O
misticismo, na Idade Média, teve um especial impulso com Meister Eckhart
(1260 – 1327/8), João Ruysbroeck (1293 – 1381), João
Tauler (1300 – 1361), Henrique Suso (1300 – 1365), Gerson (1364
– 1429), Tomás de Kempis (1379/1380 – 1471), Nicolau de
Cusa (1401 – 1464) e Dionísio Cartusiano (1402 – 1471).
Tomás
de Kempis (também conhecido como Tomás de Kempen, Thomas Hemerken,
Thomas à Kempis e Thomas von Kempen) foi um monge e escritor místico
agostiniano germânico nascido na localidade alemã de Kempten,
na Diocese de Cologna, próximo a Düsseldorf, na Renânia,
autor do livro devocional De
Imitatione Christi (Imitação de Cristo), tido como
a mais importante obra da literatura cristã, depois da Bíblia.
Filho de um artesão e de uma professora, John e Gertrudes Haemerken,
seguiu seu irmão mais velho John Haemerken, e foi estudar em Deventer
(1392), na Holanda, centro religioso e sede da Irmandade da Vida Comum, comunidade
dedicada ao cuidado e à educação dos pobres. Estudou
sob a orientação de Florentius Radewyns, agostiniano e fundador
da Congregação de Windesheim. Depois de completar as Humanidades,
em Deventer (1399), por recomendação de seu superior, Florêncio
Radewyn, procurou admissão entre os Cônegos Regulares de Windesheim,
no Monte S. Agnes, perto de Zwolle, mosteiro do qual seu irmão John
era o prior. Ingressou no Mosteiro de Agnietenberg, no qual permaneceria por
mais de setenta anos e no qual recebeu o hábito de noviço (1406).
Ordenou-se (1413), passando a dedicar sua vida à cópia de manuscritos
e ao ensino de noviços. Seu primeiro mandato como sub-prior foi interrompido
pelo exílio da comunidade de Agnetenberg (1429 – 1432), porém
foi eleito como sub-prior novamente (1448).
Tomás
de Kempis escreveu numerosos textos teológicos e espirituais, tendo
como expoente a De
Imitatione Christi já citada, obra cuja autoria é
ainda controvertida. Este livro, escrito em estilo simples, enfatiza, a vida
espiritual, afirma, a comunhão como prática para fortalecer
a fé e encoraja uma vida pautada no exemplo de Cristo. Para muitos
críticos de literatura, seus textos são provavelmente a melhor
representação da devotio
moderna, um movimento religioso criado por Gerhard Groote ou Gerardus Magnus,
fundador da Irmandade da Vida Comum.
Séculos
após a morte de Tomás de Kempis, ocorrida em Agnietenberg, Países
Baixos, uma esplêndida edição do Opera
Omnia foi publicada por Herder sob a apta editoração
do Dr. Pohl, em 17 volumes (1902 – 1922). Suas obras têm sido
repetidamente republicadas ao longo dos tempos, como De
Imitatione Christi (1441), Opera
Omnia (1607), Chronicon
Montis Sanctæ Agnetis (Antuérpia, 1621), Orações
e Meditações da Vida de Cristo e Encarnação e
Vida de Nosso Senhor (Londres, 1904, 1907), Crônica
dos Cônegos Regulares do Monte S. Agnes (Londres, 1906),
Sermões aos
Noviços Regulares (Londres, 1907).
Este
trabalho é uma atualização/ampliação de
dois textos anteriores sobre o pensamento kempisiano que divulguei. Da mesma
forma, este foi estruturado tendo como base a obra Imitação
de Cristo, de Tomás de Kempis.
Tomás
de Kempis foi muito mais do que um simples religioso, e sua obra, ainda que
aparente ter um ordenamento exclusivamente religioso, embute nas entrelinhas
conceitos esotéricos e espirituais irredutíveis. Sempre as entrelinhas!
Obras como a Imitação
de Cristo não devem ser lidas pelas linhas – que,
geralmente, não mostram nada. Devem ser, sim, examinadas em seus ocultos
escaninhos interlineares. Por exemplo: a afirmação
vaidade é sucumbir aos apetites da carne e almejar aquilo pelo que,
depois, serás gravemente castigado, lida
linear e religiosamente é uma coisa meio aterrorizante; mas, se a advertência
serás
gravemente castigado for
substituída por haveremos de
educativamente compensar, a religiosidade indeslindável e o
fideísmo punitivo se transformam em Espiritualidade Adequável
e Misticismo Illuminativo.
Então, na verdade, tudo acaba sendo e se afirmando, para nós,
conforme lemos as coisas ou como entendemos as mensagens. Portanto, por exemplo,
podemos, por um lado, admitir que os centauros (centauri)
existiram de fato como uma raça de seres antropogênicos com o
torso e a cabeça humanos e o corpo de cavalo ou, por outro lado, como
símbolos arquetípicos daqueles que retrogradaram por sua natureza
egoísta e violenta – os
homens de sangue.
Centauro
pelejando contra um Lápita
(detalhe do Parthenon)
Enfim,
como a hora e o tempo são encorajadores e propícios, garimpei
algumas dessas reflexões Kempisianas e ofereço a todos como
fonte de meditação. Para compreendê-las, é preciso
isolar (pôr entre parêntesis) as exortações religiosas
e aproveitar a essência dessas meditações.
Imitação
de Cristo
(Reflexões Kempisianas)
'Quem
me segue não anda nas trevas, diz o Senhor' (Jo. VIII, 12). São
estas as palavras de Cristo, pelas quais somos advertidos que imitemos sua
vida e seus costumes, se verdadeiramente queremos ser Illuminados e livres
de toda cegueira de Coração.
Na
verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo;
mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro
sentir a contrição dentro de minha alma a saber defini-la. Se
soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos,
de que te serviria tudo isto sem a caridade e a graça de Deus? 'Vaidade
das vaidades, e tudo é vaidade' (Ecle. I, 2).
Vaidade é buscar riquezas perecedoras
e nelas confiar.
Vaidade é ambicionar honras e desejar posição elevada.
Vaidade é sucumbir aos apetites da carne e almejar aquilo pelo que,
depois, serás gravemente castigado. Vaidade, desejar longa vida e,
entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade é só atender
à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade é amar
o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade
que sempre dura.
Bem-aventurado
aquele a quem a Verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes
que passam, mas como em si é.
Aquele
a quem fala o Verbo – o
Verbo Único e Eterno
–
se desembaraça
de muitas questões.
Quanto
mais recolhido for cada um e mais simples de Coração, tanto
mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto recebe
a LLuz da Inteligência.
Oh!
Como passa depressa a glória do mundo!
Insensato
é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas.
Enquanto
vivermos neste mundo, não poderemos estar sem trabalhos e sem tentações.
Por isto, lemos no livro de Jó VII, I: 'É um combate a vida
do homem sobre a Terra'. Cada qual, pois, deve estar acautelado contra as
tentações, mediante a vigilância e a oração,
para não dar azo às ilusões do demônio, que nunca
dorme, mas anda por toda parte em busca de quem possa devorar. Não
há ninguém tão perfeito e santo, que não tenha,
às vezes, tentações, e não podemos ser delas totalmente
isentos.
O
princípio de todas as tentações é a inconstância
do espírito e a pouca confiança em Deus; pois, assim como as
ondas lançam de uma parte à outra o navio sem leme, assim também
as tentações desbaratam o homem descuidado e inconstante em
seus propósitos. Humildemos, portanto, nossas almas em qualquer tentação
e tribulação porque serão engrandecidos os que são
humildes de Coração.
Relanceia
sobre ti o olhar e guarda-te de julgar as ações alheias. Quem
julga os demais perde o trabalho, quase sempre se engana e facilmente peca;
mas, examinando-se e julgando-se a si mesmo, trabalha sempre com proveito.
Sem
paciência
não têm grande valor os nossos méritos.
De
manhã, toma resoluções; à noite, examina tuas
ações. Como te houveste hoje em palavras, em obras e em pensamentos?
Disse
Sêneca:
'Sempre que estive entre os homens menos homem voltei'. Isto experimentamos
muitas vezes, quando falamos muito. Mas fácil é calar de todo,
do que não tropeçar em alguma palavra. Fácil é
também ficar oculto em casa, do que fora dela ter a necessária
cautela. Quem, pois, pretende chegar à Vida Interior e Espiritual,
importa-lhe que se afaste da turba, com Jesus. Ninguém, sem perigo,
se mostra em público, senão quem gosta de se esconder. Ninguém
seguramente fala, senão quem gosta de calar. Ninguém seguramente
manda, senão o que perfeitamente aprendeu a obedecer. Enfim, não
pode haver alegria segura, sem o testemunho de boa consciência.
O
que poderá ser visto, em parte alguma, estável debaixo do Sol,
por muito tempo?
'Livrai-me,
Senhor, das minhas necessidades' (Sl. XXIV, 17). Ai daqueles que não
conhecem as suas misérias! Outra vez ai daqueles que amam esta miserável
e corruptível vida! Ó insensatos e duros de Coração,
que tão profundamente jazem apegados à Terra, que não
gostam senão das coisas carnais. Infelizes! Virá o tempo em
que haverão de sentir, muito a contragosto, como era vil e nulo aquilo
que amaram.
Pela
manhã, pensa que não chegarás à noite; à
noite não te prometas o dia seguinte. Por isto, anda sempre preparado
e vive de tal modo que te não encontre a morte desprevenido. Muitos
morrem repentina e inesperadamente; pois na hora em que menos se pensa, virá
o Filho do Homem (Lc. XII, 40). Quando chegar a hora derradeira, começarás
a julgar mui diferentemente toda a tua vida passada, e doer-te-á muito
teres sido tão negligente e remisso.
Prepara teu Coração para
o Esposo,
a fim de que Ele se digne vir e morar em ti.
O
verdadeiro sábio é
aquele que avalia as coisas pelo que são, e não pelo juízo
e pela estimação dos outros. Quem sabe andar recolhido dentro
de si e ter em pequena conta as coisas exteriores não precisa escolher
lugar nem aguardar horas para se dar a exercícios de piedade. O homem
interior facilmente se recolhe, pois nunca se entrega de todo às coisas
exteriores. Não o estorvam trabalhos externos nem ocupações,
às vezes necessárias; mas ele se acomoda às circunstâncias,
conforme sucedem. Quem tem o interior ordenado e harmonizado
não se deixa influenciar nem se perturba com a criminalidade humana.
Primeiro,
conserva-te em paz; depois poderás pacificar os outros.
Cada
um julga segundo seu interior... Quando o homem começa a entibiar,
logo anseia as consolações exteriores. Quando, porém,
começa deveras a vencer e a andar com ânimo no Caminho de Deus,
leves lhe parecem as coisas que antes achava onerosas.
Nunca
encontrei homem tão religioso e tão devoto que não sofresse,
às vezes, a subtração da graça, e que não
sentisse o arrefecimento do fervor. Nenhum santo foi tão altamente
arrebatado e tão
profundamente esclarecido
que, antes ou depois, não fosse tentado. Porque não é
digno da alta contemplação de Deus quem por Deus não
sofreu alguma tribulação. Costuma vir primeiro a tentação,
como sinal precursor da próxima consolação; porque aos
provados pela tentação é prometido o celeste consolo.
'A quem tiver vencido, diz o Senhor, darei a comer o fruto da Árvore
da Vida' (Apc. II, 7).
Não
devemos almejar uma consolação que nos subtraia a compunção,
nem aspirar uma contemplação que nos seduza ao desvanecimento,
porque nem tudo o que é sublime é santo, nem tudo o que é
agradável é bom, nem todo desejo é puro e nem tudo o
que nos deleita agrada a Deus.
Ninguém
é mais poderoso e mais livre do que aquele que sabe se deixar a si
e a todas as coisas, e humildemente se coloca em último lugar.
Em
morrer para si mesmo
[e
para as coisas do mundo] está tudo.
'Ouvirei
o que em mim disser o Senhor meu Deus' (Sl. LXXXIV, 9). Bem-aventurada a alma
que ouve em si a Voz do Senhor e recebe de Seus lábios palavras de
consolação! Benditos os ouvidos que percebem o sopro do Divino
Sussurro e nenhuma atenção prestam às sugestões
do mundo! Bem-aventurados, sim, os ouvidos que não atendem às
vozes que atroam lá fora, mas à Verdade que os ensina dentro!
Bem-aventurados os olhos que estão fechados para as coisas exteriores
e abertos para as Interiores! Bem-aventurados aqueles que penetram as Coisas
Interiores e se empenham, com exercícios contínuos de piedade,
em compreender, cada vez melhor, os Celestes Arcanos. Bem-aventurados os que
com gosto se entregam a Deus e se desembaraçam de todos os empenhos
do mundo. Fecha as portas dos sentidos para que possas ouvir o que em ti falar
o Senhor teu Deus.
Quem
ama, voa, corre, vive alegre, é livre e sem embaraço. Dá
tudo por tudo e possui tudo em todas as coisas porque sobre todas as coisas
descansa no Sumo Bem, do qual dimanam e procedem todos os bens. Não
olha para as dádivas, mas se eleva acima de todos os bens até
Àquele que os concede. O amor, muitas vezes, não conhece limites,
mas seu ardor excede a toda medida. O amor não sente peso, não
faz caso das fadigas e quer empreender mais do que pode; não se escusa
com a impossibilidade, pois tudo lhe parece lícito e possível.
Por isto, de tudo é capaz e realiza obras, enquanto o que não
ama desfalece e cai. O amor vigia sempre, e até no sono não
dorme. Nenhuma fadiga o cansa, nenhuma angústia o aflige, nenhum temor
o assusta; mas, qual viva chama, a ardente labareda irrompe para o alto e
passa avante. Só quem ama compreende o que é amar. Bem alto
soa aos ouvidos de Deus o afeto da alma que diz: — Meu Deus, meu amor!
Vós sois todo meu, e eu sou todo vosso!
O
amor é pronto, sincero, piedoso, alegre e amável; forte, sofredor,
fiel, prudente, longânime, viril e nunca busca a si mesmo. Pois, logo
que alguém procura a si mesmo, perde o amor. O amor é circunspecto,
humilde e reto; não é frouxo, não é leviano, nem
cuida de coisas vãs; é sóbrio, casto, constante, quieto,
recatado em todos os seus sentidos. O amor é submisso e obediente aos
superiores, mas aos próprios olhos é vil e desprezível;
devoto e agradecido para com Deus, confia e espera sempre Nele, ainda quando
está desconsolado, porque no amor não se vive sem dor.
Acautela-te
contra a vã complacência e a soberba. Por falta desta vigilância
andam muitos enganados e caem, às vezes, em cegueira incurável.
A ruína dos soberbos – que loucamente presumem de si próprios
–
sirva-te de cautela
e te conserve na virtude da humildade.
Se
entrar em teu Coração a graça celestial e a verdadeira
caridade, não sentirás mais inveja alguma nem aperto em teu
Coração. Também não haverá mais lugar para
a imodéstia e para a presunção, porque a Divina Caridade
tudo vence e multiplica as forças da alma.
Não
busques uma paz isenta de tentações e de contrariedades; isto
é impossível... Qual fumo se desvanecerão os abastados
do século; nem lembrança restará de seus prazeres passados.
E mesmo, enquanto vivem, não os fruem sem amargura, sem tédio
e sem temor, porquanto do próprio objeto de seus deleites muitas vezes
lhes vem a dor que os castiga. E é justo que assim lhes suceda: que
encontrem amargura e confusão nos gozos que buscam e perseguem desordenadamente.
Quão
breves, quão falsos, quão desordenados e quão
torpes são
todos os deleites do mundo! Mas os homens, na embriaguez e na cegueira do
espírito, não compreendem; antes, como irracionais, por um diminuto
prazer, nesta vida corruptível, dão morte à sua alma.
Curto
e vão é todo consolo humano; bendita e verdadeira é a
consolação que a Verdade nos comunica interiormente.
Senhor: dissipe Vossa presença
todos os maus pensamentos. Esta é a minha única esperança
e consolação: a vós recorrer em toda tribulação,
em vós confiar, invocar-vos de todo o Coração, e com
paciência aguardar a vossa consolação. Amém.
Illuminai-me – ó bom Jesus
–
com a claridade da
Luz Interior e dissipai todas as trevas que reinam em meu Coração.
Refreai as dissipações nocivas e rebatei as tentações,
que me fazem violência. Pelejai valorosamente por mim, e afugentai as
más feras –
essas traiçoeiras
concupiscências –
para que se faça
a paz por Vossa virtude, e ressoe perene louvor no templo santo, que é
a consciência pura. Mandai aos ventos e às tempestades; dizei
ao mar: aplaca-te, e ao tufão: não sopres; e haverá grande
bonança. Amém.
Desprendei-me
e arrancai-me de toda transitória consolação das criaturas,
porque nenhuma coisa criada poderá me consolar plenamente ou satisfazer
meus desejos. Uni-me Convosco pelo vínculo indissolúvel do amor,
porque só Vós bastais a quem vos ama, e sem Vós tudo
o mais é vaidade. Amém.
Filho:
não sejas curioso nem te preocupes com cuidados inúteis. Que
tens tu com isto ou aquilo? O que pode te importar saber se fulano é
assim ou de outro modo ou se sicrano procede e fala deste ou daquele jeito?
Tu não és responsável pelos outros, mas de ti mesmo deves
dar conta. Por que, então, te intrometes nisto e naquilo? Não
te [pre]ocupes com a sombra de um grande nome, nem com a familiaridade de
muitos, nem com a amizade particular dos homens. Tudo isto gera distrações
e grande perplexidade ao Coração. Sê cauteloso, vigia
na oração e sê humilde em todas as coisas... Não
julgues temerariamente as palavras e as obras dos outros nem te intrometas
em coisas que não te dizem respeito; deste modo, poderá ser
que pouco ou raras vezes te perturbes.
Nunca sentir inquietação
nem sofrer moléstia alguma do corpo ou do espírito não
é próprio da vida presente, senão do estado do eterno
descanso. Não julgues, pois, ter achado a verdadeira paz, se não
sentires nenhuma aflição; nem que tudo está bem, se não
tiveres nenhum adversário, se tudo aparentar estar perfeito, se tudo
correr a teu gosto. Nem penses que és grande coisa ou singularmente
amado por Deus, se sentes muita devoção e doçura, porque
não são estes os sinais pelos quais se conhece o verdadeiro
amante da virtude nem consiste nisto o aproveitamento e a perfeição
do homem. A perfeição do homem consiste em se oferecer, de todo
o Coração, à Divina Vontade, sem buscar o próprio
interesse em coisa alguma, nem mesmo as Coisas Eternas. De sorte que, com
igualdade de ânimo, devemos dar graças a Deus na ventura e na
desgraça, pesando tudo na mesma balança.
O
comer, o beber, o vestir e outras coisas necessárias ao corpo são
um peso para a alma fervorosa. Concedei-me usar com moderação
de tais lenitivos, sem me prender a eles com demasiado afeto. Não é
lícito rejeitar tudo, pois devemos sustentar a nossa natureza; mas
buscar as coisas supérfluas e o que mais delicia, proíbe-o vossa
santa lei, porque, de outro modo, a carne se rebelará contra o espírito.
Entre estes dois extremos, Senhor, peço-vos que me dirijas e governes
na vossa mão, para que não pratique qualquer excesso.
Por que te consomes em vã tristeza?
Por que te afanas em cuidados supérfluos? Conforma-te... e nenhum dano
sofrerás. Se buscares isto ou aquilo, se desejares estar aqui ou ali,
por tua comodidade ou teu capricho, nunca estarás quieto nem livre
de cuidados, porque em todas as coisas há algum defeito, e em todo
lugar algo ou alguém te contrarie.
Se
praticares a Vida Interior, pouco te importarás com as palavras que
voam. É prudente calar-se nas horas de tribulação, volver-se
interiormente e não se perturbar com os juízos humanos.
Não
faças depender tua paz da boca dos homens porque, quer te julguem bem,
quer te julguem mal, não serás por isto um homem diferente.
Quem não procura agradar os homens nem teme lhes causar desagrado,
este, sim, gozará de grande paz. É do amor desordenado e do
vão temor que nascem o desassossego do Coração e a distração
dos sentidos.
Filho:
não podes gozar perfeita liberdade, enquanto não renunciares
inteiramente a ti mesmo. Em escravidão vivem todos os ricos e egoístas,
todos
os cobiçosos
e todos
os
curiosos que gostam
de vaguear, buscando sempre as delícias dos sentidos e não as
de Jesus, o Cristo. Tudo o que não vem de Deus perecerá. Conserva
em teu Coração esta breve e profunda sentença: Deixa
tudo, e terás sossego. Pondera isto, e, quando o praticares, tudo entenderás.
Disse
Jesus: Filho, não te fies nos teus afetos atuais, que depressa em outros
se mudarão. Enquanto viveres, estarás sujeito ao variável,
ainda que não queiras. Ora te acharás alegre, ora triste, ora
sossegado ora perturbado, umas vezes fervoroso, outras tíbio, já
diligente, já preguiçoso, agora sério, logo leviano.
O sábio, porém, e instruído na Vida Espiritual, está
acima desta inconstância, não cuidando dos seus sentimentos,
nem de que parte sopra o vento da instabilidade, mas concentrando todo o esforço
de sua alma no devido e almejado fim. Porque assim poderá permanecer
sempre o mesmo e inabalável, dirigindo a Mim, sem cessar, a mira de
sua intenção, entre todas as vicissitudes que lhe sobrevierem.
O verdadeiro progresso do homem consiste
na abnegação de si mesmo, e quem assim se abnegou, goza grande
liberdade e segurança. Contudo, o antigo inimigo – o adversário
de todo o bem –
não desiste
da tentação, armando dia e noite perigosas ciladas, para ver
se pode precipitar algum incauto no laço do seu engano. 'Vigiai e orai,
diz o Senhor, para que não entreis em tentação' (Mt.
XXVI, 41).
Verdadeiramente
a vanglória é uma peste maligna e a pior das vaidades porque
nos aparta da glória verdadeira e nos priva da graça celestial.
Porquanto, desde que o homem agrada a si, desagrada a vós, e quando
aspira aos humanos louvores, perde as verdadeiras virtudes. Glória
verdadeira, porém, e alegria santa é gloriar-se cada um em Vós
e não em si, deleitar-se em Vosso Nome e não na sua própria
virtude, não achar deleite em criatura alguma, senão por amor
de Vós. Seja louvado o Vosso Nome e não o meu; sejam glorificadas
Vossas Obras e não as minhas; exaltado seja o Vosso Santo Nome, e a
mim nada se atribua dos louvores humanos. Vós sois minha glória
e a alegria do meu Coração. 'Em Vós me gloriarei e exaltarei
todo dia, mas, quanto à minha pessoa, de nada me ufano, a não
ser das minhas fraquezas' (2 Cor. XII, 5).
Jesus:
se puseres tua paz em alguma pessoa, por conviver contigo e ser de teu parecer,
achar-te-ás inconstante e embaraçado. Mas, se recorreres à
Verdade sempre viva e permanente, não te entristecerás pela
ausência e morte de um amigo. Em Mim se há de fundar o amor do
amigo, e por Mim se há de amar todo aquele que nesta vida te parecer
bom e amável. Sem Mim não vale nada, nem durará a amizade;
nem é puro e verdadeiro o amor cujos laços Eu não tenha
dado. De tal modo deves estar morto para semelhantes afeições
dos amigos que, quanto depender de ti, desejes viver sem relações
humanas. Quanto mais se chegar o homem para Deus, tanto mais se afastará
de todo alívio terreno. E tanto mais alto sobe para Deus, quanto mais
baixo desce na sua estimação e mais vil se reputa.
Nunca
leias a Minha Palavra com o fim de pareceres mais douto ou mais
sábio. Aplica-te
em mortificar teus vícios porque isto te trará mais proveito
do que o conhecimento das mais difíceis questões.
Não
é puro nem perfeito o que está contaminado de algum interesse
próprio.
Jesus: Filho, não podes te conservar
sempre no desejo fervoroso de todas as virtudes nem perseverar no mais alto
grau de contemplação; mas, às vezes, te é necessário,
por causa de tua natureza viciada, descer à coisas humildes e carregar,
em que te pese, o fardo desta vida corruptível. Enquanto viveres neste
corpo mortal, sentirás tédio e angústias do Coração.
Convém, pois, que na carne gemas muitas vezes debaixo do seu peso,
porque não podes te ocupar dos exercícios espirituais e da contemplação
das coisas divinas sem interrupção.
Senhor,
eu não sou digno da vossa consolação... Que fiz eu, Senhor,
para que me désseis alguma consolação celestial? Pequei,
Senhor, pequei; tende piedade de mim, perdoai-me!
Pela
contrição sincera e humilde do Coração nasce a
esperança do perdão, reconcilia-se a consciência perturbada,
recupera-se a graça perdida, preserva-se o homem da ira futura, em
ósculo santo une-se Deus à alma arrependida.
Se
aspiras galgar as alturas, cumpre-te começar varonilmente e pôr
o machado à raiz, para que cortes o secreto e desordenado apego que
tens a ti mesmo e a todo bem particular e sensível. Deste vício
do amor excessivo e desordenado que o homem tem a si mesmo provém quase
tudo o que radicalmente se há de vencer. Vencidos e subjugados os
apegos,
logo haverá grande paz e tranqüilidade estável. Mas já
que poucos tratam de morrer a si mesmos e de se desapegar de si, por isso
ficam presos em si mesmos e não se podem erguer, em espírito,
acima de si mesmos.
A quem, todavia, desejar livremente Me seguir, cumpre-lhe mortificar todos
os seus maus e desordenados afetos, e não se prender, com amor apaixonado,
a criatura alguma.
Filho:
observa com diligência os movimentos da Natureza e da Graça,
pois muitos são
opostos uns aos outros
e são tão sutis, que só a custo podem ser discernidos,
mesmo por um homem espiritual e interiormente Illuminado. Todos, sim, desejam
o bem e intentam algum bem nas suas palavras e obras; por isso se enganam
muitos com a aparência do bem. A Natureza é astuta; a muitos
atrai, enreda e engana, e não tem outra coisa em mira senão
a si mesma. Mas a Graça anda com simplicidade, evita a menor aparência
do mal, não usa de enganos e tudo faz puramente por Deus, no qual descansa
como em seu último fim.
Assim
como o não desejar coisa alguma exterior produz paz interior, assim
o desprendimento interior de si mesmo causa a união com Deus.
'Se queres entrar na Vida, guarda os
mandamentos' (Mt. XIX, 17). Se queres conhecer a Verdade, crê em mim.
'Se
queres ser perfeito, vende tudo' (Mt. XIX, 21). Se queres ser Meu discípulo,
renuncia a ti mesmo. Se queres possuir a Vida Bem-aventurada, despreza a presente.
Se queres ser exaltado no céu, humilha-te na Terra. Se queres reinar
Comigo, carrega Comigo a Cruz, porque só os servos da Cruz acham o
Caminho da Bem-aventurança e da LLuz Verdadeira.