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Notas:
1.
Açoite, obviamente, no sentido duplo Místico-espiritual e
Iniciático-educativo. É inadmissível que continuemos
a construir uma imagem mental cósmica de punição (ou
de prêmio). Então, melhor que se pense em pernoite
— um estágio-pernoite de aprendizado — incluindo
uma espécie de dor espiritual e de angústia moral, ambas,
ao fim e ao cabo, Illuminantes e educativas. Ou aprendemos agora
ou aprenderemos depois. Mas, aprenderemos; queiramos ou não! Logo,
optar pela dor é, no mínimo, uma tolice. Contudo, se quisermos,
poderemos; nada nos impede.
2.
Segundo o frade franciscano português e doutor da Igreja Santo António
de Lisboa (Lisboa, 1195 – Pádua, 1231), a Peregrinação
tem começo (Conticínio), meio (Meia-noite) e fim (Aurora).
O Conticínio (Conticinium) é a primeira fase da Noite
em que tudo está silente. É o tempo em que são satisfeitas
as seduções blandiciosas da carne — carnis suavia
blandimenta. O Santo ensinou que, para vencer as tentações
próprias do Conticínio, é preciso meditar sobre as
iniqüidades praticadas, considerar o exílio (e desejar ardentemente
a reintegração) e contemplar o Criador, o que, misticamente,
equivale a projetar e construir nosso Mestre-Deus em nosso Coração.
Auxiliado pela razão e pela discrição, pensou o Santo
lisboeta, o principiante vai subindo, degrau por degrau, a escada da crucifixão:
a razão dominando os sentidos e esclarecendo sobre o bom caminho.
Assim, derramando lágrimas, envergonhado, vexado e cabisbaixo vai
o postulante trilhando a Senda que levará à Illuminação.
Lentamente, os sentidos físicos e os apetites do corpo vão
sendo dominados, e os incipientes passam para o estádio de aproveitantes
(fase da Meia-noite). Porém, no que concerne ao sofrimento moral,
este se vai intensificando. É o reconhecimento tácito da queda,
do afastamento da LLuz, do exílio de Deus, da consciência
plena da ainda [im]permanência nas trevas. É a angústia
por desejar alcançar a Luz Maior, por desejar ardentemente realizar
o Cristo Interno e, em graça total, contemplar o Criador (que, na
verdade, está em nosso interior). É o desespero por ter, tenuemente,
vislumbrado a possibilidade de se tornar uno com o Pai — o Mestre-Deus
de cada Coração — e de não ter podido ainda realizar
o sonho dos sonhos. É uma dor lancinante. Um desespero sufocante.
Um horror atemorizante. É a Noite Negra. É a crucificação
individual. É o inferno interior. É a compreensão do
exílio da Vida. A Noite Negra traz à lembrança a fase
negra da Crisopéia. Já a segunda fase da Noite Obscura (Media
Nox) equivale, para o Santo Doutor, ao período de luta espiritual
em que a alma, vendo-se no exílio deste mundo, dele procura se libertar,
para, depois, poder chegar à contemplação de Deus e
se unir com Ele por amor. O aproveitante (aproveitado) já convencido
do erro da vaidade, suplica cheio de fé, de amor e de esperança,
força para suportar o exílio. À medida que acorda,
recorda-se da vida antiga, desconexa, e, envergonhado, humilhado, sentindo-se
desprezível, chora amargamente. É o pleno reconhecimento dos
erros, equívoco por equívoco. Nu, perante si mesmo, confessa-se
ao Deus de seu Coração e clama por perdão. E perdoa
aos que o perseguem e caluniam, aos que o aviltam e ofendem, aos que escarnecem,
pois sabe que esses não o compreendem, mas que, inexoravelmente,
um dia subirão também o primeiro degrau da Noite Negra. E
se compromete a, nessa hora, estar presente para ajudar no que for possível
e permitido, para amparar em cada deslize, para consolar quando a dor e
a vergonha forem mais intensas e insuportáveis. Esse é o verdadeiro
sentido do perdão, da humildade, da fraternidade e do amor universal
em um sentido teológico. É a tomada de consciência pelo
aproveitante de que todos, em última instância e em termos
religiosos, são unos entre si e com o Pai, ainda que exilados. A
Meia-noite faz recordar o branco da Grande Obra. É também
uma possibilidade para explicar o Mito da Caverna, de Platão.
Voltar para ajudar e servir é um supremo ato 'nirmanakayco'
de sacrifício e de amor. Aqueles que voltaram sabem. Entretanto,
não há essa referência consignada na obra antoniana.
A Aurora — bendita Aurora — é
o último estágio da Noite Mística e se assemelha ao
vermelho da Alquimia Operativa. Santo António assim a delineia: É
a infusão da graça divina. A alma pôde justificar-se
ou tornar-se justa. A alma se torna reta e ereta. A Aurora é o fim
da Noite e o princípio do Dia. Ela é o fim da miséria
e a entrada na beatitude. É o último estádio da ascensão
espiritual — o estado perfeito. A alma sente-se, agora, invadida por
indizível alegria. É a contemplação do Criador.
Do exposto, pode-se simbolicamente deduzir e afirmar, que a
Noite Obscura é um processo de purgação (uma verdadeira
Alquimia Iniciática Interior) que o homem tem indubitavelmente que
passar para alcançar (projetar e construir) o Deus de sua compreensão
e realizar o Cristo Interno. Iniciaticamente, é desta forma que acontece;
não há outro Caminho. O Sol, que primariamente pretende simbolizar
o Sol da Graça a ser alcançada, com sua claridade, brancura
e calor, ilumina a personalidade-alma em contrição. É
com a luz do Sol das primeiras horas da manhã — símbolo
do Sol interior — que são dissipadas as trevas da noite. É
com o nascer do Sol místico que são esvaecidos o preconceito,
a superstição, a avareza, a folia e a ignorância. E
o ser, purificado, limpo e perfeito, entra na posse do conhecimento de seu
Criador. Esse Sol, depois de nascido, jamais se põe. Essa foi uma
afirmação feita por Santo António e por todos aqueles
que alcançaram a perfeição relativa, e passaram pelo
processo místico-purgativo da Noite Negra da Alma. O ato derradeiro
de humildade ao conquistar a Aurora é, assevera-se mais uma vez,
o retorno à Caverna; retorno consolativo e auxiliador aos que ainda
desconhecem a LLUZ. Repete-se: por evidente, esta reflexão
não está presente em Frei António de Lisboa. Esta nota
deve ser integralmente lida sob seu aspecto místico-simbólico;
tentar objetivá-la seria incorrer em um equívoco da compreensão
noética.
Observação:
1.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência.
Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la,
e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro
dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também
na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem,
será bem também. (Fernando Pessoa, Bernardo Soares; in:
Livro do Desassossego).
Fundo
musical:
Cai
na Folia
Fonte:
http://www.freeringtoneheaven.com/
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