HeRberT  José  d souza

 

 

 

 

Betinho

 

 

 

 

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

 

 

Objetivo do Estudo

 

 

 

Continuando, ainda por um tempo, nesta linha de estudar escolhas e vivências, alegrias e tristezas, reflexões e pensamentos de brasileiros ilustres, decidi, hoje, divulgar um estudo que fiz sobre o sociólogo e ativista dos direitos humanos Herbert José de Souza, carinhosamente conhecido como Betinho, que concebeu e se dedicou ao Projeto Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida – movimento em favor dos pobres e excluídos. É um mineiro, diz-se das pessoas equilibradas que dificilmente se exaltam ou que assumem posições contundentes. Isto talvez ajude a explicar porque Betinho – assumindo integralmente as mais radicais utopias de transformação social e fazendo da sua própria vida uma bandeira costurada de bandeiras universais – sempre trabalhou no sentido de congregação, da união. Em resumo, que não resume nada, porque todo resumo é supressor e apocópico: Betinho é, sem dúvida, o símbolo da determinação e do trabalho incansável pela cidadania, pela restauração da verdadeira Democracia participativa, pela valorização da solidariedade e dos direitos humanos em uma sociedade particularmente injusta, hipócrita e egoísta.

 

 

 

 

 

 

 

Breve Biografia

 

 

 

Betinho nasceu em 3 de novembro de 1935, em Minas Gerais, região montanhosa no interior do Brasil cujos habitantes são conhecidos por sua mansidão, pelo jeito calmo e sutil, e, como seus irmãos Henfil e Chico Mário, herdou da mãe a hemofilia, e desde a infância sofreu com outros problemas, como a tuberculose. Eu nasci para o desastre, porém com sorte — costumava dizer.

 

Foi criado em ambientes inusitados: a penitenciária e a funerária, onde o pai trabalhava. Mas sua formação teve grande influência dos padres dominicanos, com os quais travou contato na década de 1950. Integrou a JEC (Juventude Estudantil Católica), a JUC (Juventude Universitária Católica) e, em 1962, fundou a AP (Ação Popular), da qual foi o primeiro coordenador.

 

Concluiu seus estudos universitários em Sociologia, no ano de 1962. Durante o Governo de João Goulart assessorou o MEC – chefiou a Assessoria do Ministro Paulo de Tarso Santos – e defendeu as reformas de base, sobretudo a reforma agrária.

 

Com o golpe militar, em 1964, mobilizou-se contra a ditadura, sem, porém, nunca esquecer as causas sociais. Com o aumento da repressão, foi obrigado a se exilar no Chile, em 1971. Lá assessorou Salvador Allende, até sua deposição, em 1973. Conseguiu escapar do golpe de Pinochet refugiando-se na embaixada panamenha. Posteriormente, morou no Canadá e no México. Durante esse período foram reforçadas as suas convicções sobre a Democracia – que ele julgava ser incompatível com o sistema capitalista.

 

Foi citado como o irmão do Henfil,1 que se encontrava no exílio, na canção O Bêbado e o Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, gravada por Elis Regina na época da Campanha pela Anistia aos presos e exilados políticos. Anistiado em 1979, voltou ao Brasil, onde passou a se dedicar à luta pela reforma agrária, sendo um de seus principais articuladores. Nesse sentido, conseguiu reunir, em 1990, milhares de pessoas no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, em manifestação pela causa.

 

Em 1981, junto com os economistas Carlos Afonso e Marcos Arruda, fundou o IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.

 

Em 1986, Betinho descobriu ter contraído o vírus da AIDS em uma das transfusões de sangue a que era obrigado a se submeter periodicamente devido à hemofilia. Em sua vida pública, este fato repercutiu na criação de movimentos de defesa dos direitos dos portadores do vírus. Junto com outros membros da sociedade civil, fundou e presidiu até a sua morte a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. Dois dos seus irmãos, Henfil e Chico Mário, morreram em 1988 em conseqüência da mesma doença.

 

Betinho também integrou as forças que resultaram no impeachment do Presidente da República Fernando Collor. Mas o projeto pelo qual se imortalizou foi, provavelmente, a Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida – movimento em favor dos pobres e excluídos.

 

Betinho morreu aos 61 anos, em 9 de agosto de 1997, já bastante debilitado pela AIDS. Deixou dois filhos: Daniel, filho do seu primeiro casamento com Irles Carvalho, e Henrique, filho do segundo casamento com Maria Nakano, com quem viveu 27 anos. Em 11 de agosto seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas em seu sítio, em Itatiaia.

 

 

 

 

Livros Publicados

 

 

 


Estreitos Nós (crônicas).

Em Defesa do Interesse Nacional

No Fio da Navalha (biografia)

A Cura da AIDS (ensaios sobre AIDS e Politica de Saúde).

Ética e Cidadania(entrevista)

A Lista de Alice (crônicas).

Como Se Faz Análise de Conjuntura.

O Estado e o Desenvolvimento Capitalista no Brasil (em co-autoria com Carlos A. Afonso).

A Zeropéia (infanto-juvenil).

A Centopéia que Pensava (infanto-juvenil).

A Centopéia Que Sonhava (infanto-juvenil).

 

 

 

 

Betinho
Pensamentos e Reflexões...
Escolhas e Vivências...
Alegrias e Tristezas...
Esperanças...

 

 

 


 

 

 

A Globo informa o que quer e como quer, desde que isto não vá contra o pensamento oficial. Se existe um poder soberano neste País, ele é a Rede Globo de Televisão. E o mais importante é que ela exerce este poder graças ao Governo Federal, e sem ter sido eleita por pessoa alguma. Só em uma ditadura poderia existir semelhante poder sem controle social.

 

 

 

 

A democratização das nossas sociedades se constrói a partir da democratização das informações, do conhecimento, das mídias, da formulação e do debate dos caminhos e dos processos de mudança.

 

A luta pela Democracia é que desenvolve o mundo, e ela se constrói com e através da comunicação.

 

Toda informação é, de certa forma, uma proposta ou um elemento de formulação de propostas. É matéria-prima fundamental da ação política e, portanto, do trabalho cotidiano dos movimentos populares.

 

Muitas reformas se fizeram para dividir a terra, para torná-la de muitos e, quem sabe, até de todas as pessoas. Mas isto não aconteceu em todos os lugares. A Democracia esbarrou na cerca e se feriu nos seus arames farpados.

 

A alma da fome é política!

 

Quem tem fome tem pressa.

 

 

 

 

Democracia serve para todos ou não serve para nada.

 

Não quero viver obrigado à obediência a nenhuma idéia de nação, pátria, partido, igreja ou grupo.

 

Quem fica na memória de alguém não morre.

 

O Governo deve dar prioridade à sua dívida social e não à financeira.

 

Há mudança no Brasil. Ela não corre, mas anda. Não corre, mas ocorre.

 

Temos sociólogos bons e medíocres. Os primeiros acabam como professores; os outros como presidentes da república.

 

A tecnologia moderna é capaz de realizar a produção sem emprego. O diabo é que a Economia moderna não consegue inventar o consumo sem salário.

 

A fome e a miséria terão que estar em todos os debates, em todos os palanques e em todos os comícios.

 

Quem está com fome precisa comer logo, não pode esperar um mês.

 

É um absurdo um País com tanta terra ociosa assistir sua população vegetar na periferia das grandes cidades.

 

O Brasil tem fome de Ética e passa fome em conseqüência da falta de ética na política.

 

 

 

Eu sou irmão do Henfil por parte de pai e mãe.

 

O jovem não é o amanhã; ele é o agora.

 

Não sou otimista babaca, mas otimista ativo.

 

Por conter as provas de um jogo injusto é que o orçamento é tão complicado, técnico, oculto, disfarçado, arredio.

 

Miséria é imoral. Pobreza é imoral. Talvez a miséria e a pobreza sejam os dois maiores crimes morais que uma sociedade possa cometer.

 

Em resposta a uma ética2 da exclusão, estamos todos desafiados a praticar uma Ética da Solidariedade.

 

Só a participação cidadã é capaz de mudar o País.

 

Nós temos condições de mudar o País. Mas é preciso ter confiança em que essa mudança vai partir de nós. Ela não vai cair do céu. Ela não vai ser feita pelos outros para nós. Ela vai ser feita de nós para os outros. E isto é para mim uma convicção muito profunda. Se a nossa geração, se nós que estamos vivos ainda decidirmos mudar o País, nós vamos acabar com a fome e com a miséria, nós vamos fazer um País democrático. Eu tenho a absoluta convicção disso. Tem só um "se", e o "se" é você. Se você decidir fazer isso acontecer. [Se você quiser ouvir o Betinho falar isto, clique AQUI].

 

Solidariedade, amigos, não se agradece; comemora-se.

 

É preciso olhar a propriedade da terra com o olhar da Democracia, com o olhar da vida, e não com o olhar da cobiça, da cerca, da violência...

 

A terra e a Democracia aqui não se encontram. Negam-se, renegam-se. Por isto, para se chegar à Democracia é fundamental abrir a terra, romper essas cercas que excluem e matam, universalizar este bem, acabar com o absurdo, restabelecer os caminhos fechados, as trilhas cercadas, os rios e lagos apropriados por quem, julgando-se dono do mundo, na verdade, o rouba de todos os demais.

 

Não cabe às ONGs brasileiras acabar com ou pretender substituir o Estado, mas colaborar para a sua democratização. Não cabe às ONGs produzir para o conjunto da sociedade os bens e serviços que o mercado não é capaz de produzir, mas propor uma nova forma de produzir e de distribuir que supere os limites da lógica do Capital.

 

No Brasil não existe filantropia; o que existe é pilantropia.

 

O que nos falta é a capacidade de traduzir em proposta aquilo que ilumina a nossa inteligência e mobiliza nossos corações: a construção de um novo mundo.3

 

Quando uma sociedade deixa matar crianças é porque começou seu suicídio como sociedade.

 

Um país não muda pela sua Economia, pela sua política e, nem mesmo, pela sua ciência; muda, sim, pela sua cultura.

 

Essas crianças estão nas ruas porque, no Brasil, ser pobre é estar condenado à marginalidade. Estão nas ruas porque suas famílias foram destruídas. Estão nas ruas porque nos omitimos. Estão nas ruas e estão sendo assassinadas.4

 

No Brasil, não existia o controle do sangue: a AIDS era desconhecida. Ele [o controle do sangue] não existia também para outras doenças. Assistíamos ao comércio de sangue, uma irresponsabilidade total. Neste sentido, a AIDS salvou o sangue.

 

 

 

 

Não podemos aceitar a teoria de que se o pé é grande e o sapato, pequeno, devemos cortar o pé. Temos de trocar de sapato.

 

Para nascer um novo Brasil, humano, solidário, democrático, é fundamental que uma nova cultura se estabeleça, que uma nova economia se implante e que um novo poder expresse a sociedade democrática e a democracia no Estado.

 

Creio que podemos transformar a tragédia da AIDS, da enfermidade e da doença num desafio, numa oportunidade, numa possibilidade de recuperar na nossa sociedade, em nós mesmos, em cada um de nós e em todos nós, o sentido da vida e da dignidade. E, com esse sentido da vida e da dignidade, seremos capazes de lutar pela construção de uma sociedade democrática, de uma sociedade justa e fraterna.

 

Não posso ser feliz diante da miséria humana. O fim da miséria não é uma utopia.

 

O desenvolvimento humano só existirá se a sociedade civil afirmar cinco pontos fundamentais: igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade.

 

 

 

 

Uma Carta Para Maria
(Itatiaia, janeiro de 1997)

(Carta escrita por Betinho para sua mulher Maria e lida, um ano após sua morte, pelo ator Jonas Bloch)

 

 

Este texto é para Maria ler depois da minha morte que, segundo meus cálculos, não deve demorar muito. É uma declaração de amor.

Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter todos os cuidados. Não quero triste, quero fazer dela também um pedaço de vida pela via de lembrança que é a nossa eternidade.

Nos conhecemos nas reuniões de AP (Ação Popular), em 1970, em pleno Maoísmo. Havia uma clima de sectarismo e medo nada propício para o amor.

Antes de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais eram animadores, apesar de misteriosos. Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma. Foi no ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo. Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo. E aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um beijo público. A barreira da distância estava rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos!

O Maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na clandestinidade sem sentido e sem futuro. Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais. Mas como fizemos amor naquele tempo! Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer.

Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia, amor de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou a “cair”. Prisões, torturas, polícia por toda a parte, o inferno na nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez para elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou em seus discursos oficiais. Foi a primeira vez que eu vi amor virar discurso político…

Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil?

Foi um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade! Era verdade, o Brasil era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo que não havíamos comido no exílio: angu com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com maxixe, abóbora, cozido, feijoada. Um festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela boca.

Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez reencontrar a infância.

Depois do exílio, nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos; viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o IBASE funcionava, até a hemofilia parecia que havia dado uma trégua. Henrique crescia, Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como filho e amigo.

Mas como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas nossas vidas, estávamos diante do que nunca esperei. A AIDS. Em 1985, surge a notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos. O pânico foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa. Não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico.

Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais do que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo, mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado. A AIDS selou um amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, a tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.

Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pôs um “senão” ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de mim, inseparável. E foi. Desde os tempos do cólera, da não esperança, da morte do Henfil e do Chico, passando pelas crises que beiravam a morte até o coquetel que reabria as esperanças. Tempo curto para descrever, mas uma eternidade para se viver.

Um dos maiores problemas da AIDS é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não ter? Todos os cuidados são suficientes ou não se deve correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fases, desde o sexo com uma ou duas camisinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo risco.

Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura, da invenção, dos pequenos prazeres e da paz. Viver é muito mais que fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também sinta assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.

Para se falar de uma pessoa com total liberdade é necessário que uma esteja morta e eu sei que este será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora muito.

Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria do meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que morrem sozinhas ou mal acompanhadas – é morrer muitas vezes em uma só. Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja gelada.

Te amo para sempre,

 

Betinho,
Itatiaia, janeiro de 1997

 

 

 

O que somos é um presente que a vida nos dá. O que nós seremos é um presente que daremos à vida.

 

Um hospital não é uma butique, né? Um hospital não é hotel de quatro estrelas, de cinco estrelas. Um hospital foi feito para atender doente e tratar com doença. A minha tese é a seguinte: um hospital que não recebe um doente deve ser fechado.

 

Uma das dimensões dramáticas de luta pela cidadania é a saúde.

 

Não há vida sem morte, prazer sem dor, sim sem não, princípio sem fim, agudo sem grave, veloz sem lento, grande sem pequeno. Deus sem Diabo.5

 

Tudo é metade e o contrário da outra parte; diferente para fazer a unidade do que é contrário.

 

Todo diferente é, no fundo, parte de um mesmo igual. 'Yin' e 'Yang'. Deus e o Diabo, num empate aceito pelos dois – eis o mistério.

 

A AIDS é uma doença do homossexual. Não, homossexual não tem culpa da AIDS; ele é uma vítima da AIDS. Hemofílico é uma vítima da AIDS. E as pessoas que usam essa discriminação contra o doente estão revelando uma insensibilidade humana. Uma falta de ética humana; perderam o sentido do que é o ser humano.

 

Acho que a vida a qualquer custo não tem sentido. Eu não troco a vida por um sofrimento ilimitado.

 

Quando eu me vi diante desse problema [a AIDS] , eu criei uma 'santíssima trindade' para mim: um ginecólogo, um infectologista e um psiquiatra. Um cuida do vírus, um cuida de mim, outro cuida da alma, né? E acho que é assim que eu, por exemplo, tenho enfrentado isso. Quer dizer, o que eu espero dessa 'santíssima trindade' é que cada um cumpra seu dever e que eu consiga me safar.

 

Eu não quero, em nenhum momento, passar idéia de herói, tá? Não sou, tenho medo, tenho todas as coisas que as pessoas comuns e correntes sofrem.

 

Eu fiz, durante muito tempo, campanha pela camisinha, porque eu digo: bom, se uma pessoa está contaminada, ela não vai parar suas relações sexuais. Então, que ela use camisinha. Bom, eu fazia essa campanha, mas eu mesmo ficava meio preocupado. Por quê? Por causa da qualidade das camisinhas. Todo mundo sabe que camisinha não é das coisas mais seguras do mundo. E esses pequenos detalhes acabam se transformando em questões muito pesadas na sua cabeça. Até que eu descobri uma coisa, que vem mais da aritmética do que das coisas. Falo assim: bom, se uma camisinha é perigosa, use duas, se você tem dúvida de duas, use três. E assim sucessivamente... Um guarda-roupa!

 

Eu descobri um vírus que não está isolado em laboratórios, que é o vírus do medo, que é o vírus do medo da AIDS. Esse vírus já se propagou pela Humanidade inteira. Há milhões de pessoas contaminadas por isso. E é esse vírus que está mudando o comportamento das pessoas, em alguns casos de forma absolutamente irracional.

 

Alguém, no Rio de Janeiro, disse que a AIDS era um castigo de Deus. Eu estou convencido que a AIDS é um vírus. Deus não tem nada que ver com isso.

 

Eu gostaria de viver em uma sociedade onde todos tivessem as mesmas oportunidades de felicidade, de trabalho etc.

 

Eu acho que existe um remédio eficientíssimo para as aflições, é informação. Quer dizer, é isso que eu chamo de uma campanha educativa, informativa, nacional, consistente sobre saúde. E no caso especificamente sobre AIDS, isso merece horas de televisão, não segundos. Esse é um investimento fundamental a ser feito. E isso está ao alcance de o Governo fazer.

 

Se a gente ficar falando só da discriminação, a gente acaba só jogando água no moinho da discriminação. Eu quero falar também, principalmente, da solidariedade.

 

 

 

 

 

Eu não posso dizer: 'fulano vai governar o País e vai salvar o País'. Ninguém salva o País se nós todos não o salvarmos, se cada um não for cidadão 24 horas por dia, e não apenas no momento de votar de quatro em quatro anos.

 

Aqui, nós temos uma série de companheiros da imprensa que sabem que existe uma certa ótica nos meios de comunicação ao ver a sociedade. Tem certas instituições, certos movimentos, certas atividades que, às vezes, envolvem uma pessoa e são transformadas em manchetes. Tem certas personalidades, neste País, que, quando gaguejam, seu gaguejar se transforma numa manchete. Enquanto isso, existem centenas de outros, ou milhares de outros movimentos, que envolvem milhares de pessoas, que fazem um esforço imenso e que não conseguem espaço.

 

O que eu quero dizer é que eu acho que existe um Brasil submerso, né? Um Brasil submerso dos movimentos sociais que estão aí. E que todas às vezes que ele têm chance de se manifestar surpreende todo mundo. Qual foi a nossa surpresa com as diretas? Uai, todo mundo está pensando em política?!

 

O que uma pessoa com AIDS precisa de um amigo. É carinho, solidariedade, entende? Presença. É isso que precisa. E isso toda pessoa pode dar. Então, esse é um remédio que está ao alcance de cada um. Se uma pessoa com AIDS for cercada de carinho, ela poderá, não viver o tanto que ela queria, mas ela poderá até morrer tranqüila.

 

Eu não creio que a luta de cada um, que a luta política, que a luta por uma sociedade mais justa, mais humana, seja algo que possa se dissociar das relações das pessoas. Quando a política está lá e a gente está cá, algo está errado. A política tem que ser algo que esteja dentro da gente, nas relações concretas que a gente tem. Então, por exemplo, participar da questão da reforma agrária, de participar da luta da AIDS, ser solidário com essa menina que está sobrevivendo com esperança na questão do câncer, essas coisas estão todas misturadas. Estão todas muito misturadas. E uma das palavras ou das emoções para mim que mais me tem fortalecido, tocado, não é a dor nem a discriminação, é a solidariedade que situações de vida e de morte, e principalmente de vida, de construção de futuro, colocam para cada um. Eu acho que vale você apostar nisso, que é o forte. Apostar nisso é que é o bom, apostar nisso é que vale a pena. E eu que se ninguém acreditar em nada disso, realmente teria que se ver diante do espelho e falar assim: 'então para que eu estou vivendo?' Não é? Quer dizer, ou a vida realmente tem um sentido, e esse sentido tem que ser muito grande, ou então, realmente, não tem. Sabe, não tem porque a gente perder tempo com a gente mesmo nesse sentido. Agora, eu queria aproveitar e terminar dizendo o seguinte: eu gostaria que a gente aqui, neste País, pudesse chegar um dia e fazer um programa como esse, que fosse um programa de todas as coisas boas que a gente tem. De todos os desenvolvimentos da política, dos políticos, dos médicos, que fosse um grande programa eufórico, né? Eu creio que isso não é impossível, porque se a gente pensar bem, a possibilidade de construir uma sociedade diferente, insisto, não está no outro. Ela está em nós, em cada um de nós, se nós formos capazes de ver o outro, de nos relacionarmos com o outro, de termos solidariedade com o outro. E eu acho que isso é política. Eu não quero dissociar política da vida. Isso é que é política, é o dia que a gente conseguir construir uma sociedade em que você possa dizer assim: você é o irmão do Henfil, você é irmão do Chico? Sou. Dele e de todos os demais, né? Quer sejam eles hemofílicos ou não.

 

 

 

 

 

 

 

 

Um Poeminha Para Betinho

 

 

 

Você, Betinho,

que nasceu, viveu e suportou,

que enfrentou, lutou e amou,

 

ontem, mineirinho,

sob o jugo de nada, descrente,

mas, bem lá no imo, um crente,

 

hoje, no Ninho,

– adornado pela luz que espalhou –

pode dizer triunfalmente: Eu-sou!

 

 

 

 

 

 

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Notas:

1. Que sonha com a volta
Do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora!

2. Talvez, ao invés de ética da exclusão, fosse melhor denominar de anética da exclusão, e, melhor ainda, de amoralidade da exclusão. Muito melhor é filhadaputice da desirmanação.

3. E por que, geralmente, falta isto? Simplesmente porque a maioria das pessoas só vive o lado de fora, só olha para fora, é egoísta e insensível, e, por boçalidade conatural, não dá a mínima para o lado de dentro, onde, exatamente, está a Torre Inexpugnável, mas conquistável, do Castelo do Bem, da Beleza e do Amor, morada iluminada e iluminante, desde sempre, do Deus de nossos Corações. Até que esta nota, que começou circunspecta e reprochante, acabou ficando simpática e bonitinha!

4. Eu, que sou bem menos educado que o Betinho, direi: estão nas ruas porque estamos peidorrando, obrando, urinando, eructando, borcando e andando. Até que essa coleção de gerúndios não foi tão mal-educada assim!

5. Não quero corrigir, só quero acrescentar: Não há vida sem Vida!

 

Fundo musical:

O Bêbado e o Equilibrista
Compositores: João Bosco e Aldir Blanc
Intérprete: Elis Regina

Fonte:

http://www.charles50tao.com.br/samba_I.htm