Minha
carreira foi decidida em um domingo de outono de 1934, às 9 horas
da manhã, a partir de um telefonema.
O
antropólogo é o astrônomo das ciências sociais:
ele está encarregado de descobrir um sentido para as configurações
muito diferentes, por sua ordem de grandeza e seu afastamento, das que estão
imediatamente próximas do observador.
O sábio não é
o homem que fornece as verdadeiras respostas; é quem faz as verdadeiras
perguntas.
Meu
único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que
começou sem o ser humano e vai terminar sem ele. Isto é algo
que sempre deveríamos ter presente.
Na
época em que fui para o Brasil [1935],
viajávamos de navio; não havia aviões, e os navios
eram também cargueiros, e faziam muitas escalas. Nunca me esquecerei
que, ao chegar — estávamos em alto-mar havia dezenove dias,
acho — e a primeira percepção que tivemos do Novo Mundo
— ainda não se podia ver a costa — foi um cheiro. Um
cheiro difícil de descrever, porque as associações
são fáceis demais: cheiro de tabaco, cheiro de pimenta...
Enfim, tudo isto está ligado ao Novo Mundo, mas não sei se
é exatamente isto. Mas é, sem dúvida, uma das dimensões
da natureza brasileira, que não é apenas visual ou tátil;é
também olfativa.
Ah,
sim, gostava muito de pinga! E me lembro também, da fabricação,
uma vez por semana, da rapadura, nas fazendas do interior, para o consumo
dos peões, de seus filhos e de suas famílias. Isto também
tinha um cheiro e um gosto muito especiais.
Atualmente
sou um opositor radical da caça, mas não era um mau caçador...
E, o que é ainda mais lamentável, eu gostava disto.
Sentimentos de tipos diferentes se
mesclam.
Há
dois casos no mundo, no século XX, em que modos de vida tradicionais
se mantiveram por mais tempo: a América do Sul e a Nova Guiné,
as montanhas da Nova Guiné, que foram descobertas em 1930 - 35, ao
passo que o contato com a América se manteve constante desde o século
XVI. O contato com os ameríndios nunca foi interrompido, de modo
que é natural que ocupem, no pensamento do Ocidente, um lugar privilegiado.
Quando
eu era estudante, no início de minha carreira, insurgi-me contra
a escola... Enfim, contra Durkheim1,
porque, na mesma época, descobria a etnologia anglo-americana e,
é claro, eu era especialmente sensível à diferença
entre o teórico e as pessoas que falavam de coisas que tinham ido
ver em campo. Como eu mesmo tinha um grande gosto pela aventura, sentia-me
mais próximo deles. Mas creio que, posteriormente, compreendi bem
melhor e retornei, em grande parte, à tradição durkheimiana.
Eu
era professor de Filosofia em um liceu do interior, e não podia conceber
passar a vida toda dando um curso de Filosofia, talvez aperfeiçoado
ano após ano, mas que, de qualquer modo, seria sempre o mesmo. Naquela
época, a Etnologia estava se constituindo como disciplina na França
— o Instituto de Etnologia foi fundado em 1925, creio, e o Museu do
Homem, para a Exposição Universal de... 1937, acho —
e o recrutamento era feito em grande parte entre os jovens filósofos.
O exemplo mais notável foi o de Jacques Soustelle, que era mais novo
do que eu, e que, desde muito jovem, tinha certeza absoluta de que se tornaria
mexicanista, e que, logo depois de concluída a licenciatura, voltou-se
para o Museu do Homem e para a Etnologia. De modo que era uma via de saída...
Escolhi-a por isto. E também porque tinha vontade de ver o mundo.
Ver
de perto, para ver de longe… A expressão é de Hami,
que era um grande autor dramático japonês. Ele dizia que, para
ser um bom ator, era preciso olhar para si mesmo, o tempo todo, com os olhos
afastados do espectador. Acho que o olhar distanciado pode ser aprendido,
mas acho também que é algo que se pode possuir desde o nascimento,
uma espécie de característica da personalidade de cada um.
No meu caso, creio que se trata da segunda hipótese.
Acho
que há muitos modos de ser antropólogo e dese tornar antropólogo...
E há muitas moradas na Casa do Senhor... A vocação
é um dos modos, há provavelmente outros.
Quando
me falta inspiração, quando estou sem idéias, pego
um monte de fichas — eu deveria colocar isto no imperfeito porque
se refere ao tempo em que eu trabalhava — e, só de espalhá-las,
misturá-las, agrupá-las ao acaso, às vezes me vem uma
idéia. As fichas, para mim, são exatamente o oposto de um
método, são o meio de ter idéias imprevistas.
As
culturas não desaparecem nunca; elas se misturam com outras e dão
origem a uma outra cultura.
Quando
se é etnólogo, é preciso se abster de fazer afirmações
acerca de sociedades que não se viu viver, que não se observou...
2
Eu
diria que preservar a diversidade das culturas humanas é a única
esperança que nos resta. Creio que isto acontecerá ou, pelo
menos, espero que sim. Este é um período crítico e,
sinceramente, espero que não dure. Fissuras haverão de ser
reproduzidas... Naturalmente não onde estavam antes, e certamente
não onde poderíamos supor que surgissem. De qualquer modo,
creio que a Humanidade permanecerá diversa, pois esta é sua
única chance.
Como
etnólogo, só posso constatar que o mundo contemporâneo
perdeu a fé em seus próprios valores. Sei que este não
é nem o nosso problema principal, mas todos sabemos que, no final
das contas, nenhuma civilização pode se desenvolver se não
possui valores aos quais se agarrar profundamente. Acredito, por sinal,
que nenhuma civilização possa sequer se manter na situação
em que a nossa se encontra.
Cada história é acompanhada
por um número indeterminado de anti-histórias, cada uma das
quais é complementar a outras.
A
linguagem é uma razão humana que tem suas
razões, e que o homem não sabe.
Nada
se parece mais com o pensamento mítico do que ideologia política.
A
Humanidade está constantemente às voltas com dois processos
contraditórios: um tende a criar um sistema unificado, enquanto o
outro visa manter ou restaurar a diversificação.
Não sou fundador do relativismo
antropológico. Ele existe desde Montaigne.3
A
lição que tirei de Montaigne é que estamos condenados
a viver e pensar simultaneamente em vários níveis, e que esses
níveis são incomensuráveis. Há saltos existenciais
para passar de um outro. O último nível é um ceticismo
integral. Mas não se pode viver com ceticismo integral. Seria preciso
se suicidar ou se refugiar nas montanhas. Somos obrigados a viver ao mesmo
tempo em outros níveis em que esse ceticismo está moderado
ou totalmente esquecido. Para fazer ciência, é preciso fazer
como se o mundo exterior tivesse uma realidade e como se a razão
humana fosse capaz de compreendê-lo. Mas é 'como se'.
Para
mim, o relativismo cultural não tem conteúdo positivo. É
simplesmente a constatação de que não dispomos de nenhum
critério absoluto para julgar uma cultura em relação
à outra. Eu paro diante desta incapacidade. Não tento substituí-la
por algo positivo, como seria a doutrina da UNESCO, por exemplo.
O
dever moral de cada cultura é tentar continuar sendo o que é,
preservando sua identidade.
Dizer que demarcar as terras dos
índios é lhes dar um direito excepcional me parece completamente
contrário à realidade. Só há um meio de tentar
remediar o enorme mal que lhes foi feito no momento da colonização,
quando foram exterminados por meios diretos ou indiretos. É preciso
lhes devolver uma parte, ainda que pequena, do que foi o território
deles, isto é, a totalidade do continente. Se eu tivesse o poder,
devolveria aos índios o máximo que pudesse. Mas, ao mesmo
tempo, reconheço que, do ponto de vista brasileiro, há problemas.
Trata-se de um grande país, que tende a se modernizar até
o seu interior mais profundo. Não tenho também argumentos
decisivos a propor.
O
que norteia o pensamento ecológico é que ele proclama a vontade
de defender solidariamente a Natureza e o homem. Defender a Natureza para
as necessidades e dentro dos interesses do homem. Estou convencido de que
as coisas são profundamente contraditórias. Se tivesse que
tomar posições ecológicas, diria que o que me interessa
são as plantas e os animais - e danem-se os homens. É óbvio
que se trata de uma posição indefensável. Por isto,
guardo-a para mim.
Desde sempre, o papel da crítica
foi tanto traduzir, por meios literários, a emoção
do espectador diante da obra, quanto tentar compreender justamente as razões
e os mecanismos desta emoção. O problema é que acho
que hoje não existe mais arte. Há alguns modos de expressão,
que continuamos chamando por nomes tradicionais – pintura, música,
literatura –
mas creio que sejam
outras coisas. Não são mais as mesmas artes.
Quando vejo um quadro não-figurativo,
penso que é sempre menos belo do que o espetáculo não-figurativo
que me oferece a Natureza na forma de um cristal, um jogo de luz etc.
Cristal
de Água
A
mais bela fotografia não existirá jamais diante
de um belo quadro.
O etnólogo interessa-se sobretudo
por aquilo que não é escrito, não tanto porque os povos
que ele estuda são incapazes de escrever, mas porque aquilo que o
interessa é diferente de tudo aquilo que os homens sonham habitualmente
fixar na pedra ou no papel.
Se, como escrevi em 'Raça
e História', existe entre as sociedades humanas um certo ótimo
de diversidade além do qual elas não conseguiram prosseguir,
mas abaixo do qual tampouco podem descer sem perigo, deve-se reconhecer
que esta diversidade, em
grande parte, resulta
do desejo de cada cultura de se opor às que a cercam, de se distinguir
delas, em suma, de serem elas mesmas; não se ignoram, imitam-se ocasionalmente,
mas, para não perecerem, é necessário que, sob outros
aspectos, persista entre elas uma certa impermeabilidade.
Que
não haja oposição entre a coerção e a
liberdade; que, ao contrário, elas se auxiliem. Toda liberdade é
exercida para contornar ou superar uma coerção, e toda a coerção
apresenta fissuras ou pontos de menor resistência que são incitações
à criação. Nada, sem dúvida, consegue dissipar
melhor a ilusão contemporânea de que a liberdade não
suporta entraves e de que a educação, a vida social e a arte
requerem para desabrochar um ato de fé na onipotência da espontaneidade,
ilusão que certamente não é a causa, mas na qual é
possível ver um aspecto significativo da crise que o Ocidente atravessa
hoje.
Escrever
é um sofrimento.
A
História não está ligada ao homem nem a qualquer objeto
em particular. Consiste inteiramente no seu método; a experiência
comprova que ele é indispensável para inventariar a integralidade
dos elementos de uma estrutura qualquer, humana ou não humana. Longe,
portanto, de a pesquisa da inteligibilidade resultar na História
como o seu ponto de chegada;é a História que serve de ponto
de partida para toda a busca de inteligibilidade. Assim como se diz de certas
carreiras, a História leva a tudo, mas contanto que se saia dela.
O
dia em que se chegar a compreender a vida como uma função
da matéria inerte será para descobrir que ela possui propriedades
diferentes das que lhe atribuíam.
Não
sei se chegaremos, por exemplo, a um mundo como o descrito por George Orwell,4
no
romance 1984. Qualquer que seja sua forma, porém, não acredito
que os próximos anos serão um período feliz para a
humanidade.
Tenho medo, é claro, da hecatombe
nuclear. Não um medo pessoal, pois estou muito velho e, aliás,
até já poderia ter morrido. Não me sinto atingido nesse
nível. Mas temo, digamos assim, pelo que concerne a meus filhos.5
Para
serem felizes, os cidadãos dos países ricos precisariam incorporar
algumas lições das sociedades primitivas. Para os índios,
ao mesmo tempo, será preciso saber utilizar o que há de útil
para eles na civilização ocidental, sem esquecer seu próprio
passado e o valor de suas tradições culturais.
As
sociedades modernas poderiam aprender com as sociedades primitivas mais
do que se imagina. Por mais humildes e modestas que possam parecer, estas
sociedades têm um prodigioso conhecimento de seu meio natural. Dificilmente
esse meio natural poderá ser desenvolvido sem a incorporação,
por parte das sociedades modernas, desse saber. Há muitos casos de
países como o Brasil que tentaram transformar florestas em áreas
cultiváveis. Ao final de poucos anos sempre se descobre que não
existem mais solos férteis, porque eram justamente as raízes
das grandes árvores que garantiam a riqueza das terras. Os índios
não fariam uma coisa dessas. Por isto eu acho que, nas regiões
em que ainda existem populações indígenas, deveríamos
desenvolver uma colaboração com elas – e não
atuar contra elas.
O
trabalho que se realiza dentro do Estruturalismo é um trabalho artesanal,
distante do grande público. O Estruturalismo
é um esforço para aplicar, na medida do possível,
o pensamento científico àquelas áreas que chamamos,
impropriamente, de ciências sociais ou de ciências humanas.
Digo impropriamente porque elas não são, nem nunca serão,
ciências. Um etnólogo, por exemplo, está envolvido demais
com o objeto de seu estudo para abandonar os preconceitos e as formas de
pensamento que herdou. Isto se explica, no fundo, pelo fato de que as chamadas
ciências sociais e ciências humanas não são coisas
que se possam isolar do mundo real. Podemos progredir um pouco em seu conhecimento,
mas isto é tudo.
Ninguém
pode impedir um país grande e moderno, como o Brasil, de ocupar a
totalidade de seu território e desenvolvê-lo. O que me parece
desejável, porém, é que isto seja feito com mais consideração
pelas sociedades indígenas. Precisamos respeitar seus territórios,
para que elas possam sobreviver. É preciso dar tempo para que os
índios façam suas escolhas, e não trazê-los à
força para dentro da civilização moderna. Isto não
traria vantagens só para os índios, mas também para
as sociedades modernas.
Sempre acreditei que o homem sempre
pensou corretamente. É verdade que o homem não pode pensar,
sempre, com os mesmos instrumentos intelectuais. As sociedades primitivas
pensam com imagens em vez de pensar com conceitos. Mas, mesmo com imagens,
os homens pensavam tão bem como com conceitos.
Não
acredito que se possa falar em progresso com 'P', maiúsculo. As sociedades
humanas apresentam – das mais primitivas às mais desenvolvidas
–
um certo número
de escolhas que foram realizadas em direções diferentes, e
nós não temos nenhum sistema de valores que nos permita dizer
que uma escolha é superior a outra.6
Para mim, seria mais adequado falar em progressos, no plural. Não
há dúvida de que em vários domínios –
na ciência, por exemplo –
um considerável
progresso foi realizado.
Eu
me sinto um homem do século XIX, época em que as grandes conquistas
da civilização já estavam desenvolvidas em grau suficiente
para que eu, homem do século XX, não me sentisse muito deslocado.
Também era uma época em que ainda existia uma diversidade
de culturas que, hoje, desaparece diante de nossos olhos. No século
XIX elas estavam relativamente intactas. Seria o século ideal para
mim.