O GUARDA-NOTURNO

Rodolfo Domenico Pizzinga

 

 

Música de fundo: I've Got The World On A String
(Ted Koehler & Harold Arlen)

Fonte: http://members.tripod.com/~ZoerMark/Newones.html

 

 

O GUARDA-NOTURNO

 

Um guarda-noturno trabalhava em uma empresa especializada em lapidação de diamantes. Era funcionário dessa conceituada empresa há 23 anos, e trabalhava todas as noites, segundo a opinião de todos os seus colegas, com empenho, exação e lealdade.

Na manhã de uma quarta-feira, antes de voltar para casa, ele pediu para falar urgentemente com o presidente da empresa, que costumava chegar ao trabalho às 7 horas. Imediatamente atendido, contou ao presidente que tivera um sonho naquela noite. Disse-lhe que sonhara que o avião que ele iria tomar no dia seguinte para Paris sofreria um acidente aéreo, cairia no mar e todos os passageiros e tripulantes morreriam no desastre.

O presidente, que tinha verdadeiro pavor de avião e que, além disso, era muito supersticioso, assustado com a informação do seu funcionário, decidiu cancelar o vôo.

Dois dias mais tarde, na sexta-feira pela manhã, a manchete principal dos jornais e a notícia que abria os telejornais era a queda do jumbo em que o presidente da empresa viajaria para a Cidade Luz, em pleno Oceano Atlântico. Até aquele momento não havia notícia de sobreviventes. O desastre havia sido pavoroso.

O presidente logo que chegou à empresa, imediatamente mandou chamar o guarda-noturno – que já estava informado do acidente – agradeceu efusivamente o aviso que lhe salvara a vida e, a seguir, sem dar nenhuma explicação, despediu-o da empresa. O guarda-noturno, sem compreender a atitude do presidente, arrasado, principalmente depois de ter salvo a vida do seu presidente, retirou-se do gabinete e dirigiu-se para o departamento de pessoal.

 


A pergunta é: Por que o guarda-noturno foi demitido da empresa? Se você não conseguiu chegar a uma conclusão, a resposta está no final do texto.

 

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A estória acima, obviamente, não aconteceu, mas é educativa no sentido de que embute na própria narrativa o motivo que levou o presidente da empresa em se decidir pela demissão do seu antigo colaborador.

Da mesma forma, os livros tidos e respeitados como sagrados, os contos esotéricos, as monografias místicas etc. escondem nas entrelinhas, de maneira velada – e, às vezes, cifrada – ensinamentos que os desatentos não percebem. Por outro lado, muitos têm o mau hábito de, sem qualquer esforço dialético, entender as coisas ao pé da letra. Se os textos, necessariamente, ocultam, a preguiça e o preconceito podem motivar muitos dissabores e até desgraças irremediáveis. A história não se cansa de nos ensinar isso. É sobre esse tema que refletirei neste despretensioso ensaio com três exemplos conhecidos.

 

1º Exemplo

 

Bíblia Sagrada, Evangelho de João, XI - Ressurreição de Lázaro

Disse Jesus: — Lázaro: sai para fora — E, imediatamente, como narra João, saiu o que estivera 'morto', porque, como já havia anunciado Jesus, a enfermidade de Lázaro não era de 'morte', mas para que que se fizesse a primeira 'compreensão' (), degrau iniciático para fosse (seja) alcançada a Sabedoria (). Cumpriu-se a sentença de Sócrates: Só é útil o Conhecimento que nos torna melhores. Lázaro não estava morto quando foi misticamente 'ressuscitado'. Este trecho do Evangelho de João (e não importa se o fato ocorreu da forma como foi relatado, e nem mesmo se ocorreu) alude simbolicamente a um tipo de Iniciação na qual o Iniciado jazia como se morto estivesse – em profunda letargia – por três dias e meio (84 horas), e ressurgia como um homem renovado. Daí o ensinamento místico-esotérico: para Nascer para a Vida, é necessário Morrer para a vida.

Sobre esse tema, há um pensamento de Michel Eyguem de Montaigne (1533-1592) extremamente esclarecedor: É mais negócio interpretar as interpretações do que as próprias coisas, e há mais livros sobre livros do que sobre outros assuntos. Só fazemos entreglosar-nos [entregloser]. É mais ou menos como disse Xenófanes de Cólofon: A opinião reina em tudo.

De certa forma fora do contexto do que me propus a examinar neste ensaio, o dramático acidente que ocorreu na usina nuclear de Chernobyl, em Pripiat, na ex-União Soviética, em 1986, também serve como exemplo. Depois da explosão do reator número 4, na madrugada fatídica de 26 de Abril de 1986, a radiação varreu tudo. A Cidade, depois da explosão do reator, teve que ser evacuada e o acidente inutilizou uma área equivalente a um Portugal e meio, ou seja, 140.000 quilômetros quadrados. Mas, o que provocou o acidente? Simplesmente prevaleceu sobre seus colegas a opinião absurda do engenheiro-chefe da Usina que estava encarregado pelo Sistema de fazer um teste na potência do reator. Contrariando temerariamente as normas de segurança obrigou que os testes fossem realizados absurdamente fora dos limites de segurança estabelecidos no manual de funcionamento do reator. Seus auxiliares, muito mais preparados do que ele, apesar de terem insistido e argumentado de que o teste não deveria ser realizado naquelas condições, foram sistematicamente humilhados durante a verificação, e, com receio de perderem o emprego e as mordomias e de serem enviados para a Sibéria, cederam. O resultado foi um desastre pavoroso de todos conhecido. Opinião + vaidade + desejo de ser promovido no Partido + autoritarismo + incompetência + não-sei-o-quê foram os ingredientes daquele horripilante desastre nuclear, no qual a opinião de um homem perturbado emocionalmente prevaleceu arbitrariamente sobre a dos demais. E é exatamente dessa forma que também prevalecem os múltiplos fanatismos. Vira-e-mexe também me lembro de Fernando e Isabel – o rei e a rainha de Castela e de Leão – do Papa Sixto IV e de Tomás Esquizofrênico-Assassino de Torquemada, o Inquisidor-mor para todos os territórios dos católicos Fernando e Isabel. E também dos espoliadores-coalizadores e dos inquisidores-terroristas de hoje. No fundo, são todos instrumentos e sócios dos Irmãos das Sombras.

 

Chernobyl, em Pripiat
ex-União Soviética


 

84  =  8  +  4  =  12

12  =  1  +  2  =  3

3  =  1

 

 

2º Exemplo

 

Disse Pai John: ... sou como um homem sentado debaixo de uma grande árvore, que vê bestas selvagens e serpentes vindo contra ele em grande número. Quando não pode mais, ele corre, sobe na árvore, e se salva. É a mesma coisa comigo; sento-me em minha cela e estou consciente de pensamentos maus vindo contra mim; e quando não tenho mais forças contra eles, busco refúgio em Deus pela oração, e sou salvo do inimigo. As bestas selvagens e as serpentes não são as bestas selvagens e as serpentes. São as nossas tentações e os os nossos demônios interiores. São realmente muitos e em grande número. Sentar-se em uma cela é isolar-se para meditar; é também afastar-se das ofertas mundanas; e é também entrar no castelo não expugnável para combater o bom combate contra as bestas selvagens e contra as serpentes que engendramos e partejamos conscientemente e inconscientemente. E refugiar-se em Deus é permitir que o Deus já parcialmente construído e em perpétua construção em nosso coração possa Falar em Silêncio.

O inimigo jamais será definitivamente vencido, pois não poderá jamais ser expulso de nosso interior. O místico sabe que é assim, e por isso não teme o inimigo. Com ele convive, mas o traz sob domínio, sob controle. Por isso, recentemente, escrevi em um texto que divulguei:

1º - Não apóio nenhuma forma de violência, ainda que, no passado, eu tenha sido, em um certo sentido, imoderado.

2º - Não apóio nem a vingança nem a retaliação, ainda que, no passado, eu tenha, em um certo sentido, retaliado.

3º - Não apóio nenhuma forma de assassinato, nem mesmo em legítima defesa, ainda que, no passado, em um certo sentido, eu tenha tido alguns pensamentos homicidas.

Uma das belezas do Misticismo é que os Místicos sabem que o Trabalho é interminável. Não existe um paraíso eterno e muito menos um inferno permanente. Essas construções são nossas. Simbolicamente, o místico carrega dois baldes: o primeiro contém o Bem, a Beleza, Justiça e a Humildade — o cimento, a pedra, a areia e a água com os quais constrói diariamente seu Mestre-Deus interior e pratica a solidariedade e o bem; o segundo contém apenas água, com a qual vai apagando o fogo invertido dos seus equívocos, das suas tentações, das suas cobiças, dos seus desejos, das suas paixões e dos seus desalentos. Esses baldes jamais poderão ser comprados, negociados ou recebidos milagrosamente; são adquiridos pelo Mérito e pelo Trabalho. Por acaso alguém já viu um ioiô funcionar sem um barbante? Portanto, o correto é: Homo est Deus et Diabolus. E a Serpente tanto pode simbolizar as trevas como a LLuz.

 

 

3º Exemplo

 

 

Na Surata de Abertura do Alcorão Sagrado está escrito: Bismillahi Al-Rahman Al-Rahim... Ihdina Siráta al mustaquim... Em Nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso... Guia-nos à Senda Reta... Mesmo o mais abominável dos homens não está definitivamente condenado. O primeiro passo para a reconciliação é o arrependimento absolutamente sincero. Não por medo; não porque um Deus possa perdoar quem se arrepende; não por qualquer pensamento hipotético; não porque alguém pertence a uma ou a outra confissão religiosa. Não. Mas pela compreensão dos erros cometidos. Essa é a primeira chave.

Simbolicamente há duas sendas: a da esquerda e a da Direita (a Senda Reta Alcorânica); a que conduz para baixo e a que Eleva; a que dissolve e a que Liberta e Illumina. No momento inicial — ontem, hoje ou amanhã — quando uma vela é acesa na caverna do nosso desespero-ignorância, o primeiro impulso é clamar por Deus — construção pensamentar simbólica do Bem, da Beleza, da Justiça da Clemência e da Misericórdia. Em um dado momento de nossa Pereginação pela dualidade compreende(re)mos que os Deuses foram criações humanas para servir de paradigma para as categorias acima, e para outras como a Humildade, a Solidariedade, a Tolerância, a Força, a Vontade etc., e, infelizmente, também para outras como a vingança, a punição, a retaliação, o julgamento etc. Então, não mais clama(re)mos por Deus para fazer justiça e para sermos guiados à Senda Reta. Passa(re)mos nós mesmos a construir essa Senda Reta e augura(re)mos para que todos construam suas Sendas Retas pessoais. Em última instância, somos, individual e coletivamente, os responsáveis por tudo. E, historicamente, não há um único Estado neste Planeta que não tenha sido construído, em algum momento, sobre a dor e sobre o sangue. Somos todos responsáveis!

Por isso, nenhuma religião pode ser desqualificada no que tem de mais belo: incentivo à crença na existência de um Ente Supremo como causa, fim ou lei universal, primeiro portal para a compreensão de que esse Ente Supremo está em nós como causa e como efeito, como começo e como fim e como lei indissociável e inerente à Lei Una, Perpétua, Imutável, Autônoma e Imparcial.

O Profeta Muhamma (que a Paz e a Bênção estejam com Ele), da mesma forma que Issa-Jesus (que a Paz e a Bênção estejam com Ele) e outros Altos Iniciados, não podiam, na época em que se manifestaram neste Plano, dar à Humanidade o que ela não estava preparada para receber. Assim falaram por parábolas — narrativas alegóricas que encerram preceitos religiosos ou morais, especialmente as encontradas na Bíblia Sagrada e no Sagrado Acorão — e usaram imagens e fatos da época que muitos ainda insistem em compreendê-las em seu sentido literal, ainda que tais fatos e tais imagens, em muitos casos, não se apliquem mais no mundo contemporâneo.

Por isso, repito: assassinar é suicidar-se; suicidar-se é assassinar. Ou será que alguém pode admitir que um Alto Iniciado ou Profeta possam ter recomendado e ter estimulado qualquer tipo de matança em nome do que quer que seja? Nem a Bíblia (particularmente o Segundo Testamento) nem o Corão (particularmente a Surata de Abertura) autorizam essa ilação.

 

 

Infelizmente, tanto no Ocidente quanto no Oriente, muitos pensam que sim. O que restará, por exemplo, do Iraque depois de tanto sangue? Eu só consigo enxergar o fim do conflito que se abateu sobre o Iraque, se e quando as forças ditas de coalizão tirarem suas botas e seus tanques de lá. Esse conceito arbitrário e preconceituoso de eixo do mal poderá levar o mundo a um impasse, e já ceifou a vida de milhares de seres humanos apenas porque possuem outra cultura e outra religião. É claro que por trás de tudo isso está o petróleo iraquiano. Quem sabe, de repente, possa acontecer um milagre e todo aquele petróleo seque de uma hora para a outra. Eu não tenho a menor dúvida de que se isso pudesse mesmo acontecer os coalizadores sairiam de lá em cinco minutos. O investimento não iria mais valer a pena. Por outro lado, nada disso justifica o terrorismo e a matança de civis. Assassinar é suicidar-se; suicidar-se é assassinar.

 

 

Em minha ilusão fraterna fico imaginando que poderia ser agora, por exemplo, que a potência nuclear Índia poderia se reconciliar com a potência nuclear Paquistão, ajudando empenhadamente esse País em virtude do terremoto devastador (7,6 graus na Escala Richter) que se abateu sobre a região da fronteira entre o Paquistão e a Índia (com epicentro na região montanhosa da Cachemira paquistanesa), ontem, madrugada de sábado, 8 de Outubro de 2005, com reflexos na Índia, no Afeganistão e em Bangladesh. Até agora já se sabe que morreram mais de 30.000 pessoas.

 

 

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Resposta: Se o funcionário é um guarda-noturno, e se teve um sonho à noite, é porque estava dormindo no serviço! Por esse motivo, o presidente da empresa resolveu demiti-lo.

 

 

 

Websites Consultados

http://www.quixote.tv/index.htm

http://www.islam101.com/art/bismillah.html

http://educar.sc.usp.br/licenciatura/1999/cher.html

http://oglobo.globo.com/online/ciencia/default.asp?2