor das referidas notas não é citado, também não o posso citar.

 

 

 

Fragmentos da Obra Lisis

 

 

 

Como não deveria ser imponderado o amante que, ao contrário dos que não amam, tem os seus pensamentos em quem ama, e que não tem nada de especial para dizer que não seja infantil?

 

Os mais belos, quando alguém os elogia e louva, incham com orgulho e arrogância.

 

É o cúmulo da estupidez usar a sedução dos discursos e dos cantos para assustar o amado.

 

Alguém que se automutile não significa que seja um bom poeta.

 

Como poderá ser feliz um homem que é escravo e que não pode fazer o que quiser?

 

Quem vive escravizado não tira proveito da riqueza que possui.

 

Como é possível que aquele que é livre seja governado por um escravo?

 

Não somos amigos de ninguém nem nossos amigos são nossos amigos em virtude de coisas inúteis. Ninguém ama ninguém em virtude do que é inútil.

 

Ninguém pode se ter por sábio, se não sabe nada.1

 

Há algo que desejo desde criança, como outros desejam outras coisas. Há quem queira ter cavalos, cães, ouro e, também, ser honrado. Para mim, no entanto, estas coisas me deixam frio; mas, ter amigos é uma coisa que me apaixona. Eu prefiro ter um bom amigo a ter a melhor codorna do mundo ou o melhor galo, e, até mesmo, por Zeus, mais do que o melhor cavalo e do que o melhor cão. Eu prefiro ter um amigo a todo o ouro de Dario, tão amigo que sou dos meus amigos.2 E aí, aparecem duas questões: quando alguém ama alguém, quem é amigo de quem: o amante do amado ou o amado ou do amante? Ou amante e amado não se diferenciam em nada?

 

Não há diferença entre o amante e o amado – se chegam realmente a ser amigos entre si mesmo que apenas um ame verdadeiramente o outro.

 

 

 

 

Todavia, é verdade, amando tudo o que podem, uns crêem que não são correspondidos, outros, que até são odiados, de tal sorte que um ama e o outro é amado.

 

Como é possível que alguém seja amigo de alguém, se ambos não se amam entre si? Logo, basta que o amado não ame o amante para que seja impossível tanto a amizade quanto o amor. Não haverá amigo para o amante, se ele não for correspondido em seu amor pelo amado. E assim, não é o amado o que é amigo, mas o amante.

 

Não poderá haver, portanto, amizade ao conhecimento, se o conhecimento, por sua vez, não corresponder.

 

'Feliz aquele que tem por amigos seus filhos, tem cavalos de único casco e um hóspede estrangeiro.' (Sólon3, apud Platão).

 

Quem odeia é o inimigo, não o odiado. Mas, muitos amam aqueles que são seus inimigos, e odeiam, por outro lado, aqueles que são seus amigos, e são, assim, amigos de seus inimigos e inimigos de seus amigos, se é que o amado é um amigo, e não só aquele que ama.

 

E uma grande injustiça, meu amigo, ou melhor, é totalmente impossível ser amigo do inimigo e inimigo do amigo. Quem odeia é inimigo do odiado.

 

Os poetas são, para nós, como pais e guias saber.

 

'Sempre há um Deus que aproxima os semelhantes.' (Odisséia, Homero4, apud Platão).

 

Aquele que é dessemelhante e indiferente consigo mesmo dificilmente chegará a ser semelhante a outrem e seu amigo.

 

 

 

O semelhante é amigo do semelhante, da mesma forma que o bom é amigo do bom. Já o mau, nem com o bom ou com outro mau poderá jamais chegar a ter uma verdadeira amizade.

 

'O oleiro se irrita com o oleiro, o recitador se irrita com o recitador e o mendigo se irrita com o mendigo.' (Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo5, apud Platão). O semelhante é o maior inimigo do semelhante.

 

Os que mais se assemelham estão cheios de inveja, de rivalidade e de ódio.6

 

Não é o semelhante o que cada um deseja: o seco quer o úmido, o frio busca o quente, o amargo prefere o doce, o agudo se aproxima do obtuso, o vazio é atraído pelo cheio e o cheio pelo vazio, e assim por diante, pois o contrário é o alimento de seu contrário, já que o semelhante não tira proveito do semelhante.7

 

 

 

 

Por haver oposição [contradição], algo é amigo de algo, e, necessariamente, tem que haver, entrementes, por menor que seja, um vínculo de amizade.

 

O bom é o belo.

 

Há três gêneros: o bom, o mau e o que não é nem bom nem mau. O que não pode ser é que algo seja amigo do mau. E também não pode ser que o que não é nem bom nem mau seja amigo de uma coisa que não seja nem boa nem má. Portanto, só o que não é nem bom nem mau poderá ser amigo do bom pela presença do que é mau ou do mal. Por exemplo: um corpo enfermo dependerá da Medicina, e a amará em um certo sentido. E assim, por causa da enfermidade e com vistas à saúde, o doente é [ou se torna] amigo do médico.

 

Aqueles que já sabem, geralmente, não buscam o saber, sejam deuses, sejam homens. E, tampouco, querem saber aqueles que estão cheios de insciência, que são os maus, porque nenhum mau busca o saber. Sobram, portanto, os ignorantes, que não são nem bons nem maus, mas que percebem que não sabem o que não sabem. Assim, somente procuram o saber os que não são nem bons nem maus, pois todos os que são maus não procuram o conhecimento, tanto quanto os que são bons, porque, como foi mencionado anteriormente, nem o dessemelhante é amigo do dessemelhante nem o semelhante é amigo do semelhante.

 

Tanto no que diz respeito à alma, quanto no que diz respeito ao corpo, aquele que não é nem bom nem mau – pela presença do mal tende precisamente ao bem, ao bom e ao belo.

 

Há um Primeiro Amado, e por causa Dele todas as outras coisas são amadas.

 

Se nada nos causasse dano, não necessitaríamos de ajuda alguma. E assim, fica claro, então, que só por causa do mal desejamos e amamos o bem, porque, sendo o mal a enfermidade, o bem é a Medicina contra o mal. Contudo, não havendo enfermidade, não haverá necessidade de Medicina.

 

Desaparecida a causa, é impossível que persista existindo aquilo que provoca o efeito.

 

 

 

O que quer quer algo e por algum motivo; por isto, o que não é nem bom nem mau quer o bem por causa do mal.

 

Aquele que deseja deseja porque está privado daquilo que deseja. Logo, aquele que está privado de algo é amigo de sua privação. Portanto, o amor, o desejo e a amizade convergem, ao que parece, para o mesmo ponto.

 

Alguém que deseja o outro o ama de alguma forma. E não o desejaria ou o amaria, se não houvesse algum tipo de conaturalidade com o ser amado, seja em relação à alma, seja em relação ao seu modo de ser, seja no seu modo de sentir, seja por sua aparência.

 

O bem é conatural ao bem; o mal é conatural ao mal; e o que não é nem bom nem mau é conatural ao que não é bom nem é mau.

 

Enfim, não fomos capazes de chegar a descobrir o que é um verdadeiro amigo.

 

 

 

 

 

 

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Notas:

1. Só a educação leva ao crescimento intelectual e humano. Por isto, tenho dito e insistido: só a compreensão liberta. É claro que, provavelmente, jamais venhamos a compreender tudo; mas, não tentar compreender o que é possível de ser compreendido é se entregar à escravidão da ignorância.

2. A prática da Filosofia – como explica Walter Omar Kohan, Professor Titular de Filosofia da Educação da UERJ, no texto Pensando a Prática da Filosofia na Escola – exige amizade. Sócrates sabia muito bem isto: a relação entre os praticantes da Filosofia não é uma relação entre mestre e discípulo, mas entre amigos, porque Filosofia e amizade são relações de interioridade entre pares; não há exterioridade na Filosofia e na amizade. Os praticantes da Filosofia são amigos porque se procuram mutuamente pela busca que compartilham, pelo pathos comum que os move, porque levam a Filosofia dentro de si e porque tudo o que é dos amigos é comum (koina ta philon). Na Ética a Nicômaco, Aristóteles justifica: pois a amizade existe em comunidade (en koinoniai gar he philia). Sem comunidade não há amizade nem Filosofia.

3. Sólon (Atenas, 638 a.C. – 558 a.C.) foi um legislador, jurista e poeta grego antigo. Foi considerado pelos antigos como um dos sete sábios da Grécia antiga e, como poeta, compôs elegias morais e filosóficas. Em 594 a.C., iniciou uma reforma das estruturas social, política e econômica da pólis ateniense. Aristocrata de nascimento, inicialmente trabalhava no comércio, passando depois a se dedicar inteiramente à política. Fez reformas abrangentes, sem conceder aos grupos revolucionários e sem manter os privilégios dos eupátridas (aqueles que, na antiga Atenas, eram membros de uma das grandes famílias que compunham a aristocracia). Criou a eclesia (assembléia popular), da qual participavam todos os homens livres atenienses, filhos de pai e mãe atenienses e maiores de trinta anos. Sua obra como legislador ou árbitro da constituição, como o define Aristóteles, se articula em três pontos principais: 1º) abolição da escravidão por dívidas; 2º) reforma timocrática ou censitária: a participação não era mais por nascimento, mas censitária, através do Conselho de 400; e 3º) reforma do sistema ático de pesos e medidas. Membro de uma nobre família arruinada em meio ao contexto de valorização dos bens móveis na pólis ateniense, Sólon se reconstituiu economicamente através da atividade comercial. Profundo conhecedor das leis, foi convocado como legislador pela aristocracia em meio a um contexto de tensão social na pólis, quando os demais grupos sociais viam as reformas de Drácon (ocorridas por volta de 621 a.C.) como algo insuficiente. Na sua reforma, Sólon proibiu a hipoteca da terra e a escravidão por endividamento através da chamada Lei Seixatéia; dividiu a sociedade pelo critério censitário (pela renda anual) e criou o tribunal de justiça. Suas atitudes, no entanto, desagradaram a aristocracia, que não queria perder seus privilégios oligárquicos, e o povo, que desejava mais do que uma política censitária, e, sim, a promoção de uma reforma agrária. Sólon também modificou o código de Leis de Drácon, que já não era mais seguido por causa de sua severidade. A punição do roubo, que era a morte, passou a ser uma multa igual ao dobro do valor roubado. Dentre os 6.000 cidadãos, chamados no Tribunal de Heliaia de heliastas, eram escolhidos por votação os julgadores, sempre em número ímpar, quando passavam a ser chamados de dikastas, que atuavam nas sessões de justiça – as chamadas dikasterias. No julgamento de Sócrates houve 801 dikastas. Por ocasião da entrada de Pisístrato na cena política ateniense, Sólon se retirou em exílio voluntário. Enfim, é espantoso que há 2.500 anos a.C,. tenha dito Sólon: A justiça é como uma teia de aranha: retém os insetos pequenos, enquanto os grandes transfixam a teia e ficam livres.

4. Homero (século VIII a.C.) foi um poeta épico da Grécia Antiga, ao qual, tradicionalmente, se atribui a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisséia. Os gregos antigos geralmente acreditavam que Homero era um indivíduo histórico, mas estudiosos modernos são céticos, pois nenhuma informação biográfica de confiança foi transmitida a partir da Antigüidade Clássica, e os próprios poemas homéricos manifestamente representam o culminar de muitos séculos de história contada oralmente e um bem desenvolvido sistema já muitas vezes usado em composições poéticas. De acordo com o reconhecido erudito em Antigüidade Clássica e Filologia Martin Litchfield West, Homero não é o nome de um poeta histórico, mas um nome fictício ou construído. E, de repente, me lembrei de Nostradamus!

5. Hesíodo foi um poeta da Grécia Antiga. Nasceu, viveu e faleceu em Ascra, no fim do século VIII a.C.

6. Inveja + Rivalidade + Ódio Baixa Auto-estima + Insegurança + Ignorância.

7. A Teoría da Atração dos Opostos lembra alguns fragmentos de Heráclito de Éfeso (aproximadamente 535 a.C. – 475 a.C.) e sua intuição dos diversos componentes da Harmonia Invisível. Panta rei os potamós, traduzido como tudo flui como um rio é o célebre aforismo no qual a tradição filosófica subseqüente identificou sinteticamente o pensamento de Heráclito com o tema do devir, em contraposição à Filosofia do Ser, própria de Parmênides de Eléia (cerca de 530 a.C. – 460 a.C.). O devir – a mudança que acontece em todas as coisas – é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam, coisas frias esquentam; coisas úmidas secam, coisas secas umedecem, coisas vivas morrem, coisas mortas renascem etc. A realidade acontece, então, não em uma das alternativas – posto que ambas são apenas parte de uma mesma realidade – mas, sim, na mudança ou, como Heráclito entendia: na guerra entre os opostos. Esta guerra é a realidade, aquilo que podemos dizer que é. A doença faz da saúde algo agradável e bom, ou seja, se não houvesse a doença, não haveria porque se valorizar a saúde, por exemplo. Heráclito ainda considera que, nesta harmonia, os opostos coincidem da mesma forma que o princípio e o fim, em um círculo, ou a descida e a subida, em um caminho, pois o mesmo caminho é de descida e de subida. O quente é o mesmo que o frio, pois o frio é o quente quando muda (ou, dito de outra forma, o quente é o frio depois de mudar, e o frio, o quente depois de mudar, como se ambos, quente e frio, fossem versões diferentes da mesma coisa). Isto é, mais ou menos, como comentei em outro texto: cara e coroa fazem parte da mesma moeda.

 

 

 

8. Se isto é assim, não há razão alguma para se buscar nada além ou fora deste Primeiro Amado. O desejo de bem alcança Nele sua plenitude e também sua imortalidade. Neste Primeiro Amado não é possível a presença de qualquer mal, e, por conseguinte, a instabilidade do desejo.

 

Páginas da Internet consultadas:

http://pt.wikipedia.org/wiki/
Heraclito_de_%C3%89feso

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Archimedes-screw
_one-screw-threads_with-ball_3D-view_animated.gif

http://pt.wikipedia.org/wiki/Homero

http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3lon

http://www.gifsoup.com/view/
730970/tom-and-jerry.html

http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/
fundamentos.html#_ftn1

http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADsis

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Pesquisa
ObraForm.do?select_action=&co_autor=173

 

Fundo musical:

Tarantella Parigina (Mandoline)

Fonte:

http://www.4shared.com/get/iCDFWpB7/
04-Tarantella_Parigina__mandol.html