CHERRY JUBILEE

 

CHERRY  JUBILEE

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

Música de fundo: Cherry
Fonte:
http://www.win.it/midi/c/cherry_lips.htmlh

 

 

Sábado, 21:00 horas, em um restaurante do Rio de Janeiro...

 

 

Antes de atender ao casal que inspirou a crônica que se seguirá, o garçom atendeu a um maluquete. Vejam só o que aconteceu:

O garçom: — Em que posso servi-lo, cavalheiro?

O cavalheiro: — Vocês têm aqui predicado verbal, predicado nominal e predicado verbo-nominal?

O garçom: — Desculpe. Não entendi.

O cavalheiro: — Então me traga um artigo indefinido, um pronome possessivo e um verbo defectivo ao vinagrete.

O garçom: — Desculpe. Não entendi de novo. O senhor deseja que eu chame o maître?

O cavalheiro: — Não. Deixa pra lá. Sopa de cebolas serve.

O garçom: — Ah! Isso nós temos.

O cavalheiro: — Ainda bem! Eu estou morrendo de hiperbibasmo palatal.

O garçom: — Ahn! Isso deve ser muito sério. Não se preocupe, cavalheiro. O senhor ficará satisfeito com a sopa. As cebolas são importadas. Vêm de Trás-os-Montes especialmente para nós. Quando são descascadas gemem uma espécie de fado. São maravilhosas!

 

Vinte minutos depois...

 

 

O maître: — Sejam benvindos. Desejam uma mesa?

O marido: Sim, por favor.

O maître: — Há uma mesa aconchegante e muito boa ali. Os senhores ficarão confortáveis e satisfeitos.

A esposa: Naquele canto? De jeito nenhum. Eu não vim a este restaurante para ficar isolada das pessoas. O senhor arranje uma mesa mais no centro senão iremos embora.

O maître: Pois não, senhora.

A esposa: Não! Como não?

O maître: Não... Sim. Eu disse 'pois não'. Vou conseguir a mesa do seu agrado.

A esposa: Ah, bom! Senão nós iríamos embora.

O marido: — Obrigado.

 

A  MESA

 

Durante o couvert...

 

 

A esposa: — Garçom... Garçom... Garçom...

Garçom: Pois não, senhora.

A esposa: — Este pão está velho e a manteiga está rançosa. Troca essa porcaria senão iremos embora.

O garçom: — Imediatamente senhora.

 

PÃO

 

Durante o jantar...

 

 

A esposa: — Garçom... Garçom...

O garçom: Sim madame.

A esposa: Chame o maître imediatamente.

O garçom: Sim madame.

O maître: — Posso ajudá-la?

A esposa: Troca esse bife e essas batatas. O bife parece uma sola de sapato. Eu pedi o bife mal passado. Gosto dele sangrando. E essas batatas estão chochas. Um restaurante como este servir assim... É uma vergonha. Troca logo tudo isso senão iremos embora.

O maître: — Não se preocupe senhora. Vou mandar providenciar tudo para a senhora.

A esposa: Acho bom. Espero que você faça jus ao salário que recebe aqui.

O marido: Querida: Você não acha que está reclamando demais?

A esposa: Cala a boca. Quem está pagando sou eu. Quero tudo da maneira como eu quero. Eu estou pagando e eles têm que fazer da maneira que eu quero. E você deveria estar do meu lado e não contra mim. Então, vê se cala a boca e come.

O marido: Querida...

A esposa: Cala a boca.

 

 

BIFE

 

Algum tempo depois...

 

 

O maître: Então senhora? Ficou satisfeita?

A esposa: Mais ou menos. As batatas estavam muito finas e muito duras. E encontrei uma pedra no arroz. Quase quebrei o meu dente. Aqui neste restaurante vocês não catam o arroz?

O maître: Claro que sim, senhora. Foi um acidente. Eu chamarei a atenção do cozinheiro.

A esposa: Acho bom, senão não voltaremos mais aqui, e não recomendaremos este restaurante a ninguém.

 

Durante a sobremesa...

 

 

O garçom: — Os senhores desejam escolher uma sobremesa?

A esposa: Traga-me um 'cherry jubilee'.

O garçom: Desculpe. Não entendi.

A esposa: 'Cherry jubilee'.

O garçom: Acho que não temos essa sobremesa aqui. Vou chamar o maître.

O maître: Pois não, senhora. Quer dizer... Posso ajudá-la em alguma coisa?

A esposa: Claro. Você está sendo pago para isso. Eu pedi um 'cherry jubilee' e o garçom disse que não há esta sobremesa aqui. Que restaurante é este que não tem 'cherry jubilee'?

O maître: Realmente. Quase ninguém conhece esta sobremesa. Por isso não consta do cardápio. Agora, temos outras sobremesas, frutas da época...

A esposa: De jeito nenhum. Fruta eu como em casa. Ou 'cherry jubilee', ou nada.

O maître: Pois... Os senhores então aceitam um cafezinho?

A esposa: Não. Café me deixa excitada e faz mal à saúde. Não sei como as pessoas podem tomar café. Traga a conta. E não demore. Já estou cansada de ficar aqui.

O maître: Sim senhora.

 

A conta...

 

 

O maître: Aqui está a conta, senhor.

A esposa: Dá isso pra cá. Quem paga sou eu. Eu confiro. Além do mais você não enxerga e todo mundo rouba você. Não sei como você não se envergonha.

O maître: Está bem, senhora. Aqui está.

O marido: Meu bem...

A esposa: O que é? Não gostou? Verdade dói! Você é um cegueta mesmo.

 

Algum tempo depois...

 

 

A esposa: Maître... Garçom... Maître... Maître...

O maître: Sim? Algum problema?

A esposa: Problema? Esta conta está errada.

O maître: Posso vê-la?

A esposa: Claro. Foram cobrados dois cafés expressos que não tomamos. Isso é um absurdo.

O maître: Hum! A senhora tem razão. Mas esquecemos de colocar o vinho na conta. Retirando os dois cafezinhos e adicionando o valor da garrafa de Chianti há um acréscimo de R$ 173,00 mais R$ 17,30 referente à gratificação. O total da conta fica acrescido de R$ 190,30.

A esposa: Eu não vou dar gorjeta alguma. Fui muito mal servida e esse vinho estava avinagrado. Pode tirar essa gorjeta já daí, senão não voltaremos mais aqui e não recomendaremos esta espelunca a ninguém.

O maître: Como a senhora quiser. Providenciarei imediatamente.

 

 

Na saída...

 

 

O maître (acompanhado do garçom): Senhora, por gentileza. Se a senhora não se importar, eu gostaria de lhe dizer umas palavras. Isso se o seu marido permitir.

O marido: Ahn! Sim... Seja rápido, por favor.

A esposa: Seja rápido. Há um filme na televisão que eu não posso perder. E eu quero ir logo embora desta birosca.

O maître: Serei rápido. Peço desculpas por todos os transtornos que lhes causamos. Mas, a senhora sabe quantas favelas existem no Rio de Janeiro? São mais de 600 nas quais vivem mais de um milhão de pessoas. Não sei bem se se pode dizer que vivam, pois, além de não haver qualquer tipo de segurança, as condições de sobrevivência, de maneira geral, são muito precárias. Penso que a senhora concorda com isso, pois não? E no mundo, sabe quantos miseráveis sem-nada existem? A senhora sabe quanto é o salário-mínimo em nosso País? Pois é. A conta que a senhora e seu marido pagaram hoje em nossa casa foi superior a um salário-mínimo. Isso significa que os senhores gastaram para comer em apenas uma hora mais do que as pessoas que ganham salário-mínimo têm para subsistir em um mês inteiro. A senhora sabe quantas pessoas morreram no último tsunami? Mais de 300.000. Sabe quantas ficaram sem coisa nenhuma? Cinco milhões de almas. Está acompanhando o que está acontecendo no mundo? Já reparou como as pessoas estão indiferentes? Sabe o que está ocorrendo no Iraque, senhora? Na Palestina? No Afeganistão? No Haiti? Tem acompanhado o que está acontecendo no Líbano? No nosso nordeste? Conhece as condições de vida daqueles que vivem na Amazônia? No Deserto do Saara? Já ouviu falar dos Alagados? Sabe o que significa mariscar? Pois é. Mariscar é catar mariscos no lodo fétido, pútrido e contaminado dos mangues, perto das palafitas onde muitos desgraçados vivem. É o que eles comem todos os dias. Por falar em catar, sabe o que são catadores de lixo? Já ouviu falar nos sem-teto? Nos sem-terra? Tem idéia de quantas pessoas estão agora sofrendo nos hospitais? De quantos estão em coma? De quantos doentes terminais existem? Terri Schiavo é apenas um exemplo. Depois da remoção do tubo de alimentação da Terri, senhora, nesta última sexta-feira, essa pobre moça ainda vai sobreviver em agonia e penar por mais uma ou duas semanas. Isso não a comove? Já ouviu falar da AIDS? Por acaso sabe o que é Síndrome de Down — a forma mais freqüente de retardo mental causada por uma aberração cromossômica? Tem acompanhado o sofrimento do Papa João Paulo II? Tem uma idéia, ainda que pálida, das conseqüências do isolamento que está imposto a Cuba há décadas? Sabe aonde fica o Tibete? Conhece os problemas que eles passam sob o domínio chinês? Acompanhou os recentes problemas do Quirguistão? Sabe quantos presidiários existem em nosso Planeta? Imagina o quanto sofrem? Já ouviu falar dos abusos sexuais praticados contra civis por militares que invadem países soberanos por ordem de homens sem alma? Sabe quantas crianças são seqüestradas no Mundo para serem vendidas e depois estupradas? Tem idéia do que é ser estuprado, senhora? Isso não é apagado jamais. É muita dor, senhora. Sabe quantas meninas são obrigadas pelos pais a se prostituir? Já parou para pensar no sofrimento dos animais? O bife que a senhora jantou foi às custas do assassinato e da dor gigantesca de um irmão seu. Alguma vez pensou nisso? Pare um instantinho para pensar em quantas pessoas acabaram de perder um ente querido exatamente agora. Em quantos seres humanos são deficientes físicos, hemiplégicos, quadriplégicos etc. Em quantas pessoas não têm o que comer, e quando têm, se houver sobremesa, é uma banana ou um pedaço de goiabada. Sem queijo, senhora. Alguma vez parou para pensar um pouquinho nessas coisas? E a senhora, depois de reclamar de tudo — pois nada esteve do seu agrado em nossa casa — mesmo assim tendo jantado como uma rainha, quis porque quis de sobremesa 'cherry jubilee'. Sinceramente desejo que nunca falte nada à senhora, pois seu sofrimento será indizível. Tenha uma boa-noite e Paz Profunda.

A esposa: — Mas, o que eu e meu marido temos a ver com toda essa gentalha? Por acaso são nossos parentes? Não voltaremos mais aqui nem recomendaremos mais este boteco chinfrim a ninguém. Você é muito antipático e totalmente incompetente. E esse garçom aí é um ignorante. Não saber o que é 'cherry jubilee' foi o maior absurdo que eu já vi na minha vida!

O maître: — Paz Profunda para os senhores.

 

Esposa
Marido