Em
política, como em tudo que é sério, sempre que pretendemos
captar idéias claras e distintas, não temos mais remédio
que atravessar a nado o pélago da Metafísica. Descartes deu-nos
o exemplo e Karl Marx também porque só se estrangulam idéias
com tenazes de outras idéias. Nestas coisas, os fatos são
como a arena dos circos: servem para neles se montar o trampolim e a corda
bamba, mas quem salta e sobe a pulso é a mente do homem.
Só
há uma única coisa no mundo que nos seja óbvia e imediatamente
presente – a Consciência.
No
homem singular, é onde tem ser e valor a verdade ou o conhecimento
científico, a beleza ou a expressão pela arte, o bem ou a
conduta moral, a justiça ou o império social do Direito e
a técnica ou a vitória instrumental da Natureza.
A
consciência tem um domínio próprio e inviolável...
que nenhum poder tem o direito de devassar...
A
Democracia nasceu de três idéias diferentes: a idéia
de soberania do povo, a idéia de igualdade de direitos e a idéia
de liberdade individual como limitadora do poder público.
A
reflexão do filósofo nasce com o cunho da época e da
sociedade, e este vinco determina uma conexão indissolúvel
entre a matéria da reflexão, o filósofo que reflete
e o 'ethos' e as apetências da sociedade e da época em que
ele vive.
O
filósofo1
sistematizou a sua concepção de mundo e da vida – partindo
de uma noção de Deus – obedecendo ao ritmo interno como
que em um movimento de processão2
de Deus para a alma humana em Deus, por forma que uma especulação
metafísica se remata em reintegração ou, talvez, mais
propriamente, em redenção moral.
Deus
– Ser absoluto e infinito – é a substância constituída
por infinitos atributos dos quais procedem todas as determinações
concretas das coisas e eventos; a razão de ser e a unidade de tudo
que existe; a única realidade ontologicamente absoluta, na qual se
identificam a essência, a existência e a atividade criadora.
Em Deus e em a Natureza, há
uma Identidade e uma Unidade, de tal sorte que esta Unidade deve ser entendida
como Unidade Ontológica e Razão de Ser Lógica de tudo
o que existe.
Deus é a condição
da pensabilidade e da explicabilidade ontológica e lógica
do Universo, e não o ser real infundido nas coisas e subjacente ao
acontecer físico.
A
substância sendo em si, por si e de infinitos atributos basta-se a
si mesma e explica satisfatoriamente a coexistência e o paralelismo
do pensamento e a extensão, considerados como atributos de uma só
substância e não como substâncias independentes.
Estruturalmente, o spinozismo é
uma maneira de conceber a vida e de fruir a sensação de eternidade
pela inefável identificação com Deus.
Nenhum
homem é uma ilha. A experiência humana é uma experiência
social.
–
Nenhum homem é uma ilha
–
Ainda
que sejamos todos Um,
para todos nós há aventuras e desventuras!
Por
tradição lírica peninsular e circunstancialismos históricos
de Portugal como reconquistador de território [fronteiras
instáveis] e
país marítimo
[descobrimentos], este sentimento
[a saudade] ganhou entre nós um caráter metafísico
não presente na mentalidade de outros povos.3
O
mundo do 'examen rerum'4
é um todo único no qual a substância real é,
a um tempo, matéria e força. Daí, a vida se dar por
toda parte onde se dê a matéria, e não haver matéria
e, portanto, vida onde não se dêem o calor e a umidade, que
são essenciais e fundamentais no processo cósmico.
A
Filosofia medieval nasceu e, em grande parte, gravitou em torno das religiões,
ou melhor, das teologias, das quais era solidária, quando não
subordinada. Esta relação, verdadeira para toda a Idade Média,
é-o duma forma muito particular para Portugal, pois é quase
exclusivamente na esfera dos problemas patrísticos e da teologia
cristã que se move o vago e tênue espírito filosófico.
Este espírito, em Portugal, como alhures, nem sempre é ortodoxo,
e é até interessante notar que as suas manifestações
mais vivas assumiram por vezes uma feição heterodoxa.
A
Filosofia não foi para todos os verdadeiros pensadores medievais
a 'ancilla theologiæ';5
mas na cultura portuguesa só na aurora da Renascença se discrimina
a separação nítida e progressiva dos dois conceitos.
Antes do século XIII, são tenuíssimos os vestígios
da cultura filosófica em Portugal; mas depois deste século,
com a criação da Universidade de Lisboa-Coimbra, com o desenvolvimento
das escolas monacais e, sobretudo, com a larga emigração de
estudantes para as universidades de além-fronteiras, observamos um
progresso apreciável. A atividade destas escolas exercia-se obscuramente
na repetição incansável dos mesmos textos, e do quadro
dos seus estudos só a Dialética, ou como hoje diríamos
a Lógica, estimularia a cultura filosófica. Não foi,
assim, por mera casualidade, que o mais afamado dialético medieval,
Pedro Hispano, o pontíficie João XXI, viu a luz em Portugal,
talvez em Lisboa. As suas Summulæ Logicales tiveram uma extraordinária
fortuna escolar, constituindo o texto do ensino da Lógica em todos
os países, desde o século XIV até princípios
do século XVI...
Três
correntes intervieram ativamente na crítica da escolástica
em Portugal, durante o século XVIII, a saber: o Cartesianismo, o
Empirismo e o Ecletismo. Nenhuma gerou qualquer movimento especulativo possante
e original, mas todas concorreram para o descrédito da filosofia
da Escola: o Cartesianismo, mais pela divulgação das concepções
físicas do que pela irradiação de sua Metafísica
e do racionalismo das idéias claras e distintas; o Empirismo, pelo
desapreço da problemática tradicional e correlativo interesse
pelos resultados da observação e da experimentação
concreta; e o Ecletismo, pela liberdade de opinião e pelo repúdio
do espírito de sistema.
As
concepções físicas do cartesianismo impressionaram
mais de perto o pensamento português do que o seu método ou
a Doutrina do 'Cogito'.6
Há
muito que a cultura e a vida civil reconhecem os direitos da religião
e do espírito falarem linguagens diversas. Mas, para além
destas inevitáveis diversidades, hoje, como ontem, o amor da paz
na comunidade dos homens é o 'desideratum' supremo, e este amor tem
de ser ditado pela razão, isto é, pela harmonia do entendimento
e da vontade. Spinoza guarda intacto o valor incomensurável do homem
que sentiu, pensou e realizou, sob certos aspectos de eternidade, este anelo
das consciências. A sua mensagem à posteridade tem, sem dúvida,
feições históricas, e, como tal, perecíveis;
mas a intimidade com o seu pensamento – fonte perene de equilíbrio
intelectual e moral – inundará as almas deste amor, e por ele,
em Portugal, como alhures, se alcançará a verdadeira vitória
do spinozismo, na medida em que a realidade consente o domínio da
razão sobre o espírito de violência... e sobre as desordens
do egoísmo.
Deus
é não só o Ser Essente de onde tudo promana, mas também
a Razão Inteligível, em virtude da qual todas as coisas se
deduzem da Essência ou Natureza Divina, com a mesma necessidade com
que da definição de triângulo se deduzem as respectivas
propriedades.
O
espetáculo que o Universo incessantemente nos apresenta de continuidade,
de geração, de extinção e de renovo de sucessivas
gerações, assim como a variedade infinita das coisas e de
eventos que nele se dão – astros e infusórios, consciências
e minerais, flores e monstros – tudo por igual dimana, e com igual
necessidade, do ser imanente ao próprio Universo.
Os
atributos são as essências constitutivas da substância
mediante as quais são apreendidas pelo intelecto.
A
equação Substância = Deus = Natureza não foi
obtida gradualmente por via de dedução lógica, porque
desde a primeira hora sempre esteve presente como fio na meditação
de Spinoza. Ao convertê-la, porém, em teoria sistemática,
pensada e exposta 'more geometrico',7
apresentou-a com elos de filiação lógica, os quais
são anteriores à sua gênese e, de algum modo, demonstram
produtividade interna e infinita fecundidade.
Sobre
a pesquisa filosófica: uma escalada de dificuldades que
a razão põe a si mesma; expressão profunda da cultura
humana, especialmente instável e sempre em crise.
A
saudade dá-se em e é sempre saudade de algo, isto é,
o acontecer da saudade é um acontecer que a consciência íntima
pode comunicar mas não transferir para outrem, e cuja vivência
se acompanha da presença espiritual de seres ausentes ou de circunstância
e estados transactos... Este sentimento presente à consciência
é um sentimento evocativo, triste melancólico, sentido subjetivamente,
e não é passível de se manifestar por atos físicos
nem transferido para outra consciência, apenas comunicado.
—
Oh!, que saudade do Piu-piu!
São
de sempre, na nossa gente, os testemunhos do amor do livro e da consideração
por quem os escreve, os aprecia, os ajunta e conserva. Espontâneos
ou refletidos, de ignorantes ou de letrados, eles denotam a disposição
moral para se atribuir à civilização um sentido de
hierarquia espiritual e dão a conhecer uma faceta da nossa compleição,
que através das mutações políticas, da transformação
das condições de existência e das inovações
dos recursos técnicos jamais deixou de prezar o trabalho intelectual
como a aplicação mais alta da atividade humana, mormente se
desinteressado e de honradas intenções. Sendo de sempre, e
portanto constantes, nem por isso os testemunhos do amor do livro têm
sido unilineares e por igual provenientes de todas as camadas e maneiras
de ser que compõem a sociedade portuguesa, pois a amplitude crescente
das suas manifestações está em correlação
direta com a generalização do acesso ao prazer da leitura.
Para quem viveu com plenitude a hora alta de alegrias e as depressões
fundas da desilusão e da amargura, o mundo que os livros despertam,
como aliás todo o fluir vivencial da existência, está
sulcado de coordenadas intelectuais e afetivas, de preferências e
de repulsas, de travos e de doçuras. Dia virá, em que, com
o socorro de documentos e de testemunhos, o historiador e o analista possam
sondar com equânime objetividade o mundo interior de D. Manuel. Hoje,
talvez, ainda seja cedo, e, além disto, faltam os documentos contrastantes,
que são condição essencial e apelo exigente da equanimidade
da consciência e da imparcialidade do juízo. Temos apenas diante
de nós o pouco que deliberada e meditadamente deu ao prelo, nos Livros
Antigos, mas esse pouco diz muito do mundo subjetivo do rei êxule,
não tanto no que proclama como, sobretudo e principalmente, no que
cala. Da sua pena não saiu uma palavra de ressentimento mesquinho,
de ódio vingativo, de incitação pugnaz, e tudo o que
neste livro escreveu, seja qual for a densidade da exatidão ou a
consistência da travação lógica, teve em vista
um fim supremo: Portugal.
O
livro é, porventura, um dos maiores tóxicos do civilizado,
envenenando-o e, sobretudo, afastando-o de si próprio e do convívio
com as coisas simples da Natureza, fora das quais a simplicidade não
raro faz figura de impostora... Oh!, a deliciosa responsabilidade de afagar
livros raros oferecidos por grandes nomes, com o encargo moral de os transmitir
por morte a quem seja digno de os apreciar e conservar!
Apesar
de contestada [a
Filosofia Portuguesa]
por uns, indiferente à maior parte, mas aproveitada por estranhos,
pensAmos sempre que o Gênio Nacional, como unidade viva e livre, se
deveria refletir na Filosofia. Com efeito, se uma nacionalidade é
em si um produto espiritual, para nós mais representativo do que
a comunidade de interesses, sentimentos, tradições, língua,
caracteres étnicos, autonomia do poder político etc. com que
ordinariamente é definida, se, por outro lado, a Filosofia não
é estéril e vão exercício da inteligência,
mas uma exigência imperiosa do espírito, o que impede teoricamente
que um povo livre, na plenitude da sua autonomia, se afirme e reconheça,
independentemente doutras manifestações, na Filosofia? Se
sobre todas as coisas reina a dignidade da consciência humana, qualquer
ideário político, qualquer arquitetura do Estado que a esqueça,
esmague ou remova para o fundo do cenário, é intrinsecamente
falsa e moralmente pecaminosa. Quando um país tem a dita de possuir
uma oligarquia de políticos, claros nos propósitos, selecionados
e confirmados pelo voto de opinião, honrados com o adversário
quando lhe chega a hora de governar, o povo vive subtraído às
oscilações extremistas das leis do pêndulo e podem chover
estrelas ou picaretas que não se abalará a paz interna. Se
esta meia-dúzia de homens se desentender, se se deixar atrair pela
sereia do mando, tapando os ouvidos à frágil voz do Servir,
na bigorna da política soa o timbre das espadas, com as quais, como
advertiu Talleyrand,8
se podem fazer muitas coisas, salvo sentar-se alguém nas pontas.
Sempre assim foi e será, assim como, pelo contrário, sempre
foi e será o diálogo claro e público entre os dirigentes
políticos – o bastião inabalável da paz civil.
Governe a direita, governe a esquerda, o essencial é que, no círculo
dos oligarcas, quem governe saiba se demitir, e quem quer o poder saiba
esperar.
A
probabilidade constitui o domínio próprio da discussão
porque a evidência e o absurdo são, por natureza, excluídos
– aquela porque não precisa ser demonstrada; este porque não
o pode ser. De sorte que problemas dialéticos9
são os que podem receber soluções contrárias
ou que ultrapassando os limites da razão humana têm uma solução
definitiva impossível.
A
Regra que São Bento estatuiu e singulariza a Congregação
Beneditina não contém disposições escolares
expressas; não obstante, estabeleceu preceitos de decisiva influência
docente. 'Ora et Labora' é a divisa e o supremo preceito da Regra.
Claro
que o bonito, o difícil, o decente, consiste em extrair do particularismo
nacional o universalismo humano, e em combinar a consideração
temporal da convivência com a espacial da coexistência. E aqui
para nós – e que ninguém nos oiça nesta manhã
de cinco de outubro de 1946 em que escrevo, e, se o ouvirem, não
o vão dizer, por favor – ainda não se inventou mais
fina, delicada e digna combinação que a da Liberdade com a
Democracia...