—
Você sabe qual é a melhor coisa do mundo?
— Qual é,
minha tia?
— Adivinhe.
— Mulher...
— Não
— Cachaça...
—
Não.
—
Feijoada...
—
Não
sabe o que é? É cavalo. Se não fosse cavalo, branco
montava em negro...
Quem
guarda os caminhos da Cidade do Salvador da Bahia é Exu, orixá
dos mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do
movimento, por muitos confundido com o diabo no sincretismo com a religião
católica, pois ele é malicioso e arreliento, não sabe
estar quieto, gosta de confusão e de aperreio. Postado nas encruzilhadas
de todos os caminhos, escondido na meia-luz da aurora ou do crepúsculo,
na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite, Exu guarda
sua cidade bem-amada. Ai de quem aqui desembarcar com malévolas intenções,
com o coração de ódio ou de inveja, ou para aqui se
dirigir tangido pela violência ou pelo azedume: o povo dessa Cidade
é doce, e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e ao perverso.
A
solução dos problemas humanos terá que contar com a
Literatura, a música, a pintura, enfim, com as artes. O homem necessita
de beleza como necessita de pão e de liberdade. As artes existirão
enquanto o homem existir sobre a face da Terra. A Literatura será
sempre uma arma do homem em sua caminhada pela Terra, em sua busca de felicidade.
Mas
sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais
mortal. Eles matam crianças, e essa é a sua maneira de brincar
o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos
leitos imundos, e essa é a sua maneira mais romântica de amar.
Eles torturam os homens nos campos de concentração, e essa
é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram
as pátrias e escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam
no coração de lama.
A
velhice é uma porcaria.
Os
líderes e os heróis são vazios, tolos, prepotentes,
odiosos e maléficos. Mentem quando se dizem intérpretes do
povo e pretendem falar em seu nome, pois a bandeira que empunham é
a da morte. Para subsistir, necessitam da opressão e da violência.
Mesmo
não sabendo que era amor, sentiam que era bom.
A
sorte me acompanha, tenho corpo fechado à inveja, a intriga não
me amarra os pés, sou imune ao mau-olhado...
Na
vida, só valem o amor e a amizade. O resto é tudo pinóia,
é tudo presunção, não paga a pena...
Custava-lhe
esforço aquela decência tranqüila, aquela face calma,
nervosa, no cansaço da noite maldormida, da luta inglória
contra o desejo em brasa do seu ventre. Por fora água parada, por
dentro uma fogueira acesa.
Não
se pode dormir com todas as mulheres do mundo, mas deve-se fazer esforço.
O
mundo só vai prestar
Para nele se viver
No dia em que a gente ver [sic]
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.
...
o importante é tentar, mesmo o impossível.
Não
sou religioso, mas tenho assistido a muita mágica. Sou supersticioso
e acredito em milagres. A vida é feita de acontecimentos comuns e
de milagres.
O
humor não é coisa da juventude. O jovem tem força criadora,
elã, paixão, entusiasmo e ímpeto, uma coisa que depois
você tem menos. Depois, você tem a experiência, e o humor
é da experiência.
Neste
momento de música, eles se sentiram donos da cidade. E se amaram
uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho
e sem conforto, e agora tinham o carinho e conforto da música.
Não
pode haver criação literária mais popular – que
fale mais diretamente ao coração do povo – do que a
trova. É através dela que o povo toma contato com a poesia
e sente sua força. Por isso mesmo, a trova e o trovador são
imortais.
Também
Maneca Dantas não sabe por que diabo essa gente engana marido, com
tanto perigo, e ainda se dá ao luxo de escrever cartinhas de amor.
Coisa de idiota...
Mesmo
a mais forte paixão tem seu tempo de vida. Chega seu dia, se acaba,
nasce outro amor. Por isso mesmo, o amor é eterno, porque se renova.
Terminam as paixões; o amor permanece.
Peste,
fome e guerra, morte e amor, a vida de Tereza Batista é uma história
de cordel.
Porque
sendo Curió um incurável romântico, noivava freqüentemente,
vítima de paixões fulminantes. Cada noivado era devidamente
comemorado, com alegria ao se iniciar, com tristeza e filosofia ao se encerrar.
A
alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida.
Não
gosto de falar de mim mesmo. Tem gente que adora falar de si próprio.
Alguns porque não têm importância nenhuma e falam para
se dar importância, e outros, que são importantes, falam porque
gostam. Agora, eu não sou importante e não gosto de falar
sobre mim; aliás, não gosto nem de ouvir falar a meu respeito:
fico encabuladíssimo, fico assim sem jeito... Eu não gosto,
é uma maneira de ser.
A
infância é um tempo muito importante na vida da gente.
Fui
interno no Ginásio Ipiranga, que era um internato muito brando e
muito mais livre do que o Antônio Vieira. A gente pulava o muro todas
as noites, e ia para as casas de putas, ia para as festas, para a rua Carlos
Gomes, pro beco de Maria Paz... Posso dizer que a minha educação,
em grande parte, se processou nas casas de raparigas. Eu fui amigado com
uma rapariga chamada Benedita, e, então, toda noite, à meia-noite,
pulava o muro e ia ficar com ela.
Foi
quando eu passei a viver misturado com o povo da Bahia que o problema racial
começou a me afetar. Foi, sobretudo, a minha relação
com o povo dos candomblés, vendo a perseguição terrível
de que eram objeto os cultos afro-brasileiros. Mas, eu nunca tive dúvidas:
o problema racial é conseqüência do problema social. Não
existe um problema racial isolado do contexto social. Se você isolar,
vai errar na apreciação do problema e na busca das soluções.
A solução não é você botar os pretos e
os brancos a se matarem entre si.
Não
há outra solução para o problema de raça no
mundo senão a mistura. Não há outra e, se alguém
tiver, que me apresente... Quero ver! Não é um racismo diferente,
seja racismo preto, seja racismo árabe, seja racismo
judeu que vai acabar
com o problema. Você não acaba com o racismo botando racismo
contra racismo. Isso é uma coisa idiota, que está na moda,
mas, é uma moda superficial... É como uma dessas erupções
que se tem na pele, brotoejas, coceiras, que acabam passando.
Desde
criança eu vivo misturado com o povo dos candomblés. Em 43,
quando a polícia do Rio me soltou e me forçou a viver em Salvador
–
e
eu vivi aqui dois
anos, até
44 – não fiz outra coisa senão ir à polícia
buscar as armas de santo e todas
as
coisas dos candomblés que a polícia, ao invadir, tomava os
emblemas sagrados e os levava. Eu ia lutar para tirar meus amigos da cadeia...
Fui amigo de Procópio, de Aninha, a mãe-de-santo Aninha, uma
figura extraordinária de mulher. Quando ela morreu, em 38, o enterro
dela foi acompanhado por 5 mil pessoas
–
um
enterro nagô, magnífico.
Em
Tenda dos Milagres, que é o romance meu que mais gosto, à
certa altura, o professor de Medicina pergunta a Pedro Archanjo como é
que ele, sendo um materialista, conciliava isso com sua atividade no candomblé.
Pedro Archanjo respondeu que 'o meu materialismo não me limita'.
Eu sou materialista, mas meu materialismo não me limita. Então,
se o povo dos candomblés me dá um título e eu aceito,
eu tenho que cumprir as obrigações desse título. Senão,
eu não estaria tendo com eles o mesmo tipo de relacionamento e de
amizade que eles têm comigo. Por isto, quando entro no Axé
Opô Afonjá, com meus colares, faço tudo o que tenho
que fazer e faço exatamente tudo com o maior prazer... Eu não
poderia escrever sobre a Bahia, ter a pretensão de ser um romancista
da Bahia, se não conhecesse realmente por dentro, como eu conheço,
os candomblés, que é a religião do povo da Bahia.
Meu
contato com o Partido Comunista é anterior a 1945. Em 45, minha militância
fica pública. Eu era ligado à juventude. Naquele tempo, havia
a Juventude Comunista.
Cada
qual cuide de seu enterro, impossível não há. [Frase
derradeira de Quincas Berro Dágua, segundo Quitéria do Olho
Arregalado, mulher de uma só palavra, que estava ao seu lado].1
Foram
muitas as encruzilhadas marcantes de minha vida; eu teria de escrever um
livro se quisesse citar todas elas. Por isto, cito apenas uma: o encontro
com Zélia [Gattai Amado]
nos começos de 1945, nos quadros da luta política contra o
Nazismo, pela Democracia.
A
Revolução Socialista de Outubro – a Revolução
Soviética –
buliu
com a vida de todo mundo e modificou a vida de todo mundo, inclusive a minha.
A descoberta da Revolução
Socialista,
com a sua proposta de solução dos problemas da sociedade,
com a sua oferta generosa de uma sociedade justa, fraterna, uma sociedade
sem classes, tocou todos os jovens do mundo. Eu fui um desses jovens. Em
1931, tomei contato com os comunistas, e, a partir de 1932, militei na Juventude
Comunista, depois no Partido, até dezembro de 1955. O que me levou
a ingressar no Partido foi o conhecimento das terríveis condições
de vida do povo brasileiro. O PC pareceu-me, então, a melhor trincheira
para lutar pela modificação da sociedade injusta e opressora.
E, como eu já tinha um conhecimento vivido da vida dos trabalhadores
nas plantações de cacau — eu mesmo havia nascido em
uma plantação de cacau e nela tinha decorrido toda a minha
infância — eu me voltei para fazer um tipo de Literatura que
era inteiramente diferente daquela que marcou meu primeiro livro. Deixei
de estar sob a influência da literatura européia, elitista
e intelectualizada, para estar influenciado diretamente pela vida e pela
realidade do meu País, de uma forma ainda muito estreita, muito esquemática,
mas já com outra visão.
Os
valores trazidos pela Revolução Soviética vão
perdurar além de todos os desmoronamentos de um falso mundo socialista.
O que fracassou foi a ideologia. A ideologia é a desgraça
do nosso tempo — eu digo isso naquele pequeno livro de memórias
da infância, O Menino Grapiúna. A ideologia limita o homem,
dogmatiza, estreita o pensamento, impede a livre discussão. A ideologia
é que determinou o afastamento da Revolução Soviética
das suas metas, do seu destino. Ela oferecia a felicidade para o homem,
mas a ideologia transformou-a em uma ditadura que, em geral, foi feita contra
o homem. O
que eu acho é que os valores nascidos da Revolução
de Outubro persistem. Você veja. A Revolução Francesa
– há duzentos anos – modificou a face da Humanidade.
A Humanidade era uma antes da Revolução Francesa e passou
a ser outra. Depois da Revolução, você teve Napoleão,
a volta da monarquia… No entanto, esses acontecimentos não
acabaram com os valores fundamentais da Revolução Francesa.
Da
mesma maneira, eu acho que, hoje, os acontecimentos que se passam, o ruir
de todo esse sonho, de todo aquele que foi o sonho de gerações
e gerações, a esperança, o motivo de vida, a luta,
não acabam com os valores fundamentais da Revolução
Soviética. Esses valores prosseguem. Veja o Brasil, um país
que você conhece bem. O fim desse mundo, dessas ilusões, o
fim dessas ideologias não modifica a situação no Brasil.
Isso não faz com que no Brasil seja menor a miséria. Então,
você tem de continuar a lutar para modificar a situação.
Apenas tem de buscar soluções que sejam as soluções
brasileiras, legitimas e próprias.
Eu
não sou muito admirador dos intelectuais. Eu acho que os intelectuais
desempenham, sem dúvida, um papel importante, eminente, no desenvolvimento
da sociedade. Mas, por vezes, a condição intelectual conduz
muito facilmente a uma condição elitista, a uma condição
distante do povo. O intelectual se julga acima, superior. Ele sabe, ele
tem um poder enorme que lhe é dado porque possui valores que o povo
não possui – ao menos ele pensa que o povo não possui
– valores de cultura, de conhecimento, de sabedoria, e, então,
ele está um pouco por cima, ele dita as regras para o povo. Aí
está, a meu ver, o perigo. No Brasil, por exemplo, eu sinto muito
que os intelectuais, inclusive os mais radicais de esquerda, são
intelectuais muito distantes do povo, que, sobretudo, não conhecem
o povo nem a vida do povo. Eles querem falar pelo povo, em nome do povo,
sem, no entanto, ter realmente um conhecimento profundo da vida. O conhecimento,
em geral, lhes é dado pelos livros, muitas vezes mal lidos. Eu
não me considero um intelectual; eu sou um escritor. Acho que existem
valores inteiramente diferentes entre um romancista, um poeta, um contista,
entre os criadores de vida e os intelectuais, aqueles que proclamam as teorias,
as leis, que impõem as ideologias e terminam por se corromper na
busca e no exercício do poder. Eu
tenho muito medo dos intelectuais.
Tenho
um livro – Tocaia Grande – em que a idéia de liberdade,
de um mundo livre, de uma criação de vida na base não
de ideologias, não de teorias, não de leis ditadas, mas, na
base da fraternidade e da solidariedade humana está muito viva. O
livro termina quando a lei chega. Antes, houve a enchente, a catástrofe
natural, e o homem pode superá-la e vencê-la; depois houve
a peste, o mal destruidor da vida, e o homem pode vencer e prosseguir; mas,
a lei é pior do que a catástrofe e do que a enfermidade. Tocaia
Grande é um livro onde se define bastante bem o meu pensamento: afirmo
ali que eu digo “não”, quando os outros dizem “sim”.
Acho que é esse o meu único compromisso.
Em
meus livros, muitas das minhas heroínas foram mulheres da vida. Eu
quis botar na boca e nas mãos daquelas figuras mais castigadas pela
sociedade, mais desprezadas, mais humildes, a missão, digamos, de
modificar a própria sociedade.
O
tema da maternidade não está presente nos
meus livros em uma forma constante, é verdade. No entanto, em Tocaia
Grande, este sentimento da maternidade está muito presente em uma
mulher, não por ela ser mãe, mas por ela ser parteira. No
fim do livro, quando eles vão morrer – o capitão Notário
e a Coroca, que foi puta e depois se transformou em parteira –
ela
diz que nada é mais belo do que 'aparar menino', ver nascer uma criança.
Na
verdade, eu escrevo porque não sei fazer outra coisa. Há um
número de coisas que todo mundo sabe fazer e eu não sei fazer.
Então, primeiro, eu escrevo porque, bem ou mal, é a única
coisa que sei fazer; segundo, porque é um ofício que, sendo
difícil, duro, por vezes dramático mesmo, é um ofício
que dá também muita alegria, uma certa satisfação
por ter feito alguma coisa. Quando alguém – e isso acontece
com muita freqüência – me escreve ou me procura e diz:
'Eu li tal livro seu e isso foi importante para mim, ajudou minha vida';
quando um jovem vem e me diz: 'Eu li Capitães de Areia, e, então,
eu posso sentir o problema das crianças' etc., isso me dá
uma grande satisfação.
Eu
sou muito pouco sensível a prêmios, a sessões solenes.
Essas coisas me tocam menos, ainda que as receba com alegria e com emoção.
O que me toca realmente muito dentro do meu ofício, na minha profissão,
é saber que houve, em várias partes do mundo, e não
só no Brasil, mulheres que, por exemplo, porque leram Teresa Batista,
se sentiram com força para realizar determinadas coisas.
Talvez
eu escreva por não poder deixar de escrever, de escrever romances,
de recriar a vida.
O
amor nos meus livros é uma coisa limpa, não é uma coisa
suja, nem triste. É uma coisa nobre e alegre que até eleva
o ser humano e o faz melhor.2
Eu diria que meus livros transmitem essa limpeza, essa pureza do amor. As
coisas colaterais ao ato de amor também existem, e, às vezes,
falo nelas. Dizem que as minhas figuras de mulheres são lutadoras
e simbolizam a luta da mulher brasileira por uma condição
melhor, menos oprimida. É verdade. Isso não impede que essas
mulheres gostem de fazer amor. Uma dessas mulheres chama-se Tieta. Entre
as coisas que ela pratica na cama há o ipsilone simples e o ipsilone
duplo. Um dia recebi uma longa carta de uma senhora que se dizia casada,
que tinha um marido que não era dessas coisas e que tinha morrido,
e que, então, ela descobriu a vida e… foi pra frente. Ela pedia
que eu contasse o que era o ipsilone, porque agora ela conhecia tudo, menos
o ipsilone. Eu respondi dizendo: 'Minha senhora, eu também gostaria
de saber. Tieta nunca me disse…'. E é verdade. Anos
depois, em Madrid, durante um encontro no Centro Iberoamericano, aparece
uma senhora que se apresenta, dizendo: 'Sou eu a senhora do y simples e
do y duplo!' E eu: 'Se já descobriu, me conte!' Ela ainda não
tinha descoberto!
O
autor não é dono de seus personagens. O personagem, para ser
realmente uma figura de romance, ou seja, uma figura viva, de carne e osso,
tem de pensar por sua cabeça e fazer o que bem entender. Eu sempre
digo... que não sei contar histórias, no sentido de inventar
uma história e contá-la. As minhas histórias são
feitas pelos personagens, passo a passo. Em geral, quando paro de escrever,
eu não sei o que vai acontecer depois, ou muito dificilmente; às
vezes, os personagens não aceitam o que eu pensei. Veja essa pequena
história ligada à Dona Flor. Eu já estava no fim. O
primeiro marido tinha voltado do além e queria dormir com ela. Mas,
Dona Flor, mulher honesta, cheia de pudicícia pequeno-burguesa, e
agora com outro marido, recusava. No entanto, suas forças fraquejavam,
porque quem tinha chamado Vadinho era ela, quem necessitava de fazer amor
com Vadinho era ela. Naquela luta, tinha recorrido a uma feitiçaria
de candomblé para o Vadinho voltar ao nada de onde tinha vindo. Aí,
chegou na Bahia uma sobrinha minha, perguntando como eu ia terminar o livro.
Eu respondi que não sabia, mas que tinha esta idéia: tendo
conta do caráter de Dona Flor, que é pudica, recatada, mas,
ao mesmo tempo, muito sensual, eu achava que ela ia se entregar a Vadinho,
mas ia ficar terrivelmente infeliz, desgraçada, porque tinha traído
o marido, o farmacêutico, e, pois, se ela tinha feito um ebó,
eu pensava que Vadinho ia voltar, e que Dona Flor iria com ele, em uma espécie
de delírio muito poético. Continuei a escrever. Dona Flor,
como era previsto, dormiu com Vadinho, e ficou contentíssima. Aí,
eu parei de escrever e fui dormir. No outro dia, voltei para a máquina
de escrever, mas o que é que aconteceu? Aconteceu que depois que
o Vadinho saiu, o marido, o farmacêutico doutor Teodoro, entrou no
quarto, vestiu seu pijama, deitou-se e fez amor com ela, e ela gostou e
ficou com os dois. E o meu fim poético? Foi para a cucuia.
Vladimir
Ilitch Lenin & Iosif Vissarionovich Stalin
Com
[Mikhail] Gorbachev,
que é um grande estadista do nosso tempo, o perigo de uma guerra
atômica [guerra nuclear]
– que iria acabar com a vida sobre a Terra – diminuiu
muito.
Uma
imagem de TV que me impressionou foi transmitida durante a comemoração
do aniversário da Revolução de Outubro. Durante uma
manifestação de cento e cinqüenta mil pessoas, em Moscou,
dois cartazes me marcaram muito. Um dizia: 'Setenta anos para chegar a nada'.
E outro: 'Proletários de todo o mundo, perdoai-nos'. São dois
negócios terríveis.
Eu
me desorientei – e muito – antes, quando descobri que Stalin
não era o pai dos povos, ao contrário do que sempre pensei.
Aquele [mudanças no
Leste Europeu e na União Soviética] foi um processo
doloroso, difícil, cruel e demorado. A maioria das causas dos acontecimentos
atuais, talvez, já fosse clara para mim. Mas, os acontecimentos são
de uma rapidez imensa. Jantei com Costa Gavras, meu amigo. Discutimos esta
situação: não é só um mundo que acabou.
É tudo o que foi a vida e o objetivo de luta de milhões de
pessoas. É gente que lutou com generosidade e coragem e foi presa
e torturada por lutar por uma coisa que – de repente – se acaba.
A pergunta que você pode me fazer agora é a seguinte: é
o Socialismo que não presta ou é a falsificação
do Socialismo? O que é que acontece nestes países? Já
não são regimes socialistas nem a Polônia nem a Hungria
nem a Tchecoslováquia nem a Alemanha oriental. Já estão
deixando de ser socialistas a Bulgária, a Romênia e até
a Albânia! Mas, não acredito que o Socialismo, como idéia,
deixe de ser o que representa como avanço e como um passo adiante.
Nunca houve Socialismo, como nunca houve Democracia. Como a implantação
dos regimes socialistas foi baseada naquilo que é fundamentalmente
errado – a ditadura de classe – houve, então,
uma falsificação total e completa! O
mundo era um antes da Revolução de Outubro, na Rússia.
Passou, depois, a ser outro. Estados ditos socialistas – mas que não
eram, na realidade – podem deixar de existir. Isto não quer
dizer, no entanto, que os valores novos trazidos pela Revolução
de Outubro – como uma consciência coletiva maior e fraternal
– não persistam. Persistem. O que acontece é que o mundo
não será mesmo igual. Já não é. O Capitalismo
de hoje também já não é o mesmo de antes. Não
sou sociólogo. Eu via sempre, na televisão, no Brasil, que
todo dia apareciam dois, três cientistas políticos. É
cientista político pra burro. É uma quantidade imensa. São
formidáveis. Não sou cientista político – infelizmente
– nem crítico literário. Mas, vem à minha casa
gente que lutou a vida toda. De repente, um mundo vem abaixo! Durante o
encontro com Costa Gavras, eu disse que – de repente – estou
me dando conta da importância da televisão. Via na TV as imagens
do muro de Berlim. Vi o homem parando os tanques na China. E as imagens
do ditador da Romênia? Reuniu duzentas mil pessoas para aplaudi-lo,
mas, de repente, a multidão começou a vaiá-lo. A imagem
do ditador na tribuna é inesquecível. Outra imagem: uma imensa
estátua de Lênin com uma corda no pescoço. E o pessoal
puxando para derrubá-la. Devo dizer a você que aquilo me picou
o coração. É todo um mundo que vem se acabando –
e desabando em cima da cabeça da gente. É terrível
para algumas pessoas – que devem se sentir suicidas, sem ter o que
fazer da vida. Não sou sociólogo, mas sem Democracia não
se pode construir o Socialismo. O coletivo não é o oposto
do indivíduo, como foi nestes países. Sem considerar o indivíduo
como ser humano, você não pode pensar em Socialismo.
Sem
Democracia, não se pode construir o Socialismo. O coletivo não
é o oposto do indivíduo... Sem considerar o indivíduo,
o ser humano, não se pode pensar em Socialismo. O que vai existir
é, sempre, uma falsificação. São coisas que,
para mim, ficaram claras, dentro de um processo sofrido, longo e cruel.
Uma
das coisas mais tristes da vida literária é ver um sujeito
cavando um prêmio. É um horror. Quando me dão, fico
satisfeito. Eu me admiro por que é que eu haveria de ganhar o Prêmio
Nobel. É um prêmio para grandes, grandes escritores. Não
me considero como tal. Eu escrevo muito mal. Há quem diga que não
existe quem escreva pior do que eu. A crítica sempre foi polêmica
em torno do meu trabalho. Também sou uma negação como
contista. O que aparece como conto meu por aí é sobra de romance,
coisas que não foram adiante ou que não usei.
Minha
tendência é vagabundar, andar, ver pessoas e coisas, ler livros.
O
sincretismo cultural e religioso é algo
presente na maioria
dos meus romances.
Somos
misturas do negro, do ibérico, de gente vindas de todas as partes.
E disso essa nossa doçura...
Talvez
se esteja pagando muito caro pelo chamado progresso, que, às vezes,
não é exatamente progresso. O crescimento é feito não
em função do povo, mas, às vezes, às expensas
do povo... Mas, tenho para mim que os valores fundamentais do povo ainda
estão conservados: a sua resistência, a sua capacidade de alegria...
A vida é muito dura, é muito difícil para o povo. Viver
é quase um milagre, e esse milagre o povo realiza diariamente. No
entanto, apesar dessa dificuldade, dessa dureza, o povo não perde
sua capacidade de rir, não perde sua capacidade de superar tudo isso,
e ir para adiante.
'Tenda
dos Milagres' é o meu melhor romance. É a melhor coisa que
fiz. É um relato da luta do povo baiano, do povo brasileiro por conseqüência,
contra o preconceito racial, contra o atraso, na luta pela mestiçagem,
que eu acho uma coisa muito importante para o Brasil.
O
homem é capaz de construir seu destino e tem a possibilidade de levar
adiante o grande sonho humano de fazer alguma coisa além daquilo
que limitações de toda ordem – sociais, econômicas,
em fim, de todo o tipo –
tentam impedir que ele
faça.3
Charlie
Chaplin [Charles
Spencer Chaplin, conhecido, no Brasil, como Carlitos]
foi o maior homem de
nossa época. Este homem, eu acho,
foi aquele que mais contribuiu, mais do que qualquer estadista, mais do
que qualquer outro homem, para a Humanidade, no nosso século XX.
Chaplin deu à Humanidade uma contribuição enorme, imensa,
inigualável.