Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

 

 

Quando convier vir a Negra Noite

e, para muitos, será a hora do açoite.1

Por que rechaçar a Consciência?

 

Para outros, a Negra Noite será Dia.

Os que venceram o Conticínio,2

a Obscura Noite, o preconceito e a folia

verão a Aurora nascer do domínio.

 

 

 

 

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Notas:

1. Açoite, obviamente, no sentido duplo Místico-espiritual e Iniciático-educativo. É inadmissível que continuemos a construir uma imagem mental cósmica de punição (ou de prêmio). Então, melhor que se pense em pernoite — um estágio-pernoite de aprendizado — incluindo uma espécie de dor espiritual e de angústia moral, ambas, ao fim e ao cabo, Illuminantes e educativas. Ou aprendemos agora ou aprenderemos depois. Mas, aprenderemos; queiramos ou não! Logo, optar pela dor é, no mínimo, uma tolice. Contudo, se quisermos, poderemos; nada nos impede.

2. Segundo o frade franciscano português e doutor da Igreja Santo António de Lisboa (Lisboa, 1195 – Pádua, 1231), a Peregrinação tem começo (Conticínio), meio (Meia-noite) e fim (Aurora). O Conticínio (Conticinium) é a primeira fase da Noite em que tudo está silente. É o tempo em que são satisfeitas as seduções blandiciosas da carne — carnis suavia blandimenta. O Santo ensinou que, para vencer as tentações próprias do Conticínio, é preciso meditar sobre as iniqüidades praticadas, considerar o exílio (e desejar ardentemente a reintegração) e contemplar o Criador, o que, misticamente, equivale a projetar e construir nosso Mestre-Deus em nosso Coração. Auxiliado pela razão e pela discrição, pensou o Santo lisboeta, o principiante vai subindo, degrau por degrau, a escada da crucifixão: a razão dominando os sentidos e esclarecendo sobre o bom caminho. Assim, derramando lágrimas, envergonhado, vexado e cabisbaixo vai o postulante trilhando a Senda que levará à Illuminação. Lentamente, os sentidos físicos e os apetites do corpo vão sendo dominados, e os incipientes passam para o estádio de aproveitantes (fase da Meia-noite). Porém, no que concerne ao sofrimento moral, este se vai intensificando. É o reconhecimento tácito da queda, do afastamento da LLuz, do exílio de Deus, da consciência plena da ainda [im]permanência nas trevas. É a angústia por desejar alcançar a Luz Maior, por desejar ardentemente realizar o Cristo Interno e, em graça total, contemplar o Criador (que, na verdade, está em nosso interior). É o desespero por ter, tenuemente, vislumbrado a possibilidade de se tornar uno com o Pai — o Mestre-Deus de cada Coração — e de não ter podido ainda realizar o sonho dos sonhos. É uma dor lancinante. Um desespero sufocante. Um horror atemorizante. É a Noite Negra. É a crucificação individual. É o inferno interior. É a compreensão do exílio da Vida. A Noite Negra traz à lembrança a fase negra da Crisopéia. Já a segunda fase da Noite Obscura (Media Nox) equivale, para o Santo Doutor, ao período de luta espiritual em que a alma, vendo-se no exílio deste mundo, dele procura se libertar, para, depois, poder chegar à contemplação de Deus e se unir com Ele por amor. O aproveitante (aproveitado) já convencido do erro da vaidade, suplica cheio de fé, de amor e de esperança, força para suportar o exílio. À medida que acorda, recorda-se da vida antiga, desconexa, e, envergonhado, humilhado, sentindo-se desprezível, chora amargamente. É o pleno reconhecimento dos erros, equívoco por equívoco. Nu, perante si mesmo, confessa-se ao Deus de seu Coração e clama por perdão. E perdoa aos que o perseguem e caluniam, aos que o aviltam e ofendem, aos que escarnecem, pois sabe que esses não o compreendem, mas que, inexoravelmente, um dia subirão também o primeiro degrau da Noite Negra. E se compromete a, nessa hora, estar presente para ajudar no que for possível e permitido, para amparar em cada deslize, para consolar quando a dor e a vergonha forem mais intensas e insuportáveis. Esse é o verdadeiro sentido do perdão, da humildade, da fraternidade e do amor universal em um sentido teológico. É a tomada de consciência pelo aproveitante de que todos, em última instância e em termos religiosos, são unos entre si e com o Pai, ainda que exilados. A Meia-noite faz recordar o branco da Grande Obra. É também uma possibilidade para explicar o Mito da Caverna, de Platão. Voltar para ajudar e servir é um supremo ato 'nirmanakayco' de sacrifício e de amor. Aqueles que voltaram sabem. Entretanto, não há essa referência consignada na obra antoniana. A Aurora bendita Aurora é o último estágio da Noite Mística e se assemelha ao vermelho da Alquimia Operativa. Santo António assim a delineia: É a infusão da graça divina. A alma pôde justificar-se ou tornar-se justa. A alma se torna reta e ereta. A Aurora é o fim da Noite e o princípio do Dia. Ela é o fim da miséria e a entrada na beatitude. É o último estádio da ascensão espiritual — o estado perfeito. A alma sente-se, agora, invadida por indizível alegria. É a contemplação do Criador. Do exposto, pode-se simbolicamente deduzir e afirmar, que a Noite Obscura é um processo de purgação (uma verdadeira Alquimia Iniciática Interior) que o homem tem indubitavelmente que passar para alcançar (projetar e construir) o Deus de sua compreensão e realizar o Cristo Interno. Iniciaticamente, é desta forma que acontece; não há outro Caminho. O Sol, que primariamente pretende simbolizar o Sol da Graça a ser alcançada, com sua claridade, brancura e calor, ilumina a personalidade-alma em contrição. É com a luz do Sol das primeiras horas da manhã — símbolo do Sol interior — que são dissipadas as trevas da noite. É com o nascer do Sol místico que são esvaecidos o preconceito, a superstição, a avareza, a folia e a ignorância. E o ser, purificado, limpo e perfeito, entra na posse do conhecimento de seu Criador. Esse Sol, depois de nascido, jamais se põe. Essa foi uma afirmação feita por Santo António e por todos aqueles que alcançaram a perfeição relativa, e passaram pelo processo místico-purgativo da Noite Negra da Alma. O ato derradeiro de humildade ao conquistar a Aurora é, assevera-se mais uma vez, o retorno à Caverna; retorno consolativo e auxiliador aos que ainda desconhecem a LLUZ. Repete-se: por evidente, esta reflexão não está presente em Frei António de Lisboa. Esta nota deve ser integralmente lida sob seu aspecto místico-simbólico; tentar objetivá-la seria incorrer em um equívoco da compreensão noética.

 

Observação:

1. Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também. (Fernando Pessoa, Bernardo Soares; in: Livro do Desassossego).

 

Fundo musical:

Cai na Folia

Fonte:

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