Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

nós é que criamos o nosso inferno.

Por que botar a culpa nos outros

pelo hodierno e pelo hesterno?

 

Quando muito, essoutros

podem dar uma certa mãozinha;2

mas outros, estoutros e aqueloutros

só empurram a carrocinha.

 

Se o balaio vai crescendo

é porque costumamos ser não sendo,

vemos não vendo e vivemos não vivendo.3

 

Só poderemos nos desinfernar4

quando o nosso Coração falar

e nos dispusermos a escutar.5

 

 

Enquanto não nos dispusermos a escutar...

 

 

 

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Notas:

1. O inferno são os outros. (Jean-Paul Charles Aymard Sartre, Paris, 21 de junho de 1905 - Paris, 15 de abril de 1980).

As outras pessoas, segundo Sartre, são fontes permanentes de contingências, isto é, possibilitam que alguma coisa aconteça ou não. Todas as escolhas de um ser-no-mundo* levam à transformação desse mesmo mundo para que ele se adapte ao seu projeto. Mas cada ser-no-mundo tem, na maioria das vezes, um projeto diferente, e isso faz com que os seres-no-mundo entrem em conflito sempre que os projetos se sobrepõem ou se contrapõem. Mas Sartre não defende, como muitos pensam, o Solipsismo**. O homem por si só não pode se conhecer em sua totalidade. Só através dos olhos de outros seres-no-mundo é que alguém consegue se ver como parte do mundo. Sem a convivência, um ser-no-mundo não pode se perceber por inteiro. O ser-no-mundo para-si só é para-si através do outro, idéia que Sartre herdou de Hegel. Cada ser-no-mundo, embora não tenha acesso imediato e objetivo às consciências dos outros seres-no-mundo, pode reconhecer neles o que têm de igual e de diferente. E cada um precisa desse reconhecimento. Por mim mesmo, não tenho acesso integral à minha essência; sou um eterno tornar-me, um eterno vir-a-ser que nunca se completa. Só através dos olhos dos outros posso ter acesso à minha própria essência, ainda que temporária. Só a convivência é capaz de me dar a certeza de que estou fazendo as escolhas que desejo. Daí vem a idéia de que o inferno são os outros, ou seja, embora sejam eles que impossibilitem a concretização de meus projetos, colocando-se sempre no meu caminho, não posso evitar sua convivência. Sem eles o próprio projeto fundamental não faria sentido.

* Ser-no-mundo = no heideggerianismo, constituição necessária e apriorística do ser-aí (no hegelianismo, o ser-aí é o ser que alcançou um desenvolvimento pleno, superando o caráter abstrato e indeterminado que apresentava no início do seu processo transformativo; já no heideggerianismo, o ser-aí é a existência humana, caracterizada por seu enraizamento na historicidade do mundo cotidiano, sua angústia diante da morte, e sua capacidade de se interrogar a respeito do Ser) que deve ser compreendido em sua inserção na realidade cotidiana, na historicidade e na relação que estabelece com os outros entes.

** Solipsismo [sol(i)- + radical do latim ipse, a, um 'mesmo, de si mesmo' + -ismo] é a crença filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O Solipsismo é a conseqüência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar exclusivamente fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles. O solipsismo do momento presente estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é exclusivamente o eu-presente. Com o intuito de demonstrar como considerava ridícula esta idéia, Bertrand Russel refere o caso de uma mulher que se dizia solipsista, estando espantada por não existirem mais pessoas como ela.

Fonte (editado):

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Paul_Sartre

Obviamente, não concordo integralmente com o pensamento de Sartre. Por que o homem por si só não pode se conhecer em sua totalidade? Por que sem a convivência um ser-no-mundo não pode se perceber por inteiro? Por que por mim mesmo não posso ter acesso integral à minha essência? Por que só através dos olhos dos outros posso ter acesso à minha própria essência? Por que só a convivência é capaz de me dar a certeza de que estou fazendo as escolhas que desejo? Mas é incontraditável que sou um eterno tornar-me, um eterno vir-a-ser que nunca se completa. A Peregrinação é ilimitada; não há céus ou infernos a priori ou definitivos. Por isso, se por um lado é fato incontestável e irrecorrível que nossas vivências interiores são necessárias e fundamentais para o nosso desenvolvimento psíquico e místico, por outro não podemos desqualificar nem desvalorizar nossas experiências objetivas e o insubstituível contato com os outros seres-no-mundo. Muito pelo contrário. Se assim procedermos, acabaremos inúteis e arremedos do que há de pior no mundo. Ou coisa pior.

2. Porque nós permitimos. Às vezes, provocamos essa mãozinha e até adoramos ser sacaneados.

3. Isso não é sempre assim, mas muitas vezes é. O balaio, inclusive, pode crescer em decorrência dos nossos atos de bondade e de solidariedade. Interferir diretamente nas experiências alheias é algo que um Místico evoluído não faz.

4. Relativamente.

5. De certa forma, isso não é tão difícil. O primeiro passo é aprender a ouvir o Silêncio. Nossa Voz Interior fala em qualquer situação, em qualquer lugar e sob quaisquer circunstâncias. Basta esquecer o mundo e visualizar o centro da cabeça. Depois de um certo tempo, o contato é praticamente imediato. Em um ponto mais avançado, poderemos nos projetar para dentro do nosso Coração. Quem pratica esses dois simples experimentos jamais padece de solidão e passa a ter uma relativa invulnerabilidade. Mas nada disso funciona sem um supremo e desinteressado Amor no Coração. Ouvir. Esquecer. Dentro.

Música de fundo:

On The Sunny Side Of The Street (Dorothy Fields & Jimmy McHugh)

Fonte:

http://perso.orange.fr/jc.boudrant/Liens.htm